quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O Drama do Soldado

Ninguém gosta de guerra. Ao menos ninguém o diz publicamente. Destruição, violência, fogo, armas, mortes, lutas; gostamos no cinema, não tanto na vida real. Seria ótimo se não houvesse mais guerras no mundo; se todos os homens vivessem em paz e harmonia, e se a própria possibilidade de conflito bélico acabasse (o que é, obviamente, uma impossibilidade para o mundo real, mas acompanhem o raciocínio). Não haveria mais bombas nem exércitos. Todos estariam melhor e mais felizes. Com uma exceção: os militares.

Há gente cuja grande vocação é defender a pátria no campo de batalha, pegar em armas para lutar e matar o inimigo, quem sabe morrendo em combate. Gente que se realiza pensando estratégias de guerra, ou criando e testando novas armas. Para todo mundo que está na carreira militar por escolha (e não por falta de escolha) a ideia da paz eterna deve produzir um sentimento ambíguo: por um lado, reconhecem a desejabilidade de tal cenário. Por outro, ficariam sem rumo na vida.

A vocação dos militares envolve mortes violentas e destruição de propriedades; eles se realizam fazendo o mal a outros (ainda que esse mal relativo esteja articulado a uma causa absolutamente boa. Não estou falando nada contra a guerra aqui. Há guerras justas sim e é ótimo que tenhamos soldados. Estou apenas apontando que, consideradas em si mesmos, os atos cometidos numa guerra são maus). Então, por mais simpatia que tenhamos por eles, seríamos todos a favor da paz universal.

Há uma vocação, contudo, que se assemelha à do soldado em depender (parcialmente) de algo mau, mas ao contrário dela não comete atos maus em sua atuação: a do filósofo. Nesse caso, desejar o bem universal e eterno seria uma decisão muito mais difícil. Assim como o soldado combate os inimigos, o filósofo combate as opiniões (que ele considera) equivocadas.

Existem muitas opiniões discordantes e inconciliáveis no mundo. Elas não podem ser todas verdadeiras ao mesmo tempo. Portanto, existem erros no mundo. É o alguém estar errado que dá origem às discordâncias, que dá origem às discussões e aos argumentos. Frequentemente, ambos os lados de uma discussão estão errados em alguns pontos e certos em outros; ainda assim, em cada uma das discordâncias entre os dois lados haverá pelo menos um erro em um dos lados. Se ambos estivessem corretos sobre o mesmo assunto, concordariam, e não haveria discussão.

Imagine que o erro sumisse do mundo; que todas as opiniões humanas fossem verdadeiras. Seria o fim de toda discussão, pois não haveria mais discordância real em nada. Ainda haveria ignorância; os homens não seriam oniscientes, e precisariam aprender. Assim, teríamos professores; e teríamos filósofos, gente que tenta ir mais fundo que os demais no conhecimento da realidade. Mas grande parte do sabor da filosofia, que é a discussão de ideias, seria perdida. Comunicaríamos uns aos outros nossas descobertas, e eles por sua vez nos informariam de outras coisas. Esqueça os filósofos e suas discussões etéreas; o que isso faria com a conversa normal de amigos durante uma festa? Alguém afirma algo. Um outro diz: "concordo!". Um terceiro diz: "É verdade, e além disso blá blá blá." O primeiro responde: "Ah sim, muito bem colocado!". No máximo, alguém duvidaria de uma informação e pediria uma prova, que seria dada, e fim de papo.

Suponhamos que a filosofia verdadeira seja o tomismo (um tomismo ideal, corrigido dos erros que porventura contenha e com capacidade explicativa para acomodar potencialmente tudo que o homem viesse a descobrir). Todos os filósofos seriam tomistas. Todos pensariam e ensinariam conforme o Contra Impugnantes, que seria também o modelo de todos os livros, revistas, blogs e tweets. Nenhuma genuína variação; apenas diferentes graus de profundidade e detalhamento de uma mesma escala. Tentem imaginar o que isso significaria.

Não haveria a variedade de opiniões e concepções de mundo que torna a vida interessante. O professor do departamento cujos artigos de jornal nos dão ódio; o revolucionário aloprado; o vegano radical; o fascista; o stalinista; o anarquista; a feminazi; o kantiano; o utilitarista; o ateu cientificista; o místico guenoniano; o católico tradicionalista; o polemista judeu anti-cristão. Enfim, um mundo sem erros seria muito mais sem graça.

Mas o objetivo de toda discussão é convencer o outro lado de uma verdade, e uma das consequências é diminuir a quantidade de opiniões discordantes no mundo. Portanto o que toda discussão busca é um estado final no qual não haveria discussões. E esse estado final seria muito pior do que o estado atual, com seus erros formidáveis.

Portanto, mesmo o mundo perfeito teria que ser imperfeito?

sábado, 26 de novembro de 2011

Consciências Negras

Zelda Odumbe nasceu em Kisumu, Quênia e nunca conheceu seu pai biológico. Por imposição do padrasto, que desejava uma enteada pura, teve o clitóris removido aos sete anos de idade. No ano seguinte à circuncisão contraiu poliomielite, o que a deixou paralítica. Sua primeira relação sexual foi com um tio materno que, tendo contraído o HIV, achou que relações com uma virgem o curariam. O mesmo tio, e um vizinho amigo da família, abusaram dela repetidas vezes conforme chegava à puberdade. Escapou da casa materna aos 15, com ajuda do irmão caminhoneiro que a levou escondida, e a deixou aos cuidados da Congregação das Irmãs Missionárias do Precioso Sangue, com as quais passou a morar e estudar, no colégio das freiras em Riruta, arredores de Nairóbi. Aos 17 anos descobriu-se homossexual com uma noviça com quem dividia o quarto. Com ajuda das freiras, emigrou para os EUA aos 21, tendo conseguido uma bolsa para estudar em Harvard.

Zelda era uma celebridade antes mesmo de por os pés em solo americano. Discutia-se a ordem das palestras que ela realizaria, os rumos de sua graduação e até um possível PhD. Na chegada ao aeroporto foi recebida por uma comitiva de líderes estudantis e professores, dentre os quais a mítica Vazulla Nyolg, PhD, chefe do departamento de estudos da Mulher, Gênero e Sexualidade. Ao entrarem na van, a Professora Nyolg mal se continha de emoção; falava ininterruptamente contando à recém-chegada todos os podres da horrorosa sociedade americana, procurando avidamente por qualquer sinal de que estivesse causando boa impressão. Sua nova protegida, afinal de contas, não só era mulher, negra e africana, o que já seria bom mas nada de extraordinário, como também homossexual, sobrevivente de estupro, genitália mutilada, soropositiva e, para coroar, deficiente física. Tudo numa pessoa só. A professora encontrara o Santo Graal.

Zelda não era de muita conversa. A Professora Nyolg, embora ansiasse por relatos íntimos, pessoais, aos quais só ela teria acesso, não se importou muito, pois o silêncio da pupila complementava seu gosto pela fala. E a menina era boa ouvinte; com o tempo e com a confiança adquirida haveria de se libertar da repressão patriarcal que lhe impusera o silêncio como dever feminino; opressão talvez até mais grave do que a sofrida pelas mulheres de Massachusetts. Alojada no melhor apartamento disponível, Zelda e a professora se despediram. Um tanto reservada no contato com os colegas, passou seus primeiros dias de Harvard sem nenhum evento digno de nota.

O primeiro sinal de que nem tudo ia às mil maravilhas veio na hora de escolher as matérias a cursar. Zelda optou pela Literatura Renascentista Inglesa. A Professora Nyolg sugeriu que talvez, querida, os Estudos Literários Africanos a interessassem mais. “Só porque sou africana devo mirar tão baixo?” foi a resposta. Ela poderia ser lida como uma crítica aos professores do departamento, americanos e europeus privilegiados, portanto incapazes de penetrar no coração do lirismo africano. A professora, no entanto, acostumada a encontrar camadas secretas inesperadas em qualquer discurso, pressentia que o sentido era outro. Seja como fosse, era certo que a recém-chegada teria um longo processo de conscientização pela frente: criada e violentada na cultura patriarcal africana, que em última análise fora imposta pelo colonialismo europeu do século XIX, tinha na mente muitas ervas daninhas ideológicas a se extirpar; mas o terreno era inegavelmente fértil.

No primeiro fim-de-semana, na primeira (e única) festa de república a qual foi, Zelda sentava numa roda com seus colegas quando surgiu o tema dos direitos dos animais. Uma menina particularmente engajada opinou que a dieta vegana não só é mais ética, como também mais saudável e até saborosa.
Zelda ficou indignada. 

“Impossível!”

“O que foi, Zelda?”

“Temos prazer em comer carne em parte porque sabemos que ali está um animal. Remete à caça. Houve uma luta, entre vida e vida, com sangue e morte, e um lado venceu, e agora o derrotado nos sustenta. Mesmo carne de fazenda preserva esse significado. A vitória do homem sobre a fera. Já uma cenoura... planta cega, burra. Onde está o valor? Por isso vegetais, em qualquer cultura digna do nome, serão sempre acompanhamento, nunca prato principal.”

“Ah, eu duvido que você sinta a diferença entre um hambúrguer de soja e um de cadáver de vaca.” Disse a colega vegana.

“Hah! Não me faça rir! Mascarar a realidade com um pedacinho nojento de carne falsa só prova o meu ponto. O tributo que o vício paga à virtude.”

“Olha, eu não sei como é na África. Mas você tem que entender que relação do homem ocidental com a natureza é insustentável; somos muito cruéis. A gente se acha senhor, e não parte. A natureza é um Outro.”

“Você quer contato maior com a natureza do que morder um bom bife? A alternativa é ir dar um passeio nos parques perto da minha cidade. E daí você será o bife. Antinatural para o homem é viver feito macaco. Se você quiser salvar a vaquinha, por favor, vá em frente. Só não conte comigo; a vaca foi feita para mim. Não venha me impor suas escolhas.” Quando direitos animais e culturas oprimidas entram em conflito, é politicamente complicado tomar partido.

É provável que o debate tivesse continuado, se nesse momento o rastafári loiro que se sentara do lado de Zelda não a tivesse oferecido um baseado. Ela já se incomodara antes (vocalmente) com o cheiro; agora via a coisa em si. Com um sorriso atencioso para o rastafári, pegou o cigarro e o deixou cair dentro de sua cerveja. Antes que o Bob Marley nórdico sequer esboçasse reação àquele desperdício gratuito de bom cânhamo, Zelda sacou seu celular e ligou para a polícia do campus vir “desbaratar aquela pouca vergonha” [“disrupt this shameless cavorting” foi a frase utilizada, segundo testemunhas]. Daquele dia em diante os convites para as festas, se não deixaram de vir (pois fazê-lo seria interpretado como racismo), foram bem menos efusivos.

Na semana seguinte, numa tarde, almoçando com seus colegas de sala, Zelda iniciou diálogo com uma menina que se sentara a seu lado.

“Qual igreja você frequenta?”

“Er... Sou ateia.”

“Que Deus se compadeça de ti!”, e, fazendo um sinal da cruz para a colega, foi com a cadeira de rodas e a bandeja para um outro lugar à mesa.

O primeiro evento ao qual fora convidada a palestrar era um simpósio sobre “racismo e diferença” organizado pelos alunos, no qual ela seria a convidada principal. A audiência era muito menor do que os cartazes levavam a crer, o que a desanimou um pouco. A substância de sua breve fala, 20 minutos contados, era que o racismo era um problema menor se comparado ao seu problema real dos negros: a indolência. 
“Nada me deixa mais triste que ver um desses negros preguiçosos! – Aqui alguns ouvintes se levantaram e saíram da sala em sinal de protesto – E que ainda culpa os brancos por sua merecida pobreza. O que mais me chocou aqui em Boston é ver essa gente que não trabalha, passa os dias ouvindo aquele lixo de hip hop, reclamando da vida. Um fazendeiro pobre do Quênia ia dar graças a Deus se recebesse as mordomias dessa gente. O sistema é ruim, eu concordo. Mas quem realmente quer dá um jeito de se virar!”

Um bom termo para descrever as expressões da pequena plateia seria “pasma”. O organizador do evento, num misto de surpresa e indignação, levantou a mão para falar.

“Voce não acha que antes de afirmar coisas sobre os EUA você deveria conhecê-los um pouco melhor?”

“Vocês elegeram um presidente negro. Até quando vão se fingir de vítimas? Sim, eu sei: a eleição de Obama foi uma das maiores catástrofes da história americana. No Quênia acompanhamos tudo de perto, porque o pai dele era de lá, e todo mundo idolatrava o Obama. Até as boas irmãs que me davam aula falavam dele com esperança. Coitadas; são todas tão boas, mas ingênuas como crianças! Eu sabia melhor; aquele muçulmano ateu traria ruína para os EUA e vergonha para o Quênia. Organizei com algumas amigas um rosário coletivo no dia das eleições, pedindo a Deus que não permitisse esse escândalo; infelizmente 
Ele tinha outros planos.” Fim do simpósio.

Como uma pedrinha que cai num lago e irradia ondas suaves, um burburinho foi se espalhando pelos corredores de Harvard nos dias que se seguiram. Será mesmo? Pode ser verdade? E logo com a Vazulla! Nada além de boatos maldosos e pouco confiáveis.

Na sexta-feira da segunda semana, algumas pós-graduandas, dentre elas duas orientandas da Professora Nyolg que Zelda já conhecia, se ofereceram para levá-la até seu apartamento. Marjorie Bawls, chefe informal da patota e ex-favorita da Professora Nyolg (antes da chegada da africana), e quem empurrava a cadeira de rodas, perguntou como quem não quer nada durante aquele passeio pelos jardins do campus:

“Zelda, ouvi dizer que você tem opiniões... peculiares sobre o Obama. Você não acha que a eleição de um presidente afro-americano foi uma grande conquista?”

“Pouco me importa a negrura da pele dele; meu problema é com a negrura de sua alma. Por outro lado, ao menos vocês não elegeram uma mulher!” Zelda riu-se do ridículo da ideia.

“Você acha que eleger uma mulher daria munição para os sexistas dizerem que já temos igualdade? Seria um passo atrás em nossa luta?” Perguntou Marjorie. Ela já esperava, e já torcia, pela resposta.

“De que luta você está falando, Marge? A luta de toda mulher direita é encontrar um bom marido, ajudá-lo a crescer e formar muitos filhos decentes. Os filhos são sua glória. Se além disso trabalhar, tanto melhor. Mas que não fique invejando as posições masculinas. A mulher não foi talhada para a liderança.”

Ruth Bittermann, membra do grupinho e que entrara na pós no semestre anterior, estava indignada e pensava em como responder. Ficar indignada era seu passatempo favorito. Como podia Zelda pensar daquela maneira? Ela não era lésbica? Como ousava falar assim? Marjorie estava em silêncio, e parecia ser a única que estava confortável, até satisfeita, com as opiniões da africana. Ao ver a amiga novata fazer menção de falar, sinalizou discretamente que  guardasse sua indignação, ao que Ruth prontamente obedeceu. Mais tarde naquele dia as duas conversaram sobre o ocorrido:

“Devemos avisar a Professora Nyolg? Segunda-feira tem o Forum LGBTTTDST; ela não pode dar a palestra principal!” Disse Ruth.

“Você tem muito a aprender, Ruthie. Eu acho que o Forum será um momento excelente de troca de experiências. Não é para isso que estamos aqui? Não fale nada com a professora, pelo seu próprio bem. Ou você acha que ela verá com bons olhos a sua tentativa de imperialismo cultural?”

“Tem razão.”

Na segunda-feira do evento, todo o departamento de Estudos de Gênero, Mulher e Sexualidade, corpo docente e discente, estava presente para ouvir o depoimento de Zelda, uma homossexual que vivera na pele o preconceito de um mundo conservador e machista. Também vieram professores e alunos dos Estudos Africanos, da faculdade de Ciências Políticas, da História e da Filosofia. A Professora Nyolg ciceroneava sua estrela, apresentando-a a diversas personalidades da academia; sentia-se no topo do mundo. Na hora da palestra, sentou-se ao lado de Zelda, cuja cadeira de rodas estava sobre um tablado elevado com um microfone à frente. Todos na plateia comentavam entre si o privilégio de estar ali, e os fatos tenebrosos da vida da jovem africana; muitos partilhavam aquele momento nas redes sociais, clicando ansiosos nos mini-teclados de celular. Zelda começou sua fala sem esperar pelo silêncio.

“A mais pesada das minhas cruzes é o vício homossexual.”

E o silêncio se fez.

“Não conheço suas causas, mas imagino que seja resultado dos abusos que sofri quando criança nas mãos de alguns homens muito maus. Eles deformaram minha personalidade, e agora é tarde para mudar. Os homens me inspiram medo, insegurança, rejeição. Atraio-me pelo conforto, pelo carinho e pela delicadeza do sexo frágil. Nunca conhecerei a verdadeira alegria feminina de idolatrar, de servir e ser dominada por um homem viril, um herói conquistador.”

Como que dando escape a uma pressão insuportável que se acumulava na plateia, uma voz bradou indignada: 

“Que absurdo é esse??” – Zelda viu o autor do protesto, um desses obesos ambíguos, que não se sabe dizer se é homem ou mulher. Continuou o/a indignado/a: “Isso é algum tipo de piada com a nossa luta?”

“Meu amigo – Respondeu Zelda –  lute pela castidade! Serei sincera: eu vivo esse dilema todos os dias. Será que o caminho para alguém como nós é aceitar nossa condição inferior e procurar a felicidade que nos é possível ou devo oferecer meu sexo como um holocausto agradável a Jesus Cristo?”

Zelda não era boba. Tinha percebido desde os primeiros dias o abismo que existia entre ela e todos os outros. Com essa confissão sincera e ponderada, longe dos clichês conservadores com os quais ela aos poucos ia sendo associada na mente dos colegas e professores, imaginava ganhar os corações da plateia antagônica e o s faria entender seu ponto de vista, quem sabe dissuadindo alguns daquela bobajada infantil de “Movimento”.

O silêncio inicial deu lugar a uma falação ansiosa. Primeiro ouviram-se algumas vozes de descontentamento provocador. Os mais tímidos, encorajados pela manifestação dos extrovertidos, também começaram a conversar e vaiar. “Nunca ouvi algo tão nojento em toda a minha vida!” Em poucos segundos só se ouviam gritos, palavras de ordem e assobios. Uma latinha de refrigerante foi jogada no palco; em seguida, um copo menstrual. Um dramaturgo gay, velho e desbundado, deu um berrão escandaloso e rasgou a própria camiseta. A gritaria subiu ainda mais e dominou o espaço completamente; palavrões foram ouvidos, entre eles a n-word; Zelda chegou a temer por sua segurança.

Por sorte, no meio da algazarra insana uma das professoras de crítica literária feminista tentou subir nas cadeiras para chamar a atenção de Zelda e esfregar na cara dela o subtexto patriarcal daquele discurso horroroso. Só que, destreza motora não sendo seu forte, ela se desequilibrou e caiu em cima de um estudante negro que filmava a confusão em seu celular, e, meio sem perceber, empurrou a professora que caía para o lado para que ela o derrubasse. Humilhada ali no chão, os óculos quebrados, ela se levantou, apontou o dedo para o jovem e gritou para quem estava em volta: “Eu sou mulher e este homem me violentou!”. “Você está louca?” Retrucou o rapaz. Poucos minutos depois todo o salão estava polarizado entre os dois campos: os que acusavam o estudante de estupro e os que acusavam a professora de racismo. Zelda, aliviada por ter sido esquecida, saiu discretamente do auditório. Ninguém se ofereceu para empurrá-la, e ela voltou para casa sozinha, sentido seu primeiro gostinho do gelo departamental que a acompanharia pelo resto da graduação.

Apenas dois espectadores mantiveram o silêncio durante toda a comoção. Marjorie Bawls  contemplava tudo de pé, perto da porta do auditório, e previa seu retorno ao topo que lhe era de direito. Já a Professora Nyolg continuava em sua cadeira ao lado do palco, branca como giz, petrificada, de olhar ausente. Repensava mentalmente toda sua estratégia de manutenção do poder e de garantia das linhas de financiamento dentro da faculdade. Uma carreira de movimentos milimetricamente calculados, de aparências impecáveis, estava agora, por causa umas míseras frases de uma nova aluna, em perigo de se dissolver. Tentando entender o que se passara, juntando as peças daquele quebra-cabeça que poderia ser o fim de seu reinado, a ficha finalmente caiu. O silêncio da menina, os comentários hostis, os boatos que ela ouvira de outros alunos e de alguns professores, as saias africanas, a Ave Maria rezada antes do círculo de leitura de Alice Walker da quarta-feira. Não dava para negar o óbvio: Zelda Odumbe, mulher, africana, negra, homossexual, sobrevivente de estupro, genitalmente mutilada, soropositiva e deficiente física era também uma reacionária filha da puta.

Apesar de ter sido cortada dos velhos círculos, Zelda não desanimou. Seus estudos prosseguiram sem grandes tribulações, mas também sem as grandes esperanças iniciais. Ela logo se enturmou com os conservadores de Harvard, e teve bons momentos de descontração com eles. Doía-lhe, no entanto, constatar o quanto estavam infectados pela cultural liberal. Enfim, era o melhor possível dentro das condições e ela se contentou com o que se lhe oferecia. Foi junto deles, já no início de 2011, que ela redigiu um abaixo-assinado a ser enviado ao presidente Obama, pedindo que declarasse guerra a todos os governos islâmicos do Oriente Médio, África e Sudeste Asiático. “Estamos convictos – concluía o documento – de que uma nova Guerra Santa contra os centros de poder dessa religião sanguinária nos trará grande mérito aos olhos de Deus e será a glória da nação americana pelos séculos vindouros.”

O abaixo-assinado foi mencionado em jornais regionais como prova da perigosa radicalização do pensamento da direita. A diocese católica de Boston aproveitou para distanciar-se do documento, afirmando numa breve nota destinada às universidades locais que “[o abaixo-assinado] não representa a hermenêutica de alteridade que a comunidade eclesial, entendida não mais na clave de substância hierárquico-dogmática, mas de carisma ecumênico-pastoral, propõe, testemunha e profetiza ao múnus dialógico – a um tempo autônomo e heterônomo – da modernidade pós-habermasiana, inserida na jornada kerigmática de comunhão mútua da civilização ocidento-oriental.”

Passou mais um ano. A graduação de Zelda chegava ao fim. Ajudada por amigos ligados à alta esfera do Partido Republicano, conseguira a nacionalidade americana. Nos últimos meses, contudo, estava meio solitária; a dificuldade de conseguir um emprego e a barreira que a impedia de entrar na vida acadêmica a atormentavam. Por via das dúvidas, já havia se informado sobre a inscrição no welfare. Nem suspeitava que alguém voltara a se interessar por ela. A Professora Nyolg, tendo restabelecido sua reputação como autoridade máxima em questões de gênero e sexualidade (o que requereu nada menos que identificar conotações patriarcalistas nos escritos tardios de Andrea Dworkin), passou a ter por sua ex-pupila aquele que ela considerava o mais virtuoso dos sentimentos: pena. 

A pobre menina viera da África, do esgoto do imperialismo ocidental, e ela esperara o quê? Que a conscientização dos primitivos fosse fácil? Doce ilusão pequeno-burguesa, crer que meia dúzia de simpósios bastaria para libertar uma mente de séculos de opressão. Nasceu na professora o desejo de reatar o contato com Zelda, que devia estar para se formar. Quatro anos de Harvard teriam tido algum efeito naquela cabecinha. E se Harvard fora ineficaz, a pressão da realidade não seria. Com o gelo imposto sobre Zelda, e com a economia no estado atual, a menina devia estar em apuros para conseguir um emprego; estaria no melhor interesse dela repudiar os erros do passado e voltar à mentora que num ato de generosidade lhe abria os braços e as portas da academia. Mandou-lhe um e-mail caloroso, como se a relação das duas andasse nos melhores termos, perguntando como ia a graduação e se estava envolvida em algum projeto excitante. 

No dia seguinte chegou a resposta.

Querida Professora Nyolg,

Sua mensagem não poderia ter vindo em melhor hora.  Não posso mentir: minhas perspectivas não são das melhores. Vejo-me muito em breve com um diploma sem valor e sem meios para sobreviver na selvageria do mercado. Para completar meu infortúnio, fui oportunisticamente abandonada por supostos “amigos”.

Foi só recentemente que percebi os equívocos de tantas de minhas posições antigas. Quanto a projetos excitantes, bem, minha transformação ideológica está ligada a um projeto político pelo qual talvez você se interesse.

Acho que estamos de pleno acordo quanto ao capitalismo tardio ter atingido seu grau máximo de degradação. Mas poucos atentam para a base política que permite esse estado de coisas: o princípio maligno da democracia. Foi sob esse ídolo enganador, cuja perpetuação está estranhamente associada ao judaísmo e ao espírito semítico em geral, que nasceram e proliferaram os males que nos trouxeram ao pandemônio atual.

Sendo assim, a única medida sensata que resta ao país é repudiar o crime satânico que foi a Independência e se oferecer em humilde vassalagem à Rainha da Inglaterra, desde que ela aceite: 1) abolir o Parlamento e restaurar todas as suas prerrogativas monárquicas (como chefe suprema das Forças Armadas, não deve ser difícil) e 2) realinhar a Igreja da Inglaterra ao Sumo Pontífice, já que a Igreja Romana é a cabeça espiritual, moral e política do Ocidente.

Creio que as vantagens para a Coroa inglesa são tão patentes que será fácil persuadi-la. Resta convencer uma parcela significativa da opinião pública americana para que possamos enviar um abaixo-assinado ao "presidente". No caso dessa alternativa se revelar inviável (é importante manter os pés no chão), partiremos para a restauração violenta do Poder Real.

Posso contar com seu apoio?

Pelo Trono, Pela Espada e Pelo Altar,

Zelda Odumbe

PS: Peguei no ano passado alguns volumes da obra completa de Julius Evola, mas esqueci de devolvê-los. Você poderia usar suas conexões para apagar o registro desse atraso no sistema da biblioteca? Não se preocupe com as implicações morais e legais do ato; sendo nosso atual estado político completamente ilegítimo, nenhuma instituição que aceite o usurpador na Casa Branca pode emitir regras vinculantes.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Um Belo Monte de Falácias

A usina de Belo Monte é daqueles dilemas perigosos, quase insolúveis. A quem aliar-me-ei? A Dilma e Lula ou a Sakamoto e Eliane Brum? Escolha cruel! Em um texto recente me declarei levemente a favor da usina. Agora, tendo conversado com algumas pessoas mais bem-informadas e lido um pouco mais sobre o tema (ou seja, tendo lido algo ao invés de nada), meu posicionamento é diametralmente oposto: estou levemente contra.

Nunca esperaria andar de mãos dadas com Sakamoto, levantando a mesma bandeira. A coluna dele sempre funcionou como um guia infalível para minhas próprias opiniões: se eu estava incerto sobre alguma questão, era só ir ao Sakamoto, lê-lo, e afirmar o oposto. Curiosamente, no caso atual essa lei ainda vale. Pois, embora concorde com os ilustres articulistas (para não falar dos globais) nas conclusões, seus argumentos não me convencem. Então, antes de defender minha mudança de posição, vou expor os motivos que definitivamente não tiveram nada a ver com ela.

O primeiro é o ambiental. Não que eu seja contra o meio-ambiente; mas, ao contrário do que propaga certa ala do movimento ambientalista, aqui também deve vigorar a análise de custo-benefício. Talvez alagar uns 400 km2 de floresta para gerar muita energia valha a pena, ainda mais considerando que a Amazônia tem milhões e milhões de quilômetro quadrados e a área alagada é minúscula mesmo se comparada ao total desmatado por ano. Além disso, ao contrário das usinas termelétricas, o dano ambiental das hidrelétricas é local e perfeitamente mensurável. É algo que pode ser internalizado e seu custo calculado; isto é, isso seria possível se os recursos em questão (rio, floresta) fossem propriedade privada. Minha opção energética favorita ainda é a nuclear, mas dado o potencial hídrico do Brasil, parece estupidez não usá-lo só porque ele traz algum dano ambiental. Tudo traz algum dano; a questão é sempre saber se os benefícios o compensam. E o dano em questão é pequeno.

O segundo motivo que não me convence são os índios. Ele poderia me convencer. Considero que ideias de políticos ou industriais (ou filósofos, for that matter) sobre o "bem comum" não são mais dignas de respeito do que a propriedade privada. E, portanto, se um pequeno fazendeiro não quiser de jeito nenhum, por nenhum valor ou proposta, abrir mão de sua terra para que uma nova mega-rodovia passe, então ela que dê a volta. O mesmo valeria com os índios. Se eles, que são os donos de suas terras, não quiserem de jeito nenhum sair de lá ou cedê-las, ninguém tem o direito de inundá-las. Mas sei também que os índios são tratados como uma classe à parte, e que uma opção básica como oferecer alguns milhões de Reais para que eles liberem parte de suas posses não está na mesa. Claro que há questões sobre a propriedade das terras indígenas: quem seria o dono? Só cacique? Cada habitante é dono de uma pequena área da reserva total? A reserva é propriedade societária em que cada índio é acionista? Haveria muito o que discutir, mas o problema não é irresolvível. E suspeito fortemente que, se uma solução pragmática dessas estivesse na mesa (para horror dos antropólogos), muitos índios não pestanejariam em fazer um bom negócio. Enfim, do jeito que a questão do índio e outras populações locais é tratada, é difícil saber o que é interesse deles (dos indivíduos; não das classes, entidades fictícias) e o quê é demagogia disfarçada de discurso sociológico. E portanto a insistência deles em ficar lá não me soa convincente. Talvez com mais leituras eu mude de opinião neste ponto.

O terceiro motivo que não me convence é o de que essa eletricidade nova visa a suprir as necessidades de uma indústria que exporta matéria-prima ao invés de bens com alto valor agregado, e que isso seria ruim para o país. Não vou tratar longamente dessa questão. Que apenas conste nos autos que ela não faz sentido econômico algum (as trocas são sempre de valor por valor; se nossa exportação é de 1000, então o que podemos importar mais nossa poupança em moeda estrangeira também vale 1000) e que, a título de exemplo, a Nova Zelândia é país rico e só exporta bens de "baixo valor agregado". Uma variante desse argumento diz que o próprio crescimento industrial e do consumo é ruim, e que deveríamos, isso sim, reduzir nosso uso de energia. Para quem considera a pobreza um valor, deve ser convincente; não é meu caso.

Por fim, o último argumento furado é o de que "poderíamos perfeitamente usar energia eólica e solar para suprir nossas necessidades." Quem diz isso deve achar que vivemos numa história em quadrinhos; que existem alternativas eficientes e perfeitas ao problema energético mas que alguns vilões da grande indústria querem poluir o céu, serrar árvores e matar índios. O governo Dilma pode ser mau, mas sua maldade é algo mais razoável do que os planos maléficos de um Lex Luthor ou um Dr.Von Doom. Deve haver um motivo razoável para seu carro ter um tanque de gasolina e não um catavento.

E agora chegou a hora que todos esperavam! Vamos ao argumento que me convenceu; o grande anti-clímax do artigo. Dado o custo sempre ascendente da nova usina (que com certeza superará os atuais 30 bilhões, referentes apenas à obra em si e não a vários outros custos associados a seu funcionamento; e mesmo o custo da obra há de subir, como sempre sobe), e, o que é mais importante e poucas vezes mencionado, os custos extras de transporte dessa energia e a perda que esse transporte ocasiona, ela é uma opção pouco eficiente. Tiro meus dados deste artigo que me foi indicado e que foi, até agora, o mais transparente e esclarecedor que encontrei, pois cita os componentes do cálculo do custo do MWh (embora não explicite a fórmula); imagino que não seja unânime, e por isso minha opinião não é uma certeza.

Se Belo Monte é de fato uma opção pouco eficiente, então o governo deve ter um outro objetivo ao construí-la (para além do favorecimento dessa ou daquela grande construtora, que poderia se dar com qualquer obra): um plano de desenvolvimento industrial da região. Se uma região não tem quem queira, voluntariamente, financiar a construção de indústrias, deve haver um bom motivo para isso: os ganhos não superam os custos. Sendo esse o caso, é melhor que a indústria não se estabeleça ali, pois os recursos gastos para isso não serão compensados pelo valor criado. Sou contra todo e qualquer plano de desenvolvimento industrial do governo, seja ele qual for. Pois se ele precisa do governo, então não é, do ponto de vista da própria sociedade e das informações disponíveis, um bom uso dos recursos. Esse capital tem melhores aplicações em outras áreas, mesmo energéticas.

A bem da verdade, também me oponho ao governo controlar e determinar a produção e distribuição de energia. Deveria ser tudo privatizado e liberalizado: produz energia quem quer, onde quer, e a vende por quanto quiser. Mas, dado que no contexto atual essa possibilidade não está em jogo, que o governo ao menos produza e distribua energia da forma mais eficiente, atendendo às demandas do mercado (isto é, da produção de valor e dos desejos da população), e não utilize essa sua prerrogativa para levar adiante planos geopolíticos e industriais que sempre redundam em mais poder para si e seus protegidos.

E é por isso, Dilma, que nossa breve aliança deve chegar ao fim. Sou a favor de uma política energética que vise permitir o crescimento (real) da economia e evitar apagões (e que é, portanto, assunto para técnicos, não para plebiscitos), e não alimentar os sonhos loucos de políticos que se vêem como capitães e artífices das sociedades, coisa que não são e nunca poderão ser.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O que é a Igreja

Acho que ao voltar da Missa fico num estado de espírito demasiado... eclesiástico. Nada melhor para me purgar e voltar ao meu velho estado de espírito laical do que escrever aqui. Este texto será parte informativo (sorry!) e parte pessoal/opinativo, como convém a um blog. Tratarei de um tema ligado à religião cristã - o que é a Igreja - mas de um ponto de vista particular meu que, embora convicto de que seja plenamente ortodoxo, não creio ter visto em outros lugares (embora ele quase com certeza esteja exposto, e melhor exposto, em outras fontes que eu desconheça).

O que é a Igreja? Sim, falo dessa instituição que todos vêem, com papa, bispos, padres, prédios. O que ela tem a ver com a relação da alma com Deus?

História do mundo em 5 frases: o homem foi criado para ser feliz neste mundo. Infelizmente, no começo de sua existência se separou de Deus, que era a fonte de sua felicidade. Como consequência disso, ficou impossível para ele a felicidade para a qual foi feito: a falibilidade e a mortalidade, próprias de animais como ele mas das quais era privado pela dignidade superior de sua alma racional, tornaram-se parte de sua natureza. A razão ficou submetida e em desarmonia com nossa estrutura animal/passional, e cá estamos: incapazes de alcançar o potencial que vislumbramos neste mundo e com tempo limitado de estadia aqui. E depois da morte, o que pode uma alminha feita para incorporar-se fazer solta por aí?

MANS, Deus tinha outros planos, e compensou nossa queda com algo melhor do que teríamos originalmente: a possibilidade de se unir a Ele depois da morte, alcançando assim um estado infinitamente superior ao que nossa natureza anseia. Para completar as coisas, Ele ainda promete, no fim dos tempos, mesclar nossa felicidade terrena e corpórea original à felicidade divina da união com Ele, com o mistério denominado "ressurreição da carne"; ou seja, todos as almas humanas voltarão a ter corpos.  

Essa segunda parte foi efetuada pela Encarnação do próprio Deus, que se fez homem na pessoa de Jesus Cristo. Agora, como especificamente, e por que motivo, a tomada da natureza humana por parte de Deus permite essa nossa nova união com Ele, embora seja dos problemas mais discutidos da teologia cristã, é algo que deixarei aberto. Apenas tomemos o fato como dado e sigamos em frente.

A mudança interna que ocorre na pessoa para que ela passe a amar a Deus e direcionar tudo para Ele é um resultado de dois princípios: a graça de Deus - ou seja, a ação de Deus na alma sempre incitando-a no caminho do bem - e a resposta da alma a essa graça. Ocorre que, para estender a todos os homens a possibilidade de se unir a Deus, de contemplá-lo eternamente depois desta vida, Deus quis instituir alguns canais públicos e comuns para a ação da graça: os Sacramentos.

O Sacramento é antes de tudo um sinal. Mas não é só um sinal. É um sinal eficaz. Um sinal é algo que indica alguma outra coisa, como uma letra indica um som. No caso da letra e do som, o sinal não é eficaz, isto é, ele não produz o som que ele significa. Já um aperto de mãos numa aposta, que simboliza o acordo de duas vontades, é um sinal eficaz, pois é ele próprio que torna a aposta vinculante (salvo alguma cruzada marota de dedos). O Sacramento é um sinal eficaz da graça de Deus que ele simboliza (por exemplo, o Batismo realmente purifica a alma do pecado original - que é nossa separação inicial de Deus; o Matrimônio realmente une as duas pessoas no vínculo conjugal). Mas não são os gestos e as palavras humanas que produzem por si mesmos a graça (o que seria magia), mas Deus que se compromete a enviar sua graça especialmente por esses sinais instituídos que Ele legou aos homens.

O primeiro de todos os Sacramentos é o batismo, pelo qual a alma é purificada e se une a Deus; o nascimento espiritual do cristão. A Igreja, aqui na Terra, é o conjunto de todos os batizados. Em outras palavras, comete no mínimo uma imprecisão quem se refere ao clero ou ao alto clero como "a Igreja" enquanto ele, mero fiel, é alguém que obedece a Igreja. Todo fiel é membro constituinte da Igreja, tanto o leigo quanto o Papa (embora suas funções sejam diversas). Aliás, curiosamente, são membros da Igreja até mesmo os batizados não-católicos (ortodoxos, protestantes que têm batismo e outros grupos).

Para ministrar a maior parte dos sete Sacramentos, Deus quis que houvesse uma classe sacerdotal de fiéis. Em certa medida, todo fiel é sacerdote, isto é, tem uma relação direta com Deus por meio de Cristo. No que diz respeito a ministrar os Sacramentos, contudo (à exceção do batismo - que pode ser ministrado por qualquer um, mesmo por um não-batizado - e do casamento, que é ministrado pelos próprios noivos), apenas os fiéis dessa classe sacerdotal podem fazê-lo. Por que Deus quis assim? Um motivo que me vem à mente é sublinhar a distinção de funções e de talentos da Igreja, na qual nenhum membro é auto-suficiente. Um dos Sacramentos, a Ordem, visa exatamente tornar o indivíduo apto a ministrar os Sacramentos.

Além dos Sacramentos, outra coisa necessária aos homens é preservação do conhecimento dessa obra salvífica que Deus realizou na História e o que Ele nos revelou sobre si e nós. Precisamos conhecer a verdade sobre a condição humana, o objeto de nosso amor, conhecer os meios para chegar a Ele. Por isso, a essas pessoas que ficam com a responsabilidade de ministrar os Sacramentos cabe também o dever de preservar e comunicar esse conhecimento da Fé sem que ele se corrompa.

E é isso. Todo o clero serve para servir a Igreja dessas duas maneiras: ministrar os Sacramentos e preservar (ou seja, estudar) e ensinar a Fé regularmente. Todo o resto decorre disso ou auxilia nisso. O que se costuma chamar de Igreja é essa parte da Igreja com essa missão específica. Eles não estão lá para serem servidos, mas para servir (a Deus e aos homens), o que fazem com maior ou menor devoção. Uma parte essencial, mas que não deve nunca ser confundida com o todo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

A USP sob a Lei do Mais Forte

Em movimentos altamente ideológicos, as reações aos eventos são determinadas antes mesmo que os eventos ocorram, e pouco dependem deles. Vejam a recente reintegração de posse que a PM fez do prédio da reitoria na terça de madrugada. Já havia uma reação preparada e ensaiada dos membros do movimento estudantil e simpatizantes: profunda indignação e denúncia escandalizada das agressões e abusos violentos cometidos pela PM. Mesmo que ela não os cometesse.

E de fato não cometeu. A operação toda se deu sem confronto algum e sem agressão física nenhuma. Opa Joel, como assim? Você não leu o DESABAFO da jornalista universitária Shayene Metri? Sim, sim, li o relato da menina que estava lá e que, depois de narrar os eventos da madrugada, conclui "Nada pode ser explicação pra violência gratuita, pro abuso do poder e, principalmente, pela desumanização da PM." Bom, algo muito tenebroso deve ter acontecido nessa reintegração de posse; ao menos cassetete na cabeça e bala de borracha no olho da galera. Imagens do Carandiru vêm à mente.

Ou eu estou esclerótico ou algo não bate. Pois no texto inteiro a pretensa jornalista isenta não relata um ato de agressão sequer. A única violência física da PM é perpetrada contra portas, cadeiras e cartazes de papel craft.

Tentei tirar fotos e gravar vídeos de uma PM que estava sendo violenta com o nada, para nada. Os policiais quebravam as cadeiras no carrinho, faziam questão do barulho, da demonstração da força. Os crafts com avisos dos estudantes, frases e poemas eram rasgados, uma éspecie de símbolo. 

Será que a indignação dela é pela violência contra o pobre e indefeso nada? Ou será pela beleza imortal que se perdeu naqueles poemas rasgados? Seja como for, a única violência relatada no texto é contra o nada, e não contra seres humanos.

Então a repórter mentiu? Não. Tenho certeza de que ela estava lá, viu tudo e relatou o que viu. Minha acusação é que - e isso é comum no jornalismo - ela não entendeu o que viu. E por não entender e não esperar a ação da PM, aquilo mexeu com ela de tal forma que a própria percepção dos fatos foi alterada a esse nível cômico de condenar algo que ela mesma não relatou.

Shayene Metri não viu a PM sendo violenta. Ela viu a PM agindo de forma a evitar a violência. A presença desproporcional de cavalos, carros e helicópteros, o invadir a reitoria de uma vez, o fazer barulho e gritar; são técnicas de intimidação. Se a PM intimida o adversário, consegue que ele se renda sem confronto, o que de fato evita o uso da violência contra ele. E se houvesse um confronto entre os 72 ocupantes e a PM, quem venceria? Pois então, a intimidação era para o bem dos próprios ocupantes, para dissuadi-los de cometer alguma burrada num arroubo de heroísmo revolucionário. Também era para o bem da PM, pois se aparecessem fotos de aluno machucado, com uma unha quebrada que fosse (que dirá cabeças sangrando) ia pegar muito mal para ela. Ainda bem que a PM usou da intimidação!

Será que a tática era necessária? Os alunos seriam burros o bastante para tentar alguma coisa? Há fortes indícios de que sim. Algumas noites antes tinham agredido repórteres (todo repórter adora sobre-valorizar o fato, como ocorre no link; mas que aconteceu, aconteceu). Na assembleia houve muitos que defenderam o confronto. Na madrugada da reintegração, conforme narra a própria Shayene, uma ocupante disse: "Se ele vierem vai ter confronto e isso já vai ser um tiro no pé deles". Estavam armados com coquetéis molotov. Em outras palavras, queriam o confronto, pois tinham plena consciência de que mesmo uma derrota física seria uma vitória com a opinião pública. A polícia agiu exemplarmente: desarmou a estratégia maquiavélica dos invasores com a mais eficaz das armas: o medo primal, e os mesmos que horas antes sonhavam com o combate sangrento corriam em desespero e se prostravam em rendição segundos depois da PM chegar.


Ontem, dia 09/11, estive na Filosofia e assisti ao depoimento do Leo, um dos 72 ocupantes (já estão todos em liberdade), e ele foi bem claro e honesto: não sofreu qualquer tipo de agressão policial e nem viu nenhuma agressão contra outro ocupante. Conforme seu relato, os homens e as mulheres foram separados (ainda na reitoria), e aparentemente algumas das meninas xingavam e tentavam agredir o cordão de policiais dentro do qual eram mantidas (policiais homens, mas havia duas PMs mulheres junto para supervisionar). Uma dessas ocupantes começou a berrar incontrolavelmente e por isso foi imobilizada e colocaram na boca dela uma mordaça esférica. Assim, vê-se a mentira deslavada que foi a denúncia inicial dos ocupantes detidos acusando agressão da PM (em termos genéricos, claro, sem qualquer indicação concreta). Talvez no mundo imaginário deles ficar sentado fazendo assembleia num ônibus seja agressão e tortura; afinal, trata-se de gente para quem a operação da polícia "lembrou os tempos mais sombrios da ditadura militar". Note-se que os autores da denúncia nasceram já no período da democratização.  


Em suma, a estratégia da PM era boa e ela agiu de maneira exemplar. Não houve violência policial, não houve abuso de poder, não houve nada desumano. O que houve foi um grupinho de alunos com sonhos de heroísmo revolucionário, de grandes guerras por nobres ideais. Só que, como todos os estudantes da USP (eu incluso), é gente sem nenhuma vivência real de guerra ou violência. Por isso, à primeira gota de mundo real todas as ilusões de bravura deram lugar ao pânico. Entendo perfeitamente que a jornalista tenha ficado abalada e isso tenha distorcido seu juízo. Tenho mais dificuldade de entender como tantas pessoas (a julgar pelo número de facebookers que compartilharam), tendo lido o relato, aceitaram sua conclusão.


Para um exposé bem diferente da ocupação e da reintegração de posse, sugiro este site.   


***


Finda a ocupação, entramos no negócio mais entediante que é a greve, só para garantir que o fim do ano seja mais improdutivo do que já é por si só. É uma boa oportunidade para meditar sobre os fins e os meios do movimento estudantil.


Por que diabos, afinal, tanta ojeriza à PM? Em parte até simpatizo. Uma polícia que chega revistando pessoas que nada fizeram, tratando todo mundo como suspeito, é muito ruim para todos e, em si, não ajuda a segurança. Até aí, pode haver uma orientação aos PMs de como devem agir no campus para melhor garantir a segurança sem impor um policiamento hostil. A experiência da PM no campus é nova e pode ser melhorada. Eu preferiria a guarda local, ou uma empresa de segurança, mas talvez o grau do problema exija poderes policiais.


Qual é a grande diferença entre a PM e uma guarda numerosa, bem treinada e armada? (Pois tem que ser armada: a USP é gigante, cheia de mato, tem livre entrada, gente de alto poder aquisitivo e, como a experiência mostra, é palco regular de crimes.) Uma tem poder para revistar arbitrariamente; a outra não. Uma, se encontra drogas, leva pra DP; a outra não procura drogas e só as achará se elas lhe forem realmente esfregadas no rosto. Por mim, a PM deveria se ater a crimes violentos e deixar o consumo de drogas pra lá. Mas imagino que eles não queiram e nem possam agir assim. E se a escolha for entre uma USP insegura e com consumo livre de drogas, ou uma USP mais segura só que com transtornos ocasionais em busca de drogas, fico com a segunda. Alguma outra diferença relevante entre PM e guarda universitária? Não consigo ver, embora todos os militantes jurem de pés juntos que as drogas não têm nada a ver com sua oposição à PM.


Não! O problema é que a presença da PM nas ruas do campus inibe a produção científica dentro das salas e a livre discussão de ideias nas classes e nos bancos. WHA-?? É isso mesmo que você leu. Ou pelo menos é o que diz um outro texto de alunos da USP, dessa vez da Barbara Doro e do Jannerson Xavier da ECA, que tem sido propagado aos quatro ventos e tido unanimemente como certeiro e muito sensato. 


"A PM é instrumento de poder do Estado de São Paulo sobre a USP, que é uma autarquia e, como tal, deveria ter autonomia administrativa. O conceito de Universidade pressupõe a supremacia da ciência, sem submissão a interesses políticos e econômicos."

A forma como a PM submeteria a ciência a interesse políticos é mantida incógnita. E esse nem é o maior disparate do texto. Acho que foi a retórica de sensatez e imparcialidade dos autores que persuadiu os leitores de que o texto é de fato imparcial e sensato quando não o é de maneira alguma.

Seu único ponto com alguma relevância é a discussão de se a violência no campus diminuiu ou não depois da entrada da PM. Apresentam este gráfico. Supondo que os dados sejam verdadeiros, meu olhômetro até vê uma certa diminuição de junho de 2009 em diante, mas só seria possível afirmar alguma coisa com certeza depois de uma análise estatística. Eles poderiam pelo menos dar a média de crimes antes e depois (pegando obviamente períodos equivalentes: comparar parte alta do ciclo com parte alta, parte baixa com parte baixa), ou mostrar uma linha de tendência, mas nem isso. Muito menos uma análise de significância. Ficamos com um arremedo de argumento dos autores contra um espantalho óbvio mas que nem o refuta direito.

Discussões pontuais a parte, o texto afirma que condena os meios dos invasores (até aí tudo bem, mas já já veremos o motivo dessa condenação...), e aprova integralmente seus fins. E diz mais: esses fins são partilhados pelo grosso dos estudantes. Afinal, diferentemente dos gatos pingados dessa última invasão, esses ideais saíram vitoriosos de uma assembleia altamente representativa, com 3000 alunos.

Só o campus do Butantã da USP tem 50.000 alunos (a USP toda, mais de 80.000). Não sabemos quantos desses 3000 apoiaram os fins em questão (ninguém sabe: o voto das mãos levantadas é sempre no olhômetro). Temos, portanto, que menos de 3000 alunos concordam com os fins dos manifestantes. E devemos acatar a opinião deles porque foi decidida em assembleia. Essa mesma assembleia, num dia em que reuniu por volta de 500 pessoas, foi contra a ocupação da reitoria. Por isso os invasores devem ser condenados e considerados anti-democráticos.
"Portanto, os meios pelos quais o Movimento Estudantil se mostra (invasões, pixações, etc.) não são decisão de maiorias e, portanto, são passíveis de reprovação. Seus fins (ou seja, os pontos reais que são discutidos), no entanto, têm adesão muito maior, com 3000 alunos na assembleia do dia 08/11."
"Não são decisões de maioria e, portanto, são passíveis de reprovação." Há toda uma filosofia aqui. Uma das filosofias mais imorais da história, a de que o que determina o certo e o errado é a vontade da maioria. A isso, ao poder irrefreável da maioria, que é outro nome para a lei do mais forte, eles chamam democracia. Se a maioria quiser tocar fogo no campus, então o ato será louvável e democrático. A ocupação da reitoria foi obra de uma minoria, portanto condenável. Mas os ideais deles são apoiados pela maioria. O mais ridículo é que nem isso é verdade: em 3000 alunos, essa suposta maioria é ela própria uma minoria.

As ideias e desejos dos "estudantes" (como se coletivos fossem indivíduos com razão e vontade) são determinados por essas assembleias sempre minoritárias (em geral com algumas centenas de alunos), cuja organização privilegia quem não tem mais o que fazer (ou os militantes para os quais as causas revolucionárias do movimento são a única coisa a fazer) e pode passar horas e mais horas em reuniões infinitas e entendiantes no meio da noite. Que isso seja aceito pelas autoridades administrativas da USP como a voz legítima dos estudantes e digna de diálogo já é um respeito excessivo e indevido. Que piquetes, cadeiraços sejam considerados "manifestação legítima" é de uma tolerância maternal, e eles ainda insistem que são reprimidos. Pouco a pouco a invasão de prédio vai se tornando legítima também; a de 2007 abriu as portas para novas tentativas; a atual, com o fim feliz, espero que as tenha fechado novamente. Mas suponho que mudar os estatutos que instituíram tal estado de coisas seja quase impossível, e que portanto a única solução para o problema que é o movimento estudantil (cujos militantes - nem sempre estudantes - querem, entre outras coisas, imunidade legal para alunos e funcionários e eleições diretas pra reitor, ou seja, querem o poder de mandar e desmandar na universidade) é que as pessoas percebam gradativamente sua malícia e sua inutilidade e o ignorem. Tenho fé que esse processo já esteja em andamento!

domingo, 6 de novembro de 2011

Cristianismo, Sexo e a Promessa Romântica

Algumas semanas atrás tomei conhecimento do blog Cem Homens, um produto inequivocamente de nossa década: originalmente, a autora, que escreve sob pseudônimo, queria ter relações sexuais com cem homens ao longo de 2011 e relatar suas experiências e descobertas. Acho que por volta dos 30 o projeto desandou e o blog virou mais um fórum de suas opiniões sobre a sexualidade em geral. Hoje em dia, ela está em relacionamento aberto com um sujeito, e garante que é muito melhor do que o relacionamento exclusivo: o mesmo amor, menos a paranoia e a possessividade.

A primeira pergunta que surge sobre o site é o porquê do fracasso do projeto. Ele lhe trouxe grande ansiedade e sofrimento, mas fica a dúvida: isso se deveu a algo intrínseco ao modo como ela tratava o sexo ou à reação hostil de muita gente ao blog? Pois é chocante o tamanho do ódio que ela despertou. Na minha mente, a oposição viria primariamente do Cristianismo, e quem não tem religião ou não a leva muito a sério não veria problema nenhum numa mulher ter 100 parceiros num ano; até acharia legal. How wrong I was! A principal reação negativa, expressa com extrema virulência, veio de gente que não está nem aí para as coisas do céu; seguidores do que eu chamo de moral fisiológica, que é basicamente o pensamento moral espontâneo da humanidade: uma mistura de alguns insights válidos, pulsões biológicas, conformismo e lei do mais forte. Não entendo bem o que move esse tipo de visão, que condena violentamente na mulher, com desejos de morte e expressões de nojo, o que tolera e até exalta no homem. Enfim, o homem médio é secularizado, mas não liberado (particularmente vergonhoso, na minha opinião, é quando um cristão apela às expressões e juízos da moral fisiológica para ganhar uns pontos fáceis com a plateia; assunto para outro post, talvez).

E eu me pus a pensar: o que eu vejo de errado na conclusão final da autora, da superioridade do relacionamento aberto? Suponho que, por mais honesta que ela tente ser, a honestidade total consigo mesmo ou com outros é uma meta inalcançável. É bem capaz que exista um lado sombrio dessa escolha de vida: ciúmes e inseguranças inescapáveis pelos quais ela passe em silêncio (vide o relacionamento de Sartre e Simone de Beauvoir). Mas ignoremos essa possibilidade e aceitemos sem reservas o que a autora dos Cem Homens diz: o relacionamento aberto tem o amor sem o ciúmes, a diversão sem a insegurança. Nesse caso, qual o problema com ele? Há algo de mau nesse arranjo ou todos os seus problemas se devem ao preconceito social de que ele é vítima? O que há de mau em se ter relações sexuais com vários parceiros sem compromisso?

É curioso pensar que, dentro do Cristianismo, a resposta a essa pergunta tenha mudado substancialmente; uma verdadeira guinada de 180 graus. Nos primeiros séculos da Igreja, na época dos Santos Padres, o sexo era visto como um ato puramente carnal, animalesco; uma vitória das paixões sobre a razão, um prazer terreno certamente contrário ao amor ascético a Deus. Assim, o sexo precisava de motivos para ser desculpado. Os pensadores dos primeiros séculos viam dois motivos possíveis: 1) reprodução e 2) remédio da concupiscência (isto é, fazer sexo com a mulher ou com o marido era uma maneira de acalmar os desejos incontroláveis e evitar, portanto, que se fornicasse por aí). Uma terceira motivação, sexo por prazer, era unanimemente vista como pecado. O Ocidente (Europa ocidental e norte da África), mais rigorista, privilegiou o primeiro motivo; para Sto. Agostinho, por exemplo, mesmo o sexo para evitar fornicação era pecado venial - para quem não sabe, pecado venial significa o pecado leve, que não nos priva da graça de Deus; é um atrasar do progresso rumo a Ele, e não um desvio da rota. O Oriente (Bizâncio, Egito e Oriente Médio), mais tolerante com a fraqueza humana, privilegiou o segundo. Mas ambos tinham uma visão negativa do sexo: ele se desculpava ou como necessidade instrumental da procriação ou como triste concessão à natureza humana decaída. E só. Sendo justo com os Padres, ninguém nunca disse que o sexo era pecaminoso em si mesmo (embora, para Sto. Agostinho, ele raramente ocorresse sem pecado mesmo dentro do matrimônio), e muito menos que era impossível aos casados se salvar. O matrimônio foi sempre visto como santo e o amor dos casados também; mas não se via, entre todos os autores do período, relação nenhuma entre amor conjugal e relação sexual. Defenda-se como quiser a visão dos Santos Padres, estou convicto de que, hoje em dia, é impossível assentir a ela honestamente. A condenação estoica das paixões, que eles tomavam como natural, nos é inacessível, e nossa cultura nos tornou incapazes de ver o sexo como algo puramente fisiológico, sem relevância emocional, psicológica ou mesmo espiritual.

No Ocidente a visão negativa do sexo até se intensificou. Um Santo Padre mais tardio, S. Gregório Magno, ensinava que todo e qualquer prazer sexual era pecado venial. Essa visão talvez estivesse conosco até hoje, não fosse o feliz advento do nosso querido S. Tomás de Aquino. Em matéria sexual especificamente ele era bastante agostiniano e menos avançado que seu professor, S. Alberto Magno, mas mesmo assim seu posicionamento já marcou uma guinada com relação ao passado: não há nada de mal no prazer sexual em si. Pelo contrário: no Paraíso, Adão e Eva teriam mais prazer sexual do que temos neste mundo decaído. É pecado ter o prazer como finalidade, mas não experimentá-lo. Essa tensão não se resolve: por um lado, o prazer é natural, bom e criado por Deus como um incentivo para que o homem faça os atos que preservem sua vida e sua espécie; por outro, deixar-se levar por esse incentivo era pecado.

Nas gerações e séculos seguintes o debate seguiu com defesas mais tolerantes do prazer e sua importância na vida humana. Ter o prazer entre as motivações não é pecado, pode ser algo bom se for perseguido com moderação, etc. Mas notem: ainda assim, ainda com todo esse avanço, nenhum dos envolvidos na discussão via como motivação pessoal para o sexo algo além do prazer, ou seja, algo que o homem tem em comum com os animais. O sexo permanecia desumanizado.

Contemporânea a essa discussão nascia e se desenvolvia um nova visão do amor e do sexo: o que podemos chamar de amor romântico. Hoje em dia Cristianismo e a visão romântica do amor caminham juntos, e muitos podem supor que sempre foi assim. Mas o fato é que eles nasceram separados, e mais, antagônicos. (Um dos grandes méritos da Igreja, na minha opinião, é ser capaz de incorporar elementos que nasceram fora dela, sempre segundo o princípio da relação entre graça e natureza: a graça não substitui a natureza; ela a eleva e aperfeiçoa.) O amor romântico nasceu, até onde sei, nos séculos XI e XII no sul da França: no amor cortês, nos trovadores e nos romances de cavalaria, que cantavam a devoção absoluta do homem por sua amada, o adultério e o sexo não-reprodutivo; talvez tenha chegado lá por influência árabe.

Nossa concepção do amor entre homem e mulher é herdada deles por meio da literatura e das demais artes, que nunca mais largaram esse osso. Para ver como essa concepção não é originalmente cristã (assim como não o era o estoicismo dos Santos Padres ou a ética aristotélica de S. Alberto e S. Tomás), basta ressaltar algumas de suas características que perduram até hoje. Por exemplo, a pouca ênfase dada por ela ao matrimônio, que no Cristianismo é o divisor de águas; o importante para a concepção romântica é que exista o amor verdadeiro, e não contratos e reconhecimentos públicos. Outra ideia difícil de conciliar com o Cristianismo é a noção de alma gêmea que dela se originou: existe no mundo uma pessoa que é seu par perfeito, e sua felicidade e realização pessoal dependem de você encontrá-la e se unir a ela. Ocorre que sua alma gêmea não é necessariamente seu cônjuge, e daí já viu. E mesmo ignorando a abertura que essa ideia dá para o adultério, a noção de que a completa realização humana se dê já neste mundo é contrária ao que ensina o Cristianismo, segundo o qual a plenitude pela qual nossa alma anseia está em Deus, e não nos homens.

Concorde-se ou não com esses pontos, há algo inegavelmente verdadeiro no amor romântico: a relação homem-mulher vai muito além de seu papel social e biológico. Ademais, ele não é um fardo, um mal necessário neste vale de lágrimas; é um dos vínculos mais profundos e recompensadores que existem, e como esse vínculo não é apenas espiritual mas também carnal (de fato, ambos são indissociáveis neste campo), o sexo tem profunda relevância emocional e espiritual, ao contrário da visão antiga do sexo como puramente animal. Entre o homem e a mulher que se amam se forma o desejo de partilhar o que cada um tem de mais precioso e pessoal. O sexo é a culminação física dessa partilha da intimidade, a manifestação e celebração do amor que une o casal.  É um símbolo da comunhão e da união das almas dos dois amantes. É um ato intensamente carnal e propriamente humano; focar no seu componente mecânico ou animal é perder de vista sua importância. Por isso a sexualidade é algo muito mais delicado e profundo do que, digamos, o desejo de comer (com o qual era comumente comparada), esse sim basicamente animal. Nossa auto-estima e felicidade, toda nossa estrutura psicológica e emocional, estão diretamente ligadas ao sexo. Há muito mais em jogo na cama do que na mesa.

Ao contrário de outros tipos de amor, o amor romântico é necessariamente pessoal, exclusivo. Não se pode amar romanticamente "aos homens", e nem se pode dividi-lo entre vários, justamente por seu caráter de intimidade e confiança. E como o sexo decorre desse amor e desse partilhar de intimidades, a fidelidade sexual é um requisito necessário para seu pleno florescimento. Ao se fazer sexo, se se entrega inteiramente ao amado, e se demanda que ele se entregue inteiramente a nós, sem reservas de ambos os lados. Quem está disposto a partilhar seu amante com outros ou não o ama ou não ama a si mesmo.

No amor romântico, exclusivo, está contida uma promessa: a promessa de uma felicidade a dois que deve ser construída. A imagem do casal que envelhece e se tornam cada vez mais próximos é até mais cristã do que romântica, mas ao incorporar o amor romântico o Cristianismo abriu-se à integração do sexo nessa relação e à permanência da paixão na vida a dois. Essa incorporação demorou muitos séculos para ocorrer: a primeira menção explícita do ato sexual como motivado pelo amor num autor eclesiástico se deu no século XIX; e o desenvolvimento de uma integração cristã do amor romântico e do sexo como traçado acima apenas no século XX.

O curioso, contudo, é que apesar do desenvolvimento tardio da teoria, havia na Bíblia e na prática cristã imemoriável amplo respaldo para essa visão. O Genesis coloca a união "em uma só carne" entre homem e mulher como uma realidade da vida no Paraíso (à qual Cristo fará referência no Novo Testamento, dando a entender que, por mais que tenha sido degenerada, a natureza humana preserva a capacidade dessa união oriunda do estado de perfeição original); o Cântico dos Cânticos é um hino ao amor espiritual e carnal; e mesmo S. Paulo, quem originou a visão do sexo como remédio da concupiscência, tem coisas positivas a dizer sobre ele. No que diz respeito à prática da Igreja, o sacramento do matrimônio, no Ocidente, é entendido como sendo ministrado não pelo padre, mas pelos próprios noivos, e só pode ser ministrado pela livre vontade dos dois, e de mais ninguém. Além disso, sua consumação se dá só com o ato sexual. Apesar de toda a ênfase na procriação, o que importa para o Sacramento não é capacidade de se reproduzir, mas a de ter uma relação sexual. A esterilidade não é impedimento ao matrimônio; a impotência é.

Tudo isso para dizer que, numa perspectiva cristã atual, a resposta ao questionamento inicial é que, sem a fidelidade, perde-se a oportunidade de se criar um tipo de amor e de felicidade inacessíveis a quem trata o sexo como só mais um prazer da vida. O sexo é um prazer, aliás, um dos maiores prazeres, mas justamente porque envolve muito mais do que uma brincadeira a dois; e reduzi-lo a isso é renunciar à profunda alegria a dois que ele promete. E conforme o caráter se conforma à prática, a própria capacidade para essa alegria do amor exclusivo pode ser perdida. Há uma promessa nessa crença, pois ela não pode ser imediatamente verificada; tem que ser vivida. Há na relação a dois uma escada para o alto; mas é preciso construí-la.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O Ponto Fraco do Conservadorismo

André Lara Resende, em artigo recente para o Valor, fez algo corajoso: a defesa do conservadorismo político. Corajoso porque, como ele próprio aponta, o espírito conservador é oposto ao progressismo que marca o discurso político atual. Ao mesmo tempo, ainda que seja uma defesa bem-vinda e bem articulada de algo incomum no cenário brasileiro, ela evidencia as fraquezas inerentes ao pensamento conservador, e que o tornam incapaz de animar qualquer programa político e de frear o avanço de qualquer movimento que se lhe oponha.

Vejam a principal definição dada no artigo:
O conservadorismo opõe-se à crença racionalista moderna de que valores políticos defensáveis precisam estar necessariamente baseados num sistema de propostas articuladas, cuja aplicação é universal. Assim definido, o conservadorismo opõe-se a toda proposta idealista totalizante. Não apenas às de esquerda, como o socialismo marxista, mas também às de direita, como o fascismo e o nazismo. O elemento central da posição conservadora é o ceticismo. Ceticismo em relação à possibilidade de que qualquer sistema de ideias tenha aplicação universal e seja capaz de resolver os dilemas da vida em sociedade.

A melhor pista da essência do conservadorismo (embora desvie estrategicamente do alvo) é dizer que ele se opõe à "crença racionalista moderna". Traduzido em termos concretos, se opõe a sistemas "de propostas articuladas, cuja aplicação é universal". Ora, qual é a faculdade humana que articula conteúdos sistematicamente e que chega a conclusões universais? É a ela que o pensamento conservador se opõe. Para não dizê-lo com todas as letras, alguns espantalhos são fustigados. A oposição seria apenas ao racionalismo, aos sonhos utópicos de que algum sistema político dará fim à dor e à imperfeição. Assim é fácil!

Qualquer proposta política que se coloque como solução definitiva para a condição humana é obviamente um delírio. Não é preciso conservadorismo para se opor a isso; apenas bom senso. O problema é que propostas articuladas e universais não são monopólio de sonhadores utópicos, mas elemento necessário de qualquer pensamento político coerente e bem fundamentado. Socialismo e capitalismo são ambos rejeitados, segundo o critério conservador, não por seus méritos ou deméritos, mas por terem propostas articuladas e universais, mesmo que não sejam utópicas. Nenhuma proposta política séria acredita no fim da imperfeição humana. Elas apontam caminhos para melhorar a situação; só que esses caminhos dependem de consistência, lógica, sistematicidade. E são universalizáveis. Assim, o que o conservadorismo rejeita não é o racionalismo, mas a própria razão.

Se a razão é rejeitada para se guiar a política, se se nega que a mente humana seja capaz de chegar a respostas melhores e universais para os problemas sociais, sobra o quê? Duas possibilidades: ou se repete o que era feito no passado, ou se age com base no instinto, no sentimento, na "intuição". O conservadorismo oscila entre ambos. Em um momento, "sabe que é preciso ser paciente e dar tempo ao tempo, pois nem tudo tem sempre solução"; em outro, busca "minimizar o sofrimento e melhorar a qualidade da vida, por meio da adaptação dos valores, das práticas e das instituições às condições objetivas das circunstâncias". Dizer que as decisões são tomadas com base em circunstâncias não-universalizáveis (ou nas particularidades do "caso brasileiro") é um código infalível para dizer que os políticos no poder farão o que quiserem e darão algum arremedo incoerente como explicação. É rejeitar a ciência em nome do feeling, e dar carta branca para toda medida populista. É esse o partido de nossos sonhos? Que governará sem propostas, sem ideias, ao sabor das circunstâncias do momento?

Quem governa sem ideias é servo das ideias dos que o precederam. O conservadorismo busca o impossível: substituir valores e propostas pela total ausência deles. Contra o embuste intelectual e moral que é o socialismo progressista, não apresenta propostas coerentes e um conjunto de valores superior; apenas se abstém do debate e declara não ser possível sanar os males deste mundo. Resende percebe que essa proposta é contrária ao espírito dos jovens. Ele insiste, porém, que os jovens de hoje mantêm a aparência de otimismo apenas por pressão social. Discordo; os jovens são otimistas de verdade; sonham alto. Por isso o conservadorismo lhes é tão avesso; é uma posição política feita para os verdadeiramente velhos de espírito.

No início do século XIX, o conservadorismo era a ideologia contrária aos liberais, que pela força dos argumentos econômicos e o debate implacável conseguiram algo quase impossível: diminuíram o alcance do intervencionismo estatal e das atribuições do Estado em geral. Diminuíram as barreiras comerciais, aboliram a escravidão, abriram espaço para o maior desenvolvimento econômico da história da humanidade até então. Contra adversários que juravam que o estado atual das coisas era "natural", que era a vontade de Deus meramente por ser a ordem estabelecida e a tradição dos antepassados, prevaleceu a razão.

Se a sociedade tem leis e instituições boas, querer conservá-las é ótimo. Mas por elas serem boas, e não por serem tradicionais. A escravidão e a negação de direitos das mulheres são bem tradicionais; devíamos ter dado tempo ao tempo e rejeitado como universalizações ingênuas as propostas que mudaram esses estados de coisas? No mundo árabe, ser conservador é defender a proibição dos juros, a obrigatoriedade do véu e a pena de morte por apostasia; deveríamos ver com bons olhos o "ceticismo" deles com relação aos valores ocidentais?

Há 100 anos atrás, o padrão político vigente era liberal (ao menos para os padrões atuais). Mas o capitalismo, ainda que tivesse uma defesa econômica bem elaborada, não tinha um embasamento filosófico e moral adequado. Vide o utilitarismo, que é das éticas mais coletivistas possíveis e mesmo assim era usado em sua defesa. Não tinha como dar outra: a oposição aos socialistas e progressistas foi feita com base no conservadorismo, no ceticismo; uma posição sob medida para quem quer perder e depois se gabar de ser um dos poucos sábios remanescentes, mas não para quem almeja relevância social. As premissas e os conceitos foram dados todos pelo progressismo, e continuam a reinar até hoje, até que alguém tenha coragem de sustentar um outro código de valores. You can't beat something with nothing. O conservadorismo atual rejeita o aumento do dirigismo estatal mas aceita o conceito de justiça social e o valor da igualitarismo que lhe dá suporte; sua guerra já está perdida.

Nesse sentido, o PSDB já é um partido conservador. Nada tem a oferecer que destoe da agenda socialista obrigatória do discurso público; afirma apenas ser mais eficiente, mais honesto e promete não conclamar os proletários às armas. Na época da eleição faz sua propaganda, finge que as discordâncias políticas com o PT são profundíssimas (ironicamente, a acusação ideológica da última campanha foi dizer que o PT não era socialista o bastante), mas todo mundo sabe que as propostas são rigorosamente as mesmas: o Estado dará mais saúde, mais educação, mais trabalho, mais renda, mais cultura, mais esporte, mais lazer, mais sexo seguro, aumentará a regulamentação sobre o capitalismo selvagem e fortalecerá as estatais. Ser conservador hoje em dia é comprar o pacote progressista completo e aplicá-lo timidamente. Uma real oposição tem que ter algo novo a propor.

***

Feita essa crítica ao conservadorismo como um conjunto de valores e propostas políticas (ou melhor, da ausência deles), sobra algo que, me parece, é saudável, e que o próprio Resende levanta: o conservadorismo dos meios, ou seja, a rejeição ao ímpeto revolucionário, a qualquer tentativa de impor grandes mudanças por meio da força. O poder corrompe, e a sede implacável de justiça é algo perigoso. Conhecendo a imperfeição do homem, a cautela e a harmonia das relações devem ser sempre preservadas, pois é com grande facilidade que revertemos à barbárie. A abolição da escravidão no Brasil, pela via do consenso e do convencimento, é um bom exemplo dessa política conservadora no bom sentido (ainda que se possa criticar o desamparo no qual os ex-escravos foram deixados depois dela). Mas essa cautela e esse zelo pela ordem social não substituem os valores e as propostas que dão o direcionamento e constituem a alma da boa política. O conservadorismo dos meios mantém nossos pés no chão; o dos fins, nossos olhos.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O poeta descobre a mortalidade do ser amado

É preciso ter cuidado
por que não se acompasse
o pulso do relógio
com o pulso do sangue,

e seu cobre tão nítido
não confunda a passada
com o sangue que bate
já sem morder mais nada.

João Cabral de Melo Neto, “Uma faca só lâmina”

Desejo-te ter eterno
e reconheço-te máquina:
porque dentro de ti pulsa
estranha bomba-relógio.

Costumava contemplar-te
como a planta que se abre
uma vez e não termina
de elaborar seu perfume:

se no tempo começaste,
se houve na vida o momento
de respirares primeiro,
desde então és para sempre.

Eternamente te quero
a renascer como o sol,
dia a pós dia, faceiro,
a esconder-se, somente,

jamais pensando em morrer,
desconhecendo o que é morte,
e que nos priva de vê-lo
só por amor das auroras.

Costumava assim dizer-te
da confiança que tinha
quando deitava em teu peito
a turbulenta cabeça

e descansava sabendo
que ali ao menos havia
terreno seguro, alento:
o teu coração batia,

o teu coração batia,
o teu coração batia...
Como nunca escutei antes?
Que essa música macabra

antes mais te arrebatava
do que sempre nos unia.
Eis teu coração dizendo,
e ouço-o distintamente:

Esgoto a cada batida
a vida que te dá vida.
O meu compasso é certeiro,
meus passos, comprometidos.

Esgoto a cada batida
a vida que dá sentido
à tua vida dorida.
Perdoa-me, assim fui feito.

Tal sinfonia escutando,
de terra, sangue e metal,
bater-te no magro peito
inconseqüente e indefeso,

esqueço a noção do tempo
e imirjo no dom vital
que assim nos uniu exatos,
indefectíveis, porquanto

nem mesmo a ausência de vida
que já te sinto no encalço
e às vezes se me oferece
a objeto do meu desejo

apaga a luz desse beijo
mortal, sanguíneo, espectral
que eu deposito na fronte
do teu coração batendo.
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