sábado, 31 de agosto de 2013

A Misericórdia de Maomé e as Nossas Criancinhas

Chegou-me aos olhos recentemente uma interessante anedota retirada da tradição islâmica sobre a sabedoria e a misericórdia de Maomé. Reproduzo:
Uma mulher aproximou-se de Maomé e disse-lhe: “Cometi adultério; purifica-me” [Ela queria que Maomé a castigasse para que Alá perdoasse seu pecado e a deixasse entrar no Paraíso.] Maomé disse-lhe: “Vai-te embora e espera que nasça a criança”. Depois de a criança nascer, ela apareceu com o filho e disse: “Eis o filho que gerei”.

Maomé respondeu: “Vai e trata dele até ao desmame”. Quando ela o desmamou, voltou a Maomé com a criança que segurava na mão um pedaço de pão. [A criança provavelmente teria cerca de dois anos porque era esse o período de tempo prescrito pelo Alcorão para o desmame.]

A mulher disse-lhe: “Apóstolo de Alá, eis que desmamei a criança e ela já come alimento sólido”. Maomé deu a criança a um dos Muçulmanos e depois pronunciou a sentença. A mulher foi enterrada numa cova até ao peito e o povo apedrejou-a.”

- The Correct Books of Bukhari, lv. 17, nº 4206, In: Mark A. Gabriel. Jesus e Maomé: diferenças profundas e semelhanças surpreendentes. (http://www.ministeringtomuslims.com/downloads/Jesus%20and%20Maome.pdf)
Ao ler o trecho acima, nossa primeira reação é lembrar do episódio análogo no qual Jesus perdoa Maria Madalena proclamando: “Atire a primeira pedra quem nunca pecou”. A visão de tal modelo nos faz franzir o nariz para a suposta benevolência de Maomé. Aos olhos mais desconfiados a anedota causa até um leve risinho, como se fosse um exemplo irônico; como se revelasse, em verdade, a crueldade de Maomé. Convido vocês, portanto, a uma breve suspensão do juízo. Vejamos até onde podemos julgar o profeta.

Quando olhamos para este caso nossa tendência é pensar na mulher pecadora como o centro do problema – ela que será punida com a morte cruel. Mas notem bem, a anedota não é sobre a mulher e sim sobre filho que ela carrega no ventre. Tudo dá a entender que, caso ela não estivesse grávida, a sentença seria pronunciada e consumada imediatamente. No entanto, não existe só a pecadora ali. Dentro dela há outra pessoa que – apesar de muito provavelmente ser fruto do pecado – é inocente e merece ter sua vida preservada. Aqui já poderíamos começar a falar sobre a sábia percepção de Maomé, que – ao contrário de nossos muito eruditos juristas – vê no feto uma individualidade pessoal, digna dos direitos básicos (como o da vida) e inocente do crime de seus pais, neste caso o adultério (mas poderia ser o estupro, por que não?). Mas quero levá-los a outra reflexão um pouco mais inusitada.

Se fosse o caso de apenas preservar a vida do filho, Maomé teria pronunciado a sentença assim que a pecadora lhe apresentou o menino já nascido, mas não é o que o profeta faz. Ele a manda de volta, com a ordem de cuidar da criança até o desmame. Ou seja, até a idade em que a criança não dependa mais da mãe. Reparem que a mãe é uma pecadora, que pela lei deve ser apedrejada até a morte pois cometeu crime grave. Apesar de tal agravante Maomé não entrega o menino para uma ama criar. O profeta não busca alternativas, pois, uma vez que a mãe está presente, não existe melhor opção para a criança do que permanecer nos braços maternos. O profeta busca o melhor para a criança independentemente da condição da mãe. Sua percepção vai além da pessoalidade do feto e do direito à vida, abrange a natureza intrínseca aos primeiros anos infantis, onde o cuidado e o contato da criança com a mãe é fundamental e insubstituível. Incorrer-se-ia no risco de prejudicar a vida futura daquele pequeno caso o vínculo materno fosse rompido precocemente. Podendo-se evitar o malefício, evitou-se. Tendo isso em mente, daremos agora um longo salto de tempo e cultura, e pousaremos sobre nossas próprias cabeças: aqui na sociedade cristã do século XXI.

Foi publicada n’O Globo recentemente uma entrevista com a Sra. Hildete Melo, economista da UFF, na qual se reproduziu a seguinte frase: “O trabalho da mulher é ficar grávida e parir. E nem amamentar precisa, está aí a Nestlé. (...) A grande mudança é ter creche e escola funcionando em tempo integral. Já diminuiu a crença de que pôr a criança na creche muito cedo é abandono, a criança vai ficar mais doente. A psicologia reabilitou as creches.”

Agora, meu caro leitor, eu te faço uma pergunta sincera: você que torceu o nariz para a misericórdia de Maomé, que no fundo do coração o chamou de cruel e desumano após ler a anedota, do que você, meu amigo, chamaria a Sra. Hildete Melo? Se você ainda não se deu conta da gravidade do problema, eu explico.

Nossa sociedade, por meio de ideólogos e intelectuais, foi gradualmente banalizando a importância do contato entre mãe e filho na primeira infância ao ponto de podermos abrir um jornal de grande circulação nacional e ler a absurda, a inaceitável frase “o trabalho da mulher é ficar grávida e parir. E nem amamentar precisa, está aí a Nestlé.” Quando chegamos a esse ponto, acreditem, é porque algo de muito errado aconteceu nos caminhos de nossa civilização.

É difícil para mim sair na rua com minha filha de um ano sem ouvir a pergunta “ela já está indo para a escolinha?”. É ainda mais difícil simplesmente dizer “não” e voltar para a casa sem sentar o interlocutor num banco e explicar para ele que existe um equívoco muito grande em se esperar que uma criancinha de um ano esteja indo para a escolinha. Você que não vê nenhum problema em creches e escolinhas a partir dos três meses, deveria pensar um pouco mais em Maomé.

Contrariando o que a Sra. Hildete falou em sua entrevista, hoje em dia já existe um vasto estudo sobre danos que a “socialização” precoce causa nas crianças. Alguns deles estão referidos aí abaixo, mas quero, além disso, exercitar o bom senso com o qual fui presenteada por ser humana e analisar a situação de próprio punho.

Antes dos dois anos de idade a criança depende de que um adulto cuide dela completamente, e com a máxima dedicação possível. Ela precisa de tudo: de alimentação, de higiene, de aquecimento, mas além disso, e com a mesma importância, de acolhimento e de carinho. Vou mais longe, a criança nessa idade precisa ser o centro do mundo. Precisa se sentir especial, importante e amada. A criança nessa fase precisa sentir que o mundo a acolheu, que ela pode confiar na realidade, que pode se entregar à vida com a quase certeza de que as coisas darão certo. É aqui que se começa a construção do primeiro e mais duradouro vínculo afetivo, que se consolidará na figura da mãe. É também nesta fase que se cumprem as primeiras etapas psicológicas do desenvolvimento humano. É aqui que se cria a empatia, a noção de causa e efeito, do certo e errado, do eu e do outro. Tudo em germe ainda, mas tudo presente e com uma importância extrema para o crescimento saudável de um ser humano. Qualquer um que já tenha filho – principalmente mais de um – sabe por experiência como uma criança pequena demanda atenção. Ela quer os pais para ela, e quer o tempo inteiro. Quer que prestem atenção, que brinquem – ou até briguem – com ela. Ela precisa dessa atenção para se localizar no mundo; os pais são o suporte da realidade nos primeiros anos, são o meio pelo qual o mundo se apresenta à criança, e esta ao mundo. Agora vamos pensar no que acontece quando retiramos um bebê do colo da mãe e o colocamos, em período integral, na creche.

Para começar, lá ele encontrará muitas outras criancinhas. Com sorte haverá adultos experientes e dedicados, que tratarão de mantê-lo bem alimentado, limpo e longe de perigos por algumas horas por dia. Hoje em dia as crianças já chegam da creche jantadas e de banho tomado. Lá dentro o ambiente será controlado para que nada saia do padrão. A “tia”, por mais amorosa e atenciosa que seja, não poderá tratar cada uma das crianças como se esta fosse o centro do universo. Isso seria um paradoxo. As crianças serão tratadas como um grupo, pois afinal, é isso que são. Se a cuidadora expressar preferência por uma delas terá problemas, pois todas ali devem ser tratadas com o mesmo grau de atenção e cuidado. Assim, as outras crianças, muito mais do que “coleguinhas” de meses de vida, serão encaradas como obstáculos entre a criança e a atenção do adulto que dela cuida. Esporadicamente a “tia” será trocada por outra e qualquer tentativa de vínculo afetivo que o pequeno, desavisado, estivesse se esforçando para construir terá que ser refeita ab ovo. Na mente dessa criança, a imagem do mundo externo se construirá como um mecanismo do qual ela é apenas mais uma peça que deve comer tal hora, brincar tal hora, respeitar tais regras... Os vínculos afetivos serão sofríveis, para não dizer impossíveis. Ela definitivamente não se sentirá importante e amada, mas sim adequada ou inadequada em certas circunstâncias. Algo próximo da chamada “síndrome do orfanato” ou “do desapego”.*

Eu sei que o modelo social no qual vivemos exige que algumas mulheres entreguem seus filhos recém-nascidos a creches. Isso se dá por conta de inúmeros fatores, dentre eles a desestruturação da família, gerando casos de mães solteiras que precisam trabalhar para sustentar a si e aos filhos, e que não podem contar com a ajuda de ninguém nessa tarefa. Mas é mister ressaltar que existe uma diferença entre necessidade e cultura. Uma coisa é precisar recorrer a este recurso extremo como meio de sobrevivência, outra é ceder às exigências culturais, que cobram da mulher que seja produtiva, independente, bem-sucedida, e que as leva – em não raros casos – a voltar ao trabalho mesmo antes de vencer a licença-maternidade.

O profeta Maomé, há alguns séculos, percebeu a importância que havia em se preservar o contato maternal nos primeiros meses de vida do bebê, e o preservou mesmo diante de uma situação extrema, colocando o bem-estar do filho acima da lei. Nós, cristãos modernos da famigerada classe média, julgamos corriqueiramente não haver grande problema em afastar o filho da mãe, em período integral, antes mesmo do desmame, para que ela possa seguir em frente com a sua carreira e ajudar o marido a pagar o empréstimo da casa própria. Maomé não trocou a primeira infância daquele pobre inocente por um crime capital, mas nós trocamos, com um sorriso no rosto, a primeira infância de nossas criancinhas por poucas centenas de reais ao fim do mês. E, ao vermos mães que estão dispostas a dedicar-se aos filhos, as acusamos de estar “prejudicando” a “socialização” que ele obteria em uma creche, ou de estar “abandonando” a carreira e a vida – tornando-se assim quase uma vergonha para o gênero. Clamamos cada vez mais por escolas integrais e gratuitas desde os primeiros meses de vida. Queremos e incentivamos que outros tomem conta de nossos bebês. Que se criem mil semi-orfanatos para a glória da emancipação e da independência feminina!

E é com esta mesma cara que conseguimos nos indignar com a misericórdia de Maomé.

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*"La psicóloga Esther Herranz, de la Asociación para el Cuidado de la Infancia (ACI), que tramita expedientes de adopción en China y Filipinas, explica que la consecuencia de esta carencia afectiva "se produce cuando un niño crece sin recibir la atención que cualquier bebé requiere". "Un bebé desde que nace necesita cosas tan simples y tan básicas como que alguien le toque, le hable, le mire a los ojos, entienda sus 'señales' así como responder ante un lloro o balbuceo. Sin embargo, un niño que está en un orfanato no va a tener esa respuesta inmediata porque lo normal es que las atenciones que reciba sean muchas menos que en un hogar y, además, muy automatizadas, es decir, a todos los niños se les da el biberón o se les cambia el pañal de la misma manera", describe. (...) El establecimiento de este vínculo se produce alrededor de los ocho meses. Herranz precisa que "a esta edad, el niño tiene que haber experimentado ya que es especial para alguien, que se siente protegido, que hay un entorno cálido que le va a ayudar cuando tenga una necesidad". Ése es el momento crítico en el que se establece el vínculo afectivo". http://www.consumer.es/web/es/solidaridad/derechos_humanos/2007/01/19/159126.php

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Vídeo em que o pediatra José Martins Filho fala sobre a importância da criança não ir para a creche e ficar com a família nos primeiros dois anos de vida:
http://www.prioridadeabsoluta.org.br/os-primeiros-mil-dias-das-criancas-jose-martins-filho/

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No mesmo dia que concluí o texto, Rafael me apareceu com este memorável trecho de “A Origem da Linguagem” de Rosenstock-Huessy, que eu não poderia deixar de reproduzir como apêndice aqui:

Jamais nenhuma criança estará em paz se não significar tudo para alguém e se esse alguém não lhe dirigir a palavra como se ela fosse a única criança sobre a Terra. Dias atrás, uma psicóloga moderna assumiu a direção de um jardim-de-infância de Nova York. As mães tinham passado a revezar-se no cuidado das crianças, gostando muito da experiência. Irada, a psicóloga ensinou às pobres mães que elas não conseguiriam deixar de ser imparciais, e que daí sobreviriam ciúme, inveja e complexos; fê-las voltar para casa com a sensação de sua pequenez e subjugou o jardim — onde havia crianças de três e quatro anos — à objetividade de sua psicologia. Somos tão civilizados, que ninguém se prontifica a bater numa pilantra desse tipo; no mundo moderno, essa psicóloga é festejada, e as mães recolhem-se. Toda a etapa da vida em que uma criança ouve, enlevada, a voz de alguém que não pensa senão nela, e portanto não se importa com mais ninguém, é suprimida por essa mentalidade fabril. Em verdade, com todo o seu jogo, o psicólogo profissional é o pior dos casos de problema psicológico: é um animal sedento de poder, uma ave de rapina, gramaticalmente um ego, com as crianças a servir-lhe de “ids” objetivados. (...)
Qualquer educador pode ser dotado de justiça, equidade, prudência e honestidade. Mas a maior parte dos educadores é treinada por psicólogos que abominam a exclusividade e proclamam que é pecado dizer "Ama-me" e "Amo exclusivamente a ti", e tenta fazer as crianças viverem o segundo nível das relações pessoais antes de terem experimentado o primeiro nível, o das relações exclusivas e pessoais. Esse preconceito contra a invocação exclusiva está destruindo a saúde gramatical do homem. Nunca responderemos com toda a energia a um chamado que não nos singularize. O grau de resposta está na proporção direta do grau de exclusividade do chamado dirigido a nós. A perversidade da psicóloga de Nova York é a mesma de todos os demônios: evitar a encarnação de pessoas reais. Ela não sabe que a exclusividade é a base da resposta de uma alma. Vê apenas o risco de algumas crianças serem tratadas melhor que outras. (...) Certamente nenhum psicólogo pode cometer os erros fatais de uma mãe ciumenta. Mas nenhum profissional que lida com dúzias de crianças pode adquirir a qualidade que até a pior mãe tem por graça de Deus: ele não pode falar, pensar e agir como se o filho fosse seu.

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Nota final de esclarecimento: Este texto foi escrito para falar sobre os problemas decorrentes do afastamento entre mãe e filho nos primeiros meses de vida. Isso não significa que (1) eu concordo com a condenação da mãe por Maomé, e que sou a favor da pena de morte ou do apedrejamento de mulheres, (2) que eu sou contra a existência de orfanato para órfãos que, óbvia e infelizmente, não têm mãe, (3) que estou criticando absolutamente a ida de crianças para a creche em qualquer outra fase da infância.

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Alguns artigos que falam sobre os problemas da socialização em grupo durante a infância:

sábado, 24 de agosto de 2013

Elementos da filosofia de Olavo de Carvalho



Notas para uma leitura de “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota” (Record, 2013)

I. A obra de Olavo de Carvalho possui uma intuição fundamental: a de que só a consciência individual é capaz de conhecimento (1). O que a afirmação possa ter de banal, em aparência, se esvai se notarmos que aí se fala de “consciência individual”, não se tratando tão somente de “sujeito”, o vocábulo descarnado de uso corrente na metafísica dos últimos séculos. Uma coisa é sujeito enquanto meramente contraposto a objeto em teoria do conhecimento; outra coisa é a modalidade de existência histórica de um ser dotado de consciência, que por definição só pode ser individual. E nisso importa prestar atenção à sutileza vocabular porque aí se afirma uma substância e se afirma uma sua propriedade: “consciência individual”, a primeira, e “capacidade de conhecimento”, a segunda. De um ponto de vista biográfico, a substância atualiza essa sua propriedade em um trauma de emergência da razão (2), que consiste no descompasso entre o crescente acúmulo de experiências do indivíduo, no decorrer do tempo, e a sua capacidade mais limitada de coerenciar e dar expressão a essa massa de fatos que, a princípio amorfa, pode se ordenar – à medida que o indivíduo a expressar a si mesmo – a ponto de nela se tornar discernível uma forma. A cada estágio traumático corresponde um padrão de autoconsciência, um eixo central de estruturação do indivíduo, ao menos a nível psicológico, que se pode melhor compreender mediante uma teoria das doze camadas da personalidade (3): pois, caracterologicamente, o desenvolvimento da psique pode ser apreciado em doze camadas distintas, umas integrativas (formam um quadro integrado estável), outras divisivas (estabelecem uma ruptura da ordem anterior que, assim, propicia uma nova ordem). A terceira camada, por exemplo, a qual em geral é objeto de escolas como a behaviorista e a Gestalt – que equivocadamente, como fazem outras escolas, tomam uma camada da psique por sua própria substância (4) –, compreende aquele período de esforço cognitivo concentrado para aquisição de saberes que permitam à pessoa (criança, aqui) se orientar no mundo com algum grau de independência, ao menos física; a quarta camada, divisiva e decisiva ao seu modo, que afinal foi o verdadeiro objeto de estudo de Freud e Klein, abarca a história pulsional do indivíduo preocupado sobretudo com sua afetividade, com o querer e sentir-se querido; e com a quinta camada, integrativa e de individuação (Jung), já começa a surgir o problema objetivo de quais são os propósitos reais do indivíduo e como alcançá-los – a questão deixa de ser de afetividade, passa a ser de poder. E assim por diante, a passar por camadas que apenas podem ser alcançadas, mas não necessariamente, como a da síntese individual (oitava), a da personalidade intelectual (nona) ou mesmo a do destino final (décima segunda).

II. A identificação de em que camada se está, o indivíduo só pode fazê-la por meio de um gesto de assentimento aos seus próprios atos e pensamentos. Essa aceitação, se vista antropologicamente, tem seu fundamento no princípio de autoria (5): cada indivíduo é responsável pelos seus atos, e essa asserção é universal; não existe registro de nenhuma cultura na qual o ato de um indivíduo devesse ser atribuído a outrem (o que, para além da constatação de fato, demonstra existir a constante antropológica de que um homem é um todo, ele é seus atos, e estes não lhe podem ser alheados). Mas essa aceitação tem no princípio de autoria apenas seu fundamento, não o seu meio ou método, mesmo porque tal princípio só abarca os atos individuais que são testemunhados socialmente. Para além destes, existem outros de outra ordem e de maior importância – os atos sem testemunha (6). Estes são os atos de que o indivíduo só se reconhece autor por uma obrigação interior, não externa; à medida que neles se reconhece, integra a sua personalidade e, assim, fica menos à mercê de quaisquer automatismos de pensamento ou comportamento. Esta outra ordem de objeto de consciência é incorporada ao indivíduo especificamente através do método da confissão (7): uma vez que toda expressão social depende de uma expressão individual e interior, e uma vez que esta só se torna possível após uma condensação de significado sob a forma do juízo, este, antes de se tornar proposição – em sentido lógico – dotada de compreensibilidade pública, deve ser afirmado pelo indivíduo de si para si mesmo – o indivíduo deve, em suma, confessar para si aquilo que ele já sabia, mas de que não estava ciente até então. A esse recenseamento socrático do que se sabe e não se sabe segue-se o processo de extrusão, pelo qual o indivíduo dá forma lingüística e simbolicamente articulável à própria experiência.

III. O trauma de emergência da razão reproduz na escala privada um problema central de qualquer filosofia da cultura: as mediações entre indivíduo e sociedade; ou, se se quiser dizer de outro modo, entre expressão particular e símbolos disseminados socialmente. A esse desenvolvimento psicológico do indivíduo corresponde, é evidente, um desenvolvimento epistemológico, que pode ser apreendido não apenas nessa escala, a individual, mas também na escala social. A teoria dos quatro discursos (8), assim, tenta descrever em amplitude histórica e pessoal – uma filosofia da cultura e uma pedagogia, portanto – a unidade entre os quatro tipos de discurso estudados por Aristóteles (o poético, o retórico, o dialético, o analítico), ao mesmo tempo intentando rever a interpretação do corpus lógico deste: o discurso humano, diz a teoria, é uma potência única que se atualiza de quatro formas – expressando estruturas gerais de possibilidade (poética), estruturas gerais de verossimilhança (retórica), estruturas gerais de probabilidade (dialética) e estruturas gerais de certeza (lógica ou analítica). As mediações entre o indivíduo e o conhecimento, sobretudo o difundido socialmente, podem, então, dar-se através desses quatro níveis – de um pólo estritamente mais simbólico, o primeiro, até um pólo, por oposição, mais analiticamente discernível. Estão em jogo aí diferentes níveis de credibilidade do discurso humano; mas estão, também, as diferentes formas de reivindicação indevida de credibilidade, o que requer estudo tanto da erística (9) quanto das condições epistemológicas do saber científico, ou seja, uma filosofia da ciência (10). Há que se considerar ainda, todavia, as formas próprias que o discurso adquire, umas sendo mais adequadas ou menos a discursos neste ou naquele nível – e então há de se atentar aos fundamentos metafísicos dos gêneros literários (11), cuja teoria, grosso modo, ao levar em conta a modalidade de existência espaço-temporal da linguagem e do ser humano que se serve dela, aplica ao discurso distinções espaciais, temporais e numéricas (de número em acepção antiga: discreto ou contínuo), delas extraindo os princípios da “narração” (tempo), “exposição” (espaço) e da “prosa” e do “verso” (número). As articulações específicas e em diferentes graus desses princípios em uma obra lhe dão a sua feição substantiva – o seu gênero.

IV. Se o discurso é o meio eminente pelo qual o indivíduo se apossa do saber, a finalidade deste, enquanto ser dotado de consciência, não é se limitar ao mero domínio discursivo do saber. É chegar ao próprio saber, o que é ademais verificar suas próprias condições de existência. É, numa palavra, chegar à base metafísica primeira, à investigação daquela faixa da realidade que Platão visava em sua “segunda navegação”, para além das “idéias” e rumo ao mundo dos princípios (12) que as regem, entre os quais o de identidade tem primazia. Tudo o que existe é na medida em que tem possibilidade de sê-lo, de modo que as atualizações das notas de cada ente têm seu esteio em uma estrutura de possibilidades preexistente – por exemplo, a própria possibilidade ontológica (da qual a lógica é só expressão discursiva) de que algo seja a atualização de uma potência. A possibilidade da possibilidade conduz a inteligência à investigação do que de mais substantivo e duradouro possa ter um ente. Mas, nesse caso, a palavra investigação não é a mais apropriada. Trata-se mais, via confissão, da aceitação desse corpo de possibilidades em tudo embutido; trata-se de um conhecimento por presença (13), de treinar a consciência para que, ao invés de falar à realidade, deixar que esta lhe fale: como o conceito de um ente já está potencialmente em sua substância, como toda a mineralogia já está nos minerais, o indivíduo deve se esforçar para perceber que o problema da verdade está submetido ao problema da presença substantiva da realidade. Mesmo a mais refinada técnica lógico-analítica é apenas um meio de retornar ao que sempre aí já esteve. É tomar consciência de uma presença que abarca a nós e a tudo o mais. Eis o nexo remoto entre conhecimento e existência.

V. Eventualmente é necessário, para romper o véu das limitações cognitivas de uma determinada civilização e retornar a essa aceitação da presença, proceder à crítica cultural (14), que poderia ser definida provisoriamente como o ato pelo qual uma consciência individual investe contra as estruturas simbólicas ou políticas que lhe embotam a sensibilidade. Tais estruturas podem, por um lado, ser tão só simbólicas e discursivas – nas artes, nas ciências e na comunicação pública –, ou, por outro, podem mesmo chegar ao cerceamento físico da liberdade de consciência. Aqui, o objeto de crítica cultural mais extensa é a metamorfose da idéia de império ao longo da história do ocidente e a idéia correlata de “religião civil”, com o que se investe no rastreio dos fundamentos remotos da ideologia coletivista e cientificista contemporânea. Cientificismo e nova pax romana, separados sob outros aspectos, dão as mãos no achatamento do horizonte total da experiência humana (longamente preparado, por exemplo, desde as idéias de volonté générale e de quantificação geral das ciências físicas). O drama da vida humana, antes concebido como de almas substantivas a viver sub specie aeternitatis, passa a ser o de papéis sociais limitados a um mundo espaço-temporal inteiramente fechado (vários exemplos poderiam ser colhidos na cultura geral: Dostoiévski seria um autor ainda ligado à primeira perspectiva; já os personagens de Balzac se conformariam quase que só à feição da segunda). Com a negação da via de acesso à universalidade da experiência, em grau metafísico, vem também a negação da própria possibilidade de conhecimento do indivíduo. Existiria um vínculo indissolúvel entre a objetividade do mundo e a individualidade da experiência, a qual é preterida em um meio cultural de politização geral (gramscismo) e disseminação de substitutivos das experiências realmente fundadoras do conhecimento (“Nova Era”) – ou seja: coletivismo, no fim das contas, é subjetivismo. E é contra este que se afirma o conhecimento como intuicionismo radical (15): ao contrário do que é comum pensar, o que há de mais objetivo e especificamente humano no conhecimento é o que os antigos lógicos chamavam de “simples apreensão”, ou seja, o ato pelo qual a consciência toma ciência da presença de um determinado dado da realidade. O “raciocínio”, a construção silogística e suas derivadas, é posterior e é uma aptidão de ordem construtiva e, portanto, mais dada a erros. O que é dizer: o homem erra mais na expressão interior do que apreende do que na apreensão em si; pois os métodos mais refinados da lógica apenas desencavam, analiticamente, algo que já estava dado na primeira intuição. E cada intuição, por sua vez, inaugura uma cadeia potencialmente ilimitada de outras intuições; disso trata a teoria da tripla intuição (16): o ato pelo qual o indivíduo intui (primeira intuição) é, ao mesmo tempo, intuição de algo (segunda intuição) e intuição das condições desse ato intuitivo (terceira intuição). Isso explicaria ainda, por exemplo, certos simbolismos naturais, como a identificação do “sol” ou da “luz” com o conhecimento em inúmeras culturas, porquanto em sociedades primitivas, sem o recurso do fogo, só se vê algo – e a visão é o sentido identificado mais diretamente ao conhecimento – quando há luz natural; então o indivíduo percebe que intui, percebe que intui algo e percebe a possibilidade que funda essa intuição paralelamente a uma situação natural. Isso, por fim, afirma a possibilidade de conhecimento objetivo contra todo o discurso contemporâneo de que só existem verdades convencionais, inexistindo as objetivas e, por assim dizer, naturais.

VI. Um capítulo adicional de crítica cultural volta-se para a paralaxe cognitiva (17), que teria se disseminado em larga escala na modernidade. Ela se definiria como o deslocamento entre o eixo da experiência individual e o eixo da formulação teorética. Ou, dito de outro modo: ela seria responsável pela formulação de idéias que são desmentidas pelas próprias condições concretas de que o indivíduo depende para formulá-las. A obra de Maquiavel seria exemplar nesse sentido, toda construída sobre dados intrinsecamente conflitantes, mas sobretudo conflitantes com aquilo que o próprio Maquiavel sabia – ou deveria saber – ser manifestamente falso, porque patente à sua experiência mais imediata. A manifestação aguda da paralaxe cognitiva se encontraria na mentalidade revolucionária (18), caracterizada basicamente por duas inversões: a inversão temporal, pela qual o revolucionário passa a levar em conta o futuro hipotético pelo qual trabalha como o parâmetro de julgamento de suas ações, não mais prestando contas ao passado (e, afinal, a ninguém, pois por definição sua sociedade utópica se afasta à medida que o processo revolucionário avança, nunca se concretizando e, portanto, nunca havendo tribunal no qual se possa julgar abertamente ações ou idéias); e a inversão de sujeito e objeto, pela qual o revolucionário, no ato mesmo de atacar os adversários de sua sociedade futura, os toma na verdade como os atacantes que lhe impedem a consecução de seus planos, de modo que a relação causal entre um e outro é invertida. A paralaxe cognitiva e, em especial, a mentalidade revolucionária inviabilizam um ambiente intelectual no qual o método confessional leve o indivíduo a se dar conta do conhecimento que lhe é imediatamente presente – a primeira, porque faz do sujeito do conhecimento um ser diverso do indivíduo autor de sua própria vida; a segunda, porque, além disso, ameaça destruir todas as bases sociais de convivência humana, já que revolução consiste em concentração de poder nas mãos de uma elite revolucionária com vistas à instauração de um projeto de sociedade, o que rouba aos indivíduos liberdade, senão mesmo, em última instância, a própria existência física, como o demonstram os totalitarismos revolucionários do século passado.

VII. A teoria política (19) deriva não tanto de alguma proposta contrária ao estado de coisas analisado nesses estudos de crítica cultural, mas de adaptação metodológica (20) ao tipo específico de objeto da ciência social. Sua premissa fundamental é a de que poder (21) é possibilidade de ação, em sentido geral, mas na política tem o sentido estrito de possibilidade de determinar a ação alheia. Em sentido universal o homem só tem três poderes, o de gerar, destruir e escolher, que correspondem respectivamente ao poder econômico, o poder militar e o poder intelectual ou espiritual, os quais podem ser exercidos ativa e passivamente e correspondem tipologicamente às castas dos produtores, dos nobres e dos sacerdotes. O primeiro se exerce pela promessa de um benefício, o segundo pela ameaça de um malefício e o terceiro pelo convencimento ou cooptação. Em cada civilização, os três tipos de poderes tendem a se cristalizar em grupos específicos (hoje em dia seriam, em ordem respectiva, o globalismo ocidental, a aliança russo-chinesa e o Islã), mas a especificação de quais são estes grupos é procedimento posterior à detecção de quem pode ser sujeito da história (22): não podendo ser um agente individual, porque perecível a curto prazo e limitado geograficamente em sua ação, só o podem ser as tradições, as organizações esotéricas (ou sociedades secretas), as dinastias reais e nobiliárquicas ou demais entidades de natureza similar. Assim, Igreja Católica e movimento revolucionário, nessa acepção específica, são sujeitos da história, mas não São Francisco nem Lênin. O poder realmente decisivo, a longo prazo, é o de ordem sacerdotal ou intelectual.

VIII. Essa multiplicidade de assuntos e disciplinas recoberta na produção de um único filósofo não é fortuita. Ele mesmo define filosofia (23) como a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa. Qualquer outra definição quedaria parcial, tornando difícil apontar no que se distinguem fundamentalmente um filósofo e um cientista, um filósofo e um poeta (24). O cientista pode produzir conhecimento sem que para tanto tenha de se empenhar no resgate confessional pelo qual cada novo dado conhecido se integra ao conjunto daquilo que ele, enquanto indivíduo, é naquele momento; o poeta pode produzir uma obra só com base em intuições manifestamente contrárias à sua índole e à própria verdade, pois o que lhe importa é a unidade daquele momento expressivo. O filósofo não se limita a nada disso, pois seu esforço é direcionado por uma técnica filosófica específica, que consiste em sete pontos:

“1. A anamnese pela qual o filósofo rastreia a origem das suas idéias e assume a responsabilidade por elas.

2. A meditação pela qual ele busca transcender o círculo das suas idéias e permitir que a própria realidade lhe fale, numa experiência cognitiva originária.

3. O exame dialético pelo qual ele integra a sua experiência cognitiva na tradição filosófica, e esta naquela.

4. A pesquisa histórico-filológica pela qual ele se apossa da tradição.

5. A hermenêutica pela qual ele torna transparentes para o exame dialético as sentenças dos filósofos do passado e todos os demais elementos da herança cultural que sejam necessários para a sua atividade filosófica.

6. O exame de consciência pelo qual ele integra na sua personalidade total as aquisições da sua investigação filosófica.

7. A técnica expressiva pela qual ele torna a sua experiência cognitiva reprodutível por outras pessoas.” (25)
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REFERÊNCIAS

(1) “Esboço de um Sistema de Filosofia”, apostila do Seminário de Filosofia [doravante referido como SdF]. (2) “O trauma de emergência da razão”, Curso de Astrocaracterologia (1990-1992). (3) “As doze camadas da personalidade humana e as formas próprias de sofrimento”, apostila do SdF; Curso “Conceitos Fundamentais da Psicologia” (4 a 19 de setembro de 2009, Virginia). (4) “O que é psique”, apostila do SdF. (5) Aula 32 do Curso On-Line de Filosofia [doravante referido como COF] (14/11/2009). (6) Aula 2 do COF (21/03/2009). (7) A Filosofia e seu Inverso & Outros Estudos (Vide, 2012); Aulas 9 (06/06/2009) e 13 (04/07/2009) do COF. (8) Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos (Vide, 2013). (9) Como vencer um debate sem precisar ter razão: Comentários à “dialética erística” de Arthur Schopenhauer (Topbooks, 1997). (10) Edmund Husserl Contra o Psicologismo (IAL, 1996; apostila); Curso “Filosofia da Ciência I” (10 a 15 de maio de 2010, Virginia). (11) Os Gêneros Literários: Seus Fundamentos Metafísicos (in A Dialética Simbólica: estudos reunidos, É Realizações, 2007). (12) “Sobre o mundo dos princípios”, aula do SdF (20/04/2009). (13) “O problema da verdade e a verdade do problema”, apostila do SdF (20 de maio de 1999); “Conhecimento e presença”, apostila do SdF (27/09/99); Aula 10 do COF (13/07/2009). (14) A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci (IAL, Stella Caymmi, 1994); O Imbecil Coletivo I: Atualidades Inculturais Brasileiras (É Realizações, 2006); O Imbecil Coletivo II: A longa marcha da vaca para o brejo (É Realizações, 2008); O Jardim das Aflições: de Epicuro à ressurreição de César. Ensaio sobre o materialismo e a religião civil (É Realizações, 2000); O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota (Record, 2013). (15) “Esboço de um sistema de filosofia”, apostila do SdF; aula 32 do COF. (16) “A tripla intuição”, apostila do SdF. (17) “Introdução à paralaxe cognitiva”, transcrição de aula de 26/08/2006, São Paulo; Maquiavel, ou A Confusão Demoníaca (Vide, 2011). (18) “A Estrutura da Mentalidade Revolucionária”, conferência realizada em Bucareste, 16/06/2011; “Resumo de A Mente Revolucionária”, partes I e II, SdF (19/06/2009). (19) Curso “Teoria do Estado”, em 11 aulas, PUC-PR (2003-2004); Os EUA e a Nova Ordem Mundial (Vide, 2012) [debate com Alexander Dugin]. (20) “Problemas de método nas ciências humanas”, apostila do SdF. (21) “Teses sobre o Poder”, apostila do SdF. (22) “Quem é o sujeito da história?”, apostila do SdF. (23) A Filosofia e seu Inverso. (24) “Poesia e Filosofia”, in A Dialética Simbólica. (25) A Filosofia e seu Inverso, p. 133.

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Este é um esboço grosseiro, sumário e bastante pessoal do que se poderia chamar – e que tanto mais é assim chamada quanto mais se a desconhece – de a obra de Olavo de Carvalho. Não é uma síntese dela, mas é pelo menos um mapa preliminar, pelo qual só eu respondo (creio que ao próprio Olavo não agradaria). Tomei a iniciativa de desenhá-lo, com todas as falhas e omissões que aí se assinalarem (muita coisa ficou de fora), pensando no leitor que, lendo O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, o mais recente livro de Olavo de Carvalho (org. Felipe Moura Brasil), pudesse de certa forma perceber a unidade mais ampla que os 193 textos do livro testemunham e, dessa forma, se interessar em conhecer melhor a obra do homem. Tomando por paralelo as seções desses “elementos da filosofia de Olavo de Carvalho”, eu apontaria os seguintes textos do livro como os mais relevantes aos respectivos temas:

I – “O poder de conhecer”, p. 38; “A mensagem de Viktor Frankl”, p. 49; “Redescobrindo o sentido da vida”, p. 53; “Um capítulo de memórias”, p. 91.

II – “Sem testemunhas”, p. 41.

III – “Quem eram os ratos?”, p. 261; “Da fantasia deprimente à realidade temível”, p. 324; “O testemunho proibido”, p. 405; “Como ler a Bíblia”, p. 409; “Debatedores brasileiros”, p. 456; “Zenão e o paralítico”, p. 460.

IV – “Jesus e a pomba de Stalin”, p. 355; “Espírito e personalidade”, p. 610.

V – “Espírito e cultura: o Brasil ante o sentido da vida”, p. 59; “A origem da burrice nacional”, p. 67; “Cavalos mortos”, p. 94; “Os histéricos no poder”, p. 96.

VI – “Que é ser socialista?”, p. 119; “A mentalidade revolucionária”, p. 186; “Ainda a mentalidade revolucionária”, p. 191; “A mentira estrutural”, p. 196; “A revolução globalista”, p. 159; “A fossa de Babel”, p. 287; “A ciência contra a razão”, p. 393.

VII – “Os donos do mundo”, p. 541; “O que está acontecendo”, p. 543; “Quem manda no mundo?”, p. 545; “Salvando o triunvirato global”, p. 570; “História de quinze séculos”, p. 168; “Onipresente e invisível”, p. 162; “Lula, réu confesso”, p. 472.

VIII – “A tragédia do estudante sério no Brasil”, p. 595; “Se você ainda quer ser um estudante sério...”, p. 599; “Pela restauração intelectual do Brasil”, p. 604.

Dito isso, de resto afirmo que O mínimo..., se bem lido, pode ser uma boa introdução ao estudo sério do pensamento de Olavo de Carvalho (embora seja bastante óbvio que a maior parte dos textos se integre só a uma terça parte da obra do filósofo – a de crítica cultural; as duas outras, a de história da filosofia e de produção filosófica propriamente dita, têm de ser buscadas em outros livros e cursos). A organização que Felipe Moura Brasil deu aos textos é primorosa, em seções e subseções, apondo-lhes ainda notas muito elucidativas (às quais se somam, também boas, as do editor). Um único defeito tenho a notar: a ausência de um índice remissivo. Um bom índice tornaria o livro uma ferramenta de consulta – e até de estudo, limitado que seja – bastante eficiente, com entradas onomásticas e temáticas, o que seria ao fim bom complemento ao sumário já formidavelmente bem estruturado que encontramos ao começo. Seria uma felicidade ver essa ausência sanada em uma edição futura do livro.

Finalmente, e agradecendo-lhes a paciência: desejo a todos uma boa leitura.

sábado, 17 de agosto de 2013

A arte da difamação e a grandeza da filosofia


A beleza da discussão filosófica reside no fato de que premissas, argumentos e reflexões são – e devem ser! – publicamente abertas ao exame crítico e à discordância refletida. Diferente da experiência religiosa, por exemplo, em que a experiência do sagrado “acontece”, fundamentalmente, na vida interior de uma consciência singular privilegiada pela revelação, a filosofia emerge do lapidar trabalho do diálogo refletido, em outras palavras, é um empreendimento "político" por excelência. 

Ademais, não dá para realizar um exame crítico público acerca da validade de premissas estabelecidas pela experiência religiosa, nosso acesso à experiência religiosa de outra pessoa é necessariamente “mediado” pelo conjunto simbólico transmitido por testemunhos orais ou textuais acumulados ao longo da tradição histórica. Nesse caso o que está efetivamente em jogo é a liberdade de crença: acolhemos a mensagem sagrada da experiência do profeta por um genuíno salto de fé dado por uma relação viva do testemunho exemplar mediante a transformação da conduta “convertida”. 

No caso do filósofo, pelo contrário, só faz sentido o exame crítico na medida em que todo fundamento da obra é posto à luz do dia, isto é, da “razão” – cuja característica peculiar implica a reflexão pública e o encontro do seres pensantes e falantes. A beleza da discussão em filosofia reside, portanto, em sua “publicidade” e na pluralidade de opiniões relativas em busca da verdade da realidade. 

Quer criticar um filósofo? Ora, percorra, pari passu, suas obras e refute a inconsistência dos seus argumentos, aponte a invalidade dos pressupostos e, em última análise, demonstre que a conclusão não segue das premissas. Tudo isso dá trabalho, mas é gratificante e eleva o debate. Criticar traços específicos da pessoa a fim de se tentar demolir a obra não resolve, só demonstra o quanto se é intelectualmente pobre e moralmente vigarista. Filosofia é um empreendimento de seres livres, pensantes e falantes, não uma atividade de canalhas mal-intencionados.

A discordância acusatória demonstra o quanto se vive mergulhado e assombrado por um imaginário distante da realidade. Toma-se a realidade de um filósofo, em um primeiro momento, por sua produção filosófica “revelada” em seus escritos – embora o filósofo não se reduza aos seus escritos, o texto possibilita o primeiro acesso ao seu lógos, mas não determina-o em sua totalidade -- a tensão dessa problemática foi um tema constante na história da filosofia, e percebido desde o início por Platão (ver Carta VII, 341c-e e 344 c-d e Fedro, 278 b-e).   

A discordância refletida enriquece a filosofia e eleva o patamar do debate público, a discordância acusatória – e/ou difamatória – anula a riqueza dessa pluralidade e impõe-nos a homogeneidade desértica do perturbado mundo dos palpiteiros. Pincelar dois ou três ditos de uma obra filosófica ou da mera opinião de um filósofo também não ajuda, filósofos são falíveis. Sócrates foi prova viva da possibilidade de falência do discurso reflexivo – e morto pela ostentação do discurso difamatório –, e, a fim de revelar essa fragilidade, pagou com a própria vida.

Um exemplo, posso acusar – e difamar – Heidegger de canalha por sua aproximação com o nazismo, mas criticar a filosofia de Heidegger requer outro tipo de esforço. No caso da sua relação com o nazismo só a própria consciência de Heidegger poderá julgar o grau de equívoco e arrependimento – claro que podemos fazer um juízo moral acerca dessa relação –, mas no caso das premissas de sua filosofia o problema é de outra natureza: na filosofia tudo está aí (pois deve estar; caso contrário não seria filosofia) disponível, temos acesso direto aos pressupostos fundamentais que sustentam a filosofia heideggeriana (seus textos). 

Pode-se ter uma relação afetiva com a obra e os escritos de Heidegger – julgar que não gostamos dele por causa do seu estilo truncado, etc –, no entanto, a única forma de demonstrar que Heidegger, o filósofo, está errado não é outra senão o trabalho de apontar o erro. 

Usei Heidegger a fim de ficar apenas com um exemplo distante, mas isso serve para qualquer um de nossos desafetos! Inclusive -- e sobretudo -- os nossos filósofos brasileiros constantemente massacrados por palpiteiros que nunca se deram ao trabalho de percorrer seus textos. A grandeza da filosofia se dá na discordância honesta porque lapidada pelo longo percurso da reflexão. Assim que se constrói uma cultura: no diálogo de gente grande! Enquanto que a sua decadência começa no rumor dos tagarelas. 

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A Verdade antes e depois da Internet

Google search: "sacrifício humano funciona?"

Gustavo Nogy apontou um problema real na Internet: a informação nem sempre é confiável. Isso pode levar governantes e/ou militantes de alguma causa a querer controlar o fluxo de informação online, para garantir maior veracidade.

Não nego as afirmações acima; só acho que, quando se fala da difusão de erros na Internet, é importante falar também das ferramentas e dos meios disponíveis para se corrigi-los, que também são produto do meio online. Eles existem, bem debaixo de nosso nariz, e estão sempre em operação, de modo que, no meu diagnóstico, estamos numa situação melhor para conhecer a verdade e corrigir erros do que estávamos antes do advento da Internet (ou mesmo nos anos anteriores à chamada revolução 2.0 que começou com Wikipedia e Youtube).

Nogy menciona a farsa da feminista no Jô, compartilhada por diversos perfis da direita facebookiana. Faltou mencionar que muitos perfis partilharam, nos dias que se seguiram, o desmentido. Da mesma forma, qualquer um que se deu ao trabalho de procurar por conta própria também viu que era mentira. Só acreditou, talvez, quem não se importava com a informação - ou quem queria avidamente que ela fosse verdadeira. Esse é o ponto chave da informação na internet: quem se interessa - quem usa aquela informação - quase sempre descobre a verdade. As pernas da mentira são ainda mais curtas no mundo online.

Quem tem algum traquejo de Internet não cai em notícia falsa. Bota no Google, procura outras fontes, sites confiáveis (há sites dedicados a testar lendas urbanas, como o Snopes; sem falar do poço sem fim de dados e fatos que é a Wikipedia). Quem não tem, de fato, acredita até em notícias do The Onion e do R17. Nos "bons e velhos tempos", quando a Veja publicava a sério notícias de 1o de abril de revistas americanas (sim!), vai saber quantos não foram os enganados, e por um tempo bem mais longo.

A Internet apenas fez cair o véu de uma ilusão. A ilusão de que o tamanho e a notoriedade de um veículo era garantia de informação relevante e de qualidade. O mundo pré-internet era dominado por grandes funis da informação. Esses funis, deve-se admitir, eram (e são) menos propensos a erros e mentiras do que blogueiros escrevendo o que der na telha; ainda assim, erravam (e erram) muito, sem que quase ninguém pudesse corrigi-los. Ao mesmo tempo, havia mídias menores e até marginais: o enorme mundo das revistas de banca, das publicações autônomas e institucionais, etc. Aqui também grassavam chutes absurdos, erros grosseiros, factoides. E ocasionalmente acertos, trabalhos investigativos audazes.

A distinção entre os dois mundos se dava por critérios exteriores: a grande mídia era respeitável por ser a grande mídia, ter a tradição e o poder a seu lado. Nem se dava ao trabalho de responder às maluquices que se opunham, mesmo porque responder já era dar às opiniões contrárias uma visibilidade indevida.

Na Internet, a reputação é volúvel e muito mais dependente da performance. Estão em jogo os argumentos, a segurança das fontes; e sites diferentes estão sempre prontos a questionar ou ratificar o que outro afirmou. A reputação está sempre em construção, como deveria ser, e não há carteirada do grande portal que possa silenciar um humilde blog se este tiver uma informação verdadeira. Sendo assim, informação é gerada por muito mais fontes: o número de erros aumenta, e o de verdades também; e o de refutação de erros também.

Tomemos um exemplo de informação falsa pré-Internet: a Cientologia. A Cientologia fez todo seu estrago num mundo sem Internet. Sem meios de checar se aquilo que lhes era dito era verdade ou não; com apenas alguns comentários desdenhosos da grande mídia, muita gente era facilmente cooptada para essa seita maluca. Agora, com Internet, a primeira coisa que alguém que foi abordado por um cientólogo pode fazer é jogar no Google. "Xenu? Oi?".

O mito de que até Colombo se acreditava numa Terra achatada está aos poucos caindo - graças à Internet. E mesmo um fenômeno de desinformação que nasceu online - o filme Zeitgeist - já conta com refutações bastante divulgadas, seja no Youtube, seja em fóruns de discussão, seja em sites como o Cracked. Sim, erros têm mais liberdade para serem criados, mas também são neutralizados com mais velocidade. É só pensar em todo o arsenal de lendas urbanas que só hoje, como Snopes e Wikipedia, podemos desmentir em poucos minutos de pesquisa.

Cada pessoa tem os sites nos quais confia, tem suas redes de contatos com quem discute ideias, tem seus interesses que guiam a seleção do conteúdo que lerá e assistirá. A seleção da informação é agora feita por cada indivíduo, e não por uma corporação que nos dá uma fatia muito fina e selecionada da informação possível. Num site como a Amazon, encontram-se avaliações de qualidade de quase qualquer livro, bem como fontes alternativas. A Internet permite o amadurecimento do critério daqueles que desejem amadurecer. E para os demais, a mesma passividade de sempre. Talvez nos choque ouvir o que dizem muitos daqueles que antes não teriam expressão pública de suas crenças; isso não nos permite intuir que, num passado dominado pela mídia dos anos 90 (alguém lembra do nível a que éramos submetidos então?), essas crenças mais razoáveis ou mais educadas.

O medo de que a verdade seja coberta por uma multidão de erros num ruído incontrolável não tem se confirmado. Temos mais variedade de informações e opiniões - o que implica, indiretamente, erros, mas também um cenário muito mais saudável de divergências intelectuais - e informações falsas e mentiras duram muito menos do que duravam quando passavam pelo filtro dos grandes veículos. E passavam.

A chave, repito, é o interesse do leitor. Quem vai atrás, encontra. E quem não vai; bem, esse já era facilmente enganado pela grande mídia, e continua presa fácil de correntes do Facebook e citações espúrias (em geral, é gente que não está à vontade no meio online). E não é ele, não é o mínimo denominador comum, que deveria guiar nossas preocupações.

A livre produção de conteúdo por amadores só tem ajudado na geração e divulgação de informação. Os jornalistas diplomados que se cuidem; a demanda por seus serviços não depende mais de diplomas, mas da qualidade do que podem oferecer.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Sua roupa também lê Marx?

Escrevo este texto movido pelo post do excelente Guy Franco. Ele fala das pessoas cujas opiniões sobre política, sociedade ou o que seja (sempre na esfera supraindividual) determinam seus gostos e práticas pessoais.
Tudo deveria estar acima de uma ideologia coletivista. O modo como uma pessoa prepara o arroz deveria estar acima de sua ideologia. A maneira como uma pessoa decora o quarto deveria estar acima de sua ideologia. Quando a ideologia começa a ditar o comportamento de alguém, este começa a apodrecer por dentro. E a conversa não presta, o café não presta, a vida não presta.
Em certo sentido ele está certo: nada mais chato, medíocre e superficial do que uma pessoa tão previsível que todos os seus gostos se adequem perfeitamente ao que é esperado de pessoas que pensem como ela. Então quem é de esquerda prefere MPB e quem é de direita, country music.

Por outro lado, imaginar que as crenças e valores que uma pessoa defende na esfera pública não tenham relação com quem ela é em outros âmbitos da vida é propor uma vida compartimentalizada ao extremo. Não haveria alguma incoerência, por exemplo, em ser partidário da bandeira de direitos humanos mas se divertir apenas assistindo simulações de torturas humilhantes ("são só atores, ninguém sofreu de verdade")? Ou de se ser um cristão e amar black metal? Os valores que ressoam conosco na arte, no entretenimento e nos gostos pessoais não têm - ou deveriam ter - relação com o que acreditamos e defendemos em nosso nível mais intelectual?

Penso que esses casos de dissonância entre crença pública e gosto pessoal exigem alguma explicação: ou a pessoa finge adotar certos valores públicos que ela simplesmente despreza em sua vida pessoal, ou ela adere sinceramente a esses valores e encara seus gostos pessoais como uma tentação da qual ela tem sido incapaz de se libertar. Alternativamente, há aqueles que convivem com as duas coisas mas fazem recurso a alguma explicação para justificar a postura: por exemplo, que o gosto musical não tem nada a ver com a crença, ou que há algum aspecto que condiz com suas crenças e valores, e que é aquilo que ela procura nele. Em suma, o fato requer explicação.

E se requer explicação, é porque em alguma medida parece haver sim oposição entre certos valores/crenças e certos gostos; e, por consequência, consonância entre certos valores/crenças e outros gostos.

Acho que a distinção relevante não é entre pessoas cujos valores/crenças determinam seus gostos e aquelas em que isso não ocorre. Mas sim entre aquelas em que o gosto é uma expressão real de como sentem e veem a realidade, e outras para quem o "gosto" é expressão de como elas gostariam de ser vistas, ou daquilo que elas se sentem na obrigação de gostar por fazer parte de um determinado grupo.

Toda conversão, ou seja, toda adesão a uma posição muito forte e bem definida sobre alguma coisa, envolve uma mudança parcial do indivíduo. Quando alguém se torna cristão, ou comunista, ou feminista, ou libertário, ou conservador, ou vegano - ou o que você quiser - essa adesão se dá primeiramente no plano intelectual. Todo o resto da pessoa é ainda homem velho. Provavelmente, uma parte dela sempre será.

Sendo assim, há diversas esferas da vida da pessoa que ou continuarão degeneradas (de acordo com o padrão da nova posição intelectual), expondo a parcialidade e fraqueza da conversão, ou terão que ser mudadas à força para se adequar ao que a posição supostamente requer - em geral, aquilo que ela engendrou em expoentes passados daquela posição, ou que, por acidente, acabou vigorando na comunidade de aderentes da posição. Quantos católicos tradicionalistas, amantes da música barroca e da língua francesa, não vemos no Facebook/Orkut! Não fazem nada além de seguir o exemplo dos grandes nomes do tradicionalismo católico brasileiro: Plínio Correia, Orlando Fedeli, etc. Quanta gente de esquerda que gosta de skate e grafite!

Conforme a pessoa amadurece em sua adesão, vai vendo como essa fantasia toda é desnecessária, e até danosa para ela. Ao mesmo tempo, cresce a conaturalidade entre as diversas esferas da sua vida, e vai-se encontrando um equilíbrio mais de acordo com o que a pessoa é.

Não creio que esse seja o único efeito a explicar a mediocridade de todas as pessoas cuja vida pessoal parece seguir uma caricatura de suas crenças e valores. Mas é algo que acontece.

Em outros casos, talvez as limitações internas da própria visão de mundo façam com que mesmo o aderente maduro e plenamente despojado de vaidades seja uma pessoa medíocre. Em ainda outros, os gostos vieram primeiro, e as crenças e valores que se associam a eles vieram depois. Enfim, são só especulações de um post que começa a perder o foco.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Para além da poética de Dostoiévski

Esta é a versão Director’s Cut do último artigo que publiquei na revista Vila Nova. Minha intenção era acrescer o artigo de alguns parágrafos onde eu discutiria mais detidamente trechos do livro de Bakhtin sobre Dostoiévski, tentando sintetizar os motivos pelos quais uma considerável parte da crítica dostoievskiana (não no Brasil, é claro) rejeita a teoria de Bakhtin sobre polifonia e carnavalização na obra do romancista russo. Mas eis que encontro online um artigo fundamental de ninguém menos que René Wellek, onde estão resumidos magistralmente todos os pontos que eu arrancaria os cabelos para demonstrar de forma clara e sucinta. Recomendo fortemente a leitura.

O texto a seguir preocupa-se menos com Bakhtin do que com seus seguidores brasileiros.

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Na introdução de seu aclamado Problemas da Poética de Dostoiévski (1929/1963), Mikhail Bakhtin faz uma varredura no que a crítica produzira até então sobre a obra do grande romancista russo e conclui: não há, antes do seu, nenhum estudo que ofereça uma leitura adequada da dimensão poética – ou estritamente formal – da obra de Dostoiévski; abundam interpretações do romancista filósofo ou ideólogo, mas se ignora ou não se chega à altura do artista.

Neste ponto Bakhtin estava certo, ainda que se discorde de seus conceitos e instrumentos de análise literária: é preciso chamar atenção à complexidade estética dos romances de Dostoiévski. Com efeito, trata-se de um autor perigoso, capaz de enredar facilmente o leitor desarmado. Lê-lo com a guarda baixa, com a mesma credulidade com que se percorre, digamos, um romance de Jane Austen, quase sempre será sinônimo de passar-lhe ao largo. Não apenas o universo dostoievskiano é um amálgama de referências históricas e culturais acessíveis integralmente apenas a seus contemporâneos ou a leitores especializados, mas também sua técnica narrativa é tão complicada quanto aquilo que seria o sentido último de sua obra (e não por acaso; em toda grande literatura, forma é conteúdo). Bakhtin percebeu isso e dedicou-se a sistematizar o “caos” dostoievskiano, porém com vistas não a dispersar a bruma e perceber-lhe o que há no fundo, senão para justificar teoricamente a pressuposta falta de “verdade acabada” dos romances de Dostoiévski.

Assim, temos que hoje, 80 anos após publicar-se a primeira versão de Problemas da Poética de Dostoiévski, durante os quais a teoria de Bakhtin tornou-se uma febre, dir-se-ia uma espécie de solução universal para a obra do autor russo[1], certa parte da crítica já afirma tranquilamente a irresolvibilidade desta obra, ou seja: o romance dostoievskiano é um labirinto insolúvel, feito num embate de vozes contraditórias que convivem num perpétuo conflito o qual é, ele mesmo, a única verdade disponível. O autor, para Bakhtin, seria o regente do coro dialógico de vozes, porém incapaz de fazer qualquer uma preponderar sobre as demais; cada voz ou personagem teria vida própria – o autor apenas possibilita sua expressão. Se não se trata, aqui, da repisada “morte do autor”, trata-se ao menos de uma redução violenta de sua importância, uma vez que a obra já não pode ser lida com recurso às intenções ou ao horizonte mental de seu criador, o que, segundo a lógica de Bakhtin, não passaria de bitolação monológica.

Do ponto de vista de uma visão monológica coerente e da concepção do mundo representado e do cânon monológico da construção do romance, o mundo de Dostoiévski pode afigurar-se um caos, e a construção de seus romances, algum conglomerado de matérias estranhas e princípios incompatíveis de formalização. Só à luz da meta artística central de Dostoiévski por nós formulada podem tornar-se compreensíveis a profunda organicidade, a coerência e a integridade de sua poética. 
(In: Problemas da Poética de Dostoiévski. Ed. Forense Universirária, p. 6. Grifo meu.)
E, no entanto, é altamente questionável a hipótese do romance polifônico enquanto “meta artística central” de Dostoiévski, por motivos que espero esclarecer a seguir. O romance polifônico é, no máximo, a meta artística formulada por Bakhtin e aplicada à obra de Dostoiévski, não sem deformá-la em muitos sentidos. Em outras palavras, a teoria de Bakhtin é uma apropriação anacrônica da obra de Dostoiévski.

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Para entender isso, voltemos à Rússia do século XIX, à sociedade e às condições culturais que propiciaram o que hoje se conhece como a era de ouro da literatura daquele país. Púchkin, Gógol, Turguêniev, Leskov, Tolstói, Dostoiévski – já faz tempo que o Ocidente se encontra às voltas com esses nomes esquisitos, esforçando-se para pronunciá-los e, por meio de sua literatura, habitando seu mundo, um mundo de noites brancas, invernos para nós impossíveis, paixões inflamadas, samovares, mujiques, um mundo a um só tempo alheio e curiosamente nosso. É uma literatura que, sendo apaixonadamente russa, é universal, fala a todos os homens de todos os tempos. Mas o que explica o boom da literatura no século XIX russo, se é que algo o explica? Como é que esses homens com os nervos à flor da pele, vivendo em um país escravocrata e – segundo moldes ocidentais – atrasado em todos os sentidos, conseguiram tamanho feito cultural?

De fato, se comparada à Europa, a modernidade russa começou tarde e instaurou-se de um modo que a historiografia concorda em chamar de traumático. Na virada do século XVII para o XVIII, o imperador Pedro I implementou uma série de reformas para alinhar a Rússia feudal aos padrões de civilidade europeus. Após viajar pela Europa e se aconselhar com suas figuras mais eminentes, construiu São Petersburgo como “uma janela para o Ocidente”, uma cidade planejada, moderna e racional, oposta à antiquada e caótica Moscou, e mandou cortar as barbas aos nobres, que agora deviam trajar-se à europeia, entre inúmeras outras medidas no mesmo sentido, abrindo o país para o influxo desde então incontido de cultura ocidental.

O resultado imediato das reformas petrinas foi a criação de uma elite europeizada, cujos costumes passaram a contrastar fortemente com aqueles que caracterizavam a massa da população, composta por servos camponeses. Em médio prazo – isto é, em meados do século XIX –, tal cisão cultural era a manifestação concreta da crise de identidade da qual padecia todo e qualquer intelectual russo de então; quanto mais educados, quanto mais “europeizados”, mais urgentes pareciam a esses homens a questão nacional e a busca pela distinção do que seria o caráter russo.

Ao mesmo tempo, à medida que as noções europeias de civilização (àquela altura de matriz iluminista, romântica ou socialista) se iam infiltrando na mentalidade russa, crescia a hostilidade destes às condições sociais vigentes em seu país.  E, com as críticas da intelligentsia ao status quo, crescia a censura tsarista à imprensa e puniam-se com severidade os crimes de opinião. Esta é parte da explicação para a preponderância da literatura no século XIX russo: a prosa de ficção e a crítica literária logo se mostraram eficientes veículos para uma forma velada de crítica social. Filosofia, política, religião, antropologia, sociologia – o romance russo do século XIX abrange todas as disciplinas que, em um ambiente marcado pela liberdade de expressão, tratar-se-iam detida e abertamente. Afinal, nas palavras de Aleksandr Herzen (1812-1870), a autocracia russa, em seus períodos mais defensivos, não perseguia apenas ideias contrárias a sua estabilidade, mas o pensamento per se[2].

Ainda assim, tratava-se de uma sociedade de tal modo obcecada pela “vida do espírito” e pelas “questões eternas” que nem o mais opressor dos regimes impediu-a de investigar seus problemas. É preciso reiterar o que já se disse acima: ainda que em grande medida, ou até determinado momento, a intelectualidade russa oitocentista tenha pensado com ideias de empréstimo, tratava-se de uma classe imbuída de um inescapável sentimento nacional e obcecada por sua “particularíssima situação concreta”. O próprio Dostoiévski costumava dizer: tome-se qualquer ideia estrangeira (digamos, o socialismo), os russos a incorporarão e neles ela se tornará em qualquer coisa grotescamente diversa do que era originalmente. Não se chegará a entender o boom cultural na Rússia do século XIX se se ignorar que a força motriz daqueles pensadores e escritores era a pergunta “quem somos nós?”. Tudo o que liam, tudo o que aprendiam a partir de fontes estrangeiras servia-lhes para alentar a fogueira nacional.

Há ainda um fator puramente sociológico que há de ter catalisado tal processo de autoconhecimento: o fato de que a elite pensante na Rússia desse período compunha-se de uma fração mínima da população, com a consequência de que cada geração de intelligentsy era formada por homens que conviviam entre si, liam-se reciprocamente e debatiam como cães em fúria (inclusive com grande incidência do chamado fogo amigo, tão ofensivo à sensibilidade dos intelectuais brasileiros de hoje). O debate público se dava pelas chamadas “revistas grossas”, cujo apelido as descreve bem: eram periódicos reunindo artigos jornalísticos e protofilosóficos os mais variados e cujo carro chefe era a literatura que se publicava fascicularmente, a qual hoje temos em nossas estantes na forma de bastos volumes. Normalmente cada periódico tinha uma linha editorial bem definida e publicava textos que corroboravam com o conjunto de ideias sustentado por seus editores.

Não há como escapar: tudo o que de melhor foi produzido pelas letras russas no século XIX reporta-se a um, ou melhor, a vários debates ideológicos. Não havia arte pela arte, onde fins estéticos não se remetessem às discussões que animavam a atmosfera cultural da sociedade. Porém, não se pode dizer que só se produzissem panfletos – houve alguns, mas ao lado destes houve também Tolstói e Dostoiévski –, o que aponta para o erro de se negar que artistas possam produzir obras de impressionante complexidade estética visando, ao mesmo tempo, à participação num debate político-filosófico, como é evidentemente o caso dos grandes russos do século XIX.

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O ponto em descrever todo esse panorama cultural é explicitar como a ideia bakhtiniana do romance polifônico e do debate entre vozes “equipolentes”[3] é incompatível com o espírito das letras russas oitocentistas. Se se deseja sustentar a tese de Bakhtin de que o romance dostoievskiano é um labirinto insolúvel, onde as ideias mais contraditórias têm igual plausibilidade, só se pode fazê-lo afirmando ao mesmo tempo que o romancista fracassou em seu projeto literário e que, por assim dizer, inventou o romance polifônico por acaso, contra sua própria vontade. Há material suficiente para se demonstrar que Dostoiévski, o intelectual de carne e osso, não tinha qualquer interesse em produzir uma literatura que não contribuísse com o debate político-ideológico que ele mantinha nos periódicos jornalísticos que editava. A breve título de exemplo (o material nesse sentido é realmente abundante), veja-se o seguinte trecho de uma carta onde o romancista comenta o famoso capítulo “Revolta”, de Os Irmãos Karamázov:

“A ideia é apresentar a extrema blasfêmia e as sementes da ideia de destruição difundidas atualmente na Rússia entre a nova geração que se apartou da realidade. As convicções de Ivan constituem o que eu considero a síntese do anarquismo russo contemporâneo. A negação não de Deus, mas de sua criação. Todo o socialismo partiu da negação do sentido da realidade histórica e chegou ao programa da destruição e do anarquismo. (....) A blasfêmia do meu herói vai ser triunfantemente refutada no próximo capítulo, no qual estou trabalhando agora com temor e tremor, pois considero minha tarefa – a refutação do anarquismo – uma proeza cívica.[4] (Grifo meu)

O trecho suscita a pergunta: como pode ser o romance polifônico a “meta artística central” de um autor cuja “tarefa cívica” – estabelecida pelo próprio – é a refutação do anarquismo? Certamente não pretendo reduzir a literatura dostoievskiana às opiniões cerradas do autor. Sim, sua obra é genial na medida em que escapa às suas rédeas de ideólogo, e algumas de suas criações mais brilhantes coincidem justamente com seus momentos de procura cega, de angústia, de dúvida. Mas reconhecer isso de modo algum nos obriga a subscrever a tese da “equipolência” das vozes com que são povoados seus romances.

Há hierarquia de vozes nos romances de Dostoiévski. É perfeitamente possível extrair sentido do modo como as personagens-ideias interagem sob a regência do autor. Usando um exemplo já gasto: a suposta ambiguidade do Epílogo de Crime e Castigo não resiste ao mais básico esforço de análise textual. E, no entanto, como mostram alguns comentários ao texto do link, a obsessão pela “pluralidade de sentido” em literatura já faz com que o próprio questionamento em torno do significado de uma obra pareça supérfluo.

É certo que há discrepância entre as intenções de Dostoiévski e aquilo em que se concretiza cada trabalho seu. Ele não usa a literatura para meramente ilustrar suas opiniões jornalísticas – a literatura é, antes, seu meio de investigação do real, de modo que se pode atribuir, sim, alguma autonomia às criaturas a que ele dá vida enquanto autor, porém apenas até certo ponto, dentro de certos limites. E esses limites coincidem com a própria pessoa de Dostoiévski, onde “pessoa” não designa suas crenças e preferências conscientes; digamos, em termos didáticos, que um personagem ou um livro, enquanto em fase de composição, pode tornar-se qualquer coisa – dentro do conjunto de coisas nas quais pode tornar-se o próprio Dostoiévski. Seus personagens são imprevisíveis na medida em que encarnam as várias batalhas do autor contra seus próprios demônios, batalhas essas que ele trava enquanto escreve, as quais ele ganha ou perde junto ao sucesso ou fracasso de cada livro. De modo que, se suas intenções nem sempre coincidiram com o que sua literatura revelou, para nós hoje, seus leitores, já é possível com satisfatória clareza compreender a consonância entre autor e obra.[5]

Que a literatura de um autor possa resultar em qualquer coisa estranha a (independente de) ele mesmo é uma dessas ideias sossegadamente aceitas no meio acadêmico brasileiro, malgrado a enxurrada de complicações que comporta. Ouço com frequência que não se pode ler Dostoiévski à luz de sua visão de mundo autoral porque “a literatura é maior”, a literatura vai sempre mais longe do que seu autor. Dependendo do modo como se lê tal afirmação, ela pode fazer mais ou menos sentido. Não vou, porém, me deter nela. Quero apenas concluir este texto com o que é a contradição cabal de um bakhtinismo degenerado e, infelizmente, brasileiro.

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 Bakhtin afirma:

Quando as ideias de Dostoiévski-pensador entram no seu romance polifônico, mudam a própria forma de sua existência, transformam-se em imagens artísticas das ideias: combinam-se numa unidade indissolúvel com as imagens das ideias (de Sônia, Míchkin, Zossima), rompem o seu fechamento monológico e seu acabamento, tornam-se inteiramente dialógicas e entram no grande diálogo do romance em absoluto pé de igualdade com outras imagens de ideias (as ideias de Raskólnikov, Ivan Karamázov e outros). É inteiramente inaceitável atribuir-lhes a função conclusiva das ideias dos autores do romance monológico. Aqui elas não têm absolutamente essa função, são participantes equipolentes do grande diálogo. 
(In: Problemas da Poética de Dostoiévski. Ed. Forense Universirária, pp. 103-104. Grifo meu.)

Esta pode ser – e eu creio que é – uma leitura errada da dinâmica interna do romance dostoievskiano, mas é ao menos uma leitura honesta. Bakhtin conhece as ideias do Dostoiévski-pensador, sabe onde elas ganham tratamento literário explícito e não tenta disfarçá-lo. Ele sabe que o autor discorda de Raskólnikov e Ivan Karamázov, e no entanto crê que essas personagens negativas aos olhos do autor neutralizam-se no contexto polifônico do romance dostoievskiano. Quanto a isso, há ampla literatura argumentando em contrário, e remeto o leitor novamente ao texto de René Wellek.

O maior problema começa quando seguidores de Bakhtin usam a teoria polifônica para apagar o ponto de vista do autor, neutralizando suas posições que causem eventual incômodo, e terminam contradizendo não apenas Dostoiévski, mas o próprio Bakhtin, ao construir sobre os escombros da morte do autor a “verdade acabada” que melhor lhes aprouver. Ora, dizer que Crime e Castigo é um romance sobre um crime enquanto experimento social, fruto da mentalidade socialista de seu autor, não é dar-lhe uma interpretação monológica? Bakhtin se revira no túmulo. Bebeu do próprio veneno. Não por acaso o tradutor brasileiro de Crime e Castigo, o qual é hoje um dos grandes responsáveis pela distorção da imagem de Dostoiévski em autor de cosmovisão socialista, é também atualmente o grande tradutor e divulgador de Bakhtin no Brasil.

Resumo da ópera: a teoria bakhtiniana é uma apropriação anacrônica da obra de Dostoiévski e serve de instrumento para que críticos com visões de mundo contrárias à do romancista calem o autor em benefício de seus próprios interesses muito menos dialógicos do que ideológicos.


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[1] Atualmente, até onde posso ver, a febre bakhtiniana já saiu moda entre a eslavística internacional, ou ao menos está longe de ser hegemônica. Sinto não poder dizer o mesmo sobre o Brasil.

[2] Que o regime que a substituiu não tenha sido diferente é um dos problemas fundamentais a ser discutido pela historiografia política e cultural da Rússia.

[3] “Equipolentes são consciências e vozes que participam do diálogo com as outras vozes em pé de absoluta igualdade; não se objetificam, isto é, não perdem o seu SER como vozes e consciências autônomas.” (Problemas da Poética..., Nota do Tradutor, p. 5.)

[4] Carta a N. A. Liubimov, 10 de maio de 1879. In: “Dostoevsky on The Brothers Karamazov”, trad. S.S. Koteliansky, New Criterion, IV (1926), 552-53.

[5] Cf. a esse respeito o livro de René Girard, Dostoiévski: do Duplo à Unidade. “...a estrutura de Os Irmãos Karamázov é semelhante à das Confissões e à da Divina Comédia. É a estrutura da encarnação, a estrutura fundamental da arte ocidental, da experiência ocidental. Está presente todas as vezes em que o artista consegue dar a sua obra a forma da metamorfose espiritual que lhe deu origem. Não se confunde com a narrativa dessa metamorfose, ainda que possa coincidir com ela.” É Realizações, p. 142.

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