segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Juízos de Estacionamento

Dependendo do horário, não é fácil encontrar vaga para carro ao lado da biblioteca da FFLCH-USP. Então me senti sortudo quando, chegando já às 15:00, encontrei uma vaga não muito longe da entrada.

Preparando-me para a baliza, notei que o espaço estava mais apertado que o comum; não tornava a manobra inviável, mas me daria muito menos espaço para sair do carro. O motivo? Um dos carros adjacentes (modelo popular de alguns anos atrás; não me perguntem qual...) estava torto, invadindo flagrantemente com seu pneu traseiro a fronteira que separava nossas vagas.

Com a habilidade que me é própria, estacionei meu carro, já um tanto desgostoso por ter pouco espaço para abrir a porta, e foi então que notei os adesivos que adornavam a lateral do veículo: coisas como "eu paro para animais", "proteja os animais", "direito dos animais", "eu respeito os animais"; enfim, vocês entenderam a mensagem. Acho que havia também um da Veterinária-USP. Foi-me impossível não exclamar, acho que até em voz alta: "É... respeita os animais, mas estaciona fora da vaga!"

Saindo da vaga e caminhando para a biblioteca, minha mente perversa foi além. E se entre o amor vocal pelos animais e a displicência prática para com outros humanos não houvesse apenas correlação, mas causalidade? E se o veterinário desprezasse os homens justamente por amar tanto, e provavelmente atribuir características pessoais, aos bichos? Nos homens ele veria apenas intriga, inveja, ressentimento, enquanto nos animais veria ingenuamente todas as características positivas como sinceridade, amizade, fidelidade. Incapaz de lidar com o mundo real, construiu para si um mundinho particular, no qual animais substituem as relações humanas (e o fato de essas relações serem basicamente de mão única apenas sublinha o egocentrismo da coisa toda), e a melhor forma de se convencer a si mesmo era se alinhar a um movimento e manifestá-lo barulhosamente a todos que cruzassem seu caminho. Imagine ele puxando papo numa festa, procurando a oportunidade de lançar uma bomba do tipo "Sim, eu não como carne, sou contra o assassinato de inocentes."

Eu ainda não estava satisfeito. Minha inferência do caráter do sujeito iria um passo além. Não, não se tratava de descaso para com outros seres humanos, e sim do desejo consciente de prejudicá-los. Para certo tipo de mentalidade, a sociedade burguesa-capitalista-individualista em que vivemos - encarnada, entre outras coisas, pelo automóvel - é incorrigível, e nossa única esperança é uma revolução. Mas como a grande revolução geral ainda está distante, o jeito é ir fazendo microrrevoluções, ou seja, pequenos atos para romper e desagregar o tecido social, mas ainda dentro do que permite a lei. Uma forma de microrrevolução é guiar na faixa da esquerda perto do mínimo permitido, só para piorar o trânsito. Outra - por que não? - poderia ser estacionar fora da vaga, dificultando a vida dos outros motoristas a procura de estacionamento. Parece detestável demais, incoerente demais, imaginar jovens donos de automóvel julgando-se heróis revolucionários ao piorar intencionalmente a vida dos demais motoristas? Pois já o vi admitido, e com orgulho, no mural do Facebook. E agora, na frente da biblioteca da FFLCH - sem dúvida um terreno propício às ideias da microrrevolução - encontrava em carne e osso o tipo de inimigo que só vira na internet e em meus piores pesadelos.

***

Lá pelas seis da tarde, saí da biblioteca, e vi que o carro de meu inimigo desconhecido ainda estava lá. Dessa vez, no entanto, notei outro detalhe: ao lado da linha de demarcação da vaga, havia, meio apagada, uma linha antiga. Era bem claro qual a nova e qual a velha, mas para um motorista com pressa ou um pouco desatento poderia passar batido. E o carro torto que invadira minha vaga estava, pela demarcação antiga, perfeitamente bem estacionado.

E assim, com um detalhe a mais, o mini-Stalin defensor dos bichos e inimigo dos homens, egocêntrico e complexado, tornou-se uma pessoa comum, suscetível como todos nós aos pequenos descasos e imperfeições da vida, com suas crenças e convicções, nem melhor nem pior do que eu.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Epistemologia no Antigo Testamento

Uma breve contextualização da passagem a seguir: Salomão, apesar de sábio, teve um período deveras pecaminoso: entregou-se à riqueza e aos prazeres; entre outras indiscrições, teve 700 esposas e 300 concubinas. Em sua velhice, algumas dessas esposas o incitaram ao pecado máximo do Velho Testamento: a idolatria. Como punição, Deus fez com que o reino de Israel fosse dividido. A maior parte das tribos formaria o novo reino de Israel ao norte, e ao sul, com a linhagem de Davi, ficaria o reino da tribo de Judá (que é também onde fica Jerusalém). O rei de Judá, e o que efetivamente perdeu o território ao norte, era Roboão, filho de Salomão. O rei de Israel era Jeroboão, ex-alto funcionário de Salomão. Logo depois de estabelecido o novo reino, ele abandonou o culto a Deus e estabeleceu o culto aos bezerros de ouro e tornou-se basicamente um inimigo do povo de Deus, identificado agora a Judá (que teve também um período de paganismo, ou ao menos sincretismo).

Essa história (1 Reis, 13) se passa no reinado de Jeroboão em Israel, e envolve um profeta local (curioso que Deus continue suscitando profetas mesmo fora de seu povo) e um "homem de Deus", sem nome, vindo de Judá para fazer um alerta a Jeroboão, que estava na cidade de Betel, onde erguera um bezerro de ouro. 
Ora, estando ele [Jeroboão] de pé diante do altar para queimar o incenso, eis que sobreveio um homem de Deus, vindo de Judá por ordem do Senhor; este se pôs a clamar contra o altar da parte do Senhor, nestes termos: "Altar! Altar! Eis o que diz o Senhor: Na casa de Davi nascerá um filho que se chamará Josias; ele imolará sobre ti os sacerdotes dos lugares altos, que agora queimam ofertas sobre ti, e queimar-se-ão sobre ti ossos humanos." Ao mesmo tempo anunciou o homem de Deus um prodígio, dizendo: "Eis a prova de que é o Senhor quem fala: o altar vai-se fender e a cinza que está por cima se derramará por terra". Ao ouvir a ameaça que o homem de Deus proferia contra o altar de Betel, o rei Jeroboão levantou a mão do altar, e disse: "Prendei-o". Secou-se-lhe, porém, a mão que estendera contra o homem, de modo que não a pôde trazer a si. O altar fendeu-se e espalhou-se a cinza que estava sobre ele, assim como o dissera o homem de Deus da parte do Senhor. 
Então disse o rei ao homem de Deus: "Aplaca o Senhor, teu Deus, e roga por mim para que me seja restituída a mão". O homem de Deus aplacou o Senhor, e o rei pôde trazer de novo a si a mão, que se tornou tal como era antes. O rei disse ao homem de Deus: "Vem comigo a minha casa para restaurar as tuas forças, e dar-te-ei um presente". Mas o homem de Deus respondeu ao rei: "Ainda que me desses a metade de tua casa, eu não iria contigo. Não comerei pão, nem beberei água nesse lugar, porque o Senhor me ordenou que não comesse pão, nem bebesse água, e tampouco voltasse pelo mesmo caminho por onde vim." Partiu, pois, de Betel por outro caminho e não tomou aquele por onde viera. 
Ora, habitava em Betel um profeta já idoso, a quem seus filhos contaram tudo o que o homem de Deus fizera naquele dia em Betel, e o que ele dissera ao rei. O pai disse-lhes: "Por onde se foi ele?" Seus filhos mostraram-lhe o caminho que tomara o homem de Deus vindo de Judá, ao partir. Ele disse aos seus filhos: "Selai o meu jumento". Tendo-o eles selado, montou nele o profeta, e partiu em busca do homem de Deus. Encontrou-o sentado ao pé de um terebinto, e disse-lhe: "És tu o homem de Deus que veio de Judá?" "Sim", respondeu ele. O velho profeta continuou: "Vem comigo para comeres em minha casa". "Não posso voltar, respondeu ele, nem ir contigo à tua casa. Não comerei pão, nem beberei água contigo nesse lugar, porque recebi do Senhor a ordem de não comer pão, nem beber água, nem tampouco voltar pelo mesmo caminho por onde vim." "Mas eu sou também profeta como tu", insistiu o outro. "Ora, um anjo me falou da parte do Senhor: Leva-o contigo à tua casa e dá-lhe de comer". Era mentira. O homem de Deus voltou com ele e comeu em sua casa. 
Enquanto estavam à mesa, o Senhor falou ao profeta que o tinha feito voltar, e este interpelou o homem de Deus, vindo de Judá, nestes termos: "Eis o que diz o Senhor: Desobedeceste à palavra do Senhor e não cumpriste a ordem que o Senhor, teu Deus, te havia dado: voltaste e comeste num lugar do qual Deus te dissera: 'Não comerás pão ali, nem beberás água'. Por isso teu cadáver não será levado ao sepulcro de teus pais." 
Depois de ter comido, o velho profeta mandou selar um jumento para o seu hóspede, e este partiu. Enquanto caminhava, o homem de Deus encontrou no caminho um leão, que o matou. Seu cadáver ficou estendido no caminho, tendo ao seu lado o jumento e o leão. Alguns que passavam por ali, vendo o cadáver estendido por terra e junto dele o leão, foram e divulgaram a notícia na cidade onde morava aquele velho profeta. Ouvindo isto, o velho profeta, que tinha levado à sua casa o homem de Deus, exclamou: "É o homem de Deus que foi desobediente à ordem do Senhor; e o Senhor o entregou a um leão que o despedaçou e matou, como o Senhor lho predissera". E disse em seguida aos seus filhos: "Selai o meu jumento". Eles selaram-no, o profeta partiu, e encontrou o cadáver estendido no caminho, tendo ao seu lado o jumento e o leão. O leão não tinha devorado o cadáver, nem dilacerado o jumento. 
Tomou então o profeta o cadáver do homem de Deus, pô-lo em cima do seu jumento, e levou-o para a cidade a fim de pranteá-lo e dar-lhe sepultura. Depositou-o em seu próprio túmulo, e pranteou-o, dizendo: "Ai, meu irmão!" 
Depois do enterro disse o ancião aos seus filhos: "Quando eu morrer, sepultar-me-eis no túmulo onde repousa o homem de Deus; depositareis os meus ossos junto do seus. Porque se cumprirá a ameaça que ele fez da parte do Senhor contra o altar de Betel e contra todos os templos dos lugares altos das cidades da Samaria."

Eu e o grupo que comigo lia essa passagem ficamos perplexos. O que explica o ato desse profeta? Um profeta que mente conscientemente apenas para fazer outro desobedecer a ordem que recebera de Deus. Notem que ele também não deixou de ser um profeta (alguém que recebe diretamente revelações divinas) por sua mentira, já que no jantar é ele próprio, o corruptor, que serve de canal para a proclamar a culpa do homem de Deus. E depois de brincar tão casualmente com a vida alheia e de causar a morte do homem de Deus - sem ganhar absolutamente nada com isso - parece que se compadece e dá a ele sua própria sepultura.

A passagem é bastante enigmática. Mas um membro do grupo matou a charada: o profeta era um cientista, e o homem de Deus o objeto de seu experimento científico. Pois se aparece, vindo da nação rival, um homem com uma revelação supostamente divina, como saber se ele está dizendo a verdade? Era preciso testá-lo. O teste não era estritamente necessário, dado que o homem de Judá já tinha cumprido sua missão e  Jeroboão já tinha recebido o recado muito claro a respeito de sua idolatria. Mesmo assim, o profeta queria saber; e para isso estava disposto a fazer o homem de Deus violar sua promessa, e até causar sua morte, para só então ficar tranquilo.

Sobra, contudo, uma última pergunta: por que Deus deu ao sujeito a ordem de não aceitar comida em Isarel? Haveria algum motivo para essa ordem aparentemente arbitrária que não exatamente servir de critério para o teste do profeta? Por mais que leiamos os livros da Bíblia, eles nunca se esgotam.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A Multidão

Texto dedicado a todos os moderninhos, sóbrios e intelectualmente
independentes, que se ressentem de que haja uma nova leva de pessoas 
abraçando o cristianismo justamente quando eles houveram por bem
 abandonar o barco. Sem problemas: o que não falta é gente com
 disposição para tocar adiante o comboio. Ide em paz, moderninhos!




Estive em Belém do Pará na última semana, para acompanhar as festividades do Círio de Nazaré. Sendo paraense e tendo morado lá até meus dezessete anos, o Círio é uma das imagens mais fortes que trago na lembrança. Dois milhões de pessoas (mais do que a população da região metropolitana de Belém) em procissão por 3,7 km cumpridos em mais ou menos cinco horas, aglomeradas em torno de uma corda que puxa a berlinda contendo a imagem de Nossa Senhora de Nazaré – é uma coisa, antes de tudo, assustadora; é uma cena que, se falhar em causar alumbramento, causará profunda repulsa, mas dificilmente indiferença.

O Círio ocorre há mais de duzentos anos (consta que o primeiro se deu em 1793) e é conhecido como o Natal dos paraenses. De fato, a quinzena que precede a festa lembra muito a atmosfera das festas de fim de ano, com uma crucial diferença: se o sentido religioso do Natal já quase passa batido, no caso do Círio a religiosidade é inescapável. É justamente sobre isso que eu gostaria de escrever: não tanto sobre o fervor religioso do povo paraense em época de Círio, mas, mais apropriadamente, sobre o modo como, nessa época do ano, os símbolos religiosos voltam a habitar o imaginário da população e são, por assim dizer, readmitidos entre o vocabulário e o senso comuns.

Na quinzena do Círio, Belém é tomada por palavras como louvor, bênção, graça, Maria, fé, devoção, santidade, paz. Isso em todos os âmbitos, dos comerciais de televisão aos cumprimentos entre conhecidos. É uma época em que portar um terço em público não chama a atenção, como é normal deparar-se com pessoas pagando as mais bizarras promessas. É como se na quinzena do Círio milagrosamente o cristianismo voltasse a ser o standard. Não se preocupe, leitor moderninho, não vou pular à conclusão de que isso se dá por milagre de Nossa Senhora, logo a fé move montanhas, etc. Não; é bastante óbvio que essa readmissão simbólica do cristianismo durante duas semanas mal fere a superfície das crenças e do comportamento geral da sociedade. Mas não deixa de ser um fenômeno bizarro, que há de guardar um significado mais profundo.

É sempre interessante, nessa época do ano, observar pelo Facebook as manifestações de meus conhecidos e familiares paraenses em relação ao Círio. E chega a ser inacreditável: parece que em vez de jovens baladeiros e/ou dispostos a integrar a revolução comunista mundial eu tenho dezenas de amigos fervorosamente cristãos! Dou-me inclusive a liberdade de reproduzir aqui o post, bastante bonito por sinal, de uma amiga cujas convicções políticas são o oposto das minhas (que, se não chegam a ser convicções por si, são no mínimo um pé bastante atrás quanto às ideias sustentadas pela minha amiga):

Feliz Círio a todos! Hoje é o meu dia preferido de Outubro, é o dia da trasladação... as pessoas em Belém vão para a rua à noite ver Nossa Senhora de Nazaré percorrer o caminho inverso da grande procissão que ocorrerá amanhã de manhã. Sempre fui louca pelas luzes das velas na Avenida Nazaré, o fresquinho da noite e os cânticos em coro dos filhos de Nazica... A corda, cobra grande materializada, nas mãos dos promesseiros... A fé, meu deus, a fé. A fé ali é concreta, é o povo, são as mãos para o céu. Que saudades do tempo em que eu deixava o meu coração ser levado procissão adentro sabendo que ao voltar para mim ele viria carregado de amor.

Quando li isso eu me perguntei sinceramente, sem qualquer ironia: fé em quê? Que tipo de fé é essa que abrange ao mesmo tempo a Mãe de Jesus e a Marcha das Vadias? Qual nexo lógico opera na mente da minha amiga, capaz de conciliar realidades tão distintas? E no entanto no Círio é assim: gregos, troianos, egípcios, astecas – todos caem de joelhos em louvor à Virgem Maria.

Todos os paraenses, isto é. Todos os que cresceram sabendo que, todo segundo domingo de outubro, milhares de romeiros vão dar suor e sangue numa procissão por amor de uma Santa. É isto que nenhum de nós paraenses consegue negar, o fato tão acachapante que, não podendo ser amenizado, transforma o ritmo de uma cidade por duas semanas e se aferra ao coração de seus habitantes: todo segundo domingo de outubro milhares de pessoas se expõem voluntariamente a cinco horas de castigos físicos, durante as quais sua única preocupação é chegar ao fim do percurso, cumprir a promessa, honrar a palavra empenhada diante da Santa. O que é impossível negar, quando já se viu isso de perto, é que há algo real aí. Nada é capaz de diminuir o peso do exemplo de cada romeiro do Círio: essas pessoas têm uma convicção, um ponto, um objetivo; nada as move senão o contato travado entre elas e a Mãe de Jesus. Ver o que elas são capazes de fazer consigo mesmas para honrar esse contato é algo a que nem o mais ateu dos paraenses consegue ficar indiferente. Há algo real aí.

Em 2004, quando eu tinha dezesseis anos, me inscrevi para ser da Cruz Vermelha do Círio. Longe de ser um ato de generosidade ou altruísmo, confesso que o que me movia era mais curiosidade de ver de perto o miolo daquela festa tão esquisita. Estando na flor da revolta adolescente contra a ordem e as coisas de Deus, queria ver o que estava por trás de tanto bla-bla-bla religioso por todos os cantos. O que menos fiz foi ajudar enquanto voluntária da Cruz Vermelha; na primeira oportunidade, perdi-me do meu grupo de maqueiros e fiquei solta, sozinha, no meio do Círio, embrenhando-me pela massa humana, colhendo cenas, expressões, impressões. E aquele calhou de ser o Círio mais longo da história, tendo durado mais de nove horas. A lama espessa, misto de suor, urina, terra e água, que me cobria às quatro da tarde daquele dia – aquilo era como ter a felicidade na pele. Perdoem-me, há certas coisas de que não dá para falar sem ser piegas.

Das muitas imagens colhidas ao longo daquele domingo, a mais forte foi a do promesseiro cuja promessa era acompanhar o Círio de joelhos. Essa é uma das promessas mais comuns (a mais incomum provavelmente é a do homem que, todos os anos, acompanha o Círio vestido em uma roupa feita com caranguejos vivos), e no entanto acompanhar aquele homem, colocar papelão diante dele, amenizando muito pouco sua tarefa, e principalmente o seu desespero quando alguém propôs carregá-lo nos metros finais do percurso – ele não queria, não queria! A promessa era chegar à Basílica de joelhos! –; ter diante dos olhos algo assim me deixou muito claro que aquela massa de gente era composta por indivíduos, e que cada um daqueles indivíduos estava ali porque tinha um pacto pessoal e intransferível com a Divindade.

Eu continuei adolescente e revoltada após essa experiência no Círio, mas certamente passei a respeitar aquela coisa assustadora que, sem eu entender como, movia aquela massa humana. Penso que seja esse respeito que toma os paraenses em época de Círio. Mas é um efeito passageiro, logo suplantado pela necessidade de fazer as compras do Natal, e nisso os comerciais de TV logo substituem as saudações a Maria por ofertas de queima de estoque. Parece haver aí aquela velha incapacidade de se chegar às últimas consequências de um raciocínio, de desenrolar até o fim uma premissa aceita. As pessoas reconhecem que por trás de algo como Círio só pode haver o sobrehumano – as pessoas chegam, sim, a reconhecer o mistério. Mas o raciocínio, ou, antes, a impressão, morre aí, como se aceitar a metafísica não devesse modificar todo o sistema de crenças de quem, fora das duas semanas do Círio, vive em função do aqui-e-agora.

Devo esclarecer que com “as pessoas” tenho em mente a classe média, as cem ou duzentas mil pessoas que ocupam os cinco bairros centrais da capital paraense e que veem o Círio pela televisão – no máximo, vão até uma travessa da avenida principal ver a Santa passar de longe, depois voltam para casa para o tradicional almoço com os pratos típicos da festa (e se as associo ao “normal” é porque cresci entre elas). Essa parte da população só é cristã no Círio, assim como mulher só assiste futebol na Copa. Mas quem vai na corda tem uma religiosidade bem mais perene; quem vai na corda do Círio em geral se prepara o ano todo para isso. E é como se a fé destes fosse tão forte que contagiasse os demais, ainda que temporariamente. Não encontro outra explicação para o Círio de Nazaré. Dois milhões de pessoas que acreditam em Nossa Senhora se dão em público a um sacrifício que os demais não podem ignorar, tamanha a magnitude da coisa. Quem pode se beneficiar disso de algum modo, como o comércio tanto formal quanto informal, não hesita em vestir a camisa da festa e falar a língua do povo devoto. Quem tem apenas por hábito festejar o que a maioria festeja, também vai junto e até reza umas Ave Marias. Mas a morosidade destes não afeta o núcleo do Círio, pelo contrário, o acolhe: que a fé dos romeiros ecoe de algum modo no resto da população espiritualmente inerte, movendo-a, criando nela a faísca fugidia da crença, devolve-se aos romeiros como um berço para sua fé.

Não tenho dúvida de que o saldo da experiência paraense com o Círio é este: conviver com os símbolos cristãos, ainda que sem compreendê-los em sua profundidade, prepara as pessoas para receber a fé quando esta se oferece. De minha parte posso afirmar que ter crescido com a imagem do Círio se repetindo ano após ano ao meu redor, se não me tornou verdadeiramente cristã, ao menos manteve em mim aberta a impressão de que há algo que nos transcende. Creio que essa é uma experiência compartilhada por todos os paraenses, e que isso em grande medida explica sua presteza em se prostrar diante da Virgem durante o curto período em que isso é socialmente aceitável.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Debate dos Presidenciáveis, 2014

Transcrição do terceiro do bloco do debate do primeiro turno das eleições presidenciais de 2014, realizado em São Paulo (SP), no átrio do Templo de Salomão, Brás. O debate contou com os principais candidatos ao cargo supremo do Executivo: Dilma Roussef (PT), José Serra (PSDB) e Tiririca (PR), além da minoritária Soninha Francine (PPS) e mais um nanicos cujo nome se perdeu. Moderando o debate estava o pastor Silas Malafaia.

TERCEIRO BLOCO - TEMA: PLANOS DE GOVERNO

Moderador (M): Aleluia, irmãos! Voltamos agora ao debate entre os presidenciáveis. Antes de darmos início às falas dos candidatos, conclamo todos a dar as mãos e orarmos a Oração do Senhor. Eleitores, prestem atenção para ver quem sabe as palavras e quem fica só mexendo os lábios sem dizer nada. O candidato Juliano Torres do LIBER gostaria de anunciar que não participará, por sua própria conta e risco, deste ato de louvação.

[encerrada a oração, seguranças escoltam Juliano Torres para fora do Templo.]

M: E vamos ao debate. Inicialmente, eu farei perguntas aos candidatos. Em seguida, os candidatos poderão interpelar uns aos outros, com temas selecionados aleatoriamente, lembrando que o tema geral são as propostas e o plano de governo. Ao longo do debate, a qualquer momento, uma manifestação do Espírito pode propor algo novo. Estão todos cientes e de acordo com essas regras? Se sim, digam "Amém".

Todos: Amém!

M: Então vamos lá. A primeira pergunta vai para Dilma Rousseff. Presidenta Dilma, a Sra. afirmou em entrevistas que é devota de Nossa Senhora. Também participou de uma romaria à basílica de Aparecida no último 12 de outubro, onde apareceu para as câmeras beijando a mão do Padre Marcelo e rezando o terço bizantino. Só que a Palavra do Senhor é clara: "Não farás para ti imagens e não as adorarás". Presidenta: como você responde à acusação de idolatria?

Dilma: Silas, sua pergunta é muito pertinente. Línguas maldosas da mídia golpista andam espalhando inverdades. Gostaria de deixar claro que isso é uma mentira, uma calúnia! No que se refere à minha fé, quero reiterar aos irmãos aqui presentes que há apenas um único Deus de poder, Deus de verdade, Deus de justiça e Príncipe da paz! Sigo nas pegadas do meu irmão de fé o Presidente Lula, que deixou seu testemunho em favor dos pobres deste mundo, o Bolsa-Família. Nessa mesma seara, fui inspirada pelo Espírito a fazer o Minha Casa Minha Vida, que agora vai ampliar sua linha de crédito para todo mundo realizar o sonho da casa própria, esse sinal da predestinação, mesmo desempregados e mendigos. E como mostra da devoção do meu programa, todo cidadão que comprovar sua filiação a um templo ou culto pagará juros negativos, como já é a política do Banco do Brasil, esse banco ungido pelo Senhor, Jeová é seu Nome!

M: Candidato José Serra, é publicamente sabido que Fernando Henrique, seu mentor, é ateu. E você: também está fora do redil dos eleitos?

Serra: Silas, tenho muito orgulho da minha trajetória de vida, mas não posso compartilhar de tudo que o FHC fez e disse. O ateísmo é uma dessas coisas. Outra foi a privatização. Andam dizendo por aí que eu vou privatizar as estatais. Isso é mentira; eu vou ser lembrado como o presidente das estatais! Vou ampliar o bolsa-família, que aliás foi ideia nossa, e se você for ver no meu plano de governo, Silas, vai ver que eu vou é nacionalizar as empresas privadas. Não tem sentido deixar setores estratégicos como comida e vestuário nas mãos da especulação privada. Voltando à questão da fé, eu sempre fui um homem de profunda religiosidade; quero ver uma igreja em cada quarteirão! Acho que todas as formas de crença e espiritualidade são positivas...

M [levanta uma das sobrancelhas]: Todas, candidato Serra?

Serra: Todas as formas da fé cristã! Passou disso, amarra em nome de Jesus!

M: Tá amarrado, irmão. Aleluia amém aleluia!

[Alguns na plateia oram em línguas.]

M: Candidato Tiririca, como você se posiciona na disputa doutrinal entre Edir Macedo e Valdemiro Santiago?

Tiririca: Olha, sinceramente eu não entendo por que a fé do candidato deve importar tanto assim. Será que eu posso aproveitar este tempo pra falar um pouco do meu plano para a educação básica? Se for eleito, entre as muitas obras que vou fazer, gerando empregos e melhorando nossa infraestrutura, construirei muitas novas escolas, todas equipadas...

M: Ih, candidato, você caiu no engodo da salvação pelas obras? Foi isso que eu ouvi?

[Vaias da plateia e de José Serra.]

M: Candidata Soninha, varoa honrada pode andar de bicicleta?

Soninha [largada na cadeira, cabeça bem baixo no encosto]: Cara, meu, puta que pariu, né? Acho que sei lá, a mulher tá aí, chegamos lá, e é um puta desrespeito isso de não pode isso não pode aquilo. Direitos iguais para humanos iguais, esse discurso interessa a quem? Cheguei até aqui com a força do meu trabalho em equipe, fiz muita cagada também admito. Tive uma ideia esses dias pra mulher crente que anda de bike, não sou mas respeito; sempre. É o selim casto, mais largo; um banquinho redondo pra não comprometer a virgindade da ciclista evangélica. Tudo com materiais reciclados.

M: Esse banquinho tem poder, candidata! Mas e o cabelão ungido da varoa; não prende na corrente?

Soninha: Putz! Não rola fazer uma parada tipo coque, sei lá?

M: "As mulheres se ataviem com traje decoroso, com modéstia e sobriedade, não com tranças". Coque é trança, candidata. A Palavra é clara: infelizmente, a nação evangélica não poderá te apoiar. Queira a guarda do Templo retirar a candidata Soninha Francine, por favor.

[Soninha sai. O pastor fecha os olhos e todos ficam em silêncio.]

M: Irmãos! O Espírito na forma de uma labareda de fogo acaba de me manifestar glória e poder! Aleluia! Ele quer que cada candidato diga o que pensa sobre a união dos sodomitas. Varão com varão, varoa com varoa; pode, candidatos?

Dilma: De jeito nenhum. Absolutamente. Deus os criou homem e mulher. Adão e Eva; não Adão e Ivo. No que se refere à homoafetividade, inclusive, vou colocar como prioridade para o Ministério da Oração pedir pelo fim deste pecado entre os fieis. E vou qualificar a piada do "crente do rabo quente" como crime de ódio: homo - e cristo - fobia.

Serra: Não acreditem nas mentiras do PT! Lembram do Kit Gay? Dilma é mãe do Kit Gay, e mãe solteira, divorciada, mulher perdida. Ela criou o Ministério para Assuntos LGBTTT; fez do 24 de agosto o Dia da Vera Verão. Depois perde a Copa do Mundo e nos perguntamos por quê! No meu governo, não vai ter baixaria. Pai de família não terá que ficar explicando em detalhes pro filho pequeno o que é suruba de homem.

Dilma: Candidato Serra, assim fica difícil... Detesto trazer dados pessoais para o debate, mas todo mundo sabe do aborto da tua mulher, do teu programa como ministro da saúde de tratar de aidético, dar camisinha; você tem parte com o Satanás. Não cure o homem a doença que Deus mandou! Estou certa, irmãos?

[A plateia vai ao delírio no Senhor.]

Dilma: Tua filha, candidato, é mulher da vida. Você não vai no culto e nem na missa; só em época de eleição. Está aqui fazendo jogo político! O PSDB é isso: discurso bonito mas joga o povo no lixo. Privatização, FMI, vendido ao capital; abre a porta pros americanos e chineses virem tomar conta. Sua PM, Serra, em São Paulo, mata estudante, mata pobre, sacrifica bebê no terreiro pra Moloch, pra Baal. É isso que Jesus faria?

Serra: Olha, Dilma, não esperava esse golpe baixo vindo de você. Embora seu partido seja mensaleiro, ateu e comunista comedor de criancinha, sempre tive respeito e admiração por sua história de luta. Nem utilizei politicamente o fato de você, sua terrorista duas-caras, ter traído seu marido e as suspeitas sérias de que você é sapatão. Oops, pronto falei! [Dá um sorriso maroto.]

Tiririca: Gente, por favor, isto é um debate político! Olha, Silas, quanto ao casamento homossexual, é um tema na melhor das hipóteses secundário. Mesmo porque estou concorrendo a um cargo do Executivo; então mesmo se eu tivesse uma posição acerca do tema, não teria como colocá-la em prática. Agora será que podemos discutir questões sérias? Eu realmente gostaria de discutir os projetos de cada um. Não sei, mas acho um pouco perigoso o rumo que a discussão política vem tomando no Brasil. Este será nosso único debate, e vamos perder nosso tempo tentando angariar votos dessa forma baixa, apelando a todos os preconceitos que ainda vigoram no eleitorado e polarizando os discursos? Não temos nada melhor para mostrar? Por exemplo, eu vim aqui com o intuito de discutir o problema da educação básica no país, que como todos sabem é um problema de muitas gerações, e cuja solução terá que envolver a ação conjunta de todos os partidos. Será que eu poderia apresentar as diretrizes preliminares do meu plano?

M: Não teste a paciência do Senhor, candidato! Mas vá lá; qual é o seu plano para a educação básica no Brasil?

Tiririca: Me elege que eu te conto! FUÉÉÉ!

[Risos no auditório, que começa a cantar: "Ôôô, É Tiririca eu sooou, e ninguém vai me segurar!"]

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Sede de Justiça



É difícil, em meio a certos eventos de relevância política, e frente a certos tipos de manifestação do lado contrário, não se polarizar partidariamente e tratar o funcionamento das instituições nacionais como um jogo de futebol ou uma história em quadrinhos.

Joaquim Barbosa não deveria ser herói; e nem Lewandowski vilão. E no entanto...

É muito difícil não ver os votos de Lewandowski e Dias Toffoli como refletindo, não sua apreciação técnica das evidências em jogo, mas a adesão a laços partidários. O comportamento do segundo em certas ocasiões apenas reforça a aparência de que ele não honra o cargo.

Mas enfim, por mais que sintamos alguma raiva e pressintamos que eles não tenham sido plenamente imparciais, não é possível acusar seriamente os dois de injustiça, corrupção, conspiração, etc. Assim como os aguerridos apoiadores de José Dirceu e os enternecidos pela honra de Genoíno também não têm como seriamente acusar os oito que votaram por sua condenação. (A esse respeito, Dmitri Dimouli explicou bem, em entrevista à Rádio Cultura, os dois posicionamentos, ambos defensáveis, no julgamento do Mensalão.)

O fato mais chocante dessa história toda, contudo - ou ao menos o que mais me chamou a atenção - foi a expectativa inicial de que os ministros do STF deveriam votar - ou então votariam embora não devessem fazê-lo - de acordo com a administração que os indicou, e a surpresa (e consequente exultação ou escândalo) quando não o fizeram. Essa é a verdadeira corrupção, uma corrupção mental de todos nós: que mesmo do órgão máximo da Justiça nacional não se espera nada além da politicagem partidária. Alguns, como Leonardo Boff, insistem em que tudo é ideologia; e que, portanto, não há uma justiça imparcial e objetiva, mas apenas a politicagem partidária (desses, podemos afirmar apenas uma coisa: tudo o que eles dizem é ideológico, ou seja, é interesse escuso posando de objetividade). Outros, a maioria, embora saibam que é possível ser objetivo e imparcial, não o esperavam do STF.

Se se realmente pensa assim, melhor fazer as malas e se mudar para Honduras. A última coisa que deveria importar no julgamento do STF é o partido que indicou cada um dos ministros; felizmente, não importou.  Trazê-la à tona, contudo, já é uma expectativa lamentável de corrupção. O que distingue uma nação politicamente séria das demais é ter instituições verdadeiramente cegas às bandeiras e aos partidos envolvidos; ter uma Justiça que julgue com base exclusivamente no mérito do caso, não importante a ideologia, as intenções ou o partido dos envolvidos. É obsceno esperar qualquer outra coisa; é abrir mão da busca pelo bem, e demonstrar uma total sede de justiça, no plano dos ideais.

Acho que um dos principais motivos de eu não votar no PT é por identificá-lo a esse desprezo à imparcialidade e à objetividade que deveriam vigorar nas instituições. O uso das estatais para auxiliar órgãos de mídia e blogs aliados; uso das mesmas estatais e coligadas para manipular índice de inflação; a pressão constante, os telefonemas e a investigação em cima de rivais; o emparelhamento do IPEA sob a presidência de Márcio Pochmann (gente de dentro do IPEA se refere a sua saída como "Adeus, Lênin"); as mostras de ultraje perante os votos dos ministros que "deveriam ser petistas"; a campanha ininterrupta de demonização de todos os nomes da oposição e dos estados a ela associados. Esse mal não acomete apenas o PT, mas praticamente toda a esquerda brasileira, fazendo-se sentir até mesmo (e talvez especialmente) na política estudantil. E não só corrompem as instituições; justificam o ato alegando superioridade moral ou ideológica, como se isso tornasse a corrupção mais bela. Sob essa ótica, ser imparcial é ser vendido, pois o bem é seguir o partido em todas as circunstâncias.

Um passado de glórias, o amor aos filhos, o bom humor e o sorriso bonito não são prova de inocência; e nem os depoimentos de familiares e abaixo-assinados. O número de petistas aguerridos (que são bem menos numerosos do que os eleitores que votaram ou votam PT) que se nega a admitir que sim, oras pombas, Dirceu e Genoíno provavelmente são culpados e seu julgamento foi justo, e não uma conspiração da mídia golpista, revela apenas que, para muitos, salvar os correligionários é mais importante do que o respeito às instituições nacionais. Antes dinamitar o STF como corrupto do que aceitar a prisão de Santo Dirceu.

É essa mesma "sede de justiça", que viola a objetividade da Justiça e das demais instituições, que se faz sentir mais forte na Argentina e na Venezuela. Será que os petistas deles são piores que os nossos, ou nossas instituições é que são mais sólidas? Essa falsa sede de justiça é plenamente compatível com a democracia eleitoral; pode até ser, dependendo do ânimo das massas, mais popular. Não o é, contudo, com um povo livre e com uma nação civilizada e que pretenda se desenvolver.

sábado, 6 de outubro de 2012

Por que quase votarei na Soninha

Uma lei interna, inconsciente, governa meus votos. Posso ter a opinião que for sobre os candidatos, posso detestar o Serra (e detesto, por ele ser ávido pelo poder, um centralizador e inimigo do livre mercado); mas, na hora de digitar o número na urna, sai 45. Nas poucas vezes em que eu não o fiz me senti mal, como se aquele voto por algum outro partido fosse um pouco condenável. Isso significa que meu superego é tucano? (Minha única esperança de me livrar desse hábito é se o Liber conseguir suas 500 mil assinaturas e aparecer nas urnas...)

Nessas eleições de prefeito, quem mais capturou minha imaginação foi a Soninha. Ela é a única candidata que é um ser humano de verdade, e não um produto embalado por uma equipe de marqueteiros. Soninha tem facebook, tem site, tem até formspring; se alguém faz uma pergunta em seu facebook, costuma receber resposta. E não é a resposta de um assessor de marketing fingindo ou deixando ambíguo se é ou não o candidato que está falando; é a própria Soninha ali, dizendo o que pensa. Ela realmente diz o que pensa.  Serra / Haddad / Russomano / Chalita têm respostas prontas para tudo. O entrevistador usou o termo "saúde"? Ah, então é só soltar o discurso pronto e repetido ao infinito sobre como eu vou fazer mais AMAs ou UPAs ou formar cuidadores. O tom de voz, as frases, o sorriso, foi tudo pensado por uma equipe de marqueteiros; o político é só o veículo. Seu discurso não reflete o que ele realmente pensa, ou o que ele realmente vai fazer, mas simplesmente aquilo que tem o maior potencial de ganhar o maior número de votos possível.

Soninha, não! Ela diz o que pensa mesmo. E em geral o que ela pensa não é lá muito bom, mas é genuíno, sincero. Ela está num constante esforço de ouvir e formular ideias, propor e testar soluções, etc. Ela é a única candidata que não olha nos seus olhos e mente com a frieza de um con artist. Isso a deixa menos preparada que o político comum para um debate (pois todos aqueles números que todos eles fingem dominar escondem o principal fato da ação política: não há critério objetivo e nem indicadores epistemologicamente seguros para eles tomarem todas as decisões sobre o uso do dinheiro) - fiquei chateado ao ver, nos únicos dois minutos de debate que assisti, ela levando a pior do Paulinho da Força. O que ela propunha na saúde? Prontuários eletrônicos, comunicação mais eficiente e rápida; uma mudança sensata e que de fato evitaria muitas perdas desnecessárias. Só que é algo que evidentemente não soluciona o problema (insolúvel, posto que todo mundo morre, e se morre é porque teve um problema de saúde que não foi curado) da saúde. Já Paulinho da Força tinha os números na manga: alugar 3000 leitos de hospitais privados, resolvendo o problema sem ter que construir novos hospitais. Será que tal ação seria factível? Será que existem tantos leitos ociosos na rede privada, ou será que cada novo leito alugado pelo Estado significará uma pessoa a menos sendo atendida na rede privada, o que no fim das contas significa que está tudo igual? Não saberemos, pois Paulinho da Força nunca será eleito.

A ideia que a Soninha defende do pedágio urbano não é má em si. É uma tentativa meio canhestra do Estado de imitar o funcionamento do mercado, cobrando pelo uso das ruas, e abolindo assim idiotices plenas como o rodízio municipal. Se ela estivesse associada a uma redução do IPVA, de forma que a arrecadação de prefeitura ficasse no máximo igual (de preferência diminuísse, mas sonhar com isso numa democracia é quase utopia milenarista), teria meu apoio imediato. As pessoas pagam menos para simplesmente ter o carro em sua garagem e mais para guiá-lo nas ruas nos horários de maior trânsito; faz todo o sentido. Ela querer sincronizar mais semáforos também é uma medida necessária e que inexplicavelmente tem demorado a ocorrer.

Enfim, a candidatura da Soninha tem muito desse novo tipo de mentalidade de buscar a eficiência nos processos, o que é muito positivo. A liberação da maconha, que não fumo e nem pretendo fumar, vem aí como um bônus: um aceno a uma causa liberal. Infelizmente, ela ainda é carregada de slogans e lugares-comuns da esquerda. Outro dia alguém a interpelou, não sei se no facebook ou no formspring (sim, isso ocorre com a Soninha, e é um grande mérito, na minha opinião), dizendo que "bicicleta é transporte individual, a gente tem que pensar no coletivo", ao que Soninha respondeu: "Sim, a prioridade é sempre do coletivo". Esse tipo de demagogia me desanima. E talvez em parte por esse tipo de inconsistência, por essa indecisão sobre romper total e irremediavelmente com a forma de se fazer política e, ao mesmo tempo, ainda se prender a chavões e  a algum populismo tímido, ela não tenha crescido nada nas pesquisas desde o início do ciclo.

Mas o que Soninha representa é, na minha talvez ingênua esperança de deslumbrado com a internet e com o fim das barreiras institucionais à comunicação de massas, o que a política deveria ser e virá a se tornar: embate de ideias. Candidatos, cada um com suas ideias sobre como melhor gerir as coisas - ciente de que elas podem não agradar a uma parcela da população e mesmo assim sem abrir mão delas - tentando persuadir racionalmente o eleitorado. Não sei se foi por falta de dinheiro ou por opção (tem gente que, mesmo sem dinheiro, joga o jogo patético do marketing político: Levy Fidelix), mas sou grato também por não ter ouvido sambinha ou forró com seu nome nas rádios.

Soninha, ainda não foi dessa vez. É com pesar que o declaro mas, amanhã, agradarei meu superego e digitarei 45. Que o seu exemplo de político sincero, aberto, dando a cara a tapa sem medo, falando besteira de vez em quando, mas sempre valorizando a inteligência do eleitorado, torne-se cada vez mais popular. É o único compatível com uma população inteligente.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

A Esfinge


Sentado no puff verde-limão da sala com uma latinha de cerveja na mão, sua mente fervilhava enquanto lembrava os acontecimentos da manhã e dos quais agora, uma da tarde, acabara de voltar. Seiscentas bicicletas na avenida, as buzinas furiosas em volta. Vida! Estava elétrico. Levantou-se, olhou a estante de livros, desistiu; abriu a porta de vidro da varanda, fazendo soar os bambus orientais pendurados no teto e olhou os transeuntes três andares abaixo, na rua. Uns indo almoçar, outro levava um cachorro; alguns carros. Sob a visão cotidiana, Fábio enxergou todo um sistema do mundo; uma malha de relações e intenções – de sementes e semeadores – que ele vislumbrara há pouco, na décima sexta edição do ato ciclístico Bike Sem Fronteiras. Teve vontade de gritar e partilhar com todos aquilo que lhe enchia o peito.

Em um momento da manifestação, um motorista hostil, que passava ao lado, chamou-lhes de “pequenos ditadores”. Fábio respondeu no ato: “A gente não quer mandar em ninguém! Queremos nosso espaço, nossa vida, o fim dessa violência! A gente não é contra ninguém, cara; a gente é a favor de todo mundo! Nossa luta é sua também! Desculpa por atrapalhar sua vida, não é intenção; é que a gente precisa do nosso espaço.” O motorista, meio desconcertado, nada respondeu; acalmara-se. Teria seu coração sido tocado? E foi então que, enquanto pedalava, Fábio teve o estalo: se cada motorista dessa cidade fosse tocado dessa forma, se uma pequena inquietação fosse plantada em cada peito, a luta já estaria ganha. Os ciclistas não eram contra ninguém. Nesse sistema que vive do conflito, produzindo a violência como subproduto, propor a coexistência, a simbiose, é revolucionário. Os motoristas não eram maus; não eram inimigos pessoais. Mas o carro, a própria estrutura funcional da máquina de combustão, inseria-os num sistema de antagonismo. Era preciso plantar sementes nos corações; sementes de respeito, tão raras no mundo do transporte automotivo.

A abordagem agressiva de alguns colegas da bicicletada nada mais era do que transportar para o mundo da bicicleta o espírito do automóvel. Era preciso fazer o contrário: trazer o modo de vida da bicicleta aos carros. Esse curso de pensamento deve ter durado alguns segundos. Quando deu por si, alguns colegas, pedalando a seu lado, parabenizavam-no pela fala ao motorista. “Mandou muito, Fabinho! Irado!”.

Agora a mente não parava de reformular e desenvolver o insight. O contato pessoal entre dois estranhos, que o sistema queria que se odiassem, mas que tiveram, por um momento, um entendimento comum do qual saíram transformados. O motorista, com uma pequena bicicleta em seu coração, e ele, Fábio, com a euforia da partilha. Havia uma semente revolucionária nisso, vinda do mais profundo de sua alma, daquilo que ele podia chamar apenas de “coração”, e que podia ser semeada em todos os corações. Uma perspectiva, sem dúvida, muito superior à mera briga contra os carros que alguns preconizavam. Havia um caminho novo aí, uma nova filosofia, um novo paradigma da mobilidade e, enfim, da civilização.

Andou até a porta da sala e abriu-a – quem sabe sairia para almoçar, encontrar algum conhecido no bar da rua, o Zezé, que funcionava de dia como quilão vegetariano. Recuou da ideia, sentindo que precisava se acalmar um pouco antes de sair; não aguentaria ficar meia-hora numa mesa de restaurante. Checaria o email antes. Deixou a porta encostada e sentou-se ao computador. Um cigarro, talvez? Acendeu um e deu algumas tragadas, mas pareceu-lhe devagar demais e então o apagou pela metade no cinzeiro. A nicotina não restauraria sua calma. Um baseado, talvez? Mas estava sem. Sobrara algum no quarto do André?

André era seu ex-colega de apartamento que recentemente se mudara, juntando-se com a namorada, mas cujos pertences ainda estavam pela casa. Foi até o quarto do amigo, abriu o criado-mudo; nada. Incapaz de ficar parado, voltou para a sala e se sentou-se à escrivaninha novamente; novas ideias borbulhavam. E se ele fizesse um viral? Qual seria o slogan? “Amar Sem Limites”? Piegas demais. “A Favor de Todos, Contra Ninguém” soava melhor, sem falar que se encaixava perfeitamente com seu vegetarianismo, cujo engajamento era, afinal, outra face de uma mesma moeda: de uma mesma filosofia de ser no mundo. Como encaixar a bicicleta na ideia? “Pedalosofia”? “Pedalogia”? “Peda... Pedo...” Riu-se em silêncio; tosco demais.

Sentado à escrivaninha de bambu no meio da sala e com o laptop já aberto há alguns minutos, checou o email; nada. Olhou fixamente para a tela, para a caixa de mensagens já lidas. Algo que estivera submerso chegava aos poucos à superfície de sua consciência. A quem ele estava enganando? Sabia perfeitamente como aliviar aquela tensão e retornar à paz de espírito. O remédio era infalível, assim como a certeza com que ele sempre voltava ao mesmo ritual. Não era o cigarro, nem a maconha, nem a internet. Fechou o navegador e abriu a pasta de documentos. (Neste mesmo momento, um carro estacionava um quarteirão abaixo em sua rua, e dele descia um homem com destino certo: aquele mesmo apartamento.)

Reiniciava um velho itinerário secreto pelas pastas e subpastas. A um passo de dar o primeiro clique, e assim botar em andamento algo que ele sabia que não conseguiria parar, lembrou-se de que, uma vez acabado o processo, sentiria uma enorme vergonha de si e de tudo aquilo. Por outro lado, como negar o prazer que se lhe oferecia tão facilmente? Uma última vez não faria mal. Clicar ou não clicar? Nessas horas, a única coisa que funcionava era imaginar-se num túnel; uma locomotiva com trajeto fixo que segue sempre em frente sem ver nada ao seu redor. Já não era mais ele quem decidia; apenas deixava o trem seguir em frente.

Abriu a pasta Meus Projetos. Dentro dessa pasta, uma subdivisão em anos; 2007 constava ali,  embora ele não tivesse feito projeto algum naquele ano. Projetos 2007 > Aspectos Técnicos > Detalhes de Produção > Financiamento e Demonstrativos > Dados para Cálculo Tributário. Haveria nome menos propenso a atrair o interesse de um eventual intruso? Ao lado de algumas planilhas com números inventados, uma última pasta: Retificação dos Dados; para essa, exigia-se senha.

@$elim2009!#!MEN1N05

Desse momento em diante, Fábio estava em um mundo particular, no qual não só ninguém jamais poderia entrar, como cuja existência jamais deveria ser suposta. O cicloativismo, o vegetarianismo e o apoio à causa verde, tão caros a seu coração, mostrava-os a quem quisesse ver: lá estavam a composteira na área de serviço, a bicicleta ao lado da estante de livros, as lâmpadas econômicas no teto, os pôsteres do PV e dos direitos animais. Já o amor pelos meninos era só dele.

Dentro da última pasta, uma lista de filmes e fotos sem título, que Fábio reconhecia pelo número. Olhou brevemente o cardápio secreto em sua tela enquanto colocava os fones de ouvidos. Passou-lhe pela cabeça que não precisava fazer aquilo; ainda não tinha dado o passo final. Mas agora era inútil. Ali, com a pasta aberta; se chegara até ali, por que não dar só mais um clique? Qual a relevância ética de um clique?

Clicou. Mov012 era um vídeo caseiro, de algum país cuja língua ele não identificava; russo talvez? Na cena inicial, um menino pedalava uma bicicletinha velha em círculos dentro de um quintal minúsculo. Os desdobramentos que despertavam o interesse de Fábio vinham dos pedidos do diretor que, por trás da câmera, guiava as ações do menino, até o momento em que ele próprio entrava em cena. Isso para não falar no rosto do menino: tão inocente, tão indefeso, tão... puro.

Absorto nas imagens e nos sons que saíam dos fones, Fábio nem notou o barulho do elevador que abria em seu andar. Também não ouviu os passos e nem as batidas na porta. Só reparou que alguém chegava quando viu, com o canto dos olhos, que ela se abria. Que falha: esquecera-a encostada! E agora o André, que tinha dito que passaria lá para pegar alguns livros seus, entrava sem grandes cerimônias no apartamento e já o vira ao laptop, que ficava, não por acidente, de costas para a porta, mostrando a quem entrava na sala apenas uma simpática maçã branca.

Fechar. Fechar. Fechar. Por mais que clicasse no X, a janela não respondia. A idade do computador, a atualização do antivírus que corria em segundo plano, os programas secretos acumulados de downloads em partes não muito confiáveis da rede; por que tudo junto bem naquele momento? Se ao menos tivesse comprado um computador novo como a mãe sugerira! André encostou a porta atrás de si. Fechar fechar fechar fechar fechar. O botão sequer acusava os cliques. André, com um sorriso, já se aproximava da escrivaninha. Fábio fingia não vê-lo e, de rosto aparentemente sereno, clicava furiosamente. O cursor se transformou em ampulheta; não havia mais nada a fazer. O amigo deu a volta na mesa e colocou a mão em seu ombro: “E aí, cara, beleza?”.

“Opa, e aí, André? Chegou cedo!” A tela mostrava apenas uma pasta aberta, e Fábio fazia o melhor para disfarçar a respiração ofegante e o coração em disparada.

“Trabalhando na filmagem do Bike?”

“Não. Tava só organizando uns trabalhos antigos. Deixa pra depois.” Tirou os fones e levantou-se para abraçar o amigo. “O que que você veio pegar mesmo?”

“Meus livros de empreendedorismo online. O pessoal lá da Integra pediu pra dar uma olhada.” – Integra era a pequena empresa de startups digitais em que André trabalhava. E foi onde, incidentalmente, ele conhecera a Milena, com quem tinha se mudado, pondo um fim ao arranjo que funcionara tão bem por oito anos. Embora se sentisse mais seguro morando sozinho, Fábio sentia falta de morar com André, ainda que, com o trabalho e o namoro sério nos últimos meses, mesmo enquanto ainda moravam formalmente juntos, ele já não estivesse tão disponível assim.

“Tão no seu armário.”

“Vou lá pegar.” E entrou pelo corredor.

Enquanto André pegava os livros, Fábio, já mais calmo depois do aperto, lembrou-se da aventura e das ideias da manhã.

“Cara, você tinha que ter ido hoje lá no Bike Sem Fronteiras. Foi irado! Tô com umas ideias novas para o movimento. Queria te contar. Tava pensando em almoçar no Zezé. Vamo?”

“Pô, eu até que queria!” disse André, que já voltava do quarto com os volumes em mãos. “Só que eu falei pra Mi que ia almoçar em casa. Só vim dar uma passada rápida mesmo. Fica pra próxima!” Mais um desapontamento. Tudo bem, a vida é assim mesmo, pensou Fábio, que o acompanhava até a porta.  Foi aí que André notou: “Nossa, Fabinho, você tá suado, hein? E meio pálido! Tem certeza que tá tudo bem?”.

“Não é nada, só fome. Preciso comer; cansei pra caramba. Bom, então beleza! A gente se fala outro dia!” Disse sem deixar transparecer nenhum tipo de carência ou necessidade pelo amigo que aos poucos se afastava de sua vida.

“Escuta,” emendou André, como se se lembrasse no último minuto; “esse sábado tem a festa do Cauê lá na casa da Tina. Ela falou pra você ir também”.

“Nossa, com certeza! Como tá o Cauê? Faz tempo que eu vi ele; quando foi mesmo?” –lembrava-se perfeitamente – “... Acho que foi em 2009, né? No Corpus Christi na casa do seu pai em Boiçucanga. Já deve estar enorme!”.

“Pois é, ele tá fazendo doze anos. Mas a Tina tá preocupada. Tá indo super mal na escola, não tem mais nenhum amigo, acho que não tá comendo direito. Parece que é depressão, e faz um tempo já. Ele pôs ele no psicólogo. Ele vai gostar se você aparecer. Lembra quando você deu aquela bicicletinha pra ele? Ele te idolatra!”

“Claro, vou dar uma passada sim” – Disse, já imaginando a desculpa que daria para não aparecer no dia. Em algumas situações era imperativo não aparecer.

Apertaram as mãos, bateram de leve um no ombro do outro, trocaram uma despedida de sorrisos inseguros e André desceu pela escada do prédio.

Livros ao lado, cinto colocado, deu a partida e seguiu para casa. Todas as vezes em que voltara ao apartamento nesse mês saía sentindo-se meio estranho. Gostava de rever o amigo, mas algo o deixava desconfortável com a situação. Ele, André, com trabalho, com a Mi, crescendo, fazendo planos – e que planos! –, e o Fabinho estagnado. Ele não perguntava muito, mas era claro que o esquema de produtor de vídeos freelance não tinha decolado. O Fábio devia ainda viver da mesada dos pais. Também fazia anos que ele terminara com a Carol, sua última namorada; um término triste, amargo, sem briga e sem nem uma ligação ou mensagem depois. Alguma coisa não dera certo, e André tinha certeza que o problema viera do Fabinho. Havia algo nele que ele não conseguia decifrar. Como pode, isso? Havia uma incógnita no mais íntimo de seu melhor amigo que ele não conseguia decifrar; uma certa discrição, uma distância que escondia alguma coisa. É claro que isso acabava pesando na amizade deles.

Por outro lado, tinha de admiti-lo, o Fabinho mantinha vivo algo que ele próprio estava deixando para trás, não sem algum arrependimento: o sonho de transformar o mundo. Hoje em dia, quando André não estava na Integra, queria estar junto da Milena, ou talvez com alguns poucos amigos bebendo cerveja. Shows, atos, manifestações; tudo aquilo se tornara menos importante. Nos primeiros Bike Sem Fronteiras eles iam juntos, e André era quem demonstrava mais entusiasmo. Hoje em dia, apesar de ainda acreditar na causa, não ia há várias edições. E aqui estava, para pegar um mero livro, de carro. Havia uma necessidade da vida que o forçava, aos poucos, a se conformar. O pior é que ele não se sentia mal. E não era esse o tipo de coisa que deveria fazê-lo se sentir mal?

Voltava para casa pensando no que o futuro lhe reservaria. A Milena vinha dando dicas claras de que gostaria de ter um filho. Não já, é certo, mas quem sabe daqui a um ou dois anos? Quando, aos vinte e poucos, ele projetara seu futuro, tinha aspirações de transformação social para as quais ele agora simplesmente não tinha tempo; um filho era também uma transformação, mas numa direção bem diferente. Quanto aos velhos sonhos, pelo menos por enquanto a coleta seletiva na Integra teria que bastar.

Nisso, virou com seu carro à direita numa grande avenida, engatou a terceira e, pisando um pouco mais fundo, deixou para trás esses receios tolos. O dia estava ensolarado e convidava ao otimismo. A vida seguia, e ele agora vivia no mundo real, sem tolices de criança. Estava feliz, contudo, sabendo que, ainda que tivesse abandonado certos sonhos, Fabinho estava lá, no apartamento, no Bike Sem Fronteiras, nas oficinas de permacultura, no trabalho voluntário na creche; mantendo a chama acesa. Apesar de seus defeitos, era um exemplo inspirador: alguém que mantinha vivas as aspirações da verdadeira juventude, o sonho de um mundo possível. Quem sabe, quando – e se – ele, André, tivesse um filho, o Fábio não toparia ser o padrinho? E cara, ele daria um ótimo padrinho!
Tecnologia do Blogger.

Total de visualizações