sábado, 30 de março de 2013

Um contato meu de Facebook, católico tradicionalista, achou por bem publicar esta edificante meditação acerca da tragédia em Santa Maria em que morreram mais de 230 jovens:

"O pior não é morrer numa boate. O pior é morrer e ir para o inferno. E quem leva a vida em busca de prazeres incessantes sem preocupação com sua Salvação eterna vai para lá. Mas as pessoas só pensam na morte do corpo; mas há uma segunda morte da qual fala a Palavra de Deus que é a separação eterna da alma que não amou a Deus nesse mundo."

Não pense o leitor que essa é a manifestação única do Cristianismo frente a tragédias desse tipo, ou que seja à qual ele mais facilmente convida. Como contraexemplo, sugiro que leiam o curto artigo de Paulo Briguet sobre a mesma tragédia: http://www.jornaldelondrina.com.br/blogs/comoperdaodapalavra/?id=1339829

segunda-feira, 18 de março de 2013

Suma Verborrágica


Dedicado a Ronald Robson

S. Tomás de Aquino é um dos grandes pensadores da história da humanidade; alguém cuja obra até hoje atrai novos leitores. Sendo assim, penso que é dever nosso tornar sua obra mais acessível ao público. Isso envolve não apenas traduzi-la como também, na medida do possível, adequá-la aos pressupostos e ao modo de filosofar dos estudantes da nova geração. Obra intelectual é coisa viva. Para que S. Tomás fale com maior eficácia aos leitores e autores deste e de outros nobres sites, algumas mudanças são necessárias.

Na maioria das vezes (foi o meu caso), o primeiro interesse do leitor de S. Tomás é pelas famosas Cinco Vias: as cinco provas da existência de Deus dadas na Suma Teológica, sua principal obra. Ora, mas então é possível provar que Deus existe? Como? Com o tempo, cada um encontra outros interesses; mas a porta de entrada mais comum é essa. Por isso resolvi, como passo inicial de meu projeto de trazer a alta filosofia de tempos pregressos ao nível mais evoluído dos estudantes atuais (não falo, evidentemente, dos pobres universitários e acadêmicos), começar minha tradução/atualização por aqui. Tenho certeza que ficará bem ao gosto e ao nível dos fregueses. E vou além: o resultado é superior ao original! Não falo só do estilo literário mais desenvolvido, única maneira de expressar o que S. Tomás tentava em vão com seu latim tosco, mas até mesmo do teor filosófico, que ficou mais profundo, e dá mostras de maior erudição, ao despir-se do tom de clubinho de debates que impregnava a obra do Doutor Angélico.

[A Suma Teológica tem uma estrutura bem simples, mas que talvez não seja familiar a todos. A cada artigo, Tomás propõe uma pergunta. Em seguida, ele dá alguns argumentos contrários à tese que ele quer defender, também chamados de objeções. Em seguida, ele dá um ou dois argumentos de autoridade em favor de sua tese. Depois disso, escreve sua própria resposta. Por fim, responde às objeções iniciais. Para dar ao leitor uma ideia da diferença entre apenas traduzir e traduzir atualizando, fiz uma tradução literal das objeções e do argumento em contrário; a parte modernizada começa com o "Respondo".]

***
Pergunta-se: Deus existe?

Objeção 1: Parece que Deus não existe; porque se de dois contrários, um for infinito, então o outro seria completamente destruído. Mas o termo “Deus” significa que Ele é bondade infinita. Se, portanto, Deus existisse, não haveria mal a ser descoberto; mas há mal no mundo. Portanto, Deus não existe.

Objeção 2: Além disso, é supérfluo supor que o que pode ser explicado por poucos princípios tenha sido produzido por muitos. Mas parece que tudo que vemos no mundo pode ser explicado por outros princípios, supondo que Deus não exista. Pois todas as coisas naturais podem ser reduzidas a um princípio, que é a natureza; e todas as coisas voluntárias podem ser reduzidas a um princípio que é a razão humana, ou a vontade. Portanto não há necessidade de se supor a existência de Deus.

Em sentido contrário, é dito da pessoa de Deus: “Eu sou Aquele que Sou.” (Ex. 3, 14)

Respondo:

Seria, ou, se não muito me engano, é, possível descrever inúmeras – conta o matuto, pelo menos cinco –, não bem argumentos, mas provas, acerca da existência, se é que tal a Ele com justiça se atribui, de Deus. À mente lúcida calha jazer-se contente, quiçá locupleta, saciada pela farta ceia da verdade ofertada em aprazível abundância, com o manjar mais simples, porém assaz substancioso (e aqui, decerto, chiará o apetite debiqueiro dos novos ricos sempre a beliscar finos joguetes lógicos e regalos silogísticos; hors d’oeuvres e sobremesas apetitosas, sem dúvida, que todavia não substituem o filé suculento a proceder-lhes na refeição do estudo), da fina percepção contida no espírito de nossa tão menosprezada tradição, essa madrinha idosa que, experimentada em anos sua astúcia sagaz, bem lá acerta seus sopapos no jovem rebelde – merecemo-nos nós, não nego! –, sem nunca deixar de galantear com mimos de toda sorte aos afilhados que lhe prestem a devida devoção. Pois bem: um problema como o da presença de Deus entre os entes dos quais se pode dizer que participam do conceito que engloba aquilo a que vulgarmente denominamos "existência", se não quiser apenas relar na crosta sem nunca penetrar o âmago intrínseco da ciência mesma (ignoremos, por ora, a redução a que os apóstolos da modernidade submeteram o termo), tem que ser remetido ao tino dessa senhora astuta para sua frutuosa resolução.

Como ia dizendo, esta antiga, idosa e velha anciã presta-nos imenso serviço se ao menos soubermos olhar aonde nos cabe e pedir como se deve. Se há um saber que nos é legado pela mão generosa da tradição, pois perdê-lo enseja um achatamento paulistano de horizontes, é o conhecimento claro, evidente, intrinsecamente certo, da existência mesma de “Deus”. É conveniente lembrar: em todos os tempos e lugares, o homem, onde quer que tenha fixado morada, tem exclamado “louvado seja Deus!”, ou, o que lhe é equivalente, “Deus do céu!”; ou ainda, em certos casos, “Ó meu Deus” (para atermo-nos à fina caracterologia de Rozensweig). A essas três, poder-se-iam ainda somar outras duas vias: "valha-me Deus" e a um tanto elíptica "ó Céus!".

Será preciso algo mais? Frente ao testemunho do senso comum bem formado, cuja verdade se impõe ao intelecto dócil sem necessidade de justificativas externas, sequer formular a pergunta já demonstra, de uma parte, que o aprumo intelectual de nossa “cultura” foi pras picas, e, de outra, a ruína que representa a ascensão da classe média brasileira, doidivanas como sói ser, em termos gnoseológicos.

Resposta à primeira objeção: Mas o que é isso? Deu-se à súcia burra o direito de opinar? Poderia eu, debalde, citar farta bibliografia, decerto não lida e ignorada por meu objetor, que desmonta a pífia “argumentação” contida nesse sofisma. A vasta obra de um Platão, de um Aristóteles, as Catilinas de um Cícero, a Adversus Haereses de um Irineu de Lyon. Um Lactâncio, um Orígenes, um Filostórgio, um Mons. Sanahuja. Ou, para ficarmos nos limites da língua pátria, um Mário Ferreira, um Vilém Flusser, um Nivaldo Cordeiro, um Sidney Silveira. Isso para não falar do oceano metafísico, que não obstante palpita segundo o pulso vivo da concretude mesma do real, de S. Agostinho, cuja obra é, de fato, dever moral ler antes de se meter a palpitar loquazmente sobre o que se ignora. Após teres lido esses e muitos outros nomes, daí talvez aceitarei tua crítica, que por enquanto não passa de ludo pueril.

Suspeito que serei acusado de faltar com as regras de higiene da razão pura por efetuar este trabalho de limpeza profilática. Rio-me cá, à sombra do buriti, deste semblante cheio de orgulho a esconder tamanha bananada argumentatória. Contento-me com a parca glória da formiga que conhece seu lugar (sem jamais desmerecer à cigarra!), e que é, afinal, quem remove o lixo do jardim para que ele fecunde os subsolos. Replico que, em meio aos urros macáquicos da logofasia nativa, o racional é expor a moléstia, e não elevá-la ao estatuto de uma pretensa saúde sui generis para com ela debater. Ademais, quedo-me em paz; sei que o reconhecimento ora sonegado virá, múltiplo, em eras futuras.

Resposta à segunda objeção: Ofende que a filosofia tenha sido tomada pelo palpite, que não basta ser apressado, como irresponsável. Eu, mero estudante, um deslumbrado alpinista frente ao monte inescalável, a contemplar a neve eternal que em seu alto cume reluz, ouso sorver d’água cristalina que do mesmo cume escorre. Pois bem: eis que penetra-me o reto - bem sei como o agüentei calado até agora - propósito de dialogar com esse puro espírito de patuléia, que não só não aparenta qualquer fiapo de vergonha, como porta soberbamente as vestes do orgulho. A imodéstia, o estreitamento da mente como virtude intelectual, o fetiche do conceito, a pobreza do pensamento que se traduz na indigência vernacular (donde se entende o tom de slogan ou, quando muito, telegrama); não é possível respirar em tal atmosfera sem adoentar-se – a falta que fazem os bons doutores! Ao cruento padecer de tal metástase, preferiria eu o retiro de uma rede e um trago da boa Pitu. Mas avante: há uma cultura a salvar!

Ofende ainda mais que carne de tão baixa qualidade venha empacotada em jornal velho; que se exprima filosofia de segunda com discurso que beire as raias do semi-analfabetismo que hoje se ensina nos cursos de Letras. Meu enfaroso interlocutor se assemelha, em sua ociosa burundanga, a um egresso da base de nossa pirâmide social que, sem dela ter levado a sapiência do povo simples (tendo provavelmente trocado a terra nordestina pelo nigérrimo cinza do império paulista) e incapaz de ascender à vera aristocracia do espírito das gentes, vê-se preso como num limbo, não dos inocentes mas dos culpados, sem saber ao certo se a sabedoria virá com o próximo diploma do curso de técnico de informática por correspondência, com o consórcio para a compra do automóvel particular, ou com a quitação das parcelas da quitinete – cuja única janela dá para o banheiro das empregadas domésticas do prédio ao lado – pela qual abandonou a brisa revigorante do Atlântico, incapaz de distingui-la dos fumos negros de Cubatão. Ou da boate Kiss.

Mas, todavia entretanto, num gesto caridoso para com meu semelhante entralhado por tal sucúbica rede, condescendo em partilhar o que, todos os sensatos concordarão, é argumento irrespondível, advindo da doutrina oral, e portanto superior, de Zenão. É-me forçoso reconhecer o rigor argumentativo de um autor que, todavia, é insuspeito de pertencer ao cartel dos conservadores nacionais. 

“É razoável honrar aos deuses. Não é razoável honrar ao que não existe. Portanto, os deuses existem.” 

À inteligência iluminada a evidência é preclara. Ao resto, aos novos ricos da paulistéia inculta que não se dobram à luz e confundem a própria confusão mental com rigor analítico, inquiro apenas: acaso lestes, do cabo ao rabo, o corpus grego e latino? Então não ouses, antes de sessenta anos de estudo, dar pitaco extemporâneo sobre o que passa muito acima de tua míope visada e de teu focinho. Limita-te às linhas de montagem; à filosofia basto eu!

***

[Conta o biógrafo que, depois de ditar esta resposta, S. Tomás almoçou seu cuxá costumeiro, retirou-se do mosteiro e foi deitar em sua rede, na qual cochilou por seis meses, plenamente satisfeito com a contribuição inestimável que acabara de dar à cultura universal. Sonhou, ao que parece, com a fama que sua obra decerto teria nos séculos vindouros. Findo o semestre de repouso, lá estava ele pronto para produzir mais uma obra-prima.] 

domingo, 17 de março de 2013

O sequestro do parnasianismo na literatura brasileira

por Emmanuel Santiago

Da esquerda à direita: Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac

Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia, Francisca Júlia, Vicente de Carvalho, Luís Guimarães. Apenas a menção destes nomes é capaz de fazer a esmagadora maioria daqueles que os reconheçam torcer o nariz. O parnasianismo é, de longe, o movimento literário mais menosprezado de nossas letras, pois a imagem que dele persiste foi a que Mário de Andrade nos legou em Mestres do Passado, série de sete artigos publicados em 1921, no Jornal do Comércio. No primeiro, o que temos é o necrológio da poesia parnasiana:

Ó Mestres do Passado, eu vos saúdo! Venho depor a minha coroa de gratidões votivas de entusiasmo varonil sobre a tumba onde dormis o sono merecido! Sim: sobre a vossa tumba, porque vós todos estais mortos! E se, infelizmente para a evolução da poesia, a sombra fantasmal dalguns de vós, trêmula, se levanta ainda sobre a terra, em noites foscas de sabat, é que esses não souberam cumprir com magnificência e bizarria todo o calvário do seu dever! Deveriam morrer! Assim conclama, na marcha fúnebre das minhas lágrimas, a severa Justiça que não vacila e com a qual vos honro e dignifico! Deveriam morrer! A vida vegetal a que se agarraram, [sic] não se coaduna com o destino dos muezins de uma arte do tempo incessante, dos troveiros alados, dos cortesãos da Beleza fugitiva!...
Vivos alguns, embora! despejo sobre vós, ó Mestres do Passado, os aludes instrumentais de meu réquiem; e acendo junto à cruz dos vossos monumentos, sobre os vossos crânios vazios, a fogueira da consagração contemporânea! (ANDRADE in BRITO, 1974, p. 257)

Em tempo: Alberto de Oliveira só morreria em 1937, dezesseis anos depois, portanto, de Mário de Andrade ter decretado sua morte literária. Embora as críticas do autor de Pauliceia desvairada não sejam de todo destituídas de justiça — a despeito de seu tom provocativo e beligerante —, elas acabaram projetando sobre o parnasianismo pesadas sombras que até hoje não se dissiparam. Se Mário falava a respeito da persistência anacrônica do parnasianismo entre nós, do esgotamento e do esclerosamento de suas fórmulas, a crítica que lhe seguiu os passos foi além: sentenciou, retroativamente, a morte do parnasianismo desde o berço; desde então, ele figura em nossas antologias como um espectro natimorto e os poemas de seus representantes guardam um quê de relíquia macabra que convém não comentar, para não atrair maus augúrios.

Instituiu-se assim um erro de perspectiva que, para dizer o mínimo, distorce nossa compreensão da história da literatura brasileira. Via de regra, o parnasianismo é considerado como um desvio de rota entre os estertores do romantismo e os prenúncios do modernismo; um lapso no processo de formação de nossa literatura; um corpo exógeno que teria acometido um meio cultural débil, ainda sem os antígenos necessários para combater a constipação. Entretanto, à medida que analisamos a questão mais detidamente, percebemos que o parnasianismo foi um fenômeno quase que exclusivamente nosso, excluindo-se, é claro, o caso francês.

De acordo com J. Aderaldo Castello e Antonio Candido, em nenhum outro lugar do mundo o parnasianismo francês criou escola (CANDIDO & CASTELLO, 1974, p. 101). Em Portugal, por exemplo, teria havido, nas palavras do crítico português Duarte de Montalegre, apenas um escritor “estruturalmente parnasiano”: Gonçalves Crespo, que, coincidentemente ou não, era natural do Brasil. Segundo Montalegre, o parnasianismo português não teria passado de “uma tendência ou um conjunto de tendências (...): uma espécie de pendor mais ou menos geral, que, a despeito de pronunciado, não chegou a se definir”; uma tendência entre outras a compor o “ecletismo literário multíplice” dos poetas portugueses da época (MONTALEGRE, 1945, pp. 12-3). Situação semelhante à que se verificou nos países hispânicos da América Latina, nos quais elementos parnasianos se misturaram ao simbolismo e à influência da poesia norte-americana para compor uma corrente literária que ficou conhecida como modernismo.

Além disso, nem mesmo na França o parnasianismo conheceu duração tão prolongada, espraiando-se numa segunda geração de epígonos (os chamados neoparnasianos) e prevalecendo sobre o simbolismo. Nas palavras de Otto Maria Carpeaux: “(...) o Neoparnasianismo é fenômeno particular da literatura brasileira. Aqui e só aqui fracassou o Simbolismo; e por isso o movimento poético precedente sobreviveu, quando já estava extinto em toda parte do mundo” (CARPEAUX, 1951, p. 197). Se tomarmos a Semana de Arte Moderna de 1922 como marco simbólico para o fim do parnasianismo, e admitindo, como Péricles Eugênio da Silva Ramos, a publicação de Sonetos e Rimas (1880), de Luís Guimarães, como a primeira expressão significativa de nossa poesia parnasiana (RAMOS in COUTINHO, 2004, p. 115), chegamos a nada menos do que 42 anos. Para efeito de comparação, lembremos que o romantismo brasileiro inicia-se em 1836, com o lançamento de Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, e só seria contestado de maneira consistente em meados de 1870 — culminando no episódio da Batalha do Parnaso, em 1878 —, num total idêntico de 42 anos. Todavia, enquanto o romantismo brasileiro apresentou uma maior diversidade de tendências, dividindo-se em três gerações discerníveis, o parnasianismo manteve maior coesão, mesmo entre os poetas de sua segunda geração e a despeito da incorporação de elementos simbolistas.

Portanto, ao contrário do que diz a opinião corrente, o parnasianismo foi um produto orgânico de nosso sistema literário e, apesar de sua origem francesa, conseguiu satisfazer a necessidade de exprimir conteúdos latentes da mentalidade do homem brasileiro. Apenas isso explicaria o enorme êxito que a escola logrou encontrar no Brasil das últimas décadas do século XIX e início do XX. Segundo o crítico português José Osório de Oliveira, o parnasianismo, “mesmo com todos os recursos à velha Grécia, como toda a inspiração mediterrânea, traduziu qualquer coisa da maneira de ser dos brasileiros. Digamos que certa feição da psique brasileira encontrou na poesia parnasiana o seu meio de expressão, e que, por isso, ao adotar o modelo estranho, nacionalizou-o” (OLIVEIRA, 1939, p. 112).

O “sequestro do parnasianismo” na história da literatura brasileira, pelo menos naquilo o que tem sido considerado seu desenvolvimento natural, gerou uma série de equívocos que precisam ser debelados caso se queira formar uma imagem mais real da constituição de nosso campo literário, que começa a se organizar, de fato, no período que assistiu à ascensão do parnasianismo à posição hegemônica em nossas letras.

Uma das principais críticas que se faz ao parnasianismo brasileiro é a qualidade, em geral baixa, de sua produção poética. É verdade que a média da poesia parnasiana seja, na verdade, medíocre. Entretanto, não se pode ignorar que a escritura de poemas era, à época, uma espécie de rito de passagem entre a juventude e a vida adulta. Tributários que éramos de um modelo educacional ainda fortemente calcado no estudo das então chamadas letras clássicas (enquanto na Europa começava a se dar prioridade a um ensino mais técnico e científico), era natural que nossos jovens encontrassem na produção literária, e na poesia em específico, um meio eficaz de participação na cultura de seu tempo, de modo que praticamente todo rebento de nossas classes letradas “cometesse” seus versos, embora poucos deles chegassem a investir numa carreira de escritor. A poesia servia então para conceder certo lustro intelectual ao futuro advogado, médico, funcionário público etc. A essa poesia de caráter diletante, somava-se a imaturidade dos poetas de ocasião (mal integrados ainda à vida adulta), criando uma avalanche de versos de qualidade duvidosa, na qual os lugares-comuns do parnasianismo, do simbolismo e de um romantismo tardio eram repetidos à exaustão. Uma situação bastante semelhante à que ocorria durante o romantismo, com a diferença que, embora a educação formal ainda fosse um privilégio, a ascensão dos estratos médios da população urbana representou um incremento significativo de nossas classes letradas.

É preciso fazer justiça à obra daqueles poetas que conseguiram elevar-se além da mediocridade que grassava em meio a tal coqueluche literária. Não sei ainda até que ponto Olavo Bilac, por exemplo, pode ser classificado como um grande poeta, mas devemos reconhecer que os sonetos reunidos em Via Láctea podem ser colocados tranquilamente ao lado de Marília de Dirceu como um dos grandes  exemplares de nosso lirismo amoroso, assim como o poema “O caçador de esmeraldas” não faz feio diante de O Uraguai, de Basílio da Gama, ou de I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias. No mínimo, podemos dizer que Bilac era um grande poeta em relação ao nível que a poesia brasileira havia alcançado até aquele momento.

Não se trata aqui de propor uma reabilitação da estética parnasiana, nem de ignorar suas evidentes deficiências e limitações. Trata-se, na verdade, de tentar apreender o parnasianismo em sua real dimensão, como forma de compreender melhor um importante momento de nossa história político-social — relacionado à implementação do regime republicano no Brasil — e também literária, pois, afinal, poucos movimentos alcançaram tamanha popularidade entre seus contemporâneos, mesmo levando-se em conta a restrição que os baixos níveis de escolaridade impunham a sua repercussão social.


Referências bibliográficas:

ANDRADE, Mário de. “Mestres do Passado”. In: BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974, pp. 254-309.

CARPEAUX, Otto Maria. Pequena bibliografia crítica da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1951.

CASTELLO, J. Aderaldo & CANDIDO, Antonio. Presença da literatura brasileira: do romantismo ao simbolismo. 5ª ed. São Paulo: DIFEL, 1974.

MONTALEGRE, Duarte de. Ensaio sobre o Parnasianismo brasileiro. Coimbra: Coimbra Ed. Lda, 1945.

OLIVEIRA, José Osório de. História breve da literatura brasileira. Edição revista e aumentada. São Paulo: Martins Fontes, 1939.

RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. “A renovação da poesia parnasiana”. In: COUTINHO Afrânio (org.). A literatura no Brasil: era realista/era de transição. 7ª ed. São Paulo: Global, 2004, p. 91-149.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Tempo de fezes, maus poemas, alucinações e espera


por Emmanuel Santiago

Depois de me desdobrar na caixa de comentários do blog, tentando apontar o que, diante meus olhos, é um erro de avaliação de Bruno Tolentino em relação à obra de Drummond, resolvi escrever esta postagem para pôr os pingos nos i’s. Mas não me manifesto aqui como especialista na obra do poeta mineiro, ou como profundo conhecedor de sua fortuna crítica, o que não sou. Manifesto-me, na verdade, como leitor de Drummond desde sempre. De fato, meu primeiro contato com o universo da poesia, ainda em minha pré-adolescência, deu-se por meio dos livros de Drummond, Neruda e Lorca que habitavam a singela, porém eficaz, estante de livros de minha mãe.

Em Janelas sobre o caos, publicado originalmente na Revista Bravo, no ano de 2000, Tolentino queixava-se da dificuldade em reunir poetas contemporâneos para uma coletânea que lhe fora encomendada por uma editora europeia. Tal dificuldade se daria, segundo sua percepção, por se estar colhendo em terra desolada, desertificada. Na ausência de rumos da poesia pós-cabralina (após João Cabral), a poesia brasileira supostamente se perdera. O mais curioso, no entanto, foi a razão aventada por Tolentino para explicar tal estado de coisas: Drummond, na condição de nosso “poeta maior”, teria causado um estreitamento do horizonte, como as montanhas de sua terra natal, sempre a barrar a paisagem. Para usar termos mais técnicos: Drummond teria restringido o campo das possibilidades poéticas para nós, brasileiros.

Não quero ma ater à discussão do que, para mim, é uma enorme simplificação: atribuir a um único autor toda a responsabilidade pelo estado atual da poesia contemporânea, ignorando, por exemplo, que a tradição literária se desenvolve a partir de condições concretas de recepção, organizadas socialmente. O que faz, por exemplo, de Drummond nosso poeta maior é menos a percepção imediata da qualidade estética de sua obra (pois, no final das contas, todo juízo de valor possui algo de discutível e depende, em alguma medida, de disposições puramente individuais — meu xará Kant que me desculpe), do que uma série de escolhas feitas no interior dos campos literário e acadêmico, ou seja: houve um investimento social para elevar a poesia drummondiana à posição que ela ocupa. Muitas vezes, os critérios dessas escolhas nada têm de puramente estéticos. É bem comum que a disputa acerca da obra de algum artista corresponda, na verdade, a uma luta por legitimação das posições existentes no campo.

Não é por acaso que o concretismo, ao pretender se fixar como a posição hegemônica em nossas letras, procurou reescrever o cânone da literatura brasileira. Pense-se bem em qual foi a contribuição direta (em termos de influência) que um poeta romântico obscuro como Sousândrade teria dado ao desenvolvimento do concretismo. Nenhuma. O que ocorreu foi que os concretistas encontraram, na obra do poeta maranhense, a confirmação das posições defendidas por eles no campo literário. É claro que o paralelismo com o caso de Drummond, poeta dos mais populares entre nós, é limitado, mas usei-o aqui para demonstrar que há um caminho de mão dupla: não é somente a obra que cria as condições de sua recepção; constantemente, tais condições funcionam segundo uma dinâmica própria, exercendo um poder determinante sobre o arranjo das obras que compõem a série literária.

Estou dizendo isso sem ignorar o trabalho de críticos avalizados como Harold Bloom — que atribui a Shakespeare um papel fulcral na literatura do ocidente — ou de Eduardo Lourenço — para quem toda a literatura portuguesa é um diálogo ininterrupto com a obra de Camões —, ou mesmo as considerações de T.S. Eliot a respeito da tradição literária. Tampouco ignoro os pressupostos das correntes teóricas que, a partir dos conceitos de dialogismo e de grande temporalidade de Bakhtin, fizeram da intertextualidade a chave para a compreensão do desenvolvimento da literatura. Ocorre que, no entanto, tratar a literatura como um diálogo de autores que se dá no vazio, acima ou além de um público organizado de acordo com uma estrutura que se modifica respondendo a condições específicas, é fazer tabula rasa do problema do estabelecimento do cânone literário.

Mas, como eu dizia, não é este o ponto ao qual quero me ater. O fato é que, além da enorme simplificação do problema, Tolentino ainda oferece uma visão completamente distorcida do que seria a obra de Drummond, o que se concentra na seguinte passagem:

É nesse sentido que a intelectualidade dos nossos dias passou a mover-se dentro da moldura drummondiana do mundo. Os impulsos de transcendência, a inquirição metafísica, a busca de uma dimensão sacro-mítica, o mesmo intuito religioso que a poderiam erguer acima do “mundinho poetizado”, ainda que poderosamente, pelo grande vate, ao fim e ao cabo satisfazem-se e esgotam-se com a luta política inflada em meta suprema da existência. O social “per se”, a história idealizada como locus de um suposto progresso ad infinitum, atingiram entre nós o nível de uma absurda paródia do sagrado, uma verdadeira (?) metafísica historicista, obviamente uma contradição em termos. Mas é justamente esta espécie de mal du siècle local que desbota e sufoca a vida do espírito no Brasil de hoje. Um impasse de suma gravidade, pois, como se há de moldar e afirmar o novo poeta maior dentro de uma moldura tão estreita e estrangulante?

Nada disso está, de fato, em Drummond. Não que a poesia de Drummond não tenha uma fase “engajada”, em que a adesão ao socialismo tenha ficado explícita. Se eu dissesse isso, muitos versos poderiam me desmentir, como por exemplo: “O poeta/ declina de toda a responsabilidade/ na marcha do mundo capitalista/ e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas/ promete ajudar/ a destruí-lo/ como uma pedreira, uma floresta,/ um verme” (“Nosso tempo”. In: A rosa do povo). Tais versos demonstram um momento em que qualquer preocupação estética submergiu frente ao comprometimento ideológico. Contudo, em primeiro lugar, é preciso considerar que tal poesia participante é apenas um momento da obra de Drummond, localizado entre 1940 e 1948 (de Sentimento do mundo a Novos poemas), no contexto da 2° Guerra Mundial, quando o socialismo soviético parecia se contrapor ao totalitarismo fascista (cf. “Com o russo em Berlim”. In: A rosa do povo) e ainda não se conheciam os horrores do regime stalinista; época de compreensível radicalismo. No livro de 1951, Claro enigma, há uma retração total dessa estética participante e a rosa do povo se fecha num hermetismo abafado, marcado, inclusive, pelo retorno a algumas formas tradicionais, como o soneto: “Eu quero compor um soneto duro/ como poeta algum ousara escrever./ Eu quero pintar um soneto escuro,/ seco, abafado, difícil de ler.” (“Oficina irritada”. In: Claro enigma).

Em segundo lugar, não é que a descrição de Tolentino se adéque apenas a uma fase limitada do autor. Não. Ela não se adéqua, a rigor, nem mesmo à fase participante do poeta itabirano. Em nenhum lugar da poesia drummondiana a luta política é “inflada em meta suprema da existência”. A luta política, mesmo quando defendida abertamente, é sempre um meio para se atingir uma finalidade maior, que é a plena realização do homem; a meta suprema é a liberdade e a felicidade, transformadas em patrimônio universal, para todas as classes e grupos sociais. Além disso, desponta, aqui e ali, uma solidariedade com o ser humano que se vê violentado em sua integridade pela violência e pela guerra, e o próprio poeta frequentemente desconfia da possibilidade revolucionária: “A rosa do povo despetala-se,/ ou ainda conserva o pudor da alva?/ É um anúncio, um chamado, uma esperança embora frágil, pranto infantil no berço?// Talvez apenas um ai de seresta, quem sabe.” (“Mário de Andrade desce aos infernos”. In: A rosa do povo).

A ideia de uma “história idealizada como locus de um suposto progresso ad infinitum” é onde Tolentino erra mais feio. A relação do homem com o tempo e com a história (que é o modo do homem “estar no tempo”) é, de todos os temas da poesia drummondiana, talvez o mais ambíguo. Há quase sempre uma ponta de pessimismo, de ironia, mesmo naqueles poemas de proselitismo mais resoluto. De uma maneira geral, o que a passagem do tempo desperta no eu lírico drummondiano é a consciência da finitude das coisas, assim como do descompasso do ser com suas formas:


Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas o amanhecer. (“Passagem do ano”. In: A rosa do povo)

Ou ainda, no poema Ontem:

Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas. 
De como este banco
não reteve forma,
cor ou lembrança. 
Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado 
não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo. (In: A rosa do povo)

Outro mal-entendido que Tolentino difunde sobre a poesia participante de Drummond é a restrição ao “social ‘per se’”. Em Drummond, todavia, o que vemos é o homem considerado em sua dimensão essencialmente humana. No poema que serve de introdução a A rosa do povo (“Consideração do poema”) encontramos: “Estes poemas são meus. É minha terra/ e é ainda mais do que ela. É qualquer homem/ ao meio-dia em qualquer praça. (...)”; em “O medo”: “Em verdade temos medo./ Nascemos escuro./ As existências são poucas:/ Carteiro, ditador, soldado./ Nosso destino, incompleto.” (In: A rosa do povo); voltando a Sentimento do mundo, deparamos, em “Ode no cinquentenário do poeta brasileiro” — poema em homenagem a Manuel Bandeira —, com: “Que o poeta nos encaminhe e nos proteja/ e que o seu canto confidencial ressoe para consolo de muitos e esperança de todos,/ os delicados e os oprimidos, acima das profissões e dos vãos disfarces do homem.” (grifo meu).

Enfim, para que o leitor, por si mesmo, tenha a oportunidade de verificar o que Tolentino desconsidera da fase participante de Drummond, sugiro que leia “Caso do vestido”, “Morte no avião”, “O mito”, “Consolo na praia”, “Retrato de família”, “Onde há pouco falávamos”, todos de A rosa do povo, apenas para ficar entre os mais conhecidos.

Outro ponto que Tolentino parece estar completamente equivocado é quando afirma que a poesia de Drummond não consegue se erguer acima do “mundinho poetizado”, querendo dizer que tal poesia encontra-se circunscrita ao cotidiano mais tacanho. Como espero já ter demonstrado, atravessa toda a obra drummondiana uma reflexão constante acerca do homem em sua relação com o tempo, com a história e com o mundo, isto é, da relação do ser humano — considerado em sua essência, em sua humanidade — com as condições de sua existência, sejam elas práticas (sociais, econômicas etc.) ou ontológicas. Assim, o cotidiano aparece como pretexto, como o trampolim para a especulação filosófica, não como sua âncora. Parece que Tolentino, neste ponto, só consegue ter em vista o Drummond do “Eta vida besta, meu Deus” dos dois primeiros livros (Alguma poesia e Brejo das almas), que realmente fez do cotidiano a matéria fundamental de sua poesia. Porém, deixo para que meu leitor reflita sobre a justiça de se depreender todo um achatamento filosófico da visão de mundo configurada na poesia drummondiana a partir de dois livros que cobrem dez anos (os primeiros!) de uma obra literária que se estendeu por quase sessenta anos.

Para mim, está claro que do que Tolentino se ressente é da ausência de uma dimensão metafísica na cosmovisão drummondiana. Na ausência de tal dimensão, a poesia de Drummond seria filosoficamente estreita. Isso só comprova as ideias que apresentei no começo deste artigo. Bruno Tolentino não está apenas discutindo a relação de Drummond com a poesia brasileira contemporânea. Ele está, na verdade, procurando afirmar sua posição no campo literário, como poeta afeito à metafísica, por meio da disputa em torno do nome de Drummond; está procurando redefinir o campo literário, reconfigurando as posições existentes no interior deste. Tolentino, que enxerga em Drummond a grande referência para nossa poesia, trava combate contra um autor que, em sua situação de poeta hegemônico, não legitima, não subscreve a posição do próprio Tolentino no campo literário. Para que a poesia tolentiana pudesse ser devidamente apreciada, era preciso que a configuração do campo fosse outra. O que Tolentino coloca em jogo por meio da figura de Drummond é a projeção, em negativo, de sua própria poesia, de modo que atacar esse espantalho retórico seria defender uma poesia nos termos em que ele, Tolentino, propõe. Não há nada de errado com isso, pois é exatamente esse o modus operandi no interior do campo. O problema está no fato de Tolentino desvirtuar completamente a obra de Drummond para que ela atenda a seus interesses e a suas necessidades de argumentação, transformando-a em nada mais do que um pálido espectro de seus ressentimentos pessoais.

Cabe ainda a objeção de que Bruno Tolentino se refere menos à obra de Drummond (do que discordaria) do que do modo como esta foi lida e apreendida no desdobramento ulterior da poesia brasileira. Ora, se a disputa em torno do nome de Drummond faz com que os diversos grupos em concorrência operem uma redução da obra do autor, dilacerando-a como um bando de bacantes ensandecidas ao corpo de Orfeu, isso faz de Drummond mais uma vítima do que um culpado. Isto é, se aqueles que se consideram os legítimos herdeiros do legado da Semana de Arte Moderna, militantes de esquerda, tradicionalistas e críticos ligados ao formalismo-estruturalismo reduzam, cada um a sua maneira, a poesia drummondiana àquelas características ou possibilidades de sentido que melhor convêm à posição defendida por eles no campo (que é o que o próprio Tolentino faz no texto em questão), então o problema está antes nas posições concorrentes do que em tal poesia. Como já disse, as condições de recepção de uma obra muitas vezes têm pouco a ver com a obra em si, mas muito mais com a dinâmica interna do campo literário ou acadêmico.

Creio que uma discussão em torno de como encontrar os nomes significativos da poesia contemporânea, ou de por que não conseguimos encontrá-los, deve começar partindo de uma análise das posições em jogo e da configuração atual de nosso campo literário. Acho que talvez seja este o melhor caminho para saber se “o tempo ainda é de fezes, maus poemas, alucinações e espera”.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Joel Pinheiro, vulgo filósofo fast-food, e o playground das idéias



A precedência do aspecto imaginativo ou poético da linguagem sobre seus demais aspectos seria, tal como sugerido por Joel Pinheiro da Fonseca em seu comentário ao texto de Bruno Tolentino, uma tese estranha, abstrusa e até mesmo absurda, senão mesmo tão só construída a soldo de hipóteses ainda não devidamente verificadas sobre a teoria aristotélica do discurso. Não é que tal opinião, notem, seja um erro vulgar; não o é porque é mais que um erro vulgar: é um erro vulgar típico de Joel Pinheiro, cujo potencial opinativo dá, para glosar o dito famoso, uma idéia do que seja o infinito. E me dispenso de provar que um potencial infinito para a opinião é uma disposição irrefreável à vulgaridade, sobretudo quando esta folga, desinibida, em tratar do que não sabe e parece nem querer saber.

Eu poderia citar o ensaio de T. S. Eliot muito conhecido sobre o tema, a fim de mostrar que “no princípio de tudo existia a linguagem, e a linguagem era o hino”, como diz um Upanishad, se não cito estropiado. Poderia lembrar Pound. Octavio Paz ou Eduardo Lourenço. Poderia citar cientistas, como Niels Bohr. Citar uma lista alfabética de filósofos e filólogos, historiadores e críticos culturais; teses de Vico, teses de Croce, teses de Flusser, teses de Vossler ou de Bodmer; até teses curiosamente difundidas em nosso meio por Per Johns ou Segismundo Spina. Poderia até lembrar a Joel que a própria língua na qual escreve ganhou sua forma moderna – e, portanto, sua potencialidade expressiva atual – na obra de um poeta, autor de um épico meio dispensável a mentes mais científicas; que coisa similar se deu no francês, no italiano e no espanhol. Poderia fazer isso não por ser prodigiosamente culto, o que infeliz e desgraçadamente não sou; mas apenas por um esforço quase heróico, e a lidar com referências quase banais, de levar o meu colega de blog a, sequer por um momento, recolher-se um pouco, a sentir a bigorna da realidade desabar sobre sua cabeça: não falar sobre o que não se sabe não é um princípio de ética intelectual; é um princípio de ética tout court, ensinado por avós com aventais sujos de polvilho, só que apenas mais impositivo no campo intelectual.

Joel Pinheiro poderá dizer que estou apenas o chamando de ignorante e que assim não é possível estabelecer uma discussão racional. Eu diria que constatar ocasionalmente a sua ignorância me é um exercício bastante racional; diria também que dizer “Ah” e transcrever uma bibliografia é não só racional, como até inevitável a uma criatura tão preguiçosa como eu. Ao que ele poderia dizer que recomendar mais estudo e prudência é, em si, coisa válida, mas que a impugnação de uma idéia deveria passar pela exposição do que a impugna, sob pena de ser apenas uma tentativa de causar impressão. Ao que, por minha vez, eu diria que a obrigação de um intelectual, ao erguer o indicador e dar pitaco sobre o que seja, é ter pelo menos um esboço da topografia do terreno onde está pisando, para que, mesmo resvalando em cocô ou caindo em rota de capivaras, saiba como voltar a de onde veio e encetar novo caminho, desta vez com mais segurança; ou, dito de outro modo: em geral, o ônus da prova cabe a quem chega botando banca.

Ao que, talvez por fim – enfatizo: talvez, pois Joel pensa que a finalidade de falar é continuar falando infinitamente, ao passo que a maioria das pessoas e eu pensamos que a finalidade de falar é uma hora calar a boca, de preferência fazendo uma reverência silenciosa à pequena verdade que nos emudeceu – ao que, talvez por fim, ele poderia dizer que seu comentário era uma mera opinião, algo apenas esboçado na caixa de comentários a um texto de blog e que não é preciso cobrar tanta seriedade de uma ninharia dessas. E, mesmo que meu colega não chegasse a enunciar este ponto, é este efetivamente o ponto. E, mais perigoso ainda, parece que este seria o ponto em qualquer lugar, em qualquer circunstância, não se restringindo portanto a blogs. E – hoje acordei meio bíblico, cheio de “e”, “e” – é justamente essa concepção da cultura como um playground, esse clima quase esportivo, lúdico, de “Então, galera, vamos todos fazer uma roda, dar as mãos e começar a filosofar com senso crítico e a partir das nossas próprias cabeças!”, que não só me incomoda como zumbido de mosca ao ouvido, mas que é a morte de toda cultura efetiva, duradoura. Daquela cultura que de fato tem uma força cogente, mesmo quando lidando com matéria algo limitada, como é o caso da poesia de Drummond tal como comentada por Tolentino naquele texto (sim, há imprecisões no que Tolentino diz, mas estas se desfazem caso se atente a que o Drummond que se difundiu socialmente não foi sobretudo o de Claro Enigma, mas quando muito o de A Rosa do Povo).

Esse, afinal, é o mais fidedigno espírito de patuléia. Passa-me a impressão de um novo-rico recém-admitido ao grêmio daqueles a que é dado especular sobre outras coisas que não o orçamento doméstico; ou a impressão de uma criança que, despedindo-se das peças Lego da sua infância primeira, substitui-as por idéias, essas novas peças com que construirá castelos de areia. Em todo caso, trata-se de uma incompreensão fatal da finalidade da cultura, incompreensão na qual se sente mais uma exasperação da vontade, da ação, do que uma simpatia profunda e de ordem afetiva; na qual, em suma, não se sente aquele mínimo de paixão sincera sem a qual não se consegue nem pegar o ônibus lotado de volta para casa sem praguejar contra a humanidade ou recair nessa coisa paradoxalmente a mais oposta ao hábito, que é o conformismo. No caso, um conformismo pedagógico ou, antes, anti-pedagógico: de quem se conforma com a discussão que se complexifica às custas do achatamento da realidade, para que caiba em seu horizonte nanico.

O tom de queima de estoque que todos os textos de Joel Pinheiro exibem é só a face estilística dessa espécie de l’art pour l’art do pensamento. Se o tom talvez lhe seja marcadamente próprio, não por grande apuro ou originalidade sua, antes pela perfeita conformação, digamos, entre a “forma” e seu “conteúdo”, infelizmente a postura não lhe é exclusiva – e escrevi esta notinha, que espero tomem menos como invectiva do que como advertência, justamente por isso. Há um pequeno exército de pensadores prêt-à-porter em marcha no horizonte: uns mais dogmáticos, talvez porque caricaturalmente católicos; outros mais céticos, talvez porque mais fiéis à sua verdadeira disposição interior; mas todos prestando juramento à tal disposição, que é a de fazer da irresponsabilidade um método, do pensamento um exercício de rechaço da imagem pessoal que não lhe interessa ter, do estudo uma investida continuada contra toda paciência e apuro analítico peculiares ao homem culto. O fenômeno é tanto mais curioso porque todos estão, implícita ou explicitamente, a falar sobre ler livros; até acredito que os leiam, vez ou outra, mas lhes interessa mais é ser as pessoas que sabem que devem lê-los e que, na medida em que não sabem o que é problema intelectual de verdade, fazem da vida intelectual – chamemo-la assim... – uma coisa bisonha, chata e deprimente.

Certa vez, Joel Pinheiro afirmou que o inacreditável Leonardo Sakamoto era o seu antípoda. Esta afirmação resume tudo o que eu disse até aqui. Também resume o fato de que Joel Pinheiro é o meu antípoda.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Janelas sobre o caos


O Ad Hominem não é um blog de repostagens, mas consegui junto ao departamento de Marketing & Estratégia a autorização para publicar este texto de Bruno Tolentino, cuja leitura pelo maior número possível de pessoas considero uma medida de higiene sociocultural. O texto pode ser considerado, também, como a resposta de Tolentino à entrevista com alguns poetas contemporâneos brasileiros, publicada aqui há pouco tempo. E é, finalmente, uma oportunidade para divulgarmos o excelente site de Leonardo T. Oliveira sobre vida e obra do mencionado poeta. Vasculhem o site, leiam as entrevistas e artigos de Bruno Tolentino, aprendam mais sobre essa figura tão fundamental quanto subestimada em nosso país. 
***
por Bruno Tolentino
Entre as oito ou dez grandes línguas de cultura do Ocidente, nossa última flor do Lácio marca presença maior neste fim de milênio? Antes que uma resposta leve a novas perguntas, observe-se que é em sua lírica que toda civilização vai buscar o grão e o adubo que fazem – ou não – florescer uma “terra de cultura”. É no verbo poético que o espírito da língua encontra a seiva que há de nutrir a árvore múltipla do pensamento e da linguagem. Ensaio ou ficção, a mais iluminante e mais profunda prosa deita raízes naquele subsolo da sensibilidade que os poetas da raça tornaram fértil por meio do verbo em seu estado a um só tempo puro, elementar e maior. Em termos rilkianos, (“der unerschöpflich Eines, Reines, spricht”), a ininterrupta e límpida unidade “de discurso” do verbo água-de-fonte.
Um dos pais fundadores da cultura do Ocidente, Aristóteles reclamava para a poesia a dignidade de primórdio do ato cognoscente, dava-a como o “primeiro andar” do edifício do discurso humano, o instante intuitivo do seu quadrifólio desdobramento. A questão que nos legou persiste: pode uma cultura desenvolver uma arte da discussão política (Retórica), uma arte da triagem racional dos discursos (Dialética), ou uma técnica da demonstração apodítica (Lógica), sem antes possuir um universo mitopoético que funda a comunidade de sentimentos e valores em que se há de arraigar a credibilidade pública dos argumentos?
Nessa perspectiva, agrava-se a responsabilidade dos poetas, porque seriam os semeadores, dariam a medida das possibilidades futuras do espírito. Se Aristóteles tinha razão, o que se passa no horizonte intelectual do Brasil nos últimos tempos é preocupante. Senão vejamos: o horizonte mental do intelectual brasileiro de hoje, saiba-o ele ou não, é medido pela envergadura do Carlos Drummond de Andrade, nosso poeta maior até ontem. Ora, a poesia de Drummond é tão grande quanto é filosoficamente estreito o universo de concepções que nos legou. O homem drummondiano não parece ter por objeto de vida sobre a terra nada mais alto que a estetização do cotidiano e a busca das raízes, do telúrico, do “nacional”, pontilhado este último por arroubos de idealismo político-social.
É nesse sentido que a intelectualidade dos nossos dias passou a mover-se dentro da moldura drummondiana do mundo. Os impulsos de transcendência, a inquirição metafísica, a busca de uma dimensão sacro-mítica, o mesmo intuito religioso que a poderiam erguer acima do “mundinho poetizado”, ainda que poderosamente, pelo grande vate, ao fim e ao cabo satisfazem-se e esgotam-se com a luta política inflada em meta suprema da existência. O social “per se”, a história idealizada como locus de um suposto progresso ad infinitum, atingiram entre nós o nível de uma absurda paródia do sagrado, uma verdadeira (?) metafísica historicista, obviamente uma contradição em termos. Mas é justamente esta espécie de mal du siècle local que desbota e sufoca a vida do espírito no Brasil de hoje. Um impasse de suma gravidade, pois, como se há de moldar e afirmar o novo poeta maior dentro de uma moldura tão estreita e estrangulante? Se o father founder de nosso tempo, em vez de Carlos Drummond de Andrade, tivesse sido Fernando Pessoa, por exemplo, teríamos uma pletora de caminhos e opções, do pessimismo progressista de Álvaro de Campos ao ruralismo arcádico de Alberto Caeiro, do neoclassicismo agnóstico de Ricardo Reis à metafísica melancólico-messiânica do próprio Pessoa. E assim foi com Portugal, que os quatro heterônimos fecundaram do pós-guerra em diante.
Sobre esse ponto, a tempo: a tão lamentada reclassicização de nossa poesia, por volta de 1940, tem tanto a ver com o esgotamento da proposta modernista, o fracasso da estética da estridência, quanto com a chegada ao Brasil dos livrinhos da Ática cheios da inolvidável voz do célebre quarteto, sobretudo Reis e “ele-mesmo”, na bagagem de Jayme Cortezão, Augustinho Silva e outros ilustres exilados de Salazar. E, aliás, T.S. Eliot também pegou essa carona: é a Maria da Saüdade, filha de Jayme e noiva-quase-esposa de Murilo Mendes, que se deve sua introdução a nossos escritores, pouco anglófonos, da era. Existiria A Máquina do Mundo sem que Saüdade fizesse ler a um Drummond quarentão sua fina (e até hoje inédita) versão do Little GiddingI doubt it… O certo é que a Irlanda que se nutriu de Yeats foi especialmente visionária, bem mais do que rebelde. A Itália de Ungaretti e Montale oscilaria décadas inteiras entre a visão integral sacralizante de um e o ceticismo interrogativo do outro. Claudel e Valéry dividiram também, dramaticamente, uma França que caiu aos pes de Vichy e gerou o levante gaulista: Jeanne D’Arc versus Candide. A tragédia espanhola espelha-se na dicotomia de Unamuno e Machado, a Espanha peregrina nasce no túmulo de Lorca… E assim por diante. Se qualquer desses tivesse sido nosso poeta maior, dificilmente teríamos a viver hoje um panorama tão acabrunhante.
Ora, se é ao poeta, espécie maior de um momento crucial da raça, que cabe buscar e fundar o novo Mitus a ser subseqüentemente iluminado pelo advento racional do novo Logos, é a essa figura epônima que se voltam por força os olhos de um antologista. Digo isso porque venho limpando as lentes e apertando os olhos desde que certa editora européia me pediu uma “Apresentação da Poesia Brasileira” desta segunda metade do século. O desafio me tem dado tratos à bola por conta das considerações acima. Como compor um panorama que, por especificação de quem o encomenda, deve compreender o período pós-João Cabral de Melo Neto, ou seja, excluí-lo e aos sete grandes que o precedem, Manuel Bandeira, Drummond, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes e Murilo Mendes? O ponto de partida é óbvio: é imperativo começar por Ferreira Gullar e Mário Faustino, seguir com Adélia Prado e Alberto da Cunha Melo, somar-lhes os universos particularíssimos de Manoel de Barros e Gerardo Mello Mourão, e o segmento da vanguarda que não abandonou o discurso, ou seja, Mário Chamie. Até aí, tudo é ponto pacífico, mas prosseguir em que direção, com que metro e tendo em vista que horizonte?
O que você faria, leitor? Reflita no que lhe propus acima e compadeça-se desta escriba. Use meu e-mail para vir ao socorro de minhas perplexidades e responsabilidades em tarefa tão ingrata. Mais que bem-vindas, suas sugestões serão meditadas e respondidas. Temos seis meses para que o livro saia, em setembro. Já tem nome: o muriliano Janelas sobre o Caos: A Poesia do Brasil ao ano 2000. Todos os autores deverão ter nascido durante a primeira metade do século que se acaba, isto é, até 1950. Disporão de 400 páginas, mas olhe que não se trata de uma meia dúzia qualquer… Ou ando otimista demais?

In: Revista Bravo! n. 29, fevereiro/2000, pp. 21-2.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Nossos Fariseus

Atire a primeira pedra.

E a nova modalidade esportiva do verão é xingar e agredir pecadores, tal qual os fariseus de 2000 mil anos atrás faziam com mulheres adúlteras. Um tanto antiquado? Até seria, não fossem as novas regras, ou seja, o pecado da vez. Desde há dois mil anos até não muito tempo atrás, a praxe era perseguir os pecadores sexuais: ai de quem não seguisse a estrita cartilha moral preconizada pelos rigores da ortodoxia. Hoje, ao menos nas classes educadas, os tabus do sexo foram abandonados e substituídos por outros. As pedras de agora estão reservadas para o pecado social: superficialmente, qualquer mostra de elitismo, ostentação ou “preconceito”.
Vejam o caso da “praia dos riquinhos”, noticiada pela Veja-Rio. Camila Diniz, que estampou a reportagem de domingo e deu seu depoimento por frequentar uma pequena seção privada (denominada “Aqueloo”) de uma praia carioca, na terça-feira recebia promessas de agressão física caso ousasse pisar na praia pública.
O que ela fez de tão terrível? Em primeiro lugar, frequentar um espaço exclusivo e caro. Em segundo, mostrar isso ao mundo. Em terceiro e para coroar, este comentário: “Deixei de frequentar Ipanema e passei a vir aqui todos os dias porque o público é muito mais selecionado”. Revelou ainda que gosta de beber champagne na taça e fazer chapinha depois que volta do mar, que são algumas das regalias da Aqueloo. Mal sabia ela que uma verdadeira legião de usuários de internet não só desaprova suas preferências como se sente mortalmente ofendida por causa delas. A reação pode se manifestar de várias formas: como raiva, outras vezes como escárnio, outras ainda como pena; sempre exageradas.
Falou-se até mesmo que colegas de profissão indignados teriam se juntado para pedir a cassação de seu diploma de… socióloga. Não é por acaso que a Veja escolheu, dentre as centenas de mulheres jovens no Aqueloo, justo a socióloga; ela bem sabe como atiçar os leitores. Pois se tem uma casta social que não pode cometer esse tipo de impureza são os sociólogos; e, em verdade, todos os parentes dos cursos de Humanidades e Artes. Foram eles, afinal, que criaram o padrão moral vigente, e são eles que o impõe a ferro, fogo e humilhação pública. Não diretamente, é verdade. Duvido que os xingamentos das caixas de comentários venham de membros de nossa elite cultural. Seus meios são outros: comentários decepcionados (que é também uma forma de ostentação, só que de qualidades espirituais) e piadinhas em rodas de conversa, em blogs e no Facebook. Uma patricinha que não fez faculdade, coitada, até se entende que se mostre por aí bebendo champanhe em uma praia exclusiva; peca por ignorância. Mas uma socióloga, essa conhece a Lei; seu pecado só pode ser fruto da malícia.
Em outro caso recente, Valéria Rios, uma mãe que tem um blog sobre crianças, ousou falar, aberta e honestamente, sobre como lidar com babás em viagens. Entre outros crimes contra a humanidade, sugeriu que, para conter as despesas, o casal poderia comprar um lanche no McDonald’s para a babá quando fossem a um restaurante caro. A reação foi tamanha que ela tirou o post do ar. Algo similar ao que aconteceu com a psicóloga (conhece a Lei) que não queria estação de metrô em Higienópolis por causa dos mendigos, drogados e “gente diferenciada”. Ao menos no caso dela a parte mais visível da reação teve um toque de bom humor: jovens indignados, provavelmente oriundos das zonas oeste e região central de São Paulo, organizaram um “churrascão da gente diferenciada” na frente do Shopping Higienópolis.
Os veículos midiáticos bem sabem explorar essa atual moda dos públicos esclarecidos de hostilizar, não quem é rico, mas quem é visto como de alguma maneira ostentando ou derivando um prazer sem culpa da riqueza (para o público mais simplório, a pedida ainda é a Revista Caras, ou seja, a admiração pelos ricos e famosos). A “praia dos riquinhos” ocupa o primeiro lugar das mais lidas da Veja-Rio. E lembram do vídeo das socialites discutindo a USP? O único motivo para ter virado notícia foi a esperteza dos jornalistas da Folha, que bem sabiam a reação que viria. E quem esquecerá a indignação pública de Leonardo Sakamoto, um de nossos doutores da Lei, em meados de 2012, contra as madames entrevistadas por Monica Bergamo (outra da patrulha) sobre os arrastões em restaurantes? É nesse filão que entram programas como o “Mulheres Ricas”, cujas protagonistas adoramos odiar. No caso delas, a ostentação é tão escrachada e cafona que poucos levam a sério; elas são antes objeto de riso do que de raiva. O nível da patrulha pela moral e bons costumes chegou a tal ponto que até mesmo Lola Aronovich, a principal representante do movimento feminista no Brasil, teve que pedir a seus leitoresque se abstivessem de comentários a la “classe média sofre” a um texto de uma convidada sua que, maldita, era de classe média e mesmo assim não era perfeitamente feliz.
São dois os tipos de manifestação repreendida por nossos fariseus com suas pedras morais. Uma é a da pessoa que parece tratar alguém de estrato social mais baixo de maneira inferior a ela própria ou sua família (pergunto-me quantos dos revoltados tomam banho no mesmo chuveiro que suas empregadas), e a outra é a pessoa que, sendo rica, ousa ser feliz e demonstrar que não está tão preocupada assim com o resto do mundo. Talvez ambas sejam duas facetas de uma mesma atitude perante a vida. Falei em “pessoas”, usando um termo neutro e politicamente correto; mas percebo que ele é desnecessário: todas as pessoas dos exemplos que consegui achar são mulheres. Olha só, mais um elemento em comum entre a velha e repressora moral sexual e nossa esclarecida moral social: a opção preferencial pelas mulheres.
Acho que o que desperta essa reação é ver não apenas mulheres ricas; mas mulheres ricas que não sentem vergonha de usufruir de sua riqueza e que, além disso, demonstram ter pouco ou nenhum interesse pelas vidas das pessoas mais pobres e seus sofrimentos de maneira geral. Em outras palavras, mulheres que vivem para si mesmas, e não para os outros. E dos dois sexos, é principalmente a mulher que não pode ser um fim em si; se for, é fútil, frívola, burra, má. Imagino que muitas dessas devem conhecer e se importar por pessoas pobres específicas, concretas; aposto também que muitas participam de ações de caridade e voluntariado para ajudar aos desafortunados. Falta-lhes, contudo, a culpa fundamental que transformaria “os pobres” em abstrato em sua razão de viver ou, o que é mais realista, numa pontinha de culpa que as impedirá de aproveitar a vida plenamente. As mulheres criticadas demonstram não estar nem aí: em meio aos arrastões de restaurantes, preocupam-se com suas joias. Outra vai a uma praia para poder conviver com pessoas mais agradáveis, procurando se separar de gente presumivelmente mais pobre e feia. Outras até discutem questões sociais, mas com uma leveza que deixa claro que o happening importa mais do que a discussão (podemos até dizer que o nível das opiniões mostrados no vídeo da Folha era baixo; mas seria ele mais baixo do que as opiniões que correm em reuniões de um centro acadêmico universitário?). Em todos os casos, mulheres que ousam se comportar como se a felicidade delas próprias fosse um fim em si.
Mas nossos fariseus conhecem suas armas, e acabam prevalecendo. Em geral, isso significa fazer sua vítima baixar a cabeça e professar adesão ao código de valores deles. A psicóloga da “gente diferenciada” disse que não usou a tal expressão. A socióloga e a mãe blogueira dizem que foram mal interpretadas; ninguém parece disposta assumir publicamente que, sim, eu prefiro frequentar uma praia com gente mais fina, bonita e agradável. Um comentador da matéria em que Camila Diniz se defende diz tudo: “Vamos ser sinceros, quem é gosta de ir a praia e dar de cara com os farofeiros da linha 2?” Não sou carioca; nem imagino como sejam, como se vistam e como se comportem os tais “farofeiros da linha 2”. Imagino, contudo, que o sentimento de não querer conviver com eles seja um tanto disseminado, na mesma medida em que é violentamente silenciado.
Em tal cenário, é impossível não pensar em Nietzsche. O ódio aos pecadores da ostentação decorre, não de um desejo moralmente superior por parte dos acusadores de escolher outro tipo de vida; mas de sua incapacidade de viver do jeito que condenam, embora de alguma maneira também o desejem. Não é simples inveja. Seria inveja se os acusadores desejassem ter e usufruir daquilo que suas vítimas usufruem. E em algum nível acho que esse desejo deve existir; somos todos humanos. Mas suspeito que, por uma série de motivos, eles seriam incapazes de aproveitar sua riqueza com a mesma despreocupação, e por isso sentem-se mais felizes em estragar a felicidade alheia do que seriam capazes de se apropriar dela. Acho que isso é pior do que inveja. Fico imaginando se os mesmos sociólogos que professam gostar de conviver com os farofeiros da linha 2, na verdade derivam seu prazer exatamente do sentimento de superioridade moral que essa convivência traz. “Eu fico bem em meio ao povo. Sou superior à elite branca que foge deles”.
Sua arma de ataque é justamente a superioridade intelectual e cultural, que dá a eles um poder de determinar e impor o código de valores oficial, desde que consigam arrancar, ao custo de muita chantagem, o consentimento das vítimas. Têm sido bem-sucedidos.
Não que ir a uma praia exclusiva, usar bolsa de marca ou dar dicas de babá sejam ações particularmente virtuosas. Noto, contudo, que todas elas são perfeitamente inofensivas. Mesmo o artigo sobre a babá, que tinha potencial para classismos e racismos mil, foi rigorosamente justo em suas propostas e atitudes, sempre incluindo, por exemplo, a preocupação em conversar e explicar à babá as decisões tomadas; nenhuma delas, afinal, imprópria ou degradante. Nenhum dos casos de escândalo público aqui citados teve como objeto um ato ou atitude verdadeiramente reprováveis. Quem age realmente mal nesses casos, penso, são os acusadores, que sentem ao que parece uma verdadeira compulsão de tornar públicas suas condenações; afinal, é condenando em público que eles próprios adquirem um status moral mais elevado. Isso sim é coisa a se lamentar, sempre cientes de que nós mesmos muitas vezes o fazemos.
A autoridade de nossos fariseus não é de hoje. Resgato aqui trechos do artigo que Ayn Rand escreveu sobre o suicídio de Marilyn Monroe, e que tenta colocar em palavras o que devia se passar nas almas de seus detratores, tão similares aos nossos doutores da Lei em seus piores momentos.
“Se alguma vez houve uma vítima da sociedade, Marilyn Monroe foi essa vítima – de uma sociedade que professa dedicação ao alívio do sofrimento alheio, mas que mata os alegres.
(…)
Sobreviver e preservar o tipo de espírito que ela projetava na tela – um senso de vida de uma benevolência radiante, que não pode ser fingido – era uma conquista psicológica quase inconcebível, que requeria um heroísmo do mais alto grau.
(…)
‘Inveja’ era o único nome que ela conseguia dar à coisa monstruosa que a confrontava, mas era muito pior do que a inveja; era o profundo ódio à vida, ao sucesso e a todos os valores humanos, sentido por um certo tipo de mediocridade – aquela que sente prazer ao ouvir falar das desventuras de um estranho. Era ódio ao bem por ser o bem – ódio à habilidade, à beleza, à honestidade, à sinceridade, à realização e, acima de tudo, à alegria humana.” (Through your most grievous fault, 19/08/1962, LA Times)
Não estou, já disse, elevando as vítimas da nossa patrulha farisaica à condição de exemplos de virtude moral. Estou apontando que aquilo dentro de nós que nos leva a querer colocar para baixo essas pessoas não é bom. Se a alegria alheia nos ofende, se nos causa indignação ver que aqueles acima de nós riem sem olhar para baixo, o problema está mais em nós do que neles. Assim, recomendo a todos que guardem as pedras e as mostras de indignação e vão aproveitar a dia; perto ou longe dos farofeiros da linha 2.
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