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quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Por que não sou (mais) conservador

por Horácio Neiva

Por muito tempo hesitei em escrever este texto. E a verdade é que ainda estou hesitante. Quero crer que o motivo da hesitação é minha tendência natural a evitar confrontos diretos, sejam reais ou virtuais, e restringir todo e qualquer tipo de discussão àqueles círculos onde elas menos causam danos (e, em verdade, menos surtem efeitos) — os círculos de amigos. Essa tendência, junto a uma certa autoimagem que nutro de mim mesmo segundo a qual o mundo não precisa perder tempo com minhas opiniões, foram contrapesos fortes o suficientes para impedir que meus pensamentos tomassem a forma de textos, o que por certo preservou a humanidade dos delírios de uma cabecinha juvenil. Thank to them.

Mas algo mudou. Continuo evitando confrontos, e continuo não tendo uma autoimagem muito pomposa de mim mesmo. Então, Horácio, de que se trata essa mudança? Digo-lhes agora: eu não sou um conservador. Ou pelo menos, não sou mais. O que vai a seguir é a história (resumida, não se preocupem) de minha segunda conversão.

Antes de continuar, no entanto, devo tranquilizar meus amigos, acostumados que são à minhas opiniões supostamente conservadoras nas nossas conversas em privado. Não mudei minhas opiniões, ou pelo menos não as mudei em geral. Apenas não me identifico mais com nenhum grupo — conservador ou progressista — porque, afinal, ninguém deveria fazê-lo.

Não sou um conservador. Mas não se preocupem: não sou um progressista, nem um comunista, nem um anarquista. Não me joguem pedras, por favor. A grande descoberta que fiz, o motivo real de minha segunda conversão, foi essa: ninguém deve ser conservador, progressista ou o que quer que seja. Uma agenda ou um credo político não são, até onde sei, critérios de veracidade para nossas crenças e opiniões.

Não sou contrário ao aborto por ser um conservador. Não sou contrário aos excessos de intervenção estatal por ser um liberal. E o fato de não achar que quem vota no PT é um monstro moral não me torna um esquerdista inveterado. Simples, não?

Nem tanto. Dificilmente alguém negaria que devemos testar nossas opiniões no tribunal da razão (e, para os que creem, da fé); dificilmente alguém sustentaria que defende tal ou qual opinião porque ela é adequada às crenças de um determinado grupo. Ninguém diz que é contra o casamento gay porque "essa é a opinião conservadora a respeito do casamento gay". Isso é óbvio. Não estaria eu dando a obviedades ares de descoberta científica? Sim e não.

Sim porque, de fato, é uma obviedade que devemos ter opiniões que julgamos verdadeiras, não opiniões que julgamos conservadoras. E não porque essa obviedade parece ter sido esquecida no que podemos chamar (sem muita precisão, é verdade) de conservadorismo brasileiro.

E isso me leva a um segundo ponto. Como já ficou claro, é do conservadorismo que quero tratar. Deixemos progressistas, comunistas e tudo mais para outra oportunidade. Pois bem: eu não sei mais o que é conservadorismo. Nunca soube, na verdade. Portanto, não posso ser algo que não sei o que é. Como cheguei a essa conclusão? É o que vai a seguir.

Como todo bom conservador de vinte anos de idade, eu não nasci conservador. Passei a maior parte da minha juventude alheio aos grandes problemas da civilização ocidental. Passar no vestibular era para mim uma preocupação mais importante do que conter o avanço comunista global. Também não tinha grandes tormentos espirituais. Não estava em busca de uma resposta para o sentido da vida e, salvo um curto período de ateísmo bocó, sempre fui católico.

Parênteses: é interessante como alguns jovens conservadores gostam de romantizar a própria biografia. Um certo espírito de rebeldia juvenil que todos temos em algum momento de nossas vidas torna-se um "negro passado esquerdista"; o desconforto com missas demoradas torna-se um "negro passado ateísta"; um livro de Nietzche e alguns CDs de Heavy Metal tornam-se um "negro passado niilista". Antes que me acusem de estar falando de terceiros, confesso desde logo que por muito tempo fui um desses "jovens conservadores" que romantizam a própria biografia. Mas isso não é importante. Fecha parênteses.

Para abreviar as coisas, passei no vestibular (valeu a pena abster-me de combater o comunismo), ingressei na faculdade e, finalmente, tinha tempo para dedicar-me ao que era realmente importante — filmes e internet. A coisa poderia ter seguido assim por uns bons cinco anos, afinal, não é muito difícil formar-se em Direito. Mas houve uma pedra no caminho. E a pedra foi um professor de Filosofia. Esse professor de alguma forma me despertou o interesse pela Filosofia, e antes que os conservadores dirijam-lhe o pior xingamento da lista de xingamentos do conservadorismo brasileiro ("Professor universitário!"), apresso-me em dizer que ele era (e é) um excelente professor.

Eu poderia agora dizer que meu professor desencadeou em mim o desejo latente pela Verdade, que tocou o interior da minha alma ou que se operou uma mudança no meu espírito, mas estaria romanceando meu passado. Não houve esse tipo lirismo. Comecei a ler livros de filosofia, interessei-me pelo assunto e prossegui estudando.

Lia livros de forma desordenada e, na verdade, não estava ciente de nenhuma debacle cultural. Um amigo me introduziu a algumas leituras conservadoras, gostei do que li, e daí para o conservadorismo inveterado foi um pulo. Por que estou dizendo isso? Porque eu, como aliás muita gente, não chegou ao conservadorismo por uma percepção profunda do mal estar moderno, dos males do progressismo, pela decadência cultural que nos assola a vida e o espírito. Cheguei ao conservadorismo de forma natural, prosaica até. Li alguns textos, depois alguns livros, aquilo me parecia bem escrito e bem argumentado, então concordei.

Tornei-me um conservador. Ou pelo menos, era o que eu dizia. Passei a criticar os males modernos que nunca vi, passei a propalar a decadência da civilização que nunca percebi, e a defender um retorno à tradição que eu jamais conheci. Adotei uma opinião conservadora, depois outra, e mais outra. Ao final, adotei o conservadorismo puro e simples. Se o conservadorismo estava certo a respeito de x, se estava certo a respeito de y, deveria estar certo a respeito de tudo. Eu não queria ter opiniões corretas. Queria ter opiniões conservadoras.

No início, ainda havia um pouco de sanidade. Nunca havia parado para considerar os argumentos contra ou a favor do aborto. Ao tornar-me um conservador, resolvi pensar a respeito (para os que não sabem, é uma obrigação conservadora). Acredito que tornei-me contrário ao aborto por considerar essa a posição correta, mas, olhando para trás, já não sei se o fiz por considerar essa a posição conservadora. Em matéria econômica, passei a defender o estado mínimo, é claro. Mas confesso agora que tudo que li na época foram textos de "autores liberais". Não fui convencido, porque não precisei ser convencido. Só conhecia um dos lados da questão e não era difícil posicionar-me. E assim prossegui, percorrendo o glorioso caminho conservador: lendo apenas autores conservadores, considerando apenas as opiniões conservadoras, e criticando qualquer autor não conservador (o fato de eu não tê-los lido era irrelevante).

Em poucos meses eu não era só um conservador. Era um cruzado, detido apenas por aquela tendência que apontei anteriormente. Meu verbo favorito era "pontificar". Não bastava eu mesmo ter-me tornado um conservador. Aqueles que não eram (porque simplesmente não estavam preocupados com isso), estavam no erro, na mentira, eram almas pervertidas que deveriam ser convertidas. Não bastava o Bispo de Roma ser infalível. Eu mesmo deveria ser infalível. Afinal, não era disso que se tratava o conservadorismo?

Essa foi minha primeira conversão. O que me tornei após ela? Acreditava que havia me tornado mais inteligente, mais instruído, talvez até um spoudaios, como eu mesmo gostava de dizer. Nada mais longe da verdade. Se me tornei algo, foi um dogmático fundamentalista. Ou, para ser mais direto, um chato de galocha.

Havia, obviamente, algo de errado com o conservadorismo, ou pelo menos com o meu conservadorismo: ele tornara-se uma visão de mundo. Uma vez tendo adotado-a, raciocinava apenas dentro das categorias conservadoras, se é que raciocinava. Quando me pediam uma opinião sobre um assunto que ainda não havia considerado, ia para casa e pesquisava nas minhas fontes conservadoras. Não discutia o mérito do problema — não era preciso.

Meu conservadorismo era marcado por alguns traços distintivos: ele era anticientífico e antiacadêmico. Anticientífico não porque rejeitasse uma espécie de "ideologia cientificista" (se é que há algo do tipo) ou o que se tem chamado de "naturalismo", mas porque rejeitava os resultados obtidos pela ciência (resultados concretos, vale lembrar) quando eles fossem de encontro a alguma posição conservadora; antiacadêmico porque tudo que viesse de alguma universidade, nacional ou estrangeira, simplesmente estava errado. Todos os acadêmicos profissionais do mundo estavam iludidos, na mentira, sem a exata noção do atual estado de coisas. Não passava pela minha cabeça que muitos deles já haviam lido tudo que eu tinha lido. Se o tivessem feito, pensava eu, teriam tornado-se conservadores (e provavelmente abandonado a academia).

Mas o traço principal, o traço mais importante do meu conservadorismo, é que passei a propagar, sem muita reflexão, o "elogio da tradição". O teste da verdade era agora o teste do tempo. Mas será que isso era realmente verdade? Não importava. Essa era uma questão proibida para um conservador. A tradição, tal qual a trindade, tornara-se um dogma de fé. O problema? Eu não sabia realmente a que tradição estava me referindo. É claro que, como era um conservador, dizia ser a "tradição judaico-cristã ocidental", que jurara proteger com todas as minhas forças, e com toda a minha alma. Instituições como a escravidão e a tortura, igualmente aprovadas no rigoroso teste do tempo, não entravam na conta. A razão? Algum autor conservador provavelmente as excluiu.

O leitor deve estar agora pensando que estou sendo muito rígido comigo mesmo, provavelmente exagerando alguns traços da biografia, e atacando um espantalho que chamei de conservadorismo. Quanto às duas primeiras preocupações, devo tranquilizar o leitor. Não estou sendo rígido, nem exagerado (ok, talvez um pouco). Isso não importa. O que importa realmente é a última preocupação: esta caricatura de conservadorismo não é o verdadeiro conservadorismo. Estou dizendo que era um conservador, mas na verdade era um idiota. Um genuíno conservador é coisa bastante diferente.

Concedo, sem constrangimento, todas essas colocações. Mas quero também levantar uma questão: o que, afinal, é o conservadorismo? Este não é o espaço para discorrer sobre esse tema. Meu ponto com essa pergunta é outro: os nossos jovens conservadores não sabem o que é conservadorismo. Pior: não fazem questão de saber.

"O fato de você não saber o que é não significa que os outros conservadores não o saibam", pode retorquir o leitor. Bem, isso é verdade. Talvez eu esteja generalizando demais, tomando o meu próprio caso como se representasse todos os casos. Posso estar enganado, o que admito (afinal, não sou um conservador). Escrevi essas linhas excessivamente autobiográficas para mostrar o meu caso. Será que o leitor pode achar outros casos parecidos? Talvez um amigo, um conhecido — talvez você mesmo, quem sabe?

O que ouço em conversas e, principalmente, vejo nas redes sociais, parece indicar que casos como o meu não são raros, nem mesmo exceções. Quem já discutiu com um conservador de vinte anos sabe do que estou falando. Mas não serei injusto: há conservadores diferentes, mais inteligentes do que eu sou (e fui). O leitor pode procurá-los (mas aviso que o esforço será grande). Eles é que são a exceção. Ou, pelo menos, tornaram-se a exceção. A regra é o mesmo tipo de conservador que eu já fui, e se esses conservadores dão alguma ideia do que é, realmente, o conservadorismo, devo dizer que ele não passa de birra juvenil.

Como deixei de ser um conservador, está na hora de perguntar? Quais as circunstâncias da minha segunda conversão? Sinto desapontá-los mais uma vez: deixei de ser um conservador da mesma maneira que me tornei um — de forma prosaica e natural. Se houve algo de diferente, um clímax se quiserem, foi um estalo, que não recordo quando ocorreu: e se eu estiver completamente errado? Se tudo que estive defendendo não passar de erros grosseiros, mentiras, ilusões? Essa dúvida foi suficiente para afastar-me do conservadorismo — conservadores não têm dúvidas.

Desde que me tornei um ex-conservador, confesso que senti-me aliviado. Pude finalmente ler livros sem precisar saber de antemão se os autores eram ou não "de direita". Pude considerar os argumentos a favor de diversas opiniões, sem precisar aceitá-los ou rejeitá-los pelo seu pedigree. Formar uma opinião tornou-se mais difícil, é verdade; mas a vida tornou-se mais leve.

Espero que meus amigos conservadores (os bons conservadores) não se sintam ofendidos com esse texto. Não estou criticando o conservadorismo enquanto tal. Estou criticando um certo tipo particular de conservador, aquele conservador que eu mesmo fui e que vejo muitas pessoas ainda sendo. Gostaria de que os bons conservadores provassem que estou errado, que eu era uma exceção, afinal. Temo, no entanto, que isso não irá ocorrer. Caso ocorra — bem, isso ainda valerá como um relato autobiográfico.

No final das contas, talvez nossas posições políticas sejam como a felicidade: só podemos dizer de alguém que foi realmente um conservador no momento de sua morte. Até lá, sempre é possível discordar, rever nossas opiniões, reconsiderar nossas crenças, pensar fora da cartilha. Se, no fim, acontecer de termos opiniões conservadoras, será uma coincidência — e nada mais.

Por que deveríamos ser conservadores (ou progressistas, ou o que quer que seja)? Por que não ser, simplesmente, amantes da verdade?

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Não Somos Anões

É a segunda vez que João Mellão Neto traz o conservadorismo para o debate na grande imprensa (“Eu sou um conservador“, Estado de S. Paulo, 16/11/12). E acho que ele deve ser aplaudido por fazê-lo: novas posições, autores e referências são sempre bons em nossa cultura política cada vez mais carente de ideias. Neste segundo artigo fica explícita a influência, que já se fazia sentir no anterior, de Russell Kirk e Edmund Burke (se ele reproduz bem o pensamento desses dois autores é algo que não posso julgar).

Voltam à baila os pontos principais que ele frisara anteriormente: que os arranjos institucionais que chegaram a nós passaram por longos testes e portanto devem ser os melhores, e que nós, modernos, em relação a nossos antepassados, debruçamo-nos em ombros de gigantes. Isso não quer dizer ser avesso a toda e qualquer mudança, e sim que as mudanças propostas serão sempre graduais, aprimoramentos marginais ao invés de reformulações totais.

Além disso, há dois elementos novos. O primeiro é o rechaço ao relativismo moral; e o segundo é o valor dado ao meio-ambiente e à natureza. E quero me dedicar aqui ao primeiro desses, que ilustrará bem o que vejo como a fraqueza no cerne do pensamento conservador defendido por Mellão Neto. Diz ele:

“Voltando às principais teses conservadoras, um conservador de verdade não tolera o relativismo moral. Ainda no século passado, terríveis consequências sofreram os povos onde ocorreu um colapso da ordem moral, onde os cidadãos transigiram quanto a isso. A moral há de ser uma só, seja ela fruto de revelação divina ou tenha sido forjada pela convenção humana. Ela é o resultado de um arranjo costumeiro, cuja origem data de tempos imemoriais. E é ela que nos preserva do abismo.”

A princípio parece apenas uma defesa de uma moral/ética objetiva, ou seja, não dependente de caprichos ou adesões irracionais; mas leiam com mais cuidado. Ele diz que a moral há de ser uma só, e não que ela seja uma só. A confirmação disso é que ela pode ter origens díspares: revelação divina, convenção, arranjo costumeiro (o que está ausente: realidade, razão; tudo o que seja universalmente e objetivamente acessível a todos). Ao dizer isso, não se está rejeitando o relativismo moral; se está rejeitando apenas a variabilidade dos juízos morais, o que é muito diferente. Não se rejeita que a origem da moral esteja em alguma instância arbitrária (no capricho ou no salto de fé – que pode ser qualquer fé); rejeita-se, isso sim, que, existindo um código moral, outros existam paralelamente a ele. Isso é a ruína, isso nos joga no caos e no abismo. “A moral há de ser uma só”; não importa que seja verdadeira –cabe falar de verdade no âmbito das convenções? – e sim que seja a única. Nessa visão, o único ato verdadeiramente proscrito é propor um critério ou um valor moral diferente do dominante. Se a sociedade for escravocrata, tudo está bem; o problema nesse caso seriam os abolicionistas, ao introduzir princípios de desordem e desunião ao consenso moral outrora coeso.

Viver em um mundo escravocrata onde os homens podiam bater nas mulheres impunemente ou em um mundo em que todos tenham seus direitos individuais respeitados? Esse é o tipo de decisão que deixaremos nas mãos dos antepassados?

Nos ombros de gigantes?

O problema do conservadorismo expresso por Mellão Neto (trata-se ou não de leitura fiel de Kirk?) é que, no final das contas, ele redunda em nada mais do que uma recusa a se pensar racional (e, portanto, sistematicamente) sobre as questões da vida e da sociedade: o que nossos antepassados fizeram já deve ser o melhor; e, demais, como saber? Somos só anões em ombros de gigantes…De onde tal complexo de inferioridade? De onde se tirou que nossos antepassados sabiam mais do que nós? Tempo não é critério. A medicina tradicional do Ocidente durou milênios; e mesmo assim estava quase que completamente errada e foi completamente solapada pela medicina moderna. O mesmo vale para a física de Newton, que enterrou de uma vez por todas as doutrinas físicas aristotélicas (o que não tira, obviamente, o valor delas para o progresso do conhecimento humano). Nos campos moral e político, há progressos inegáveis também: a instauração de direitos individuais, e a descoberta de como funciona o mercado (que possibilitou diversas medidas políticas acertadas ao invés de completamente erradas), o fim da escravidão, o fim da condenação à morte por homossexualidade, o consenso hoje incontestável da igualdade dos sexos (e, portanto, do fim de práticastradicionais como a punição física da esposa), a condenação moral e proscrição da tortura, a conquista da liberdade religiosa. Como alguém pode afirmar que não houve “progresso algum”?

O que não quer dizer que a história seja feita só de progressos; meu ponto é que os progressos e retrocessos, especialmente em matéria política, são cognoscíveis e factíveis; e que portanto não devemos abrir mão inclusive de mudar radicalmente de rumo se algo que foi legado pela tradição vai demasiadamente mal.

Como uma ressalva quanto aos meios, como um alerta para que não se destrua as instituições vigentes levianamente, ele é válido: pois sabemos que o colapso das instituições básicas é terreno fértil para todo tipo de monstruosidade. Então, na medida em que, imperfeitas como sejam, as instituições garantam algum mínimo respeito a esses direitos, é melhor preservá-las. Se elas se convertem, contudo, em violadoras sistemáticas de nossos direitos (a tirania), daí já passa a ser louvável tentar derrubá-las mesmo. A mera antiguidade não prova nada. Os antigos não foram gigantes, e nem nós somos anões. Ouso dizer que é graças ao fato de eles não terem sido plenamente conservadores, mas de terem tido a coragem de inovar e romper consensos estabelecidos, que hoje gozamos dos progressos por eles alcançados e podemos mirar mais longe.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Filipe Faria, o Naturalismo Ético e o Conservadorismo Biológico

Filipe Faria me respondeu, estabelecendo este diálogo entre um liberal brasileiro e um conservador português. Nada a ver com a discussão, mas sinto falta de uma maior integração na internet de língua portuguesa. Um brasileiro circula por sites - e se comunica basicamente com - brasileiros. Imagino que uma situação similar se dê entre os portugueses (e as demais nações que falam o português, por onde andam? Conto nos dedos os acessos vindos da Angola para nós). Quem sabe esta conversa seja o sintoma de uma melhora na integração entre os lusófonos, que um dia será igual à da internet de língua inglesa.

Voltando ao debate: parece-me que Faria sequer tocou no ponto central, que é a impossibilidade de derivar qualquer juízo normativo de afirmações positivas sobre os costumes ou a biologia humanos. O exemplo emblemático da minha tese, trazido pelo próprio Faria, é o do nepotismo.

Como ele diz, os homens são naturalmente nepotistas. Para esta discussão, definamos o nepotismo como uma preferência pelos próprios familiares. Ora, tal preferência é, em alguns casos, perfeitamente aceitável, virtuosa e quase obrigatória (imagine um pai que seja completamente neutro e imparcial entre levar ao cinema o próprio filho ou qualquer outra criança do planeta). Em outros casos, contudo, o nepotismo é uma grave falha moral, como no caso de um político que dá cargos a parentes. Em ambos esses casos, o nepotismo é natural, fruto de uma tendência arraigada na natureza humana, nos genes. O que faz dele bom em um caso e mau no outro não pode ser, portanto, seu caráter natural, que ambos os casos partilham. Logo, não é o fato de algo ser natural que determina se um ato é bom.

Em casos como o nepotismo na administração pública, o virtuoso é exatamente contrariar a natureza biológica. De fato, os países mais civilizados e desenvolvidos do mundo são aqueles que conseguiram, entre outras coisas, varrer do costume nacional esse nepotismo político. A cultura política desses povos (em que corruptelas comuns na vida política brasileira são simplesmente impensáveis) reflete um longo processo de aprimoramento moral, que tem como um de seus pressupostos a convicção de que é possível elevar-se para além da mera tendência biológica; convicção comprovada pela prática.


Enfim, o desafio para o naturalismo ético continua de pé, e sinceramente é improvável que Filipe Faria ou qualquer outro consiga vencê-lo (não estou contando vantagem; afinal, quem apontou a falácia naturalista não fui eu!). 


Ele se prendeu demais a uma opinião de passagem minha, referindo-me com ceticismo a supostas diferenças de inteligência e capacidade entre as raças humanas, como se isso me tornasse partidário do mais ingênuo igualitarismo, que precisa acreditar dogmaticamente que todos os indivíduos são iguais em tudo. Nada mais longe da verdade; não tenho nenhuma dúvida de que as capacidades individuais variam; e apesar de não crer que existam provas sobre diferenças entre as raças, também não nego a possibilidade. O que penso é que essas diferenças de capacidade são apenas parte da história. Como são raríssimos os que atingem plenamente seu potencial, é perfeitamente possível que pessoas com capacidade inferior atinjam melhores resultados do que outras com maior capacidade. Além disso, o que constitui capacidade menor ou até entrave em um campo da ação pode ser benéfico em outro.


Mudemos um pouco de problema. Faria aproveitou seu texto para comentar o que, na opinião dele, está errado com esse monstro tão querido a que chamamos "direita", e em cujo altar eu também, afinal, sacrifico minhas pombinhas. Detesto o termo, assim como "esquerda", por mascarar sob si um conjunto muito heterogêneo de crenças e valores sem unidade real. Além disso, a rivalidade histórica entre os dois lados cria uma rejeição sentimental automática de um para o outro, o que ocasiona muitas discussões e inimizades espúrias. Todavia, como não dá para travar uma guerra constante contra o uso contemporâneo das palavras (é preciso focar os esforços!), reconheço que minhas posições são classificadas no grupo da direita. Vejamos, então, o diagnóstico que Faria faz do fracasso político desse grupo.
Há igualmente algo de relevante a dizer do ponto de vista político. Joel Pinheiro diz que já participou brevemente no “O Insurgente”, pelo que é razoável especular que não se considera de esquerda. Contudo, se fosse de esquerda, o seu discurso tinha sido exactamente igual. Mesmo a parte onde se opõe à engenharia social seria corroborada pela esquerda (que nunca define o que faz como “engenharia social”).
Isto explica como a direita foi totalmente aniquilada pelo pensamento de esquerda (nomeadamente da new left). A vitória do pensamento igualitário de esquerda foi tão pronunciado que mesmo a direita não consegue fugir desse paradigma. Sem surpresas, por ter de jogar dentro das regras que a esquerda definiu e impôs, por ter de argumentar dentro de uma moldura (framework) igualitária, a direita está sempre a perder campo político porque não tem a força da coerência e persuasão; e perde de tal forma que se transforma em esquerda; tal como é possível de aferir pelo texto do Joel Pinheiro.
Não fica totalmente claro o que Faria quer dizer com "igualitarismo". Se for a tese de que todos os indivíduos são estritamente iguais em suas capacidades, não a defendo (nem o fiz em meu texto anterior), e nem, parece-me, a direita em geral. Agora, se por "igualitarismo" ele se refere à proposta de que os homens sejam todos iguais em seus direitos perante uns aos outros, e que sejam tratados e respeitados pelo ordenamento jurídico segundo sua igualdade fundamental, então sua rejeição não é à "esquerda", mas à razão humana enquanto tal.

O que falta à direita não é uma rendição automática a qualquer vício que calhe de ser natural ou comum a um povo, e muito menos aos tribalismos e ao domínio dos superiores sobre inferiores, como se fosse tudo inevitável. Isso é o que sobra; isso é o que tem matado toda oposição aos projetos de esquerda, sejam eles comunistas, socialistas ou intervencionistas. A que me refiro? À falta de um ideal.

Não se pode substituir algo por nada. A esquerda pode estar completamente equivocada, e seu pretenso ideal ser algo detestável (quando se entende o que ele significa na prática), mas ao menos ela tem um. A direita conservadora carece até mesmo disso. Ela sabe do que ela não gosta: do socialismo. Mas também não tem nenhuma aspiração a oferecer. Por isso mesmo é, verdadeiramente, reacionária; ou seja, funciona em reação a mudanças com um objetivo claro (e mascara sua falta de propostas chamando a seus adversários de utópicos, idealistas, teóricos, partidários da razão abstrata, etc.), sem propor nada. "Nossos antepassados faziam assim; nossa tradição ordena que seja assim; nossos genes determinam que seja assim. Paremos de mirar um céu inatingível; baixemos nossa visão a nossos próprios pés. Enquanto ficarmos parados, continuaremos vivos."

Existem diversas formas de conservadorismo. O puramente cultural e o religioso têm seus aspectos negativos (embora eu critique a ambos, eles ao menos visam preservar coisas boas, ainda que sem o espírito animador que as faz boas e que nos faz aderir ao bem), mas o conservadorismo biológico é o pior de todos. Seu olhar nostálgico não se volta para a Idade Média ou para o século XIX, e sim para o tribalismo da Idade das Trevas ou, ainda, para o mundo pré-cristão (qual foi o impacto político do cristianismo, afinal, senão a elevação de todos os indivíduos humanos à mesma igualdade fundamental, acima de diferenças culturais e biológicas?). O que dizer de um ideário que lamenta a instituição do Estado imparcial e impessoal, do império da lei sobre o capricho do soberano? O que ele nos ofereceria como alternativa, dado seu louvor (ou, ao menos, derrotismo) ao nepotismo, ao tribalismo e às demais tendências espontâneas da biologia humana? Onde podemos observar esses "ideais" de forma mais pura, menos poluídos por influências igualitárias ou de esquerda como a filosofia, o cristianismo ou o pensamento político ocidental de S. Tomás para frente? Creio que um bom mostruário são os hutus e tutsis.

Para se contrapor a esse tipo de conservadorismo biológico, que acaba defendendo o tribalismo e quaisquer relações de conflito ou violência existentes, não é preciso ser socialista, de esquerda, e nem defender a intervenção estatal na vida humana; basta crer que a razão humana, e não os instintos, deve ser o guia último de nossas vidas.

A direita, pelo que quero dizer a defesa do capitalismo ou livre mercado, ao contrário da esquerda (que tem abandonado suas velhas bandeiras por percebê-las impraticáveis), tem o embasamento teórico coerente necessário para defender seus ideais. Os valores da criatividade humana, da benevolência e da iniciativa e mérito individuais podem ser concretizados e vividos no mundo real. Eles dependem, entre outras coisas, do reconhecimento dos direitos individuais inalienáveis e iguais a todos, que a tradição ocidental, a única verdadeiramente anti-conservadora, foi capaz de instituir.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Medindo a Felicidade

Há pouco mais de uma semana saiu um artigo no The New York Times (“Conservatives are Happier than Liberals“) que tem dado o que falar. Escrito por Arthur C. Brooks, presidente do American Enterprise Institute, o artigo não deixa dúvidas de que fala de um ponto de vista “conservador”, “de direita”, ou como preferirem. Ainda assim, tenta dar algum tipo de voz ao outro lado. Ele levanta, entre as possíveis causas dos conservadores serem mais felizes, a explicação, dada por pesquisadores à esquerda, de que os conservadores se preocupam menos com a infelicidade alheia e com as injustiças que assolam o mundo. Brooks combate essa interpretação, mas cita-a, deixando claro que sua leitura não é a única existente.
É sintomático de nossa grande mídia que, na tradução do artigo para o Estado de S. Paulo (“Conservadores são mais felizes”) esteja estampada, no topo da página, a chamada: “Uma razão: diferentemente dos liberais, eles não se preocupam com a desgraça alheia e ignoram a injustiça”. Ou seja, o que aparecia como uma opinião da esquerda que o autor citava para combater, na versão brasileira aparece como uma verdade objetiva, neutra, emitida pela realidade enquanto tal. E como a chamada é tudo que muitos dos leitores lerão deste artigo, essa é a mensagem final que a versão brasileira passa: “conservadores, felizes porque alienados”.
Mas o que me interessa não são as falhas da mídia nacional, e nem a tese de Arthur Brooks enquanto tal (a de que os conservadores sejam mais felizes), mas a premissa da qual ela e tantos outros estudos similares dependem: a de que a informação revelada pelas pesquisas de felicidade é confiável e útil.
Essas pesquisas (um exemplo citado por Brooks é esta) baseiam-se no self-report, ou seja, em respostas que entrevistados dão acerca de sua própria felicidade. Deixando de lado a possibilidade de definições radicalmente diferentes do termo “happy” ou “feliz” circularem por aí (e talvez não devêssemos deixá-la de lado assim tão facilmente…), o que a pesquisa está perguntando aos entrevistados é como eles avaliam o próprio bem-estar: se estão/são alegres, otimistas, de bem com a vida, ou tristes, desesperançosos, etc. É uma pergunta que visa conhecer algo do que se passa dentro da pessoa; cuja resposta revela, portanto, um dado subjetivo de quem responde.
O bem-estar subjetivo pode advir de uma série de fatores, nem todos eles bons ou válidos em uma consideração objetiva. Um homem que viva plenamente iludido pode estar plenamente contente em sua ilusão. Um seguidor de algum culto trambiqueiro pode sentir-se feliz e seguro com a ideia de que ele é um iluminado, embora não o seja. Esse tipo de satisfação, parece-me óbvio, embora seja subjetivamente real (o indivíduo está, de fato, feliz), não é desejável e muito menos invejável.
Se a felicidade advinda de diferentes variáveis será usada como critério para argumentos sobre a superioridade dessa ou daquela crença e estilo de vida, ou, ainda mais, para políticas públicas (e Arthur Brooks é defensor ativo de que pesquisas de felicidade tenham impacto político; aliás, o FIB, felicidade interna bruta, tem recebido atenção crescente de sociólogos e políticos), a mera opinião pessoal de cada um acerca de seu bem-estar subjetivo não é lá muito relevante.
Essa observação já deveria dar um choque de humildade nas pretensões que animam artigos como o de Brooks. Afinal, quando se escreve um artigo dizendo que certo grupo é mais feliz (dessa vez foram os conservadores; outras vezes são os solteiros, os que não têm filhos, os pobres, os ricos, os butaneses, etc.), há uma implicação implícita muito clara: eles têm algo a ensinar ao resto do mundo sobre como viver; encarnam algum tipo de ideal a ser emulado. Não é o caso. A plena felicidade (entendida como bem-estar subjetivo ao longo do tempo) é compatível com as situações objetivas menos desejáveis.
Ainda assim, se as perguntas sobre a própria felicidade revelassem diretamente o bem-estar subjetivo das pessoas, elas ao menos nos dariam uma coisa: a possibilidade de comparar as crenças (e outras variáveis) pela capacidade que elas têm de gerar bem-estar subjetivo nos homens. Mesmo isso, contudo, é difícil, por dois motivos que decorrem de uma mesma causa: não temos a observação direta do bem-estar alheio; podemos apenas confiar no que a pessoa responde.
Quais os dois problemas disso? O primeiro é que falar do próprio bem-estar subjetivo é sempre fazer uma comparação; não há uma medida absoluta, em kelvins ou gramas, de bem-estar. Cada indivíduo tem para si algum patamar que chama de “feliz”, ou um ideal mais ou menos alto que persegue, e responde com base nesse critério. Um indivíduo que espera muito da vida, e que julgue que sua satisfação módica é pouco perto do que ele poderia alcançar, pode se considerar infeliz mesmo tendo mais satisfação subjetiva (ou seja, sendo em geral mais alegre e derivando mais prazer e bem-estar de sua vida) do que outro que julgue estar já próximo do nível máximo de bem-estar. “Felicidade”, mesmo quando restrita ao âmbito subjetivo (e supondo parâmetros similares de comparação), pode significar coisas diferentes para pessoas diferentes.
Para além desse problema da comparação de respostas diferentes, temos o problema da sinceridade da resposta. Até que ponto as pessoas estão dispostas a reconhecer, para outros e para si mesmas, que não são felizes? Mesmo em pesquisas anônimas, a mentira é um fato com o qual os estatísticos sempre se deparam, e por isso mesmo tentam desenvolver métodos para reduzir suas taxas. Não tenho provas, mas poderia apostar que temas delicados como a própria felicidade geram maior grau de mentira (e uma mentira praticamente impossível de se desmascarar) e auto-engano.
Se essas características (disparidade de critérios de felicidade e relutância em dizer a verdade) forem igualmente distribuídas por todos os grupos, então não afetarão os resultados; na média, todos se compensam. Mas e se membros de certos grupos tiverem maior tendência a mentir sobre seu bem-estar? E se padrões médios diferentes do que é ser feliz vigorarem entre diferentes grupos? Daí a pesquisa estará viciada desde o princípio, e não revelará nem as diferenças médias de bem-estar subjetivo entre os grupos estudados.
Um dos resultados que Brooks revela é que quem tem crenças “extremas”, para qualquer lado, diz estar mais feliz do que quem tem crenças moderadas. Ora, quem tem crenças mais “extremas” é justamente quem julga ter entendido a realidade em maior profundidade, indo além do senso comum. A pessoa que julga ser membra de uma minoria que realmente detém a verdade sobre o homem, e que vive segundo essa verdade, não sentirá naturalmente uma certa obrigação (para si ou para a comunidade de que faz parte) de dizer que é feliz? Afinal, ela tem tudo, e ela quer convencer o mundo de que ela tem o que os demais procuram. Esse argumento não prova nada; outros processos psicológicos podem estar em jogo. Espero apenas ter mostrado como a possibilidade de mentiras sistemáticas não pode ser descartada a priori, e nem podemos supor que, na média, todos os grupos mintam em nível igual.
Suponhamos, contudo, que todos esses problemas sejam contornados – que, com diversas mensurações e testes, seja possível corrigir estatisticamente os diversos vieses. E suponhamos que os resultados de felicidade em pesquisas de self-reporting sejam usados como subsídios para políticas públicas ou como objeto de artigos que defendam uma certa visão de mundo, como o de Arthur Brooks. Suponhamos, por fim, que o público saiba desse fato.
Sabendo ou supondo que a pesquisa pode ter impacto no mundo real (via política ou mídia), os entrevistados podem tomar a decisão consciente de dizer que são felizes para melhorar a imagem de seu grupo. E portanto quanto mais utilizadas forem essas pesquisas, menos confiáveis serão.
O que se conclui disso tudo? Apenas uma postura fundamental: cautela. Números impressionantes podem revelar muito menos do que gostaríamos que revelassem. A pesquisa em que Arthur Brooks se baseia diz, concretamente, o seguinte: conservadores dizem, em média, ser mais felizes que liberais. Pessoas com crenças extremas dizem ser mais felizes do que os moderados. É possível ir além disso no estudo da felicidade? Possivelmente; mas não com base em dados como esse.

quinta-feira, 1 de março de 2012

O Cristianismo não é Conservador

Dessa vez meu interlocutor é Fábio Blanco, que em artigo recente no MSM (O conservadorismo religioso não se opõe à razão), alimentando a querela sobre esse triste movimento que é o conservadorismo, deu um diagnóstico avassalador sobre meu posicionamento: minhas opiniões advêm da total ignorância teológica e moral.
"Alguns liberais podem até entender alguma coisa de economia, mas quando adentram pelo campo do debate moral e religioso vacilam, menos por serem eles mesmos amorais e mais por não entenderem nada de teologia, que é o fundamento da moral conservadora."
Começo apontando que Blanco errou o alvo da minha crítica ao centrar o debate na religião e na relação entre fé e razão. Pois não vejo, e nem meus textos apontam, nada de errado na religião (e olhe que "religião" é outro termo que engloba coisas muito diferentes); a bronca é com o conservadorismo. É possível ser conservador sem ser religioso - presumo que seja o caso de Lara Resende e Mellão Neto. Embora não saiba se eles são ou não religiosos, seu conservadorismo é secular; não faz referência à fé, a Cristo, à Bíblia, etc. É possível ter um conservadorismo religioso (baseado na fé), como é o caso de Nivaldo Cordeiro e Fabio Blanco. E é ainda possível ser religioso e não ser conservador - e esse é o meu caso e de outros na história, como por exemplo - lanço uma provocação intencional - S. Tomás de Aquino.

Até onde posso ver, Blanco e eu temos concepções similares no que diz respeito à fé e sua relação com a razão. A fé não é algo irracional, embora também não possa ser demonstrada. Argumentos inconclusivos, experiência pessoal e certa atitude para com o mundo, tudo isso guiado pela graça de Deus (falo, obviamente, como quem tem fé), contribuem para aceitar algo que, considerado de forma puramente fria e analítica, ou acadêmica, careceria de evidências suficientes. E uma vez aceita, inicia-se um processo que, se incluir o desenvolvimento intelectual, levará a pessoa a encontrar motivos mais profundos e sólidos para certas coisas (não para tudo) que antes aceitara na base de uma espécie de confiança. Nisso estamos de pleno acordo.

Mas Blanco comete um equívoco bíblico que o permite salvar o conservadorismo cristão da pecha de "irracional". Em minha resposta a Nivaldo Cordeiro, eu indagara se a "Lei de Deus" na qual os conservadores religiosos se baseiam era a Lei Antiga (os Dez Mandamentos, e podemos somar a eles a regra de ouro: "faça aos outros o que queres que façam a você") ou a Lei Nova dada por Cristo. Blanco vê nessa minha distinção uma ignorância não apenas teológica mas até mesmo catequética:
"Neste ponto, seu equívoco se encontra na incompreensão da natureza das duas alianças bíblicas. Qualquer catecúmeno logo aprende que quando Cristo apresentou o amor a Deus e aos homens como o primeiro e segundo mandamentos, o fez afirmando que a antiga lei se resumia nisso."
Ocorre que o erro está é com ele. Há uma leitura equivocada (muito comum, por sinal) do Evangelho que confunde duas coisas: a Lei Nova dada por Cristo e a síntese que Cristo faz da Lei Antiga (que, quando apreendida pela razão, chama-se lei natural). A síntese que Cristo faz da Lei Antiga é "Amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a si mesmo" (Mt 22, 36-40); ao fazer isso, Cristo apresenta o sentido último da Lei Antiga. Embora seja similar à Nova Lei que formulará depois, na Última Ceia, elas não são iguais. Pois a Nova Lei diz: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amo" (Jo 15,12) . Essa Nova Lei difere da síntese da Lei Antiga ao dar uma nova medida do amor que os homens devem ter uns pelos outros: a medida do amor de Deus. Esse amor divino a que o homem é chamado chama-se "caridade". É um amor que em muito excede a capacidade humana, e para o qual precisamos da graça de Deus, que nos permite 1) ver nos homens a imagem de Deus, e esse é o fundamento da caridade, e 2) de fato sentir e agir com base nessa percepção iluminada pela graça. A Nova Lei, portanto, vai além da Lei Antiga, e não é acessível à razão de quem não tem fé.

E qual era meu argumento? Que a Nova Lei de Cristo não pode ser a base da política: primeiro porque ela é inacessível à razão enquanto tal, e a política é âmbito de todos, crentes e descrentes; segundo porque ela é algo estritamente pessoal (pois decorre da relação do indivíduo com Deus), não podendo ser de forma alguma compelida; e, terceiro, porque a condição extrínseca que nos predispõe à Nova Lei é justamente a boa vivência da Lei Antiga, e portanto é ela que nos deve ocupar na política. Tentar transformá-la em programa, o que significaria substituir as demandas da lei natural pelas da caridade, é desastroso. A postura política cristã (como eu a vejo), portanto, não precisa e nem deve ir além da lei natural.

Reconheço que esse ponto é um pouco vão, dado que as Leis nas quais o conservadorismo religioso em discussão se baseia são claramente os preceitos da Lei Antiga. E a esses conservadores, só posso dizer: não usem a Bíblia como ponto de partida, pois ao fazê-lo alienam todo mundo que não aceita a Bíblia: transformam questões a princípio solúveis pelo debate e pela convivência em partidarismos que só podem se resolver pela força. Posicionar-se politicamente com base na razão e na lei natural em nada contradiz ser um homem de fé e deixar-se guiar pela fé em suas ideias, palavras e atos. O que a lei natural, isto é, o uso da razão como guia da vida humana, contradiz é tomar as tradições e convenções que nos foram legadas como o critério da verdade e do bem. Ela insta todo homem a colocar-se a si mesmo, indivíduo dotado de razão, como juiz daquilo que chegou até ele; consciente, é claro, de sua própria limitação, assim como da limitação de seus antepassados, e disposto a tratar com eles em pé de respeitosa igualdade.

A consideração que fiz acima sobre a caridade toca no ponto principal que quero tratar neste artigo, e que é a questão mais interessante: seria o Cristianismo uma religião naturalmente conservadora? *Pausa para suspense* Não, não é. É claro que é possível ser cristão e conservador, como tantos são (não tenho o menor receio em também dizer que é possível ser cristão e esquerdista - coisa que não sou). Mas não são coisas que combinam tão bem assim.

Para início de conversa, o Cristianismo começou como uma novidade no mundo. Até hoje, aliás, ele é a novidade no mundo. Para quem nasceu em meio cultural cristão é difícil enxergar o tamanho dessa novidade, e mesmo de sentir seu apelo: Deus nos ama para muito além do que somos capazes de imaginar, e oferece a chance de nos unirmos a Ele, partilhando de sua natureza; algo muito além do que nossas capacidades naturais podem almejar ou mesmo imaginar. Ele se fez homem para viver conosco, nos ensinar, partilhar nossas angústias e efetuar essa união. Esse espírito da descoberta da novidade e do maravilhamento que ela traz pode ser facilmente sufocado pelo peso de tradições e convenções que, ainda que muitas sejam até boas em si mesmas (nem sempre são), tomam o primeiro plano.

Intelectualmente, o que há de melhor no Cristianismo sempre foi a capacidade de integrar e usar criativamente fontes díspares para se chegar a novas concepções. S. Justino Mártir e Clemente de Alexandria citados por Fábio Blanco se encaixam aí; sem falar em seu sucessor S. Agostinho. Poderia citar também S. Gregório de Nissa, pensador cristão que, entre outras coisas, foi o primeiro a condenar a instituição da escravidão enquanto tal; essa condenação - tão anacrônica no século IV d. C. - é uma mostra do espírito e do poder inovadores do Cristianismo.

Não posso deixar de mencionar S. Tomás a esse respeito, e a enorme (e virulenta) oposição que suas posições, muitas delas revolucionárias, sofreram do clero e dos professores conservadores. Foi entre cristãos que surgiu a ciência natural verdadeira, primeiro com a elaboração do método experimental e depois com a libertação gradual dos erros aristotélicos que nos aprisionavam; e isso só ocorreu porque tiveram a coragem de dizer que antiguidade não é prova. Os gigantes sobre os quais sentamos eram tão falíveis quanto nós, e erraram muito. O espírito cristão é o espírito da descoberta e da audácia, dos altos ideais e da sede pelo bem, e não o do conformismo conservador e cansado.

Assim, embora os cristãos, em sua maioria, tenham sido conservadores (como são provavelmente a maioria das pessoas), empenhados em manter a tradição pela tradição, o brilho cristão floresceu mais vivo exatamente nos inovadores e criativos; cujo espírito, ironicamente, foi contrariado ao terem suas obras transformadas em novos cânones e tradições inquestionáveis. É o caso de todos os Doutores da Igreja (vide esta tentativa de se refutar Darwin com base na metafísica de S. Tomás) e de tantos outros dentro e fora do âmbito religioso, dado que essa mesma dinâmica opera em quase tudo.

Por fim, politicamente, o Cristianismo é a religião que dessacralizou os reis e imperadores; que os colocou ao nível dos reles mortais. Que relativizou a autoridade soberana ao ensinar que uma lei pode ser injusta a ponto de não dever ser obedecida. Que chegou até mesmo a defender o tiranicídio. Que deu origem ao conceito de direitos individuais inalienáveis e ao entendimento da economia de mercado. Nesse âmbito também o conservadorismo da maior parte dos membros da Igreja se fez sentir ao longo da História, mas foi exatamente o elemento não-conservador, inovador, racional, vivo, que falou mais alto; tão mais alto que o conservadorismo ocidental (do tipo saudável; não estou falando em momento algum de tradicionalismo e esquisitices similares) é notadamente menos reacionário que seus correlatos em outras culturas.

Foi o Cristianismo que deu origem à civilização ocidental, e o que é essa civilização se não o reinado da razão e, portanto, a relativização da tradição enquanto valor? Quem valoriza a tradição acima do indivíduo e da razão individual (e ela só pode ser individual) deve ir pra Arábia, pra China, pra Rússia; o Ocidente não é seu lugar. Com tudo isso, é mesmo uma pena ver gente inteligente dizendo que o traço fundamental e mais importante de nossa civilização é a obediência à tradição! Sim, o conservadorismo de hoje em dia defende em parte as conquistas anti-conservadoras feitas pela sociedade cristã alguns séculos antes; contudo, defende-as exatamente pelo motivo que dificultou seu nascimento. Foi também o espírito conservador e reacionário que, pouco a pouco, criou a cisão lamentável que existe entre o clero (que em diversos períodos se prestou a bastião do conservadorismo mais tacanho) e o resto da sociedade; cisão que não é de hoje e que talvez seja o que mais prejudica a Igreja.

Hoje em dia o conservadorismo serve de caminho e porta de entrada para o Cristianismo? Acidentalmente sim, dado que nossa tradição é cristã e que o conservadorismo valoriza a tradição. Como o Cristianismo caiu em descrédito na opinião dominante, o conservadorismo acaba sendo seu aliado natural. Mas uma vez convertido, cumpre se livrar dos erros desse pensamento que, se levar a melhor e tomar conta da Igreja, será bem-sucedido apenas em dar-lhe um aspecto ranzinza e fechá-la num gueto.

***

Uma nota final: quanto ao comentário sobre o movimento conservador da população brasileira: concordo que ele possa ter efeitos bons, como por exemplo barrar a legalização do aborto. Mas não posso deixar de apontar o óbvio: ele é insustentável a longo prazo. Comparem a aceitação social de sexo antes do casamento há cinquenta anos (ou trinta anos!) e agora; o sentimento popular muda muito rápido. Se o motivo de se defender algo é "sempre foi assim", seus dias estão contados. Não é com base no moralismo carola que a sociedade há de se endireitar; a não ser, é claro, que nosso ideal de sociedade seja a Arábia Saudita.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Conservadorismo Religioso Não se Salva - Uma Resposta a Nivaldo Cordeiro

Meu artigo comentando o artigo de João Mellão Neto foi por sua vez comentado por José Nivaldo Cordeiro em artigo (Direita, volver!) para o Mídia Sem Máscara. Temos ali um conservadorismo diferente daquele advogado por Mellão Neto e, antes dele, por André Lara Resende. Um conservadorismo religioso e primariamente moral, aparentemente distante da versão laica e puramente política dos outros dois autores. Os problemas, contudo, permanecem, e mesmo o recurso aos Evangelhos é incapaz de salvar o posicionamento de Nivaldo.

Em primeiro lugar, vejamos as críticas que ele faz a meu texto:

O autor comete o duplo equívoco de identificar a direita apenas com o conservadorismo, esquecendo dos liberais direitistas, e de associar os conservadores com o apego a formas sociais injustas já superados. São inimigos do cristianismo e não perdem tempo para difamar a religião de Cristo.
Sou inocente das duas partes do "duplo equívoco". 1) Fui bem explícito em dizer que "direita" engloba tanto conservadores quanto liberais (e, a bem da verdade, outras criaturas da noite, como tradicionalistas, monarquistas, etc.); por esse motivo, o termo é pouco útil, pouco informativo. 2) Não disse que os conservadores têm apego a formas sociais injustas. Disse, apoiado no texto de Mellão Neto (que ecoou Lara Resende e, até que se prove o contrário, Burke), que os conservadores têm apego a formas sociais estabelecidas, sejam elas quais forem; eles têm a tradição como um valor em si, independente dela ser boa ou má, justa ou injusta. Não os acusei de forma alguma de difamar a religião de Cristo; disse que, seguindo os critérios de conservadorismo apresentados, um judeu conservador do século I difamaria a religião de Cristo. Um conservador de hoje em dia obviamente louva essa religião, mais uma evidência do vazio moral que está no cerne desse pensamento. No que diz respeito à política, eu mesmo concordo com várias das bandeiras do conservador atual (defesa do direito de propriedade, responsabilização do criminoso individual e não da sociedade, etc.); sou o primeiro a dizer que eles defendem também formas sociais justas. Só que essa defesa se dá por motivos errados, e aí está o problema. Sigamos o texto de Nivaldo.

Segundo ele, a essência do conservadorismo está em defender "o núcleo permanente da moral cristã".  Ou seja, trata-se antes de tudo de uma postura moral, e não de uma doutrina política. Só que no que se funda essa defesa da moral cristã? "Na tradição e nas Escrituras". Note-se de partida, portanto, que é uma posição baseada na fé, sem qualquer apelo, portanto, a um japonês ou árabe que não partilhe dessas mesmas tradições e dessa mesma fé.

Nivaldo não deixa claro se os Mandamentos aos quais se referem são os Mandamentos antigos, presentes já no Antigo Testamento (sinteticamente, os Dez Mandamentos), ou se são a nova lei dada por Cristo aos discípulos. O plural dá a entender que são os Dez Mandamentos, mas a citação de S. João, embora usada para apontar um fato irrelevante (o fato do termo "permanência" ser repetido inúmeras vezes na passagem, como se contagem de palavras na Bíblia fosse argumento em prol de uma postura moral e agenda política que usem a mesma palavra), é justamente a passagem na qual Cristo "institui" sua nova lei: "amai-vos um aos outros como eu vos amei".

Bom, se o núcleo moral do conservadorismo forem os Dez Mandamentos, então é realmente infeliz que Nivaldo (e, presumo, Kirk?) enxergue o fundamento deles nas Escrituras e na tradição. A origem e o fundamento da ética revelada por Deus na Bíblia é a natureza humana; e a natureza humana é cognoscível pela razão; e quando derivada da razão, chamamo-la de lei natural. Deus revelou os Dez Mandamentos para facilitar a vida do povo rude, para dar-lhes de pronto um motivo fácil ("Deus mandou") para "não matar" ou "honrar pai e mãe", coisas que, mesmo que Deus nunca tivesse falado aos homens, seriam igualmente acessíveis à razão. Trocar a razão humana pela tradição é trocar o fundamento pelo efeito, e por um efeito incerto. Como a própria tradição é falível, e falhou diversas vezes ao longo de nossa história, usá-la como critério moral último (junto das Escrituras, interpretadas, é claro, à luz dessa mesma tradição) é cegar-se aos erros que ela pode conter. Quem toma água do rio longe da fonte, corre maior risco de encontrá-la poluída. E é também a rejeição da razão que faz com que seja um posicionamento sectário, incapaz de persuadir quem não comungue da mesma fé, e portanto inútil no mundo plural em que vivemos. É o custo de se preferir, na política, a tradição à lei natural.

Por outro lado, se o núcleo moral do conservadorismo for a lei de Cristo, que não é estritamente derivada da razão, mas depende também da confiança em Cristo e no amor de Deus por nós, então ele tem que necessariamente abrir mão de qualquer proposta política. A lei dada por Cristo é algo eminentemente pessoal e não diz respeito à esfera dos direitos, indo além dela. Não há nenhuma derivação política, ou mesmo moral imediata do "Amai-vos" (por isso, inclusive, que essa nova lei não abole a lei natural, mas a pressupõe). Com efeito, as tentativas de se instaurar o reinado universal do amor cristão na terra, associadas em geral a comunidades heréticas bem distantes do bom senso (ou, modernamente, aos hippies), nunca são duradouras e nem terminam bem. A lei que se presta ao pensamento político é a lei natural, aquela que nossa razão é capaz de apreender.

A política e a ética estão, e têm que estar, no campo da razão. Não é se curvando à tradição que se resolverá o problema moral e político, mesmo porque, embora eu considere o balanço moral do Ocidente superior aos dos demais povos, nosso passado também carrega suas (muitas) máculas, algumas delas  duradouras. É inútil se esconder atrás do tempo, dos antepassados, ou mesmo da Bíblia.

Ao elogiar o surto de moralismo e escândalo que tomou conta das eleições presidenciais passadas, Nivaldo apenas ilustra a fraqueza de sua própria posição: pois se aquela histeria é exemplo do que, na concepção dele, devemos almejar, se aquele é o tipo de debate político que ele espera do Brasil, então estamos num dilema entre o estatismo amoral e o fundamentalismo furioso. O ideal do conservador religioso está mais para uma turba de fanáticos do que para uma população educada e bem-intencionada.

Sim, a política no Brasil e no mundo é dominada por uma esquerda hegemônica, má e imbecil. Dá algum alento ver o surgimento de uma oposição a ela. Mas enquanto essa oposição se basear num moralismo de fundo religioso ou tradicional, isto é, no conservadorismo (que, não nego, nas condições atuais é menos danoso socialmente do que o progressismo), ela será ineficaz e burra; ineficaz porque burra. Quando tivermos claro que a oposição ao mau na política se dá com valores, e não com nostalgias fracassadas ou histeria religiosa condenatória, e que esses valores têm que vir da razão e não do medo de usá-la, daí sim, quem sabe, construiremos um Brasil melhor, mais rico, mais virtuoso e mais propício - para quem quiser - à vivência da lei de Cristo.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Nova Direita, Nascida Velha

Aos poucos o pensamento de direita tem chegado aos meios de comunicação de massa brasileiros, o que eu considero um bom sinal, pois significa que a obrigatoriedade de se ser de esquerda está acabando. É uma pena que a alternativa ao velho socialismo seja algo também velho (de espírito), e que tenta substituir valores ruins pela ausência de valores. Sim, falo do meu novo tema favorito: o conservadorismo.

Dessa vez foi João Mellão Neto, em artigo no Estadão. E ele começa com uma observação muito boa (talvez ela seja óbvia para muitos; eu nunca tinha me dado conta): a direita brasileira aliou-se, quase que por necessidade, aos militares; e ficou desde então associada à tortura, censura, etc. E ele também aponta, acertadamente, que a chamada "direita" é um balaio de gatos que engloba conservadores e liberais, duas coisas bem diferentes. E, mais curiosamente: é possível ser conservador liberal, conservador estatista, conservador democrata (que é o que o Mellão defende), conservador monarquista e até conservador socialista. Tudo depende do que estiver em vigor e for a "tradição" local.

Vejamos no que consiste esse conservadorismo que é uma das identidades da "nova direita".
"Em primeiro lugar, o conservador entende que os pensadores atuais são meros anões nos ombros de gigantes do passado. Eles acreditam enxergar mais longe, mas isso se dá unicamente em função da estatura de seus antecessores. No que tange a ideias, tudo o que existe já foi pensado ou implantado no passado. A única que medrou foi a da democracia liberal..."
E ainda: "Nenhuma ideia é plenamente nova. Tudo já foi pensado e idealizado. E se não foi implantado, é porque se mostrou inviável."

Convido meu leitor agora a um exercício imaginativo. Imagine-se a dialogar com um conservador - na definição dada acima - do século XIX brasileiro. Você, abolicionista entusiasmado, chega a ele com sua ideia revolucionária de acabar com a escravidão. O que responderia o velho conservador? [Perdoem os eventuais anacronismos de linguagem] "Não seja tolo, meu jovem. Não vê que nosso sistema já resiste há mais de trezentos anos? E antes dele, no Velho Mundo, tínhamos o quê? O trabalho servil. E antes dele, mais uma vez a escravidão. Claro está, portanto, que sua ideia de trabalho livre para todos é uma ideia radical, sem a menor noção de como nossa sociedade funciona, de nossas convenções e normas. Certamente alguém já pensou como você antes, e aqui estamos, ainda com a escravidão. O trabalho livre é simplesmente insustentável." Imaginem agora a reação de um judeu conservador do século I frente à novidade ensinada por Cristo...

Nos dias de hoje, o conservador defende a democracia liberal e o Estado intervencionista; em outros tempos, defenderia, com os mesmos argumentos, a monarquia absoluta e a escravidão. Mellão diz que para o conservador o novo não é necessariamente melhor que o velho. Mas a implicação lógica de sua doutrina vai além: tudo foi tentado e só o melhor sobreviveu; portanto, o que existe hoje em dia é melhor do que o que não existe (ou seja, não existe mais); logo, o novo (que não passa da repetição de algo velho e previamente descartado) é necessariamente pior que o velho. Somos anões em ombros de gigantes, e aparentemente incapazes de ver mais longe.

Isso é renegar a própria inteligência e deixar que os antepassados pensem por nós; uma forma de covardia intelectual, de se esconder atrás de uma autoridade supostamente infalível. E é também entregar o jogo completamente aos adversários. Pois a longevidade de uma instituição, embora dê a ela um caráter respeitável, não é prova de que ela é boa ou desejável em si. O socialista revolucionário apresenta um motivo para se ser contra a ordem democrática e liberal; como o conservador o rebate? "Nosso sistema é antigo". Mas pode ser antigo e péssimo, como eram as dinastias dos faraós. E cada mudança que os socialistas consigam impor (sob o nome de "reforma") vira, ela própria, uma instituição estabelecida, a ser preservada. O conservador defende hoje o que a esquerda defendia ontem.

Muito sintomático é que Mellão oponha o conservador ao "radical", outro termo que não denota nenhuma posição concreta. O radical é aquele que é consistente em suas crenças e convicções, levando-as até suas consequências lógicas. Isso pode ser bom ou mau. O oposto do radical, o moderado, é aquele que, por insegurança, cria limites arbitrários a suas propostas, para que elas não fujam muito ao senso comum. Um pouco dessa "insegurança", desse conservadorismo, é saudável no campo da prática; afinal, é possível errar, e o avanço gradual rumo aos objetivos permite correções e desvios prudenciais de rota. Mas isso se aplica aos meios; no reino dos fins, quem não é "radical" é apenas inconsistente, medroso. E o conservadorismo é uma ideologia medrosa: subjuga sua mente ao peso do passado, como forma de fugir da responsabilidade (em verdade inescapável) do pensamento individual.

Idade não é critério de acerto. A tradição acumula muita sabedoria, mas muita burrice também. Para distinguir um do outro, preservando o bom e descartando o ruim, é preciso julgar a própria tradição à luz da razão. O verdadeiro inimigo do conservadorismo não é o socialismo, ou a esquerda (que pode ser conservadora, como são os nossos velhos conservadores - ACM, Sarney, etc. - e como era a elite do partido comunista na União Soviética), mas a razão.

A frase final do artigo não poderia ser mais clara. À sociedade conservadora, que crê numa ordem moral permanente no universo, Mellão opõe a sociedade hedonista. "Mas se, por outro lado, não passar de uma malta de indivíduos ignorantes das normas e convenções, voltados exclusivamente para a imediata satisfação de seus apetites primários, essa sociedade, por melhor que seja o seu governo, desaparecerá." O que sustenta a moral social são simplesmente as normas e convenções; se as abandonarmos, cairemos no hedonismo animalesco. Temos que escolher entre a devoção a normas e convenções (o passado como critério absoluto) ou a esbórnia niilista. O que foi suprimido nessa dicotomia maléfica é justamente a vida da virtude, a vida racional, que não é nem obediência cega, nem desvario alucinado. E é justamente esse valor (que por mais antigo que seja, será sempre jovem) que falta aos parâmetros éticos e políticos dos dias de hoje; não a ideologia de quem já desistiu do mundo, que por mais que compre roupas novas, será sempre velha.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Como Inutilizar a Política, ou O Movimento Conservador

Ao invés de, nas eleições, discutirmos política, economia e questões de Estado, que tal prendermo-nos em questões morais pontuais? Foque num tema (casamento gay, aborto, drogas, suicídio assistido) e exclua todos os outros. Dê atenção demasiada, também, para a vida pessoal do candidato: a campanha deve virar um palco de fofocas maldosas; quem sair menos prejudicado delas, ganha. E assim a irrelevância vira o foco. Gostou da proposta? É o que os conservadores têm feito à perfeição. É que eles confundem salvação da alma com administração pública; um erro comum.

Quando digo que as questões morais pontuais são irrelevantes, não falo do ponto de vista moral. Falo do ponto de vista político. O que importa, por exemplo, se o governo dá respaldo e um pedaço de papel aos casais gays? Isso é consequência, na prática inevitável, de um processo cultural de longa data. Mudar isso requererá algo mais profundo que a vontade de um político e briga eleitoral. E, uma vez aprovado o casamento estatal gay, no que isso prejudica as famílias, igrejas ou quem quer que seja? O mesmo se dá no campo da virtude pessoal: o que importa se um candidato teve ou não uma amante? Que os conservadores se prendam a isso mostra apenas o quão descolados estão do mundo real, contentes em seu conto-de-fadas em que os melhores políticos são os indivíduos mais virtuosos; o que, dada a mesquinhez das massas, em geral significa os mais certinhos. Digo que esses estão, não raro, entre os piores!

Das questões morais em pauta, a única que merece atenção política é, na minha opinião, o aborto, pois ela envolve a violação direta de um direito fundamental alheio. Mesmo ela, contudo, é relativizável, posto que um político (ainda mais do Executivo, que é onde o moralismo tem tomado mais conta) tem poder muito limitado para mudar a lei na direção que for; vide George W. Bush nos EUA (que não proibiu o aborto), e todos os presidentes desde a redemocratização no Brasil (que não o legalizaram). É imoral votar num presidente a favor do aborto? Então quem votou em FHC foi imoral. E se bobear FHC - ateu e de esquerda - era, em 94 e 98, mais a favor do aborto do que Lula, cria da TL (que, apesar de todos os pesares, é contra o aborto).

Por isso é tão desalentador ver o apoio efusivo recebido por Rick Santorum na disputa americana; um candidato cujas únicas credenciais são seus "valores conservadores" e sua vida pessoal. Ele tem todas as opiniões da cartilha sobre questões morais (mais algumas próprias dele, como o combate aos contraceptivos e a reabilitação histórica das Cruzadas); quer também bombardear o Irã e se bobear o resto do Oriente Médio; usa analogias tiradas do Senhor dos Anéis para se referir à guerra do Iraque; vai barrar os imigrantes ilegais. Não sabe nada de economia, repete as fórmulas da vez, jurando que discorda em tudo do Obama. Se eleito, deve colocar em prática a mesma responsabilidade fiscal e o mesmo "livre mercado" de George W. Bush. Ah, - dirá o mui piedoso conservador - contanto que ele mantenha a referência a Deus na cédula do dólar, tá valendo!

A importância dada ao caráter moral é também muito curiosa. A insistência na virtude pessoal do governante é feita por clérigos e intelectuais desde pelo menos a Idade Média (talvez em Roma também?), mas raramente - e em alguns períodos curtos e negros da história europeia - é levada a sério. Os founding fathers americanos eram exemplos de santidade moral? E a imensa maioria dos reis europeus, nosso D. Pedro I incluso? A quantidade de filhos bastardos já os desqualificaria numa corrida presidencial atual. Contra Newt Gingrich, o argumento que pegou não foi seu diletantismo (embora muito inteligente, não tem uma teoria consistente para se guiar; é mais Estado para tudo, junto com uma retórica de livre mercado), mas o fato de ter traído esposas e, acima disso, ter possivelmente proposto a uma delas um casamento aberto. O Papa S. Pio V foi um santo; mas seu reinado foi politicamente ruim para a Igreja. Sua inimiga, a rainha inglesa Elizabeth, teve amantes (e para um monarca a aura de virtude é mais importante que para um líder democrático), e foi uma das maiores monarcas da história do país. Robespierre era mais probo e honesto que Luís XVI. Savonarola, mais puro que os Médici. Quem foi o melhor líder?

A campanha de Santorum, ao apelar, antes de tudo, para "valores", apela para o que há de mais medíocre e moralista no eleitorado americano. Se ele vencer, iupi!, os americanos não precisarão temer o casamento gay e ONGs contrárias ao sexo pré-conjugal ganharão mais dinheiro e/ou apoio. E os EUA continuarão no mesmo caminho do socialismo crescente, da burocratização e controle estatal da vida humana, do déficit insustentável que se reverterá em mais impostos e da inflação da moeda; com todos os efeitos morais que essas situações engendram. Mas nada disso importa, agora que os candidatos republicanos descobriram que seus votos dependem apenas de afagar a consciência do eleitorado conservador com promessas de combate aos males terríveis deste mundo anti-cristão. A preocupação moral exacerbada por parte dos eleitores alimenta o oportunismo cínico dos candidatos, que ao invés de ideias e propostas gritam os slogans e repetem os ditames da sharia da vez.

Politicamente,a estratégia tem sido questionável. Santorum conseguiu, de saída, alienar todos os homossexuais e simpatizantes (em entrevista sua em 2003, ele disse ser a favor dos governos coibirem relações sexuais homossexuais por serem uma "ameaça à família"). Isso é um feito, pois fez com que seus valores sejam não só o motivo pelo qual é apoiado, mas também pelo qual é detestado. É duro afirmá-lo, mas vamos lá: mesmo com uma família unida e feliz é possível ser um total incompetente e ignorante no que diz respeito a governar um país.

Vejam o exemplo alternativo, de Ron Paul: pessoalmente, ele parece ser uma figura exemplar: avô, casado, médico obstetra por muitas décadas, fiel, respeitoso, amável. Nunca ficou alardeando sua família ou seus valores da família por aí. Sua campanha é baseada em ideias: ideias sobre como o governo americano deve ser e agir. A campanha de Obama de 2008 também o foi (a de 2012 dificilmente será; vai ser de contenção de danos e de aposta no pragmatismo do possível, junto com a demonização do republicano rival, trabalho que será muito facilitado se o oponente for Santorum). Nesse sentido, Romney também é superior a Santorum: sua campanha baseia-se na ideia de que o governo pode e deve ser eficiente, como uma empresa de sucesso, área na qual Romney tem experiência. Infelizmente, na hora crucial de defender a demissão de funcionários, recuou; se nem ele acredita em sua mensagem, quanto menos os eleitores! É outro que, embora moralmente exemplar, não faz da moral sua bandeira primeira; é um (e o único) Republicano plenamente mainstream na corrida.

O efeito da ascensão conservadora dos dias de hoje tem sido "moralizar" a política; elevando questões secundárias ao primeiro plano. O resultado primeiro disso foi o aumento exponencial da fofoca e da hipocrisia (já pensaram esse tipo de campanha na época do Kennedy, do Nixon ou mesmo do Reagan?). O segundo será eleger um total inepto cujo grande mérito é ter seis filhos, querer proibir a sodomia e se enxergar como um tipo de cruzado moderno contra o inimigo sarraceno. E então colheremos os tão esperados frutos do conservadorismo; e pelos frutos o conheceremos...

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O Ponto Fraco do Conservadorismo

André Lara Resende, em artigo recente para o Valor, fez algo corajoso: a defesa do conservadorismo político. Corajoso porque, como ele próprio aponta, o espírito conservador é oposto ao progressismo que marca o discurso político atual. Ao mesmo tempo, ainda que seja uma defesa bem-vinda e bem articulada de algo incomum no cenário brasileiro, ela evidencia as fraquezas inerentes ao pensamento conservador, e que o tornam incapaz de animar qualquer programa político e de frear o avanço de qualquer movimento que se lhe oponha.

Vejam a principal definição dada no artigo:
O conservadorismo opõe-se à crença racionalista moderna de que valores políticos defensáveis precisam estar necessariamente baseados num sistema de propostas articuladas, cuja aplicação é universal. Assim definido, o conservadorismo opõe-se a toda proposta idealista totalizante. Não apenas às de esquerda, como o socialismo marxista, mas também às de direita, como o fascismo e o nazismo. O elemento central da posição conservadora é o ceticismo. Ceticismo em relação à possibilidade de que qualquer sistema de ideias tenha aplicação universal e seja capaz de resolver os dilemas da vida em sociedade.

A melhor pista da essência do conservadorismo (embora desvie estrategicamente do alvo) é dizer que ele se opõe à "crença racionalista moderna". Traduzido em termos concretos, se opõe a sistemas "de propostas articuladas, cuja aplicação é universal". Ora, qual é a faculdade humana que articula conteúdos sistematicamente e que chega a conclusões universais? É a ela que o pensamento conservador se opõe. Para não dizê-lo com todas as letras, alguns espantalhos são fustigados. A oposição seria apenas ao racionalismo, aos sonhos utópicos de que algum sistema político dará fim à dor e à imperfeição. Assim é fácil!

Qualquer proposta política que se coloque como solução definitiva para a condição humana é obviamente um delírio. Não é preciso conservadorismo para se opor a isso; apenas bom senso. O problema é que propostas articuladas e universais não são monopólio de sonhadores utópicos, mas elemento necessário de qualquer pensamento político coerente e bem fundamentado. Socialismo e capitalismo são ambos rejeitados, segundo o critério conservador, não por seus méritos ou deméritos, mas por terem propostas articuladas e universais, mesmo que não sejam utópicas. Nenhuma proposta política séria acredita no fim da imperfeição humana. Elas apontam caminhos para melhorar a situação; só que esses caminhos dependem de consistência, lógica, sistematicidade. E são universalizáveis. Assim, o que o conservadorismo rejeita não é o racionalismo, mas a própria razão.

Se a razão é rejeitada para se guiar a política, se se nega que a mente humana seja capaz de chegar a respostas melhores e universais para os problemas sociais, sobra o quê? Duas possibilidades: ou se repete o que era feito no passado, ou se age com base no instinto, no sentimento, na "intuição". O conservadorismo oscila entre ambos. Em um momento, "sabe que é preciso ser paciente e dar tempo ao tempo, pois nem tudo tem sempre solução"; em outro, busca "minimizar o sofrimento e melhorar a qualidade da vida, por meio da adaptação dos valores, das práticas e das instituições às condições objetivas das circunstâncias". Dizer que as decisões são tomadas com base em circunstâncias não-universalizáveis (ou nas particularidades do "caso brasileiro") é um código infalível para dizer que os políticos no poder farão o que quiserem e darão algum arremedo incoerente como explicação. É rejeitar a ciência em nome do feeling, e dar carta branca para toda medida populista. É esse o partido de nossos sonhos? Que governará sem propostas, sem ideias, ao sabor das circunstâncias do momento?

Quem governa sem ideias é servo das ideias dos que o precederam. O conservadorismo busca o impossível: substituir valores e propostas pela total ausência deles. Contra o embuste intelectual e moral que é o socialismo progressista, não apresenta propostas coerentes e um conjunto de valores superior; apenas se abstém do debate e declara não ser possível sanar os males deste mundo. Resende percebe que essa proposta é contrária ao espírito dos jovens. Ele insiste, porém, que os jovens de hoje mantêm a aparência de otimismo apenas por pressão social. Discordo; os jovens são otimistas de verdade; sonham alto. Por isso o conservadorismo lhes é tão avesso; é uma posição política feita para os verdadeiramente velhos de espírito.

No início do século XIX, o conservadorismo era a ideologia contrária aos liberais, que pela força dos argumentos econômicos e o debate implacável conseguiram algo quase impossível: diminuíram o alcance do intervencionismo estatal e das atribuições do Estado em geral. Diminuíram as barreiras comerciais, aboliram a escravidão, abriram espaço para o maior desenvolvimento econômico da história da humanidade até então. Contra adversários que juravam que o estado atual das coisas era "natural", que era a vontade de Deus meramente por ser a ordem estabelecida e a tradição dos antepassados, prevaleceu a razão.

Se a sociedade tem leis e instituições boas, querer conservá-las é ótimo. Mas por elas serem boas, e não por serem tradicionais. A escravidão e a negação de direitos das mulheres são bem tradicionais; devíamos ter dado tempo ao tempo e rejeitado como universalizações ingênuas as propostas que mudaram esses estados de coisas? No mundo árabe, ser conservador é defender a proibição dos juros, a obrigatoriedade do véu e a pena de morte por apostasia; deveríamos ver com bons olhos o "ceticismo" deles com relação aos valores ocidentais?

Há 100 anos atrás, o padrão político vigente era liberal (ao menos para os padrões atuais). Mas o capitalismo, ainda que tivesse uma defesa econômica bem elaborada, não tinha um embasamento filosófico e moral adequado. Vide o utilitarismo, que é das éticas mais coletivistas possíveis e mesmo assim era usado em sua defesa. Não tinha como dar outra: a oposição aos socialistas e progressistas foi feita com base no conservadorismo, no ceticismo; uma posição sob medida para quem quer perder e depois se gabar de ser um dos poucos sábios remanescentes, mas não para quem almeja relevância social. As premissas e os conceitos foram dados todos pelo progressismo, e continuam a reinar até hoje, até que alguém tenha coragem de sustentar um outro código de valores. You can't beat something with nothing. O conservadorismo atual rejeita o aumento do dirigismo estatal mas aceita o conceito de justiça social e o valor da igualitarismo que lhe dá suporte; sua guerra já está perdida.

Nesse sentido, o PSDB já é um partido conservador. Nada tem a oferecer que destoe da agenda socialista obrigatória do discurso público; afirma apenas ser mais eficiente, mais honesto e promete não conclamar os proletários às armas. Na época da eleição faz sua propaganda, finge que as discordâncias políticas com o PT são profundíssimas (ironicamente, a acusação ideológica da última campanha foi dizer que o PT não era socialista o bastante), mas todo mundo sabe que as propostas são rigorosamente as mesmas: o Estado dará mais saúde, mais educação, mais trabalho, mais renda, mais cultura, mais esporte, mais lazer, mais sexo seguro, aumentará a regulamentação sobre o capitalismo selvagem e fortalecerá as estatais. Ser conservador hoje em dia é comprar o pacote progressista completo e aplicá-lo timidamente. Uma real oposição tem que ter algo novo a propor.

***

Feita essa crítica ao conservadorismo como um conjunto de valores e propostas políticas (ou melhor, da ausência deles), sobra algo que, me parece, é saudável, e que o próprio Resende levanta: o conservadorismo dos meios, ou seja, a rejeição ao ímpeto revolucionário, a qualquer tentativa de impor grandes mudanças por meio da força. O poder corrompe, e a sede implacável de justiça é algo perigoso. Conhecendo a imperfeição do homem, a cautela e a harmonia das relações devem ser sempre preservadas, pois é com grande facilidade que revertemos à barbárie. A abolição da escravidão no Brasil, pela via do consenso e do convencimento, é um bom exemplo dessa política conservadora no bom sentido (ainda que se possa criticar o desamparo no qual os ex-escravos foram deixados depois dela). Mas essa cautela e esse zelo pela ordem social não substituem os valores e as propostas que dão o direcionamento e constituem a alma da boa política. O conservadorismo dos meios mantém nossos pés no chão; o dos fins, nossos olhos.
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