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terça-feira, 12 de junho de 2012

Um Certo Distanciamento Crítico


Eles são especialistas daqueles tão especializados que passam a ver seu objeto de estudo com o que chamam de distanciamento crítico — e apenas assim. É verdade que distanciadamente é único modo como algumas pessoas conseguem se aproximar (paradoxo significativo) das coisas, e contudo eu tenho uma dificuldade enorme para entender isso. Como pode? Como, um ateu estudioso de Santo Agostinho? Como, um comunista dostoievskiano? Eu me pergunto: como, e a resposta é sempre a mesma: com distanciamento crítico.

Nossas universidades estão cheias disso. O que me faz lembrar de mim mesma aos dezesseis para dezessete anos, estudando para ingressar no curso de Letras porque lá eu encontraria pessoas que gostassem de literatura. Para mim a relação era simples e direta: todas as pessoas que lêem poesia são sensíveis e interessantes. Sim, eu fui uma adolescente ingênua e uma leitora sem muitos comparsas. Depositei todas as minhas esperanças, pois, no bendito curso de Letras, onde todos seriam como eu e sincera e devotadamente amariam a literatura!

Criança miserável, estavas errada. Quem eram aquelas pessoas? O que faziam com livros de poesia entre as mãos? Não eram muito diferentes dos broncos ignorantes do meu colégio. Liam literatura, mas com distanciamento crítico. “Todos os problemas de Drummond já estão resolvidos em Baudelaire”, diz o cínico aspirante a crítico literário, nenhum sinal de tremor nas mãos, nenhum tique nervoso de pálpebra que denunciasse um mínimo princípio de incerteza.

Para esses seres (costuma ser complicado chamá-los de indivíduos), filosofia e literatura são “coisas” paralelas à realidade, que pairam sobre o mundo propriamente dito. Afinal de contas, ler as Confissões de Santo Agostinho, e estudá-las teoricamente, não precisa levar ninguém a fazer um exame de consciência em si mesmo (exemplo roubado de uma das inspiradas falas de minha BFF, Day Teixeira), certo? Trata-se de um mundo em que o envolvimento do estudioso com seu objeto é coisa não só dispensável, mas até indesejada, pois a qualidade do trabalho será diretamente proporcional à quantidade de distanciamento crítico empregado pelo dito pesquisador ao lidar com seu objeto.

Não faz muito tempo ouvi da boca de um doutorando uspiano: “São Tomás de Aquino é bem legal, mas religião em si é um horror.” E eu me pergunto: como?! Dentro da psicologia de uma pessoa viva nesse mundo — como?! Porque em verdade eu ainda não me livrei daquela adolescente de dezesseis anos e, se preciso escrever um artigo sobre um romance para uma matéria da faculdade, busco um jeito de me envolver com ele, se não puder ser por empatia, que seja por discordância, por simples repulsa — mas é preciso haver alguma relação, um canal direto entre a minha subjetividade e o que quer que seja o bendito objeto. E que eu compreenda esse objeto pelo que ele é plenamente, sem qualquer recurso a essas lentes mágicas que os scholars usam para retalhar uma obra em pedacinhos não necessariamente comunicáveis entre si. Modo pelo qual conseguem, por exemplo, estudar Dostoiévski sem passar pelo cristianismo, pois “a obra não é do autor, é do mundo, já que desde Freud não se pode mais falar em intenção do autor.”

Todas as frases entre aspas neste texto são verídicas. Eu gostaria que não fossem, mas são, e essa última é de autoria de um Professor Doutor do Departamento de Letras Modernas da USP.

domingo, 4 de setembro de 2011

Noções de Etiqueta para Filósofos Acadêmicos

Muito mais difícil que o meio-termo da virtude ética é o meio-termo da virtude etiquética. O que faz sentido, pois é mais fácil achar o ponto certo na grande (ética) do que na pequena (etiqueta). Vejam só o caso da pronúncia dos nomes estrangeiros. Abrasileire demais, e você se mostrará um iletrado rústico. Fale corretamente, e será um pedante.

Começo com um caso vulgar, isto é, de fora da academia: o Facebook. Entre os extremos de "fêisbuk" (que mostra como você se acha melhor que o interlocutor por falar inglês e é muito chique por passar o feriado em Miami) e "fasseboóque" (ocorrência que nunca encontrei de fato, pois quem fala assim deve, no máximo, usar orkut), está a forma normal, urbana, cosmopolita "fêicibúqui". Nem muito aos EUA, nem muito ao Brasil.

As faculdades de filosofia não ficam para trás em matéria de etiqueta. Muito pelo contrário: pequenos deslizes, aparentemente inocentes, podem significar o fracasso da vida acadêmica de um aspirante ingênuo. Um comentário mal pensado, uma expressão de opinião pessoal contrária ao que demanda o bom gosto, e o clima social que envolve o estudante cai a temperaturas baixíssimas e duradouras.

Os nomes dos filósofos (dos quais, nem preciso dizer, não há um que seja em português) são um campo minado para o jovem que deseja ascender socialmente e adentrar o excitante mundo dos minúsculos jogos de poder e disputas de ego ferozes que compõem um universo acadêmico saudável.

Descartes.

Se o nome do insigne francês soar em seus lábios como uma jogada de baralho, pode dar adeus à sonhada iniciação científica: você está descartado. Por outro lado, fale em francês puro e o resultado será o mesmo: o professor tomará sua pronúncia como um desafio à sua autoridade, uma hubris a ser punida com a devida nemesis. Pois veja: só depois de alguns anos num pós-doc na que outrora chamava-se Sorbonne é que você conquista o direito de falar "Dêcarrt". A única exceção é se você for um dos puxa-sacos oficiais (a qualificação é importante; escreverei sobre isso em edições futuras) de um professor que já conquistou e se utiliza desse direito, caso no qual o afrancesamento não é nem sequer opcional, mas obrigatório. Para os demais, sigam pelo caminho estreito do meio: as formas "Dêcarts" ou "Dêcart" (ambas com r fraco!) criam um equilíbrio perfeito entre o francês arrogante e o brasileiro chucro.

Regras similares se aplicam a Heidegger (o elegante é "Ráideguer", não "Ráid-garr" e muito menos "Eidejér"), Locke ("Lóqui", e não "Lók" ou "Lôque"), Bacon ("Bêicom" e não "BêicãN" ou "Bacôm") e todos os outros posteriores ao florescimento das línguas nacionais. Entre antigos e medievais vale ainda um sistema mais simples, herdado de nosso passado luso: a tradução.

Você leu primeiro aqui: a tradução do nome é, em si, extremamente deselegante (e desnecessária, dado o método acima traçado). É apenas o costume de séculos que, viciando nossos ouvidos, nos acostumou com nomes como Platão. Agora vá aos diálogos dele em edições da Metrópole e sinta como a mesma tradução produz resultados de ranger os dentes: Critão, Menão, e claro, o pior de todos, Fedão. Pois você acha que Platão soa melhor do que esses? É a força do preconceito enraizado.

Os lusos levaram adiante esse expediente rude que é a tradução, se atrevendo a grafar nomes como o do artista Miguel Ângelo (nós mesmo seguíamos esse costume em épocas menos polidas), o do economista e filósofo Carlos Marcos, do utilitarista João Duarte Moenda e - cereja do bolo - do bardo imortal Guilherme Balança-a-Lança. Mas sobre tais gafes, como diria "Vitiguênstáim" (evite pronunciar o "s" como "sh"), é melhor calar.
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