terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Os Três Espíritos do Natal

É lugar-comum conservador criticar a época do Natal como desprovida de seu sentido espiritual original, tendo sido reduzida a mera festividade egoísta e materialista, celebração vazia do comércio e do consumismo exacerbado.

Sou o primeiro a deplorar o exército de Papais Noéis que dominam a cidade em novembro, impondo em terras brasileiras o império da cafonice americana (não que careçamos de muitas e abundantes cafonices nacionais!), e que hoje começaram a bater em retirada. Mas não é verdade a afirmação de que, se o Natal não é religioso, ele é egoísta, materialista, ou o que o valha.

O Natal continua a ser uma celebração, ao menos em intenção, do amor entre os homens; de um amor benevolente, generoso, que quer espalhar esperança e alegria a todos. Os dois rituais do Natal laico o ilustram bem: a troca de presentes e a ceia.

Tomem a troca de presentes. Ela não é, de forma alguma, uma mostra de egoísmo e ganância. O que egoístas fariam? Comprariam presentes para si, e não para os outros. Do ponto de vista material, o Natal é uma grande perda econômica. Faça o cálculo com você mesmo: calcule o montante que você gastou com presentes este ano. Suponha que este montante de dinheiro equivalha precisamente ao valor monetário dos presentes que você recebeu. Agora pegue todos esses presentes recebidos (os calções de banho, as meias, etc.), olhe-os com calma e reflita honestamente: valem o que custaram? Não valem. Se o dinheiro tivesse sido dado em sua mão, você poderia fazer um uso muito melhor dele. Quem melhor sabe o que você quer é você mesmo; não seu tio-avô.

O valor da troca de presentes está em ser troca; em pensarmos nos nossos familiares e amigos e dar-lhes algo de que gostem. Fora um ou outro presente ideal - categoria mítica que designa o presente tão bom que supera o que a própria pessoa poderia comprar para si - o benefício dos presentes está nos laços de amor que unem os participantes da troca, que são com ela fortalecidos. A ceia também não vale pelo peru e pela farofa, mas pela união familiar que celebra e efetua. Para muitas famílias, é a grande reunião do ano; e, em geral, uma reunião alegre. Assim, a festa de Natal laica, a festa de Dickens, de Frank Capra e do Papai Noel, não é a festa do egoísmo, mas do amor entre os homens.

Não foi Dickens, contudo, quem inventou o Natal. Ele sempre foi uma ocasião festiva no Ocidente, com banquetes, cantigas, peças dramáticas religiosas, trocas de presentes (dados seja pelas muitas versões locais do Papai Noel, oriundos de S. Nicolau, ou pelo Menino Jesus em pessoa) e celebrações várias. A árvore de Natal existe desde pelo menos o século XVI na Europa central. A cantiga "Noite Feliz", criada por um padre austríaco e até hoje uma expressão clara da ternura e alegria do espírito natalino, data de 1818, ou seja, é anterior ao conto de Dickens. O Natal antes dele nem passava batido e nem era uma bacanália camponesa.

Enfim, se Dickens não criou a festa, podemos dizer que seu conto manifesta, com maior força, o espírito do Natal laico; espírito cuja gênese histórica está no Natal religioso mas que busca se afirmar como realidade autônoma, aberta e atrativa a todos, não apenas aos cristãos. É esse o Natal público de nossos dias, naquilo que ele tem de melhor, e seu representante é o Papai Noel, figura que só alguém inacreditavelmente ranzinza quereria destruir.

Essa festa laica, contudo, corre o risco de se esvaziar. Quando a compra dos presentes vira uma obrigação custosa e estressante e a escrita dos cartões um processo burocrático; quando a ceia familiar é um ritual tedioso e do qual se quer escapar; quando as decorações de Natal, cujo objetivo é transmitir alegria, tornam-se objetos de competição e vaidade. Então, a "good will to all men" sai gradativamente de cena, deixando em seu lugar enfeites e embalagens coloridos que escondem um espírito cinza, um espírito que com o tempo convencerá a todos que a festa custa mais do que vale. Esse terceiro espírito, o do puro egoísmo materialista, terá vencido quando, e se, o mundo não mais celebrar o Natal e não mais trocar presentes.

Pode ser que o espírito laico do Natal, universalmente acessível e valorizado, se descolado do espírito religioso que o originou, degenere irremediavelmente no espírito materialista que o nega. E se esse for o caso, não se ofendam os ateus com presépios e manjedouras. Permitam, tolerem; ou melhor, abracem, encorajem e até participem das cantigas, Missas e rezas, pois o império do Papai Noel pode levar à morte do Papai Noel. Sem esperança de ressurreição.

Um feliz Natal a todos!

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Lei da Palmada, ou Xuxa vai ao Congresso

Os ilustres da Câmara dos Deputados conseguiram mais uma: aprovaram a Lei da Palmada, que agora segue para o Senado. Sim, a palmadinha será proibida e passível de punição; basta que alguém delate o agressor. O benefício é 2 em 1: não só coíbe uma prática violenta e perigosíssima como estimula a virtude cívica da delação. O projeto de lei é da ex-deputada, hoje ministra, Maria do Rosário; a mesma que considera o aborto questão de saúde de pública. Ou seja: palmada no bumbum, ato criminoso; esquartejar feto e jogá-lo no lixo, medida profilática. Detalhes. Vamos à discussão da palmada em si.

O que mais chama atenção é a ausência de qualquer dado objetivo para embasar a afirmação principal: palmadas esporádicas na criança pequena têm consequências danosas no longo prazo? Há pesquisas que mostram que maus tratos e violência doméstica têm; mas essas práticas já eram proibidas. Por que ir além da lei existente e punir também a palmada leve?

A argumentação da Maria do Rosário (veja-a aqui) visa negar a distinção antiga da lei brasileira, muito razoável, entre violência moderada e imoderada. Para isso ela se vale de dois recursos argumentativos. O primeiro é dizer que não dá para traçar uma linha clara e válida para todos os casos entre os dois. Isso é óbvio e vale para qualquer ação humana: há algum critério claro e objetivo para diferenciar entre um tapinha amigável nas costas e um golpe desleal? Entre um beijo roubado e um assédio sexual? É para, entre outras coisas, fazer esse tipo de distinção, que temos tribunais e juízes. Que às vezes abusos ocorram não desmerece a distinção.

O segundo expediente da ex-deputada é, sempre que se refere à violência moderada, escrever "moderada" entre aspas; e quando se refere aos fins pedagógicos da palmada, dizer "fins pretensamente pedagógicos". Dizem que a internet baixou o nível da discussão; por acaso quem diz isso lê ou já leu o que passa por argumento nos projetos de lei e discussões do Congresso? E esses arremedos vergonhosos, que não passariam no crivo dos blogs mais tolerantes, julgados por salafrários cuja única qualificação foi terem sido eleitos por massas que nem lembram em quem votaram um mês depois, têm o poder de determinar a vida de todos os habitantes do país.

"Castigo físico é ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em sofrimento e/ou lesão à criança ou adolescente". Por essa definição, deixar de castigo no quarto ou no "cantinho da disciplina" também deveria ser proibido. Afinal, é com o uso da força física que o pai ou mãe leva o filho esperneante até o local do castigo; e o castigo, mesmo que seja dois minutos sentado no primeiro degrau da escada, causa sofrimento, como evidenciado pelo choro. Na verdade, toda forma de impor obediência ao filho pequeno envolve ou força física ou a ameaça do uso da força. Assim como a palmada e o castigo, o mero falar firme e sério funciona exatamente porque a criança sente que haverá consequências caso ela não pare. Trata-se, afinal, de alguém que ainda não consegue entender e se relacionar racionalmente com o mundo; alguém que, não importa quantos argumentos sobre a saúde futura de seus dentes sejam dados, continuará a fugir para não ter de escová-los. A única solução, se quisermos limpar aqueles dentinhos, é pegá-la e levar na marra para o banheiro, usando, sim, a tenebrosa força física.

Conforme a criança cresce e se desenvolve, o uso da força física vai ficando menos necessário e mais inadequado, dando lugar à persuasão. E daí, imagino, há diferentes perfis de criança: algumas mais fáceis, outras mais teimosas e dadas a chiliques, que talvez precisem da punição física ou do castigo por mais tempo. Para outras, bastará o castigo moral, a ameaça de ficar sem TV, sem sobremesa, etc. Ou vamos proibir esses também, já que trazem sofrimento? Toda punição faz sofrer. E já que a criança ainda não é um adulto bem formado, não responde a motivos racionais e não pensa no longo prazo, a punição continua sendo necessária.

O que estou dizendo? Mesmo muitos adultos precisam de ameaça de punição física (cadeia) para coibi-los de cometer algum crime. Punição física, e ameaça de dor (como é a palmada, que em si não dói) são partes da vida. É uma pena; seria ótimo se os homens já nascessem com perfeita boa vontade, convivendo sem conflitos e brigas. "Filho, vamos parar de brincar de monstro e vamos para o berço?" "Oba, berço!!" - E lá iria o nenê. Mas a vida não é assim; a associação de certos comportamentos ao sofrimento imposto por alguma autoridade (pai, governo, Deus) é o primeiro passo da educação moral, e infelizmente se faz necessário quando a persuasão racional ou emocional não dá conta do recado.

O tipo de uso da força que deve ser proibido, e que já é proibido, é aquele que causa danos à criança. Não é o caso da palmada: ela não causa nem dor. É o tipo de coisa que, se aplicada com muita frequência, perde seu poder; pois ela é, em si, inócua, mais fraca do que impactos que a criança sofre em brincadeiras físicas; sua eficácia vem do que ela representa. A palmada funciona porque é rara; daí sim, o filho sente que invadiu território novo e perigoso. Já o soco na cara - esse sim, agressão - machuca de verdade, e se se tornar comum trará cada vez mais danos.

Por que se aplica a palmada? É com vistas ao desenvolvimento de longo prazo? Em geral não. Aliás, a esse respeito, estudos estatísticos têm mostrado que diferentes métodos de educação e disciplina têm pouco ou nenhum efeito sobre as características do adulto que deles resulta. Construtivista, tradicional, rígido, liberal; no final das contas, nada disso tem muito efeito (claro, considerando uma infância dentro de parâmetros normais. Subnutrição, surras diárias, ficar fechado o dia todo num quarto escuro, não ser alfabetizado; esses tipos de nurture fora da curva têm efeitos duradouros). O objetivo do pai que aplica a palmada é fazer o filho obedecer ou parar de ser mal-criado. Ela visa melhorar o presente; não necessariamente o futuro.

E funciona muito bem; posso atestar por experiência. Em momentos de teimosia muito agudos, em que meu filho (agora entendo o porquê do nome terrible twos) não obedece de jeito nenhum e faz questão de fazer o que ele sabe que não queremos que ele faça, às vezes o único modo de dissuadi-lo é com a ameaça da palmada, dita em tom sereno mas sério. Nossos métodos de último recurso - quando conversas, pedidos e negociações não funcionam - são o castigo (ficar uns minutos no berço) e a palmada, e essa é de longe a mais eficaz para dar um basta instantâneo em birras e manhas.

Outros métodos funcionam também, dependendo da ocasião. Mas por que usá-los ao invés da palmada, se nenhum deles tem efeitos negativos? Que vigore a multiplicidade dos métodos, e que as pessoas escolham os que julgarem mais eficazes, sem se impor sobre elas, com o braço armado do Estado (olha aí a força física de novo), a palpitaria de psicólogos da moda.

Ou das estrelas da Globo. Eis o detalhe mais sórdido de toda campanha da lei da palmada: que sua porta-voz midiática seja ninguém menos do que a Xuxa, apresentadora que, vestida de prostituta, despejou por décadas seu esgoto televisivo diariamente nas mentes de milhões de baixinhos, e cuja única filha, de 13 anos, transformada pela mãe em espetáculo midiático desde o nascimento, é semi-analfabeta, como exposto no breve mas hilário twitter da apresentadora ("fui vcs não merecem falar comigo nem com meu anjo" é como a rainha dos baixinhos encerrou seu microblog; vitória do baixo astral?). Essa mulher, que vive num mundo de fantasias Disney e Revista Caras, se coloca como autoridade para dizer o que os pais podem ou não fazer na educação dos filhos; o depoimento dela é ouvido pela Câmara como subsídio para a decisão dos deputados. Daqui a pouco será o quê? ET e Rodolfo discursando sobre geopolítica no Senado? Palhaço Tiririca eleito deputado? Opa!

Todo pai tem defeitos. Detesto essa neurose de paternidade e maternidade perfeitas que tem se imposto como modelo obrigatório. (Aliás, a lei da palmada se encaixa nisso: todas as soluções que fujam do ideal imaginado por psicólogos e sociólogos são proscritas, por mais que sejam boas em vários contextos. Se não é perfeito, é péssimo; só isso explica associarem palmada à "cultura da violência".) Deixem lá, portanto, a Xuxa dar apartamento e carro particular pra Sasha, ensinar que duendes existem e abolir a palmada de seu lar. Mas é pedir demais que suas opiniões não sejam erigidas em lei federal?

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

A Complicada Relação entre Educação e Religiosidade: uma resposta

Fiquei intrigado com este último texto do Joel sobre as religiões. Já conhecia essas estatísticas e sempre pensei que elas expressavam uma tendência verdadeira ligando riqueza com declínio da religião, não que existisse uma correlação perfeita. Mas o texto foi suficientemente convincente para me fazer abandonar essa ideia. Realmente o a mentalidade coletivista seria uma variável mais adequada para explicar esses dados.

Porém, Eu acredito que existam problemas em duas coisas: os resultados da pesquisa e a ideia de que o Cristianismo carrega os valores que fazem as sociedades serem mais individualistas.

O problema com a pesquisa é que ela não avalia adequadamente se o entrevistado realmente não tem religião. Ele simplesmente pensar isso e responder não significa que ele realmente não tenha religião. Tenho no meu círculo social muitas pessoas que se reconhecem como espíritas, e elas tem enorme dificuldade em aceitar a ideia de que espiritismo é uma religião. Outros grupos com que tenho contato, como os teosofistas, também negam de todas as formas possíveis que o que eles defendem é religião. Talvez isso seja explicado por um conceito diferente de religião que eles utilizam, identificando religião somente como um grupo organizado, com dogmas, etc. Uma boa explicação pra isso é que apesar da maior parte da população ser religiosa, a visão sobre as religiões não é das melhores, principalmente porque no ocidente falar mal de religião é falar mal da igreja católica, e existe muita publicidade negativa sobre acontecimentos históricos ou casos recentes de pedofilia, sejam eles verdade ou não.

Sendo assim, acredito que a pesquisa deveria tentar entender a parcela da população que acredita em alguma forma de misticismo e separa-la da que rejeita isso. Não acredito que os europeus sejam os não religiosos que aparecem na pesquisa, porque quando são confrontados com a ideia de vida após a morte, divindade, destino e outras coisas parecidas, eles podem acabar respondendo positivamente, tornando-os automaticamente em religiosos.

Seguindo essa mesma linha, apesar de os asiáticos em geral não terem religiões organizadas, eles são altamente supersticiosos, e não vejo porque não enquadrar isso como uma religião. Então no caso da Coréia, o que pode estar acontecendo é simplesmente a migração de um conjunto de crenças místicas desorganizadas para um conjunto de crenças interligadas que faça mais sentido.

E então vem o segundo problema, que não descaracteriza o que o Joel disse no texto, mas que talvez deixe mais claro: não existe um único cristianismo. Isso pode explicar porque um país cristão como os Estados Unidos pode ser menos coletivista que países mais religiosos como os africanos. Isso aconteceria por uma questão que de forma vulgar vou chamar de raízes do cristianismo. Acredito que a raiz da religiosidade americana venha diretamente da reforma protestante, e no passar dos anos, não houve um sincretismo como o observado no Brasil e na África, apesar dos Estados Unidos também terem tido contato com indígenas e com africanos. O mesmo não aconteceu em partes da América espanhola. Com essa raiz que remonta a reforma protestante, que entendo como um rompimento com as tradições católicas, o cristianismo anglo-saxão acabou se misturando com a tradição inglesa de direitos individuais, liberdade e individualismo.

Ao contrário do cristianismo protestante, a raiz do cristianismo brasileiro vem de uma junção da doutrina católica pré-reforma protestante e recebeu muitas influências do pensamento religioso africano e indígena, que devido a seu tribalismo era altamente coletivista. Com isso, o catolicismo no Brasil e na África não significa que os valores anglo-saxões acompanhem a religião. Isso pode de alguma forma ser a explicação das diferenças nos resultados da pesquisa.

E nem mesmo o protestantismo brasileiro (que está se difundindo rapidamente pela África) segue uma tradição diferente, já que acredito que ele seja somente uma radicalização do catolicismo, como uma tentativa de resgate do fundamentalismo presente na idade média, e como ele não tem ligação com a reforma protestante, ele também acaba não influenciando as sociedades onde está presente a irem de encontro com uma sociedade com valores individualistas.

Com isso, acredito que possa realmente existir uma relação (pequena) entre falta de religião e coletivismo e individualismo com religião, apesar de acreditar que a tendência dessas sociedades individualistas é migrarem para sociedades verdadeiramente sem religião, longe do misticismo europeu; como a venda do livro “O Segredo” demonstra.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

A Complicada Relação entre Educação e Religiosidade

A Gallup fez, uns anos atrás, um mapa da “densidade religiosa” dos países, mostrando a proporção de pessoas de cada nação que considera a religião algo “muito importante” em sua vida. Alguém tinha alguma dúvida do resultado? Em linhas gerais: quanto mais pobre o povo, mais religioso. A África é o centro mundial da fé; a Europa, do secularismo. O objetivo do mapa, ou o fim ao qual ele mais se presta, é afirmar a causalidade entre mais riqueza e educação (que sintetizarei com o termo “desenvolvimento”, dando mais ênfase à educação), e o enfraquecimento da religião.

A reação religiosa mais previsível seria negar essa relação causal, apontando problemas com a inferência. E, de fato, os problemas são muitos. Primeiro, note-se que baixa religiosidade não é marca apenas das nações ocidentais ricas: também são pouco religiosos os países do extremo oriente e os ex-comunistas do Leste europeu. Nações irreligiosas como Mongólia e Azerbaijão não primam pela excelência educacional. Ou seja, há mais em jogo.

Do lado religioso, há duas exceções notórias: a primeira é a Coréia do Sul, mais religiosa que seus vizinhos asiáticos e um país que tem aderido em números crescentes ao Cristianismo (30% de cristãos and counting; mais ou menos 2/3 protestante e 1/3 católico). A outra e maior exceção são os EUA. O país mais rico e mais produtivo do mundo é também marcadamente religioso. A distribuição da religiosidade pelos EUA é desigual, e como o artigo mostra, respeita a correlação negativa entre desenvolvimento e religiosidade. Mas mesmo os estados menos religiosos dos EUA são muito mais religiosos que os países menos religiosos da Europa; compare os 48% de Massachussetts com os 17% da Suécia.

Enxergo uma outra possível causalidade nesses dados: quanto mais coletivista a nação, menos importante a religião. Os três grupos mais irreligiosos encaixam-se nela: o extremo oriente é coletivista por cultura e tradição – quem se importa com o indivíduo na China? E a mudança para um Oriente mais individualista tem caminhado junto da expansão do Cristianismo (ok, o Japão claramente não se encaixa nesse esquema; mas Coréia e China sim). Os welfare states europeus também se justificam e se mantêm graças ao pensamento coletivista; o mesmo pensamento que era imposto à força pelas nações comunistas (oriundo de um profundo coletivismo tribal/étnico e místico anterior). Pode haver um crowding-out em jogo: conforme o pertencimento social e o bem “da sociedade” ganha importância na mente do indivíduo, perde importância a relação daquela alma individual com Deus. Não sei se isso ocorre de fato; é mera hipótese.

Um crítico de pendor mais reacionário ou tradicionalista vê na correlação negativa entre desenvolvimento e religião a prova da decadência moral e intelectual do Ocidente. Sim, sim, sabem um pouquinho a mais sobre como o mundo natural funciona e dormem numa cama confortável, mas são verdadeiros analfabetos no que diz respeito às coisas do espírito, tendo trocado o cuidado com a alma pelo mero conforto material. Resta saber se as populações de Bangladesh, da Arábia e do Congo são espiritual e moralmente superiores a suecos, franceses e japoneses.

Apesar de todas as críticas possíveis, algumas delas a meu ver válidas, ainda não consigo me livrar da impressão de que existe sim uma relação entre desenvolvimento e queda da religiosidade. Parece que, em geral (não em todos os casos) conforme aumenta o nível intelectual, decresce a religião; compare-se, por exemplo, os níveis de religiosidade entre PhDs e pessoas que pararam no ensino médio. Isso indica que a religião é ou tem sido, para muita gente, algo irracional. Nem por isso, no entanto, julgo que ela tenha que sê-lo. (Ao menos não o Cristianismo. Sempre que se fala de religião tende-se a agrupar todas num mesmo grupo. Eu mesmo o tenho feito neste texto; mas tenhamos consciência de que diferentes religiões afirmam coisas muito diferentes a respeito de Deus/deuses, do homem e do universo, e propõem ideais muito diferentes para a vida humana).

Um pouco desse efeito da educação na religiosidade talvez se deva ao caráter secularista e nada imparcial da educação formal dada em escolas e faculdades, especialmente nas humanidades. Muitas falsificações históricas já completamente refutadas ainda são repetidas como se fossem verdades óbvias (Igreja contra terra esférica, contra uso de cadáveres na medicina, contra anestesia – só alguns exemplos de afirmações simples e frontalmente falsas, repetidas sem nenhuma evidência). Só que me parece que essas falsidades só são facilmente aceitas pelos alunos porque elas de alguma maneira encontram respaldo na experiência pessoal deles com a religião.

Para além do claro viés secularista na educação formal, é inegável que ela também dá ferramentas para o indivíduo conhecer melhor o mundo à sua volta e não se deixar levar tão facilmente pela primeira autoridade ou tradição que se lhe apareça e demande obediência; enfim, o torna um pouco mais racional e autônomo. E a maioria religiões, incluso aí, infelizmente, também o Cristianismo, costuma basear a adesão dos fiéis em motivos pouco racionais. Superstições, uma visão extremamente simplista e dualista da realidade humana, crenças mágicas sobre o mundo natural, uso da fé como substituto da razão para conhecer a realidade, apego cego à tradição pela tradição, aceitação do comando divino como origem da moral, a confiança em sentimentos e sensações subjetivas como guias divinamente inspirados.

Não digo que devamos começar uma cruzada anti-supersticiosa para “limpar” o Cristianismo dessas coisas; mas sim que devemos receber de braços abertos o movimento da educação moderna que é o de elevar os indivíduos para cima disso, permitindo-os pensar por si mesmos. Infelizmente, desde meados do século XVIII até o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica teve uma relação muito ambivalente, para não dizer contrária, às conquistas “iluministas”, que nada mais foram do que propagar a autonomia individual e o valor da razão. Incidentalmente, é desse período de reação religiosa que datam todos as mitologias conservadoras e tradicionalistas que hoje se pintam como o “verdadeiro catolicismo”, sempre a chorar e lamentar tudo o que ocorre na Igreja e no mundo desenvolvido há um século e a cultuar fetichismos por formas culturais antigas.

Não era essa a atitude dos primeiros cristãos, e nem a dos grandes pensadores cristãos ao longo da história, como S. Agostinho, S. Alberto, S. Tomás (infelizmente cooptado pelo que há de mais obscurantista no pensamento católico atual) e outros de mesmo espírito. Não era esse o espírito cristão que deu origem e/ou continuidade à ciência, à tecnologia, às artes, ao capitalismo, à filosofia e aos direitos humanos individuais. E esse espírito cristão, embora tolere e até veja com bons olhos a devoção sincera que cresce em meio à superstição e à infância intelectual e cultural (assim como a devoção mais “esclarecida” também cresce em meio a, e apesar de, vícios próprios a ela), vê com bons olhos o amadurecimento cultural, que traz consigo, sem dúvida, muitos desafios (como manter a fé sem as muletas da pobreza e da ignorância?), mas também a possibilidade de uma religião mais madura.

Francis Bacon sintetiza meu pensamento:  “A little philosophy inclineth man's mind to atheism, but depth in philosophy bringeth men's minds about to religion”. O mundo moderno tem conseguido trazer a little philosophy para todos. Cabe aos cristãos não combater esse processo e fechar-se num gueto no qual as mentes se diluam em meio a tradições e línguas mortas para não ter que pensar por si próprias, e sim oferecer a depth in philosophy, como já fez em outras eras.

sábado, 10 de dezembro de 2011

A dinâmica populacional e o Estado de Bem Estar Social

Quando alguma iniciativa ou estudo é feito sobre a população mundial, geralmente ele acaba caindo em dois extremos: a ideia de superpopulação e a de diminuição dramática da população. Pelo lado da superpopulação temos geralmente grupos de eugenistas, progressivistas e ambientalistas; e já do outro lado temos grupos religiosos ou defensores de valores tradicionais e planejadores que ficam alarmados com as projeções usando como base a evolução e contexto atual.

De certa forma os dois grupos pecam por desenhar um cenário catastrófico, quando a coisa em geral tende a se estabilizar sozinha com o tempo; mas isso com certeza não dá dinheiro para pesquisas e muito menos agrada os planejadores governamentais, que acreditam que algo deve ser feito, geralmente se esquecendo que sempre algo é feito, mas sem a ajuda de burocratas.

Mas o que me motivou a lembrar dessas discussões sobre população foi o documentário “DemographicWinter” (disponível na íntegra). É um bom documentário, e apesar de ser algo sério – com presença de renomados cientistas -, ele peca fazer uma montagem que passa um tom alarmante. Mas isso acaba não comprometendo muito o documentário, já que eles conseguem levantar as causas do declínio populacional que vem se desenhando, principalmente nos países da OCDE.

As causas principais segundo eles são a invenção dos métodos contraceptivos, a entrada da mulher no mercado de trabalho, aumento do número de separações, casamentos tardios e o custo de ter que criar vários filhos. Todos esses pontos realmente podem estar ajudando a desenhar o fenômeno de declínio no número absoluto da população mundial, mas acredito que eles tenham ignorado talvez a maior causa desse declínio: o Estado de Bem Estar Social (EBES).

Apesar de num primeiro momento parecer que o EBES estimula o crescimento populacional, existes alguns detalhes que fazem o efeito ser inverso. O que fica aparente é que como o estado garante saúde, educação e toda uma série de benefícios, as pessoas não precisam se preocupar com o perigo de terem vários filhos, porque o restante da sociedade vai pagar por grande parte dos gastos que eles vão gerar. Esse ponto pode até ser verdadeiro em países como o Brasil, como ocorreu na época dos auxílios do Getúlio Vargas que fez as famílias terem mais filhos, assim como o atual Bolsa Família. Mas em países com o EBES mais amplo e funcional, como o Japão e a Europa, a população vem declinando cada vez mais rápido, mesmo com uma rede maior de proteção.

E como Eu disse acima, existe uma consequência não intencional do EBES, que é minar valores como a família e a comunidade. Devido às pessoas terem em mente que em alguma necessidade o estado vai socorrê-las, elas não precisam mais se esforçar tanto para fortalecer os laços com a família. A família e a comunidade ficam mais fracas porque os membros não dependem mais entre si em alguma situação negativa.

Então ao mesmo tempo que o EBES gera incentivos para ter filhos (acredito que esse incentivo seja pequeno em países desenvolvidos), ele gera um incentivo muito maior ao comportamento contrário a família e a comunidade. Pode-se usar como exemplo a diferença entre a sociedade chinesa e a europeia. Na China, como não existe um sistema para garantir requisitos mínimos para os idosos e doentes, as pessoas dependem da família para recorrer nesses momentos. Por isso os chineses desejam ter mais filhos, porque assim eles vão poder contar com um maior número de pessoas. Já os europeus estão tendo cada vez menos filhos, e em mais de 60% dos lares não há mais crianças, combinado que uma parte crescente da população não mora mais aonde nasceu.

Identificado o problema, devemos considerar essa situação ruim? Devemos intervir para alterar essa situação? Devemos usar o estado para intervir em um problema causado por uma intervenção estatal? Bem, em geral mais pessoas significa que há mais espaço para ganhos de escala, mas Eu não sei até que ponto uma variação pequena pra baixo na população mundial possa influenciar isso. O documentário tenta também passar a ideia de que o capitalismo depende de aumento de população para continuar criando riqueza, o que não é verdade; o que importa mesmo são os ganhos de produtividade.

Mas já que as pessoas acabam pensando em intervir de qualquer maneira utilizando o estado, acredito que a melhor forma de resolver isso seja através da abertura completa desses países para a imigração. Com isso, pessoas com baixa produtividade poderão anular o efeito do custo de criar um filho decorrente da mulher focar no mercado de trabalho, já que o custo de ter uma babá vai reduzir drasticamente, além de esses novos entrantes virem de uma situação que os leva a valorizar a família, aumentando as taxas de natalidade. Mas sem a redução da amplitude do EBES, no longo prazo esse problema vai voltar a acontecer. E Eu não poderia deixar de comentar a medida mais comum utilizada para aumentar as taxas de natalidade, que é dar dinheiro diretamente ou incentivos monetários para casais que queiram ter mais filhos. Como esperado, isso funciona (mas não tanto quanto esperavam), mas a um custo muito alto e fica muito claro que as pessoas que não tem filhos estão sendo obrigadas a criar os filhos de outras pessoas.

Sobre não estar funcionando como os planejadores esperavam, isso pode ser o efeito da desintegração da instituição da família e da comunidade. Eu particularmente não tenho admiração por esses valores, mas creio que seja evidente que eles são a chave para entender a dinâmica das populações; pois esses declínios ocorreram pelo mesmo motivo nas civilizações romana e grega. Além disso, a diminuição da influência da religião pode estar contribuindo pra isso diretamente ou contribuindo por meio da desintegração da família que costuma acompanhar a falta dela.

Por fim, sendo um pouco não ortodoxo, tenho um motivo relevante para ver com bons olhos essa redução da população. Se a evolução da tecnologia ocorrer como os Transhumanistas planejam, o que conhecemos como morte terá acabado por volta de 2050. Com isso, se a colonização do espaço não se tornar uma realidade até esse momento, uma população estável será algo desejável, porque apesar dos ganhos de produtividade terem conseguido até o momento sustentar com alimentos e energia uma população crescente, isso tem um limite (que acredito que esteja longe).

Bônus: Talvez alguém ainda não tenha visto o filme Idiocracia que fala sobre o tema em uma comédia nada inteligente, mas muito divertida.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Bolsa-Estupro - Boas Intenções, Proposta Equivocada

Por algum motivo obscuro circulou nas redes sociais esses dias uma notícia de 2007 sobre o projeto da "Bolsa-estupro", que dará dinheiro para que mulheres estupradas que tenham engravidado decidam ficar com o filho ao invés de abortá-lo. O projeto ainda tramita pelo legislativo; quem sabe um dia passe.

O que mais chama a atenção é como todos os que o linkaram davam mostras de estar profundamente chocados e indignados com a proposta. Mas indignavam-se com o quê, exatamente? O projeto não tiraria o sacrossanto direito da mulher de matar o feto. Apenas seria um incentivo do Estado para que ela pensasse duas vezes e tomasse uma decisão em prol da vida. Será que seriam igualmente contrários à proposta de que o Estado financiasse a decisão de abortar?

Na verdade, todo mundo que considera o aborto algo genericamente mau, dramático, que traz sofrimentos à mulher, ainda que defenda o direito da mulher de escolher, deveria ver a lei com olhos benévolos. Afinal, não são os próprios defensores do direito do aborto que dizem que "ninguém é a favor do aborto; defendemos a escolha", que ele é um mau infelizmente necessário às vezes e que causa grandes sofrimentos à mulher, etc.? Então por que todo esse ódio, rapaziada? A reação virulenta só traz à tona um aspecto muito sombrio do movimento pró-aborto: para seus partidários, não interessa só garantir a escolha, mas insistir que a opção concreta pelo aborto é preferível. Sim, eles deixam às pobres religiosas ludibriadas o direito de carregar e criar o nenê/parasita, mas não têm a menor dúvida de que, para uma mulher bem-resolvida, a opção correta fora dos casos de gravidez planejada é sempre o aborto, e portanto influenciá-la na direção contrária é errado. E por isso se escandalizam tanto com um projeto de lei como esse.

Eu, no entanto, embora seja contra permitir aborto em caso de estupro, sou contra a lei. Primeiro porque será o negócio mais fácil do mundo de ser fraudado. E segundo porque sou contra transferências estáveis de renda por meio do Estado. Quem quiser ajudar as vítimas de estupro a não abortar, ajude-as; ou então ajude um milhão de outras causas igualmente nobres que existem por aí; a escolha é sua.

Sim, sou contra o aborto mesmo em caso de estupro. Afinal, o feto é um indivíduo vivo da espécie humana e distinto da mãe. É um ser humano, e tem todas as características que um ser humano tem nesse estágio de seu desenvolvimento. O direito ao aborto deveria ser decidido caso a caso para os casos de risco de vida da mãe. Se uma pessoa coloca em risco sua vida diretamente, é direito seu se defender, com força letal se necessário. Aceitar a morte para que o filho nasça é um ato que pode ser heróico, mas não é moralmente obrigatório.

No mais, proibamos todos. O feto que resultou do estupro é tão inocente quanto a mãe. O sofrimento psicológico dela, por pior que seja, não justifica que se tire uma vida inocente. Na verdade, não justifica nem que se tire uma vida culpada. Pensemos no caso da vítima de estupro que, futuramente, mate seu estuprador. A situação dela é perfeitamente compreensível, e saber que aquele homem que a estuprou continuava vivo e impune vivendo feliz pela Terra deve sem dúvida causar-lhe grande sofrimento; mas não justifica o assassinato, que continuará sendo um ato criminoso. Para além disso, cabe questionar a premissa de que o filho gerado no estupro seja mesmo o horror que afirmam os militantes. Desafio alguém a encontrar uma mãe que se arrependa de ter dado à luz o filho; conheço, ao contrário, muitos depoimentos de mães que amam seus filhos provenientes de estupro, e agradecem todos os dias por ter tomado a decisão de levar a gravidez adiante. O filho é antes um auxílio na superação do trauma do que um prolongamento torturante dele.

Enfim, não ao bolsa-estupro; mas podemos concordar que a intenção por trás dele é boa?

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O Drama do Soldado

Ninguém gosta de guerra. Ao menos ninguém o diz publicamente. Destruição, violência, fogo, armas, mortes, lutas; gostamos no cinema, não tanto na vida real. Seria ótimo se não houvesse mais guerras no mundo; se todos os homens vivessem em paz e harmonia, e se a própria possibilidade de conflito bélico acabasse (o que é, obviamente, uma impossibilidade para o mundo real, mas acompanhem o raciocínio). Não haveria mais bombas nem exércitos. Todos estariam melhor e mais felizes. Com uma exceção: os militares.

Há gente cuja grande vocação é defender a pátria no campo de batalha, pegar em armas para lutar e matar o inimigo, quem sabe morrendo em combate. Gente que se realiza pensando estratégias de guerra, ou criando e testando novas armas. Para todo mundo que está na carreira militar por escolha (e não por falta de escolha) a ideia da paz eterna deve produzir um sentimento ambíguo: por um lado, reconhecem a desejabilidade de tal cenário. Por outro, ficariam sem rumo na vida.

A vocação dos militares envolve mortes violentas e destruição de propriedades; eles se realizam fazendo o mal a outros (ainda que esse mal relativo esteja articulado a uma causa absolutamente boa. Não estou falando nada contra a guerra aqui. Há guerras justas sim e é ótimo que tenhamos soldados. Estou apenas apontando que, consideradas em si mesmos, os atos cometidos numa guerra são maus). Então, por mais simpatia que tenhamos por eles, seríamos todos a favor da paz universal.

Há uma vocação, contudo, que se assemelha à do soldado em depender (parcialmente) de algo mau, mas ao contrário dela não comete atos maus em sua atuação: a do filósofo. Nesse caso, desejar o bem universal e eterno seria uma decisão muito mais difícil. Assim como o soldado combate os inimigos, o filósofo combate as opiniões (que ele considera) equivocadas.

Existem muitas opiniões discordantes e inconciliáveis no mundo. Elas não podem ser todas verdadeiras ao mesmo tempo. Portanto, existem erros no mundo. É o alguém estar errado que dá origem às discordâncias, que dá origem às discussões e aos argumentos. Frequentemente, ambos os lados de uma discussão estão errados em alguns pontos e certos em outros; ainda assim, em cada uma das discordâncias entre os dois lados haverá pelo menos um erro em um dos lados. Se ambos estivessem corretos sobre o mesmo assunto, concordariam, e não haveria discussão.

Imagine que o erro sumisse do mundo; que todas as opiniões humanas fossem verdadeiras. Seria o fim de toda discussão, pois não haveria mais discordância real em nada. Ainda haveria ignorância; os homens não seriam oniscientes, e precisariam aprender. Assim, teríamos professores; e teríamos filósofos, gente que tenta ir mais fundo que os demais no conhecimento da realidade. Mas grande parte do sabor da filosofia, que é a discussão de ideias, seria perdida. Comunicaríamos uns aos outros nossas descobertas, e eles por sua vez nos informariam de outras coisas. Esqueça os filósofos e suas discussões etéreas; o que isso faria com a conversa normal de amigos durante uma festa? Alguém afirma algo. Um outro diz: "concordo!". Um terceiro diz: "É verdade, e além disso blá blá blá." O primeiro responde: "Ah sim, muito bem colocado!". No máximo, alguém duvidaria de uma informação e pediria uma prova, que seria dada, e fim de papo.

Suponhamos que a filosofia verdadeira seja o tomismo (um tomismo ideal, corrigido dos erros que porventura contenha e com capacidade explicativa para acomodar potencialmente tudo que o homem viesse a descobrir). Todos os filósofos seriam tomistas. Todos pensariam e ensinariam conforme o Contra Impugnantes, que seria também o modelo de todos os livros, revistas, blogs e tweets. Nenhuma genuína variação; apenas diferentes graus de profundidade e detalhamento de uma mesma escala. Tentem imaginar o que isso significaria.

Não haveria a variedade de opiniões e concepções de mundo que torna a vida interessante. O professor do departamento cujos artigos de jornal nos dão ódio; o revolucionário aloprado; o vegano radical; o fascista; o stalinista; o anarquista; a feminazi; o kantiano; o utilitarista; o ateu cientificista; o místico guenoniano; o católico tradicionalista; o polemista judeu anti-cristão. Enfim, um mundo sem erros seria muito mais sem graça.

Mas o objetivo de toda discussão é convencer o outro lado de uma verdade, e uma das consequências é diminuir a quantidade de opiniões discordantes no mundo. Portanto o que toda discussão busca é um estado final no qual não haveria discussões. E esse estado final seria muito pior do que o estado atual, com seus erros formidáveis.

Portanto, mesmo o mundo perfeito teria que ser imperfeito?

sábado, 26 de novembro de 2011

Consciências Negras

Zelda Odumbe nasceu em Kisumu, Quênia e nunca conheceu seu pai biológico. Por imposição do padrasto, que desejava uma enteada pura, teve o clitóris removido aos sete anos de idade. No ano seguinte à circuncisão contraiu poliomielite, o que a deixou paralítica. Sua primeira relação sexual foi com um tio materno que, tendo contraído o HIV, achou que relações com uma virgem o curariam. O mesmo tio, e um vizinho amigo da família, abusaram dela repetidas vezes conforme chegava à puberdade. Escapou da casa materna aos 15, com ajuda do irmão caminhoneiro que a levou escondida, e a deixou aos cuidados da Congregação das Irmãs Missionárias do Precioso Sangue, com as quais passou a morar e estudar, no colégio das freiras em Riruta, arredores de Nairóbi. Aos 17 anos descobriu-se homossexual com uma noviça com quem dividia o quarto. Com ajuda das freiras, emigrou para os EUA aos 21, tendo conseguido uma bolsa para estudar em Harvard.

Zelda era uma celebridade antes mesmo de por os pés em solo americano. Discutia-se a ordem das palestras que ela realizaria, os rumos de sua graduação e até um possível PhD. Na chegada ao aeroporto foi recebida por uma comitiva de líderes estudantis e professores, dentre os quais a mítica Vazulla Nyolg, PhD, chefe do departamento de estudos da Mulher, Gênero e Sexualidade. Ao entrarem na van, a Professora Nyolg mal se continha de emoção; falava ininterruptamente contando à recém-chegada todos os podres da horrorosa sociedade americana, procurando avidamente por qualquer sinal de que estivesse causando boa impressão. Sua nova protegida, afinal de contas, não só era mulher, negra e africana, o que já seria bom mas nada de extraordinário, como também homossexual, sobrevivente de estupro, genitália mutilada, soropositiva e, para coroar, deficiente física. Tudo numa pessoa só. A professora encontrara o Santo Graal.

Zelda não era de muita conversa. A Professora Nyolg, embora ansiasse por relatos íntimos, pessoais, aos quais só ela teria acesso, não se importou muito, pois o silêncio da pupila complementava seu gosto pela fala. E a menina era boa ouvinte; com o tempo e com a confiança adquirida haveria de se libertar da repressão patriarcal que lhe impusera o silêncio como dever feminino; opressão talvez até mais grave do que a sofrida pelas mulheres de Massachusetts. Alojada no melhor apartamento disponível, Zelda e a professora se despediram. Um tanto reservada no contato com os colegas, passou seus primeiros dias de Harvard sem nenhum evento digno de nota.

O primeiro sinal de que nem tudo ia às mil maravilhas veio na hora de escolher as matérias a cursar. Zelda optou pela Literatura Renascentista Inglesa. A Professora Nyolg sugeriu que talvez, querida, os Estudos Literários Africanos a interessassem mais. “Só porque sou africana devo mirar tão baixo?” foi a resposta. Ela poderia ser lida como uma crítica aos professores do departamento, americanos e europeus privilegiados, portanto incapazes de penetrar no coração do lirismo africano. A professora, no entanto, acostumada a encontrar camadas secretas inesperadas em qualquer discurso, pressentia que o sentido era outro. Seja como fosse, era certo que a recém-chegada teria um longo processo de conscientização pela frente: criada e violentada na cultura patriarcal africana, que em última análise fora imposta pelo colonialismo europeu do século XIX, tinha na mente muitas ervas daninhas ideológicas a se extirpar; mas o terreno era inegavelmente fértil.

No primeiro fim-de-semana, na primeira (e única) festa de república a qual foi, Zelda sentava numa roda com seus colegas quando surgiu o tema dos direitos dos animais. Uma menina particularmente engajada opinou que a dieta vegana não só é mais ética, como também mais saudável e até saborosa.
Zelda ficou indignada. 

“Impossível!”

“O que foi, Zelda?”

“Temos prazer em comer carne em parte porque sabemos que ali está um animal. Remete à caça. Houve uma luta, entre vida e vida, com sangue e morte, e um lado venceu, e agora o derrotado nos sustenta. Mesmo carne de fazenda preserva esse significado. A vitória do homem sobre a fera. Já uma cenoura... planta cega, burra. Onde está o valor? Por isso vegetais, em qualquer cultura digna do nome, serão sempre acompanhamento, nunca prato principal.”

“Ah, eu duvido que você sinta a diferença entre um hambúrguer de soja e um de cadáver de vaca.” Disse a colega vegana.

“Hah! Não me faça rir! Mascarar a realidade com um pedacinho nojento de carne falsa só prova o meu ponto. O tributo que o vício paga à virtude.”

“Olha, eu não sei como é na África. Mas você tem que entender que relação do homem ocidental com a natureza é insustentável; somos muito cruéis. A gente se acha senhor, e não parte. A natureza é um Outro.”

“Você quer contato maior com a natureza do que morder um bom bife? A alternativa é ir dar um passeio nos parques perto da minha cidade. E daí você será o bife. Antinatural para o homem é viver feito macaco. Se você quiser salvar a vaquinha, por favor, vá em frente. Só não conte comigo; a vaca foi feita para mim. Não venha me impor suas escolhas.” Quando direitos animais e culturas oprimidas entram em conflito, é politicamente complicado tomar partido.

É provável que o debate tivesse continuado, se nesse momento o rastafári loiro que se sentara do lado de Zelda não a tivesse oferecido um baseado. Ela já se incomodara antes (vocalmente) com o cheiro; agora via a coisa em si. Com um sorriso atencioso para o rastafári, pegou o cigarro e o deixou cair dentro de sua cerveja. Antes que o Bob Marley nórdico sequer esboçasse reação àquele desperdício gratuito de bom cânhamo, Zelda sacou seu celular e ligou para a polícia do campus vir “desbaratar aquela pouca vergonha” [“disrupt this shameless cavorting” foi a frase utilizada, segundo testemunhas]. Daquele dia em diante os convites para as festas, se não deixaram de vir (pois fazê-lo seria interpretado como racismo), foram bem menos efusivos.

Na semana seguinte, numa tarde, almoçando com seus colegas de sala, Zelda iniciou diálogo com uma menina que se sentara a seu lado.

“Qual igreja você frequenta?”

“Er... Sou ateia.”

“Que Deus se compadeça de ti!”, e, fazendo um sinal da cruz para a colega, foi com a cadeira de rodas e a bandeja para um outro lugar à mesa.

O primeiro evento ao qual fora convidada a palestrar era um simpósio sobre “racismo e diferença” organizado pelos alunos, no qual ela seria a convidada principal. A audiência era muito menor do que os cartazes levavam a crer, o que a desanimou um pouco. A substância de sua breve fala, 20 minutos contados, era que o racismo era um problema menor se comparado ao seu problema real dos negros: a indolência. 
“Nada me deixa mais triste que ver um desses negros preguiçosos! – Aqui alguns ouvintes se levantaram e saíram da sala em sinal de protesto – E que ainda culpa os brancos por sua merecida pobreza. O que mais me chocou aqui em Boston é ver essa gente que não trabalha, passa os dias ouvindo aquele lixo de hip hop, reclamando da vida. Um fazendeiro pobre do Quênia ia dar graças a Deus se recebesse as mordomias dessa gente. O sistema é ruim, eu concordo. Mas quem realmente quer dá um jeito de se virar!”

Um bom termo para descrever as expressões da pequena plateia seria “pasma”. O organizador do evento, num misto de surpresa e indignação, levantou a mão para falar.

“Voce não acha que antes de afirmar coisas sobre os EUA você deveria conhecê-los um pouco melhor?”

“Vocês elegeram um presidente negro. Até quando vão se fingir de vítimas? Sim, eu sei: a eleição de Obama foi uma das maiores catástrofes da história americana. No Quênia acompanhamos tudo de perto, porque o pai dele era de lá, e todo mundo idolatrava o Obama. Até as boas irmãs que me davam aula falavam dele com esperança. Coitadas; são todas tão boas, mas ingênuas como crianças! Eu sabia melhor; aquele muçulmano ateu traria ruína para os EUA e vergonha para o Quênia. Organizei com algumas amigas um rosário coletivo no dia das eleições, pedindo a Deus que não permitisse esse escândalo; infelizmente 
Ele tinha outros planos.” Fim do simpósio.

Como uma pedrinha que cai num lago e irradia ondas suaves, um burburinho foi se espalhando pelos corredores de Harvard nos dias que se seguiram. Será mesmo? Pode ser verdade? E logo com a Vazulla! Nada além de boatos maldosos e pouco confiáveis.

Na sexta-feira da segunda semana, algumas pós-graduandas, dentre elas duas orientandas da Professora Nyolg que Zelda já conhecia, se ofereceram para levá-la até seu apartamento. Marjorie Bawls, chefe informal da patota e ex-favorita da Professora Nyolg (antes da chegada da africana), e quem empurrava a cadeira de rodas, perguntou como quem não quer nada durante aquele passeio pelos jardins do campus:

“Zelda, ouvi dizer que você tem opiniões... peculiares sobre o Obama. Você não acha que a eleição de um presidente afro-americano foi uma grande conquista?”

“Pouco me importa a negrura da pele dele; meu problema é com a negrura de sua alma. Por outro lado, ao menos vocês não elegeram uma mulher!” Zelda riu-se do ridículo da ideia.

“Você acha que eleger uma mulher daria munição para os sexistas dizerem que já temos igualdade? Seria um passo atrás em nossa luta?” Perguntou Marjorie. Ela já esperava, e já torcia, pela resposta.

“De que luta você está falando, Marge? A luta de toda mulher direita é encontrar um bom marido, ajudá-lo a crescer e formar muitos filhos decentes. Os filhos são sua glória. Se além disso trabalhar, tanto melhor. Mas que não fique invejando as posições masculinas. A mulher não foi talhada para a liderança.”

Ruth Bittermann, membra do grupinho e que entrara na pós no semestre anterior, estava indignada e pensava em como responder. Ficar indignada era seu passatempo favorito. Como podia Zelda pensar daquela maneira? Ela não era lésbica? Como ousava falar assim? Marjorie estava em silêncio, e parecia ser a única que estava confortável, até satisfeita, com as opiniões da africana. Ao ver a amiga novata fazer menção de falar, sinalizou discretamente que  guardasse sua indignação, ao que Ruth prontamente obedeceu. Mais tarde naquele dia as duas conversaram sobre o ocorrido:

“Devemos avisar a Professora Nyolg? Segunda-feira tem o Forum LGBTTTDST; ela não pode dar a palestra principal!” Disse Ruth.

“Você tem muito a aprender, Ruthie. Eu acho que o Forum será um momento excelente de troca de experiências. Não é para isso que estamos aqui? Não fale nada com a professora, pelo seu próprio bem. Ou você acha que ela verá com bons olhos a sua tentativa de imperialismo cultural?”

“Tem razão.”

Na segunda-feira do evento, todo o departamento de Estudos de Gênero, Mulher e Sexualidade, corpo docente e discente, estava presente para ouvir o depoimento de Zelda, uma homossexual que vivera na pele o preconceito de um mundo conservador e machista. Também vieram professores e alunos dos Estudos Africanos, da faculdade de Ciências Políticas, da História e da Filosofia. A Professora Nyolg ciceroneava sua estrela, apresentando-a a diversas personalidades da academia; sentia-se no topo do mundo. Na hora da palestra, sentou-se ao lado de Zelda, cuja cadeira de rodas estava sobre um tablado elevado com um microfone à frente. Todos na plateia comentavam entre si o privilégio de estar ali, e os fatos tenebrosos da vida da jovem africana; muitos partilhavam aquele momento nas redes sociais, clicando ansiosos nos mini-teclados de celular. Zelda começou sua fala sem esperar pelo silêncio.

“A mais pesada das minhas cruzes é o vício homossexual.”

E o silêncio se fez.

“Não conheço suas causas, mas imagino que seja resultado dos abusos que sofri quando criança nas mãos de alguns homens muito maus. Eles deformaram minha personalidade, e agora é tarde para mudar. Os homens me inspiram medo, insegurança, rejeição. Atraio-me pelo conforto, pelo carinho e pela delicadeza do sexo frágil. Nunca conhecerei a verdadeira alegria feminina de idolatrar, de servir e ser dominada por um homem viril, um herói conquistador.”

Como que dando escape a uma pressão insuportável que se acumulava na plateia, uma voz bradou indignada: 

“Que absurdo é esse??” – Zelda viu o autor do protesto, um desses obesos ambíguos, que não se sabe dizer se é homem ou mulher. Continuou o/a indignado/a: “Isso é algum tipo de piada com a nossa luta?”

“Meu amigo – Respondeu Zelda –  lute pela castidade! Serei sincera: eu vivo esse dilema todos os dias. Será que o caminho para alguém como nós é aceitar nossa condição inferior e procurar a felicidade que nos é possível ou devo oferecer meu sexo como um holocausto agradável a Jesus Cristo?”

Zelda não era boba. Tinha percebido desde os primeiros dias o abismo que existia entre ela e todos os outros. Com essa confissão sincera e ponderada, longe dos clichês conservadores com os quais ela aos poucos ia sendo associada na mente dos colegas e professores, imaginava ganhar os corações da plateia antagônica e o s faria entender seu ponto de vista, quem sabe dissuadindo alguns daquela bobajada infantil de “Movimento”.

O silêncio inicial deu lugar a uma falação ansiosa. Primeiro ouviram-se algumas vozes de descontentamento provocador. Os mais tímidos, encorajados pela manifestação dos extrovertidos, também começaram a conversar e vaiar. “Nunca ouvi algo tão nojento em toda a minha vida!” Em poucos segundos só se ouviam gritos, palavras de ordem e assobios. Uma latinha de refrigerante foi jogada no palco; em seguida, um copo menstrual. Um dramaturgo gay, velho e desbundado, deu um berrão escandaloso e rasgou a própria camiseta. A gritaria subiu ainda mais e dominou o espaço completamente; palavrões foram ouvidos, entre eles a n-word; Zelda chegou a temer por sua segurança.

Por sorte, no meio da algazarra insana uma das professoras de crítica literária feminista tentou subir nas cadeiras para chamar a atenção de Zelda e esfregar na cara dela o subtexto patriarcal daquele discurso horroroso. Só que, destreza motora não sendo seu forte, ela se desequilibrou e caiu em cima de um estudante negro que filmava a confusão em seu celular, e, meio sem perceber, empurrou a professora que caía para o lado para que ela o derrubasse. Humilhada ali no chão, os óculos quebrados, ela se levantou, apontou o dedo para o jovem e gritou para quem estava em volta: “Eu sou mulher e este homem me violentou!”. “Você está louca?” Retrucou o rapaz. Poucos minutos depois todo o salão estava polarizado entre os dois campos: os que acusavam o estudante de estupro e os que acusavam a professora de racismo. Zelda, aliviada por ter sido esquecida, saiu discretamente do auditório. Ninguém se ofereceu para empurrá-la, e ela voltou para casa sozinha, sentido seu primeiro gostinho do gelo departamental que a acompanharia pelo resto da graduação.

Apenas dois espectadores mantiveram o silêncio durante toda a comoção. Marjorie Bawls  contemplava tudo de pé, perto da porta do auditório, e previa seu retorno ao topo que lhe era de direito. Já a Professora Nyolg continuava em sua cadeira ao lado do palco, branca como giz, petrificada, de olhar ausente. Repensava mentalmente toda sua estratégia de manutenção do poder e de garantia das linhas de financiamento dentro da faculdade. Uma carreira de movimentos milimetricamente calculados, de aparências impecáveis, estava agora, por causa umas míseras frases de uma nova aluna, em perigo de se dissolver. Tentando entender o que se passara, juntando as peças daquele quebra-cabeça que poderia ser o fim de seu reinado, a ficha finalmente caiu. O silêncio da menina, os comentários hostis, os boatos que ela ouvira de outros alunos e de alguns professores, as saias africanas, a Ave Maria rezada antes do círculo de leitura de Alice Walker da quarta-feira. Não dava para negar o óbvio: Zelda Odumbe, mulher, africana, negra, homossexual, sobrevivente de estupro, genitalmente mutilada, soropositiva e deficiente física era também uma reacionária filha da puta.

Apesar de ter sido cortada dos velhos círculos, Zelda não desanimou. Seus estudos prosseguiram sem grandes tribulações, mas também sem as grandes esperanças iniciais. Ela logo se enturmou com os conservadores de Harvard, e teve bons momentos de descontração com eles. Doía-lhe, no entanto, constatar o quanto estavam infectados pela cultural liberal. Enfim, era o melhor possível dentro das condições e ela se contentou com o que se lhe oferecia. Foi junto deles, já no início de 2011, que ela redigiu um abaixo-assinado a ser enviado ao presidente Obama, pedindo que declarasse guerra a todos os governos islâmicos do Oriente Médio, África e Sudeste Asiático. “Estamos convictos – concluía o documento – de que uma nova Guerra Santa contra os centros de poder dessa religião sanguinária nos trará grande mérito aos olhos de Deus e será a glória da nação americana pelos séculos vindouros.”

O abaixo-assinado foi mencionado em jornais regionais como prova da perigosa radicalização do pensamento da direita. A diocese católica de Boston aproveitou para distanciar-se do documento, afirmando numa breve nota destinada às universidades locais que “[o abaixo-assinado] não representa a hermenêutica de alteridade que a comunidade eclesial, entendida não mais na clave de substância hierárquico-dogmática, mas de carisma ecumênico-pastoral, propõe, testemunha e profetiza ao múnus dialógico – a um tempo autônomo e heterônomo – da modernidade pós-habermasiana, inserida na jornada kerigmática de comunhão mútua da civilização ocidento-oriental.”

Passou mais um ano. A graduação de Zelda chegava ao fim. Ajudada por amigos ligados à alta esfera do Partido Republicano, conseguira a nacionalidade americana. Nos últimos meses, contudo, estava meio solitária; a dificuldade de conseguir um emprego e a barreira que a impedia de entrar na vida acadêmica a atormentavam. Por via das dúvidas, já havia se informado sobre a inscrição no welfare. Nem suspeitava que alguém voltara a se interessar por ela. A Professora Nyolg, tendo restabelecido sua reputação como autoridade máxima em questões de gênero e sexualidade (o que requereu nada menos que identificar conotações patriarcalistas nos escritos tardios de Andrea Dworkin), passou a ter por sua ex-pupila aquele que ela considerava o mais virtuoso dos sentimentos: pena. 

A pobre menina viera da África, do esgoto do imperialismo ocidental, e ela esperara o quê? Que a conscientização dos primitivos fosse fácil? Doce ilusão pequeno-burguesa, crer que meia dúzia de simpósios bastaria para libertar uma mente de séculos de opressão. Nasceu na professora o desejo de reatar o contato com Zelda, que devia estar para se formar. Quatro anos de Harvard teriam tido algum efeito naquela cabecinha. E se Harvard fora ineficaz, a pressão da realidade não seria. Com o gelo imposto sobre Zelda, e com a economia no estado atual, a menina devia estar em apuros para conseguir um emprego; estaria no melhor interesse dela repudiar os erros do passado e voltar à mentora que num ato de generosidade lhe abria os braços e as portas da academia. Mandou-lhe um e-mail caloroso, como se a relação das duas andasse nos melhores termos, perguntando como ia a graduação e se estava envolvida em algum projeto excitante. 

No dia seguinte chegou a resposta.

Querida Professora Nyolg,

Sua mensagem não poderia ter vindo em melhor hora.  Não posso mentir: minhas perspectivas não são das melhores. Vejo-me muito em breve com um diploma sem valor e sem meios para sobreviver na selvageria do mercado. Para completar meu infortúnio, fui oportunisticamente abandonada por supostos “amigos”.

Foi só recentemente que percebi os equívocos de tantas de minhas posições antigas. Quanto a projetos excitantes, bem, minha transformação ideológica está ligada a um projeto político pelo qual talvez você se interesse.

Acho que estamos de pleno acordo quanto ao capitalismo tardio ter atingido seu grau máximo de degradação. Mas poucos atentam para a base política que permite esse estado de coisas: o princípio maligno da democracia. Foi sob esse ídolo enganador, cuja perpetuação está estranhamente associada ao judaísmo e ao espírito semítico em geral, que nasceram e proliferaram os males que nos trouxeram ao pandemônio atual.

Sendo assim, a única medida sensata que resta ao país é repudiar o crime satânico que foi a Independência e se oferecer em humilde vassalagem à Rainha da Inglaterra, desde que ela aceite: 1) abolir o Parlamento e restaurar todas as suas prerrogativas monárquicas (como chefe suprema das Forças Armadas, não deve ser difícil) e 2) realinhar a Igreja da Inglaterra ao Sumo Pontífice, já que a Igreja Romana é a cabeça espiritual, moral e política do Ocidente.

Creio que as vantagens para a Coroa inglesa são tão patentes que será fácil persuadi-la. Resta convencer uma parcela significativa da opinião pública americana para que possamos enviar um abaixo-assinado ao "presidente". No caso dessa alternativa se revelar inviável (é importante manter os pés no chão), partiremos para a restauração violenta do Poder Real.

Posso contar com seu apoio?

Pelo Trono, Pela Espada e Pelo Altar,

Zelda Odumbe

PS: Peguei no ano passado alguns volumes da obra completa de Julius Evola, mas esqueci de devolvê-los. Você poderia usar suas conexões para apagar o registro desse atraso no sistema da biblioteca? Não se preocupe com as implicações morais e legais do ato; sendo nosso atual estado político completamente ilegítimo, nenhuma instituição que aceite o usurpador na Casa Branca pode emitir regras vinculantes.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Um Belo Monte de Falácias

A usina de Belo Monte é daqueles dilemas perigosos, quase insolúveis. A quem aliar-me-ei? A Dilma e Lula ou a Sakamoto e Eliane Brum? Escolha cruel! Em um texto recente me declarei levemente a favor da usina. Agora, tendo conversado com algumas pessoas mais bem-informadas e lido um pouco mais sobre o tema (ou seja, tendo lido algo ao invés de nada), meu posicionamento é diametralmente oposto: estou levemente contra.

Nunca esperaria andar de mãos dadas com Sakamoto, levantando a mesma bandeira. A coluna dele sempre funcionou como um guia infalível para minhas próprias opiniões: se eu estava incerto sobre alguma questão, era só ir ao Sakamoto, lê-lo, e afirmar o oposto. Curiosamente, no caso atual essa lei ainda vale. Pois, embora concorde com os ilustres articulistas (para não falar dos globais) nas conclusões, seus argumentos não me convencem. Então, antes de defender minha mudança de posição, vou expor os motivos que definitivamente não tiveram nada a ver com ela.

O primeiro é o ambiental. Não que eu seja contra o meio-ambiente; mas, ao contrário do que propaga certa ala do movimento ambientalista, aqui também deve vigorar a análise de custo-benefício. Talvez alagar uns 400 km2 de floresta para gerar muita energia valha a pena, ainda mais considerando que a Amazônia tem milhões e milhões de quilômetro quadrados e a área alagada é minúscula mesmo se comparada ao total desmatado por ano. Além disso, ao contrário das usinas termelétricas, o dano ambiental das hidrelétricas é local e perfeitamente mensurável. É algo que pode ser internalizado e seu custo calculado; isto é, isso seria possível se os recursos em questão (rio, floresta) fossem propriedade privada. Minha opção energética favorita ainda é a nuclear, mas dado o potencial hídrico do Brasil, parece estupidez não usá-lo só porque ele traz algum dano ambiental. Tudo traz algum dano; a questão é sempre saber se os benefícios o compensam. E o dano em questão é pequeno.

O segundo motivo que não me convence são os índios. Ele poderia me convencer. Considero que ideias de políticos ou industriais (ou filósofos, for that matter) sobre o "bem comum" não são mais dignas de respeito do que a propriedade privada. E, portanto, se um pequeno fazendeiro não quiser de jeito nenhum, por nenhum valor ou proposta, abrir mão de sua terra para que uma nova mega-rodovia passe, então ela que dê a volta. O mesmo valeria com os índios. Se eles, que são os donos de suas terras, não quiserem de jeito nenhum sair de lá ou cedê-las, ninguém tem o direito de inundá-las. Mas sei também que os índios são tratados como uma classe à parte, e que uma opção básica como oferecer alguns milhões de Reais para que eles liberem parte de suas posses não está na mesa. Claro que há questões sobre a propriedade das terras indígenas: quem seria o dono? Só cacique? Cada habitante é dono de uma pequena área da reserva total? A reserva é propriedade societária em que cada índio é acionista? Haveria muito o que discutir, mas o problema não é irresolvível. E suspeito fortemente que, se uma solução pragmática dessas estivesse na mesa (para horror dos antropólogos), muitos índios não pestanejariam em fazer um bom negócio. Enfim, do jeito que a questão do índio e outras populações locais é tratada, é difícil saber o que é interesse deles (dos indivíduos; não das classes, entidades fictícias) e o quê é demagogia disfarçada de discurso sociológico. E portanto a insistência deles em ficar lá não me soa convincente. Talvez com mais leituras eu mude de opinião neste ponto.

O terceiro motivo que não me convence é o de que essa eletricidade nova visa a suprir as necessidades de uma indústria que exporta matéria-prima ao invés de bens com alto valor agregado, e que isso seria ruim para o país. Não vou tratar longamente dessa questão. Que apenas conste nos autos que ela não faz sentido econômico algum (as trocas são sempre de valor por valor; se nossa exportação é de 1000, então o que podemos importar mais nossa poupança em moeda estrangeira também vale 1000) e que, a título de exemplo, a Nova Zelândia é país rico e só exporta bens de "baixo valor agregado". Uma variante desse argumento diz que o próprio crescimento industrial e do consumo é ruim, e que deveríamos, isso sim, reduzir nosso uso de energia. Para quem considera a pobreza um valor, deve ser convincente; não é meu caso.

Por fim, o último argumento furado é o de que "poderíamos perfeitamente usar energia eólica e solar para suprir nossas necessidades." Quem diz isso deve achar que vivemos numa história em quadrinhos; que existem alternativas eficientes e perfeitas ao problema energético mas que alguns vilões da grande indústria querem poluir o céu, serrar árvores e matar índios. O governo Dilma pode ser mau, mas sua maldade é algo mais razoável do que os planos maléficos de um Lex Luthor ou um Dr.Von Doom. Deve haver um motivo razoável para seu carro ter um tanque de gasolina e não um catavento.

E agora chegou a hora que todos esperavam! Vamos ao argumento que me convenceu; o grande anti-clímax do artigo. Dado o custo sempre ascendente da nova usina (que com certeza superará os atuais 30 bilhões, referentes apenas à obra em si e não a vários outros custos associados a seu funcionamento; e mesmo o custo da obra há de subir, como sempre sobe), e, o que é mais importante e poucas vezes mencionado, os custos extras de transporte dessa energia e a perda que esse transporte ocasiona, ela é uma opção pouco eficiente. Tiro meus dados deste artigo que me foi indicado e que foi, até agora, o mais transparente e esclarecedor que encontrei, pois cita os componentes do cálculo do custo do MWh (embora não explicite a fórmula); imagino que não seja unânime, e por isso minha opinião não é uma certeza.

Se Belo Monte é de fato uma opção pouco eficiente, então o governo deve ter um outro objetivo ao construí-la (para além do favorecimento dessa ou daquela grande construtora, que poderia se dar com qualquer obra): um plano de desenvolvimento industrial da região. Se uma região não tem quem queira, voluntariamente, financiar a construção de indústrias, deve haver um bom motivo para isso: os ganhos não superam os custos. Sendo esse o caso, é melhor que a indústria não se estabeleça ali, pois os recursos gastos para isso não serão compensados pelo valor criado. Sou contra todo e qualquer plano de desenvolvimento industrial do governo, seja ele qual for. Pois se ele precisa do governo, então não é, do ponto de vista da própria sociedade e das informações disponíveis, um bom uso dos recursos. Esse capital tem melhores aplicações em outras áreas, mesmo energéticas.

A bem da verdade, também me oponho ao governo controlar e determinar a produção e distribuição de energia. Deveria ser tudo privatizado e liberalizado: produz energia quem quer, onde quer, e a vende por quanto quiser. Mas, dado que no contexto atual essa possibilidade não está em jogo, que o governo ao menos produza e distribua energia da forma mais eficiente, atendendo às demandas do mercado (isto é, da produção de valor e dos desejos da população), e não utilize essa sua prerrogativa para levar adiante planos geopolíticos e industriais que sempre redundam em mais poder para si e seus protegidos.

E é por isso, Dilma, que nossa breve aliança deve chegar ao fim. Sou a favor de uma política energética que vise permitir o crescimento (real) da economia e evitar apagões (e que é, portanto, assunto para técnicos, não para plebiscitos), e não alimentar os sonhos loucos de políticos que se vêem como capitães e artífices das sociedades, coisa que não são e nunca poderão ser.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O que é a Igreja

Acho que ao voltar da Missa fico num estado de espírito demasiado... eclesiástico. Nada melhor para me purgar e voltar ao meu velho estado de espírito laical do que escrever aqui. Este texto será parte informativo (sorry!) e parte pessoal/opinativo, como convém a um blog. Tratarei de um tema ligado à religião cristã - o que é a Igreja - mas de um ponto de vista particular meu que, embora convicto de que seja plenamente ortodoxo, não creio ter visto em outros lugares (embora ele quase com certeza esteja exposto, e melhor exposto, em outras fontes que eu desconheça).

O que é a Igreja? Sim, falo dessa instituição que todos vêem, com papa, bispos, padres, prédios. O que ela tem a ver com a relação da alma com Deus?

História do mundo em 5 frases: o homem foi criado para ser feliz neste mundo. Infelizmente, no começo de sua existência se separou de Deus, que era a fonte de sua felicidade. Como consequência disso, ficou impossível para ele a felicidade para a qual foi feito: a falibilidade e a mortalidade, próprias de animais como ele mas das quais era privado pela dignidade superior de sua alma racional, tornaram-se parte de sua natureza. A razão ficou submetida e em desarmonia com nossa estrutura animal/passional, e cá estamos: incapazes de alcançar o potencial que vislumbramos neste mundo e com tempo limitado de estadia aqui. E depois da morte, o que pode uma alminha feita para incorporar-se fazer solta por aí?

MANS, Deus tinha outros planos, e compensou nossa queda com algo melhor do que teríamos originalmente: a possibilidade de se unir a Ele depois da morte, alcançando assim um estado infinitamente superior ao que nossa natureza anseia. Para completar as coisas, Ele ainda promete, no fim dos tempos, mesclar nossa felicidade terrena e corpórea original à felicidade divina da união com Ele, com o mistério denominado "ressurreição da carne"; ou seja, todos as almas humanas voltarão a ter corpos.  

Essa segunda parte foi efetuada pela Encarnação do próprio Deus, que se fez homem na pessoa de Jesus Cristo. Agora, como especificamente, e por que motivo, a tomada da natureza humana por parte de Deus permite essa nossa nova união com Ele, embora seja dos problemas mais discutidos da teologia cristã, é algo que deixarei aberto. Apenas tomemos o fato como dado e sigamos em frente.

A mudança interna que ocorre na pessoa para que ela passe a amar a Deus e direcionar tudo para Ele é um resultado de dois princípios: a graça de Deus - ou seja, a ação de Deus na alma sempre incitando-a no caminho do bem - e a resposta da alma a essa graça. Ocorre que, para estender a todos os homens a possibilidade de se unir a Deus, de contemplá-lo eternamente depois desta vida, Deus quis instituir alguns canais públicos e comuns para a ação da graça: os Sacramentos.

O Sacramento é antes de tudo um sinal. Mas não é só um sinal. É um sinal eficaz. Um sinal é algo que indica alguma outra coisa, como uma letra indica um som. No caso da letra e do som, o sinal não é eficaz, isto é, ele não produz o som que ele significa. Já um aperto de mãos numa aposta, que simboliza o acordo de duas vontades, é um sinal eficaz, pois é ele próprio que torna a aposta vinculante (salvo alguma cruzada marota de dedos). O Sacramento é um sinal eficaz da graça de Deus que ele simboliza (por exemplo, o Batismo realmente purifica a alma do pecado original - que é nossa separação inicial de Deus; o Matrimônio realmente une as duas pessoas no vínculo conjugal). Mas não são os gestos e as palavras humanas que produzem por si mesmos a graça (o que seria magia), mas Deus que se compromete a enviar sua graça especialmente por esses sinais instituídos que Ele legou aos homens.

O primeiro de todos os Sacramentos é o batismo, pelo qual a alma é purificada e se une a Deus; o nascimento espiritual do cristão. A Igreja, aqui na Terra, é o conjunto de todos os batizados. Em outras palavras, comete no mínimo uma imprecisão quem se refere ao clero ou ao alto clero como "a Igreja" enquanto ele, mero fiel, é alguém que obedece a Igreja. Todo fiel é membro constituinte da Igreja, tanto o leigo quanto o Papa (embora suas funções sejam diversas). Aliás, curiosamente, são membros da Igreja até mesmo os batizados não-católicos (ortodoxos, protestantes que têm batismo e outros grupos).

Para ministrar a maior parte dos sete Sacramentos, Deus quis que houvesse uma classe sacerdotal de fiéis. Em certa medida, todo fiel é sacerdote, isto é, tem uma relação direta com Deus por meio de Cristo. No que diz respeito a ministrar os Sacramentos, contudo (à exceção do batismo - que pode ser ministrado por qualquer um, mesmo por um não-batizado - e do casamento, que é ministrado pelos próprios noivos), apenas os fiéis dessa classe sacerdotal podem fazê-lo. Por que Deus quis assim? Um motivo que me vem à mente é sublinhar a distinção de funções e de talentos da Igreja, na qual nenhum membro é auto-suficiente. Um dos Sacramentos, a Ordem, visa exatamente tornar o indivíduo apto a ministrar os Sacramentos.

Além dos Sacramentos, outra coisa necessária aos homens é preservação do conhecimento dessa obra salvífica que Deus realizou na História e o que Ele nos revelou sobre si e nós. Precisamos conhecer a verdade sobre a condição humana, o objeto de nosso amor, conhecer os meios para chegar a Ele. Por isso, a essas pessoas que ficam com a responsabilidade de ministrar os Sacramentos cabe também o dever de preservar e comunicar esse conhecimento da Fé sem que ele se corrompa.

E é isso. Todo o clero serve para servir a Igreja dessas duas maneiras: ministrar os Sacramentos e preservar (ou seja, estudar) e ensinar a Fé regularmente. Todo o resto decorre disso ou auxilia nisso. O que se costuma chamar de Igreja é essa parte da Igreja com essa missão específica. Eles não estão lá para serem servidos, mas para servir (a Deus e aos homens), o que fazem com maior ou menor devoção. Uma parte essencial, mas que não deve nunca ser confundida com o todo.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

A USP sob a Lei do Mais Forte

Em movimentos altamente ideológicos, as reações aos eventos são determinadas antes mesmo que os eventos ocorram, e pouco dependem deles. Vejam a recente reintegração de posse que a PM fez do prédio da reitoria na terça de madrugada. Já havia uma reação preparada e ensaiada dos membros do movimento estudantil e simpatizantes: profunda indignação e denúncia escandalizada das agressões e abusos violentos cometidos pela PM. Mesmo que ela não os cometesse.

E de fato não cometeu. A operação toda se deu sem confronto algum e sem agressão física nenhuma. Opa Joel, como assim? Você não leu o DESABAFO da jornalista universitária Shayene Metri? Sim, sim, li o relato da menina que estava lá e que, depois de narrar os eventos da madrugada, conclui "Nada pode ser explicação pra violência gratuita, pro abuso do poder e, principalmente, pela desumanização da PM." Bom, algo muito tenebroso deve ter acontecido nessa reintegração de posse; ao menos cassetete na cabeça e bala de borracha no olho da galera. Imagens do Carandiru vêm à mente.

Ou eu estou esclerótico ou algo não bate. Pois no texto inteiro a pretensa jornalista isenta não relata um ato de agressão sequer. A única violência física da PM é perpetrada contra portas, cadeiras e cartazes de papel craft.

Tentei tirar fotos e gravar vídeos de uma PM que estava sendo violenta com o nada, para nada. Os policiais quebravam as cadeiras no carrinho, faziam questão do barulho, da demonstração da força. Os crafts com avisos dos estudantes, frases e poemas eram rasgados, uma éspecie de símbolo. 

Será que a indignação dela é pela violência contra o pobre e indefeso nada? Ou será pela beleza imortal que se perdeu naqueles poemas rasgados? Seja como for, a única violência relatada no texto é contra o nada, e não contra seres humanos.

Então a repórter mentiu? Não. Tenho certeza de que ela estava lá, viu tudo e relatou o que viu. Minha acusação é que - e isso é comum no jornalismo - ela não entendeu o que viu. E por não entender e não esperar a ação da PM, aquilo mexeu com ela de tal forma que a própria percepção dos fatos foi alterada a esse nível cômico de condenar algo que ela mesma não relatou.

Shayene Metri não viu a PM sendo violenta. Ela viu a PM agindo de forma a evitar a violência. A presença desproporcional de cavalos, carros e helicópteros, o invadir a reitoria de uma vez, o fazer barulho e gritar; são técnicas de intimidação. Se a PM intimida o adversário, consegue que ele se renda sem confronto, o que de fato evita o uso da violência contra ele. E se houvesse um confronto entre os 72 ocupantes e a PM, quem venceria? Pois então, a intimidação era para o bem dos próprios ocupantes, para dissuadi-los de cometer alguma burrada num arroubo de heroísmo revolucionário. Também era para o bem da PM, pois se aparecessem fotos de aluno machucado, com uma unha quebrada que fosse (que dirá cabeças sangrando) ia pegar muito mal para ela. Ainda bem que a PM usou da intimidação!

Será que a tática era necessária? Os alunos seriam burros o bastante para tentar alguma coisa? Há fortes indícios de que sim. Algumas noites antes tinham agredido repórteres (todo repórter adora sobre-valorizar o fato, como ocorre no link; mas que aconteceu, aconteceu). Na assembleia houve muitos que defenderam o confronto. Na madrugada da reintegração, conforme narra a própria Shayene, uma ocupante disse: "Se ele vierem vai ter confronto e isso já vai ser um tiro no pé deles". Estavam armados com coquetéis molotov. Em outras palavras, queriam o confronto, pois tinham plena consciência de que mesmo uma derrota física seria uma vitória com a opinião pública. A polícia agiu exemplarmente: desarmou a estratégia maquiavélica dos invasores com a mais eficaz das armas: o medo primal, e os mesmos que horas antes sonhavam com o combate sangrento corriam em desespero e se prostravam em rendição segundos depois da PM chegar.


Ontem, dia 09/11, estive na Filosofia e assisti ao depoimento do Leo, um dos 72 ocupantes (já estão todos em liberdade), e ele foi bem claro e honesto: não sofreu qualquer tipo de agressão policial e nem viu nenhuma agressão contra outro ocupante. Conforme seu relato, os homens e as mulheres foram separados (ainda na reitoria), e aparentemente algumas das meninas xingavam e tentavam agredir o cordão de policiais dentro do qual eram mantidas (policiais homens, mas havia duas PMs mulheres junto para supervisionar). Uma dessas ocupantes começou a berrar incontrolavelmente e por isso foi imobilizada e colocaram na boca dela uma mordaça esférica. Assim, vê-se a mentira deslavada que foi a denúncia inicial dos ocupantes detidos acusando agressão da PM (em termos genéricos, claro, sem qualquer indicação concreta). Talvez no mundo imaginário deles ficar sentado fazendo assembleia num ônibus seja agressão e tortura; afinal, trata-se de gente para quem a operação da polícia "lembrou os tempos mais sombrios da ditadura militar". Note-se que os autores da denúncia nasceram já no período da democratização.  


Em suma, a estratégia da PM era boa e ela agiu de maneira exemplar. Não houve violência policial, não houve abuso de poder, não houve nada desumano. O que houve foi um grupinho de alunos com sonhos de heroísmo revolucionário, de grandes guerras por nobres ideais. Só que, como todos os estudantes da USP (eu incluso), é gente sem nenhuma vivência real de guerra ou violência. Por isso, à primeira gota de mundo real todas as ilusões de bravura deram lugar ao pânico. Entendo perfeitamente que a jornalista tenha ficado abalada e isso tenha distorcido seu juízo. Tenho mais dificuldade de entender como tantas pessoas (a julgar pelo número de facebookers que compartilharam), tendo lido o relato, aceitaram sua conclusão.


Para um exposé bem diferente da ocupação e da reintegração de posse, sugiro este site.   


***


Finda a ocupação, entramos no negócio mais entediante que é a greve, só para garantir que o fim do ano seja mais improdutivo do que já é por si só. É uma boa oportunidade para meditar sobre os fins e os meios do movimento estudantil.


Por que diabos, afinal, tanta ojeriza à PM? Em parte até simpatizo. Uma polícia que chega revistando pessoas que nada fizeram, tratando todo mundo como suspeito, é muito ruim para todos e, em si, não ajuda a segurança. Até aí, pode haver uma orientação aos PMs de como devem agir no campus para melhor garantir a segurança sem impor um policiamento hostil. A experiência da PM no campus é nova e pode ser melhorada. Eu preferiria a guarda local, ou uma empresa de segurança, mas talvez o grau do problema exija poderes policiais.


Qual é a grande diferença entre a PM e uma guarda numerosa, bem treinada e armada? (Pois tem que ser armada: a USP é gigante, cheia de mato, tem livre entrada, gente de alto poder aquisitivo e, como a experiência mostra, é palco regular de crimes.) Uma tem poder para revistar arbitrariamente; a outra não. Uma, se encontra drogas, leva pra DP; a outra não procura drogas e só as achará se elas lhe forem realmente esfregadas no rosto. Por mim, a PM deveria se ater a crimes violentos e deixar o consumo de drogas pra lá. Mas imagino que eles não queiram e nem possam agir assim. E se a escolha for entre uma USP insegura e com consumo livre de drogas, ou uma USP mais segura só que com transtornos ocasionais em busca de drogas, fico com a segunda. Alguma outra diferença relevante entre PM e guarda universitária? Não consigo ver, embora todos os militantes jurem de pés juntos que as drogas não têm nada a ver com sua oposição à PM.


Não! O problema é que a presença da PM nas ruas do campus inibe a produção científica dentro das salas e a livre discussão de ideias nas classes e nos bancos. WHA-?? É isso mesmo que você leu. Ou pelo menos é o que diz um outro texto de alunos da USP, dessa vez da Barbara Doro e do Jannerson Xavier da ECA, que tem sido propagado aos quatro ventos e tido unanimemente como certeiro e muito sensato. 


"A PM é instrumento de poder do Estado de São Paulo sobre a USP, que é uma autarquia e, como tal, deveria ter autonomia administrativa. O conceito de Universidade pressupõe a supremacia da ciência, sem submissão a interesses políticos e econômicos."

A forma como a PM submeteria a ciência a interesse políticos é mantida incógnita. E esse nem é o maior disparate do texto. Acho que foi a retórica de sensatez e imparcialidade dos autores que persuadiu os leitores de que o texto é de fato imparcial e sensato quando não o é de maneira alguma.

Seu único ponto com alguma relevância é a discussão de se a violência no campus diminuiu ou não depois da entrada da PM. Apresentam este gráfico. Supondo que os dados sejam verdadeiros, meu olhômetro até vê uma certa diminuição de junho de 2009 em diante, mas só seria possível afirmar alguma coisa com certeza depois de uma análise estatística. Eles poderiam pelo menos dar a média de crimes antes e depois (pegando obviamente períodos equivalentes: comparar parte alta do ciclo com parte alta, parte baixa com parte baixa), ou mostrar uma linha de tendência, mas nem isso. Muito menos uma análise de significância. Ficamos com um arremedo de argumento dos autores contra um espantalho óbvio mas que nem o refuta direito.

Discussões pontuais a parte, o texto afirma que condena os meios dos invasores (até aí tudo bem, mas já já veremos o motivo dessa condenação...), e aprova integralmente seus fins. E diz mais: esses fins são partilhados pelo grosso dos estudantes. Afinal, diferentemente dos gatos pingados dessa última invasão, esses ideais saíram vitoriosos de uma assembleia altamente representativa, com 3000 alunos.

Só o campus do Butantã da USP tem 50.000 alunos (a USP toda, mais de 80.000). Não sabemos quantos desses 3000 apoiaram os fins em questão (ninguém sabe: o voto das mãos levantadas é sempre no olhômetro). Temos, portanto, que menos de 3000 alunos concordam com os fins dos manifestantes. E devemos acatar a opinião deles porque foi decidida em assembleia. Essa mesma assembleia, num dia em que reuniu por volta de 500 pessoas, foi contra a ocupação da reitoria. Por isso os invasores devem ser condenados e considerados anti-democráticos.
"Portanto, os meios pelos quais o Movimento Estudantil se mostra (invasões, pixações, etc.) não são decisão de maiorias e, portanto, são passíveis de reprovação. Seus fins (ou seja, os pontos reais que são discutidos), no entanto, têm adesão muito maior, com 3000 alunos na assembleia do dia 08/11."
"Não são decisões de maioria e, portanto, são passíveis de reprovação." Há toda uma filosofia aqui. Uma das filosofias mais imorais da história, a de que o que determina o certo e o errado é a vontade da maioria. A isso, ao poder irrefreável da maioria, que é outro nome para a lei do mais forte, eles chamam democracia. Se a maioria quiser tocar fogo no campus, então o ato será louvável e democrático. A ocupação da reitoria foi obra de uma minoria, portanto condenável. Mas os ideais deles são apoiados pela maioria. O mais ridículo é que nem isso é verdade: em 3000 alunos, essa suposta maioria é ela própria uma minoria.

As ideias e desejos dos "estudantes" (como se coletivos fossem indivíduos com razão e vontade) são determinados por essas assembleias sempre minoritárias (em geral com algumas centenas de alunos), cuja organização privilegia quem não tem mais o que fazer (ou os militantes para os quais as causas revolucionárias do movimento são a única coisa a fazer) e pode passar horas e mais horas em reuniões infinitas e entendiantes no meio da noite. Que isso seja aceito pelas autoridades administrativas da USP como a voz legítima dos estudantes e digna de diálogo já é um respeito excessivo e indevido. Que piquetes, cadeiraços sejam considerados "manifestação legítima" é de uma tolerância maternal, e eles ainda insistem que são reprimidos. Pouco a pouco a invasão de prédio vai se tornando legítima também; a de 2007 abriu as portas para novas tentativas; a atual, com o fim feliz, espero que as tenha fechado novamente. Mas suponho que mudar os estatutos que instituíram tal estado de coisas seja quase impossível, e que portanto a única solução para o problema que é o movimento estudantil (cujos militantes - nem sempre estudantes - querem, entre outras coisas, imunidade legal para alunos e funcionários e eleições diretas pra reitor, ou seja, querem o poder de mandar e desmandar na universidade) é que as pessoas percebam gradativamente sua malícia e sua inutilidade e o ignorem. Tenho fé que esse processo já esteja em andamento!
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