sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Não Somos Anões

É a segunda vez que João Mellão Neto traz o conservadorismo para o debate na grande imprensa (“Eu sou um conservador“, Estado de S. Paulo, 16/11/12). E acho que ele deve ser aplaudido por fazê-lo: novas posições, autores e referências são sempre bons em nossa cultura política cada vez mais carente de ideias. Neste segundo artigo fica explícita a influência, que já se fazia sentir no anterior, de Russell Kirk e Edmund Burke (se ele reproduz bem o pensamento desses dois autores é algo que não posso julgar).

Voltam à baila os pontos principais que ele frisara anteriormente: que os arranjos institucionais que chegaram a nós passaram por longos testes e portanto devem ser os melhores, e que nós, modernos, em relação a nossos antepassados, debruçamo-nos em ombros de gigantes. Isso não quer dizer ser avesso a toda e qualquer mudança, e sim que as mudanças propostas serão sempre graduais, aprimoramentos marginais ao invés de reformulações totais.

Além disso, há dois elementos novos. O primeiro é o rechaço ao relativismo moral; e o segundo é o valor dado ao meio-ambiente e à natureza. E quero me dedicar aqui ao primeiro desses, que ilustrará bem o que vejo como a fraqueza no cerne do pensamento conservador defendido por Mellão Neto. Diz ele:

“Voltando às principais teses conservadoras, um conservador de verdade não tolera o relativismo moral. Ainda no século passado, terríveis consequências sofreram os povos onde ocorreu um colapso da ordem moral, onde os cidadãos transigiram quanto a isso. A moral há de ser uma só, seja ela fruto de revelação divina ou tenha sido forjada pela convenção humana. Ela é o resultado de um arranjo costumeiro, cuja origem data de tempos imemoriais. E é ela que nos preserva do abismo.”

A princípio parece apenas uma defesa de uma moral/ética objetiva, ou seja, não dependente de caprichos ou adesões irracionais; mas leiam com mais cuidado. Ele diz que a moral há de ser uma só, e não que ela seja uma só. A confirmação disso é que ela pode ter origens díspares: revelação divina, convenção, arranjo costumeiro (o que está ausente: realidade, razão; tudo o que seja universalmente e objetivamente acessível a todos). Ao dizer isso, não se está rejeitando o relativismo moral; se está rejeitando apenas a variabilidade dos juízos morais, o que é muito diferente. Não se rejeita que a origem da moral esteja em alguma instância arbitrária (no capricho ou no salto de fé – que pode ser qualquer fé); rejeita-se, isso sim, que, existindo um código moral, outros existam paralelamente a ele. Isso é a ruína, isso nos joga no caos e no abismo. “A moral há de ser uma só”; não importa que seja verdadeira –cabe falar de verdade no âmbito das convenções? – e sim que seja a única. Nessa visão, o único ato verdadeiramente proscrito é propor um critério ou um valor moral diferente do dominante. Se a sociedade for escravocrata, tudo está bem; o problema nesse caso seriam os abolicionistas, ao introduzir princípios de desordem e desunião ao consenso moral outrora coeso.

Viver em um mundo escravocrata onde os homens podiam bater nas mulheres impunemente ou em um mundo em que todos tenham seus direitos individuais respeitados? Esse é o tipo de decisão que deixaremos nas mãos dos antepassados?

Nos ombros de gigantes?

O problema do conservadorismo expresso por Mellão Neto (trata-se ou não de leitura fiel de Kirk?) é que, no final das contas, ele redunda em nada mais do que uma recusa a se pensar racional (e, portanto, sistematicamente) sobre as questões da vida e da sociedade: o que nossos antepassados fizeram já deve ser o melhor; e, demais, como saber? Somos só anões em ombros de gigantes…De onde tal complexo de inferioridade? De onde se tirou que nossos antepassados sabiam mais do que nós? Tempo não é critério. A medicina tradicional do Ocidente durou milênios; e mesmo assim estava quase que completamente errada e foi completamente solapada pela medicina moderna. O mesmo vale para a física de Newton, que enterrou de uma vez por todas as doutrinas físicas aristotélicas (o que não tira, obviamente, o valor delas para o progresso do conhecimento humano). Nos campos moral e político, há progressos inegáveis também: a instauração de direitos individuais, e a descoberta de como funciona o mercado (que possibilitou diversas medidas políticas acertadas ao invés de completamente erradas), o fim da escravidão, o fim da condenação à morte por homossexualidade, o consenso hoje incontestável da igualdade dos sexos (e, portanto, do fim de práticastradicionais como a punição física da esposa), a condenação moral e proscrição da tortura, a conquista da liberdade religiosa. Como alguém pode afirmar que não houve “progresso algum”?

O que não quer dizer que a história seja feita só de progressos; meu ponto é que os progressos e retrocessos, especialmente em matéria política, são cognoscíveis e factíveis; e que portanto não devemos abrir mão inclusive de mudar radicalmente de rumo se algo que foi legado pela tradição vai demasiadamente mal.

Como uma ressalva quanto aos meios, como um alerta para que não se destrua as instituições vigentes levianamente, ele é válido: pois sabemos que o colapso das instituições básicas é terreno fértil para todo tipo de monstruosidade. Então, na medida em que, imperfeitas como sejam, as instituições garantam algum mínimo respeito a esses direitos, é melhor preservá-las. Se elas se convertem, contudo, em violadoras sistemáticas de nossos direitos (a tirania), daí já passa a ser louvável tentar derrubá-las mesmo. A mera antiguidade não prova nada. Os antigos não foram gigantes, e nem nós somos anões. Ouso dizer que é graças ao fato de eles não terem sido plenamente conservadores, mas de terem tido a coragem de inovar e romper consensos estabelecidos, que hoje gozamos dos progressos por eles alcançados e podemos mirar mais longe.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O que é Casamento Gay?

A pergunta é sincera, sem ironias. Quando se discute o casamento homossexual, do que é que se está falando? Quero identificar precisamente qual a finalidade da luta pelo casamento gay.

Uma resposta é que a finalidade é conquistar os direitos legais que são dados a parceiros heterossexuais e dos quais os parceiros homossexuais são privados (direito obrigatório a 50% da herança, poder adotar, poder assistir a cirurgia, algum benefício fiscal, etc.). A discussão muitas vezes segue por esse caminho. Diz um homossexual: "não é justo que eu não tenha com meu parceiro a quem amo os mesmos direitos de um casal heterossexual". E até aí, perfeito; quero dizer, entende-se perfeitamente pelo que é a luta. Há certas coisas da vida prática a que os casais homossexuais não têm acesso e poderiam ter.

Mas é só isso? E se o governo estendesse todas essas garantias legais às uniões homossexuais, mas não as registrasse como "casamento"? Se desse-lhes o nome de "união civil" (ou então "cazamento", "matrimúnio", que tal?); estaria finda a luta pelo reconhecimento formal? Aí cada indivíduo responde por si, mas parece-me que, para muitos, a luta pela aceitação legal da união homossexual vai além da extensão de direitos práticos; é uma luta para que essa união seja identificada e fique plenamente indistinta do casamento heterossexual.

Mas no que consiste essa igualdade que vai além dos direitos práticos? Em um nome. Um nome outorgado pelo Estado. O Estado "considerará" essas uniões como indistintas, assim como não discrimina os casamentos de casais loiros e morenos. Mas ao predicar um ato ao Estado, especialmente um ato mental ("considerar"), fazemos uso de uma ficção. O Estado não pensa e nem quer nada. Ele é uma ficção que criamos para diversos propósitos práticos, mas sabemos que ele não existe, metafisicamente falando. O que existe são as pessoas dos funcionários públicos, e algumas de suas ações, que se pautam por certos critérios formais, são interpretadas pelos membros da sociedade como sendo ações do Estado (se um funcionário público grita com a esposa, isso não é um ato do Estado). O Estado não existe se não nas mentes dos indivíduos, e ele certamente não é identificável a nenhum indivíduo particularmente e nem a todos eles. Então, o que importa se o Estado "considera" X ou Y? Para além dos direitos práticos, que realmente mudam alguma coisa na vida humana, o resto é fumaça e hipostasiada, ou seja, um ente puramente relacional e mental ao qual se atribui uma substancialidade metafisica.

A opinião do Estado não é a verdade objetiva, e nem chega a ser uma opinião, posto que não há mente por trás dele; são palavras escritas em algum papel e só. E por isso acho curiosa a luta pela definição estatal que se dá a algo. O Estado é só palavras e interpretações dadas por indivíduos em um grande acordo implícito; isso importa exclusivamente por causa das implicações legais práticas que essas palavras podem ter; dada uma formulação, posso ir para a cadeia se fizer X. Mas se as implicações legais práticas são as mesmas, de que importam as palavras usadas? Que importa se o Estado "chamar" à relação de um cachorro e seu dono de "zooposse" e der outro nome à relação entre o gato e seu dono? "Ah não! Zooposse para mim é apenas a relação com o cachorro, jamais com um gato. Claro, um homem pode ser dono de um gato e brincar com ele, mas não se tem uma 'zooposse', e sim outra coisa; no máximo uma 'posse de ser vivente' ". Beira ao absurdo. Nomes não são realidades.

Se a luta fosse pelo casamento na Igreja católica, daí a questão seria bem diferente. Pois a Igreja afirma algumas coisas concretas sobre o matrimônio: diz que ele é um Sacramento. Ou seja, pela visão católica, Deus usa essa união entre homem e mulher, e os atos decorrentes dessa união, como um canal especial de sua graça para ajudar na santificação dos envolvidos nela e dos filhos dela nascidos. Sendo assim, é relevante (para quem acredita na doutrina católica), saber o que é e o que não é matrimônio. No Estado nada disso está em jogo; tirando a parte dos privilégios legais dos casados em relação a seus cônjuges, é apenas um nome e nada mais.

Além disso, Deus é, verdadeiramente, uma Pessoa. Ele não tem opiniões (Sua mente tem a relação inversa da nossa com a realidade objetiva; a realidade decorre de sua mente, e não vice-versa), mas é um ser pessoal ao qual cabe falar que afirma ou nega, quer ou não quer, faz ou não faz, etc. Quando falamos do Estado nesses termos, estamos apenas usando uma metáfora. Não existe um "alguém" por trás dele; muito menos um "alguém" cuja opinião favorável carregue consigo a aura de juízo da realidade objetiva.

Assim, não haveria motivo direto para se lutar por uma "aceitação" estatal. A não ser que o objetivo não seja essa aceitação em si (que, como tentei argumentar, é uma ilusão), mas algum efeito que se espera que decorra dela. Um efeito possível é: a maioria das pessoas hipostasia o Estado, e o considera sim como uma pessoa mais importante, quiçá uma voz de uma realidade superior que emite verdades mais sólidas ou absolutas. E portanto, se o Estado "considerar" indistintamente as uniões hetero e homo como casamentos, isso talvez mude a maneira pela qual as pessoas consideram essas uniões. E então seria a motivação da luta pelo casamento gay (supondo que exista um número considerável de militantes que queira, além da igualdade de direitos práticos, também a identidade dos nomes concedidos às uniões; coisa de que não estou certo) uma luta, no fundo, por um meio de mudar a opinião das pessoas via um atalho político?

Outra possibilidade é que, como costuma acontecer, o Estado ainda seja visto em uma chave mais ou menos divina, e não como a ficção humana que ele é. Assim, uma "aceitação" do Estado é vista como algo que dá, por si só, legitimidade a uma prática. Se esse for o caso, trata-se apenas de uma ilusão que precisa ser desmistificada. O Estado é apenas uma agência humana com o poder de iniciar agressão contra os indivíduos que vivem dentro de um certo território. Ele provavelmente é necessário à vida humana em sociedade, mas não há nada nele que o torne fonte ou determinador do que é certo ou errado, legítimo ou ilegítimo em sentido moral; embora, espera-se, as leis que ele coloca em prática preservem alguma relação com o que cremos ser bom e mau na realidade - e mesmo isso nem sempre é o caso.

A legitimidade de um tipo de união romântica pode depender de muitas coisas: da opinião dos homens em geral, única e exclusivamente da opinião dos envolvidos em tal união, da vontade de Deus, dos benefícios ou malefícios que tal união traz independentemente dos desejos e opiniões dos homens, etc. Mas ela não depende, e nem pode depender, de algum tipo de sanção estatal, posto que nada deriva sua legitimidade disso.

Se a finalidade da luta pelo casamento gay for 1) a remoção de entraves legais e outros efeitos práticos, ela é válida (do ponto de vista de alguém que acredite que não há nada de errado ou deficiente nas uniões homossexuais). Se for 2) a manipulação da opinião pública por um meio indireto que se crê eficaz, a luta faz sentido prático, mas sua idoneidade é questionável (mesmo para alguém que aprove ou esteja envolvido em uma relação homossexual). Por fim, se for uma luta para 3) se sentir aceito ou legitimado, como se o Estado fosse uma instância superior capaz de conferir essa "legitimidade ontológica", trata-se de um engano, um resquício da superstição que insiste em divinizar essa agência humana (talvez por que, quando se deixa de divinizá-la, vê-se o que ela realmente é; e daí os detentores e usuários dos meios coercivos perdem, com o véu de mistério sagrado, sua carta branca). Nem se todos os Estados do mundo incluírem as uniões homossexuais no conceito de casamento, e nem mesmo se a ONU (essa meta-ficção) proclamar que é tudo igual, nada disso dará legitimidade à coisa; ou se a encontra independentemente do Estado, ou nunca se a encontrará.

***

A mesma consideração vale para quem se opõe, com unhas e dentes, ao casamento gay. O que querem preservar? Qual o medo de que o Estado mude algumas palavras? Ou é, também, apenas uma questão de garantir que certas benesses legais sejam dadas somente a um tipo de união e não a outros?

sábado, 24 de novembro de 2012

Gays e Cabras - a comparação que não ocorreu

J. M. Guzzo conseguiu o que queria com seu artigo "Parada Gay, Cabra e Espinafre" na Veja: provocar quem já a odeia e assim ganhar exposição. O título dá a entender algo, o texto quando (mal) lido dá a entender algo, mas é algo que não está lá. Em nenhum momento a homossexualidade é tomada por doença e em nenhum momento equipara-se o casamento gay ao incesto ou à bestialidade, e nem se argumenta que, liberado aquele, esses eventualmente também o serão. O artigo, na minha opinião, é ruim; mas não pelos motivos que se alardeiam. Esses são apenas a prova de seu sucesso.

As comparações que Guzzo faz não equiparam, em momento algum, a homossexualidade às outras coisas citadas. O que ele faz é apenas mostrar que a homossexualidade partilha com elas de alguma característica, sem disso inferir - o que seria plenamente falacioso - que elas se equivalem em qualquer outro plano.

Deixem-me exemplificar: andam dizendo por aí que é um absurdo não comer capim, pois capim é verde, que nem brócoli, e nós comemos brócoli. Acontece que, ao contrário do que dizem essas pessoas, existe uma série de coisas verdes que nós não comemos: etezinhos (E.T.s pequenos), por exemplo. Falta a esses itens, capim e etezinhos, o essencial para algo ser comida: ter proteínas. É claro que comer capim é só uma burrice e comer etezinhos é uma barbaridade intergaláctica, mas isso não vem ao caso neste exemplo: ambos têm as mesmas características de serem verdes e não comestíveis, e isso basta. Você pode até discordar, e dizer que não, etezinhos não são verdes, são azuis. Ou então argumentar que não é preciso ter proteínas para ser alimento. Ambos são válidos. Mas não tem motivos para se escandalizar com a comparação, feita num âmbito muito preciso e que não "transborda" para nenhum outro tipo de equiparação ou equivalência.

Da mesma forma, Guzzo diz que, muito embora homossexuais possam constituir relações estáveis, isso não os qualifica para o casamento. Afinal, outros tipos de casal também constituem relações estáveis (homem e cabra, mãe e filho), mas nem por isso se qualificam para o casamento. Portanto, não basta qualificar-se como relação estável para se estar apto a casar. Pode-se questionar muitas coisas aí; mas a comparação, ou melhor, a equiparação que chocou a tantos simplesmente não foi feita. Então deixem a lindíssima, a idolatrada indignação moral de lado um pouquinho e usem esses belos olhos e cérebro sedentos de justiça para ler o que está escrito.

O que a mim parece ser a verdadeira fraqueza do texto do Guzzo é que a base do argumento é fraca. No fundo, basicamente reafirma a lei existente. Casamento é só entre homem e mulher. E daí, quem disse que essa lei é a melhor, ou mesmo boa? Uma diferença entre essa relação e a homossexual é apontada: essa gera filhos. Ora, a incestuosa os gera também; por que eles não podem? Mas há casais sabidamente estéreis (uma mulher que se case depois da menopausa); por que eles podem se casar se a reprodução é o fator determinante? E o dia em que a tecnologia permitir que um homem engravide de outro homem; daí o casamento gay passará a ser legítimo e deverá ser instituído pela legislação? Pode parecer absurdo, ou mesmo indecente, questionar as práticas legais atuais mesmo no que diz respeito ao incesto; mas podem ter certeza que, indecente ou não, se a única coisa impedindo o reconhecimento legal de um relacionamento for o costume de não aceitá-lo, essa restrição está com os dias contados. Nossa sociedade não adere mais à premissa conservadora de que, se algo foi instituído por gerações passadas e durou muito tempo, então elas devem ter tido bons motivos ainda que nós não os conheçamos. Da mesma forma, mesmo para quem é contra o casamento gay, não basta dizer que sempre foi assim ou que a lei o define assim; é preciso mostrar por que a união heterossexual é superior e digna de um reconhecimento único. A reprodução sozinha não dá conta do recado.

domingo, 18 de novembro de 2012

Ler e Filosofar


Poucos discordariam de que é útil, e talvez necessário – filosoficamente –, estudar os filósofos do passado. É irrelevante para um físico ler Newton; e imprescindível para um filósofo ler Platão. A filosofia no presente se beneficia do conhecimento de seu passado, e por isso se justifica que tantos estudantes se dediquem a alguma questão histórica (no meu caso, por exemplo, a questão que pesquiso no mestrado é: “Qual a fundamentação epistemológica do conhecimento humano acerca do bem e do mal?”). Nesse tipo de estudo, a preocupação é desvendar o que um filósofo realmente diz sobre um tema; isto é, lê-lo e entendê-lo corretamente.

Em que medida isso importa? Em que medida nossa forma de ver o mundo depende de saber se, digamos, Aristóteles pensava X ou Y sobre o mundo? Além do benefício para o estudante, que é levado a pensar em diversas questões ao estudar um autor como Aristóteles, é difícil pensar que, hoje em dia, uma mudança em nossa leitura de Aristóteles tenha impacto na discussão filosófica. Imaginem que um novo comentador prove, sem margem de dúvidas, que a forma como lemos Aristóteles até hoje está errada. Imagine que ele prove, ademais, que a verdadeira leitura de Aristóteles, aquela que capta o sentido real de suas obras (enquanto todas as outras apresentam problemas sérios de leitura), seja, filosoficamente falando, muito mais tola e rasa. Imaginemos, por exemplo, que esse acadêmico prove que Aristóteles, sempre que fala de “formas”, refere-se exclusivamente ao formato geométrico e corpóreo do ser. Mesmo quando o assunto é a alma, Aristóteles estava a atribuir formato geométrico a ela(sim, sim, é absurdo e falso imaginá-lo; mas por um momento topem essa suspensão da descrença). Isso quer dizer que toda a tradição aristotélica, ao atribuir a seu pai fundador uma certa concepção muito mais rica e profunda de “forma”, estava equivocada.

[Um pequeno adendo: hoje em dia, com nossa técnicas de leitura, filologia e análise contemporâneas, é improvável – embora não impossível – que um erro grotesco de leitura se perpetue por tanto tempo. No passado, contudo, essa possibilidade estava muito mais presente. Em meu próprio mestrado, um conceito importante de Tomás, a “synderesis”, teve origem, vejam só, em uma cópia mal-feita que algum monge fez de um texto de S. Jerônimo. Em uma passagem em que S. Jerônimo se referia à “syneidesis” – termo grego traduzido como consciência – o copista escreveu “synteresis”, criando um novo termo (inexistente na língua grega). Adicione-se a isso algumas gerações de estudiosos e comentadores, e temos um novo conceito filosófico e teológico.]

A pergunta que quero fazer com base nesse exemplo é: e daí? E daí se Aristóteles tiver sido um tolo com uma tese ridícula acerca da realidade? Isso faria toda a diferença para a indústria acadêmica, causaria imenso rebuliço nos departamentos de filosofia, consagraria carreiras e talvez destruísse outras; mas para a filosofia nada mudaria. As questões, as posições e os argumentos atuais - nenhum dos quais depende da autoridade pessoal de Aristóteles - continuariam os mesmos. Da mesma forma, se encontrássemos, hoje em dia, algum texto perdido de Aristóteles, a importância do achado para os departamentos de filosofia seria imensurável. Para a filosofia em si, é improvável que ele tivesse grande impacto direto (a não ser que em sua obra inédita constassem argumentos e refutações inéditos de problemas atuais).

Não é possível falar de um progresso filosófico claro e mensurável, como nas ciências naturais; mas é igualmente claro que há um progresso em andamento: argumentos são consolidados, novas respostas e refutações surgem, problemas são reformulados, o conhecimento do mundo natural leva-nos a descartar certas possibilidades, etc. Um rápido exemplo: um argumento para a imortalidade da alma como o dos contrários, encontrado no Phaedon, não é mais sustentável hoje em dia. E é por esse motivo que um novo texto de Aristóteles, assim como um novo texto de Newton, embora criassem uma revolução no nosso entendimento da história do pensamento, não criariam uma revolução na filosofia ou na física.

Mesmo assim, essa correção da leitura faria muitos filósofos que gostavam de Aristóteles se sentirem mal. Aposto que haveria até um impulso inicial de defender Aristóteles da nova e desabonadora interpretação; e a motivação não seria a de fazer a defesa da própria leitura, mas a de provar que Aristóteles não era um tolo. Falando por mim, imagino que é exatamente isso que eu faria se uma nova interpretação de S. Tomás visasse mostrar que ele não passou de um pensador raso e limitado (a propósito, é isso que faz Anthony Kenny ao responder às passagens nada elogiosas que Russell dedica a S. Tomás em sua história da filosofia).

Não tenho resposta ou explicação para isso. Se tivesse que arriscar, diria que gostamos de ver nos autores clássicos uma personificação de suas ideias. Caindo Aristóteles, não cai o realismo metafísico, mas cai a ideia de Aristóteles como uma personificação do ideal ético e filosófico que associamos às suas ideias (e que pode variar muito de leitor para leitor: o Aristóteles de Garrigou-Lagrange não era o mesmo do de Ayn Rand). Também podemos fazer de um filósofo a encarnação de algo mau. No caso de um aristotélico contemporâneo, os (supostos) defeitos pessoais de Kant ou Bentham servem como um tipo de refutação poética de suas filosofias (nesse sentido, ainda bem que Aristóteles viveu há 2400 anos...). Nossa relação com a filosofia não é inteiramente impessoal; estão em jogo convicções, modos de ver o mundo, apostas existenciais; e daí importa saber se temos ou não exemplares reais dela no mundo, testemunhando a possibilidade de viver por diferentes ideias. A biografia, a dignidade ou a inteligência de nossos antepassados não importa para a filosofia; mas importa para os filósofos.

sábado, 10 de novembro de 2012

Platão comenta texto de Lorena Miranda

Sim, Lorena Miranda escreveu este texto, Joel Pinheiro e Rafael Falcón o comentaram, mas o velho Platão, malandro bimilenar, já tinha atirado sua garrafa ao Mediterrâneo. Está lá no Teeteto, 173d-174b, e segue abaixo na tradução de Carlos Alberto Nunes (Edufpa, 2001):

Sócrates – Então, falemos dos diretores do coro, já que isso te agrada, conforme verifico. Qual a vantagem de perdermos tempo com a arraia-miúda do campo da Filosofia? De início, devemos observar acerca dos primeiros que desde a mocidade o que mais do que tudo ignoram é o caminho da ágora ou onde fica o tribunal, a sala de conselho e quejandos locais de reuniões públicas; não ouvem nem vêem as leis nem as decisões escritas ou faladas. As disputas dos cargos públicos nas hetérias, as reuniões e os festins, os banquetes animados por tocadoras de flauta: nem em sonhos lhes ocorre comparecer a nada disso. Nasceu na cidade alguém de nobre ou baixa estirpe? Certo cidadão herdou tara de seus antepassados, homens ou mulheres? É o que filósofo conhece tão pouco, como se diz, como quanta areia há no mar. Nem chega mesmo a saber que não sabe nada disso. Porém não se alheia dessas coisas por vanglória, mas porque realmente só de corpo está presente na cidade em que habita, enquanto o pensamento, considerando inane e sem valor todas as coisas merecedoras apenas de desdém, paira por cima de tudo, como diz Píndaro, sondando os abismos da terra e medindo a sua superfície, contemplando os astros para além do céu, a perscrutar a natureza em universal e cada ser em sua totalidade, sem jamais descer a ocupar-se com o que se passa ao seu lado.

Teodoro - Que queres dizer com isso, Sócrates?

Sócrates - Foi o caso de Tales, Teodoro, quando observava os astros; porque olhava para o céu, caiu num poço. Contam que uma decidida e espirituosa rapariga da Trácia zombou dele, com dizer-lhe que ele procurava conhecer o que se passava no céu mas não via o que estava junto dos próprios pés. Essa pilhéria se aplica a todos os que vivem para a Filosofia. Realmente, um indivíduo assim alheia-se por completo até dos vizinhos mais chegados e desconhece não somente o que eles fazem como até mesmo se se trata de homens ou de criaturas de espécie diferente. Mas o que seja o homem e o que, por natureza, lhe cumpre fazer ou suportar, para distingui-lo dos outros seres, eis o que ele procura conhecer, sem se poupar a esforços em sua investigação. Compreendes-me, Teodoro, ou não?

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

De como Dostoiévski foi o primeiro olavete; e o desaparecimento iminente dos moderninhos com cara de nojo

I

Escrevi recentemente um artigo sobre Dostoiévski onde avalio a relação deste com a noção de Ocidente e a cultura ocidental. O artigo foi lido por Joel Pinheiro e Julio Lemos e desagradou a ambos pelo que seria um excessivo tom “olavista-voegelinista”. (Nota: Não conversei com Julio Lemos sobre o assunto; sua apreciação me foi brevemente transmitida por Joel Pinheiro. Já com este último venho discutindo abundantemente todas as questões em torno do malfadado artigo, de modo que boa parte do que direi nesse texto não lhe será novidade. No entanto, creio que a grande maioria das pessoas tem sobre Dostoiévski a mesma impressão truncada que verifiquei ser a do Joel. Este texto é uma tentativa de desfazer parte desses nós e de quebra pegar o gancho da discussão mais interessante que a internet viu nos últimos tempos: aquela em que Olavo de Carvalho respondeu às indiretas de Julio Lemos.)

No que pese a crítica razoável de que meu artigo deveria citar menos comentadores (notadamente, Ellis Sandoz, discípulo de Eric Voegelin) e mais o próprio Dostoiévski, é notório que o problema de Joel Pinheiro é principalmente com a linha interpretativa que eu sigo no artigo, tomada, sim, a Sandoz-Voegelin, uma vez que desconheço fonte teórica mais acertada para interpretar o Dostoiévski político (e acrescento que Dostoiévski é o objeto da minha pesquisa de mestrado; há pelo menos três anos não faço outra coisa senão ler interpretações de sua obra). Mas faço o mea culpa que me cabe: o leitor não-especializado, que não leu as mil e quinhentas páginas de textos jornalísticos de Dostoiévski, tampouco suas cartas e cadernos de notas, além, evidentemente, de sua obra literária, não tem obrigação de saber que o ideólogo por trás de obras enigmáticas como Os Irmãos Karamázov e Crime e Castigo identificou pioneiramente o fenômeno a que Eric Voegelin chamou “gnose moderna”. Eu deveria, portanto, ter escrito algo como um preâmbulo justificando a pertinência de minhas fontes teóricas. Concedido isto, sigamos adiante.

Joel Pinheiro declara que, ao invés do meu artigo, gostaria de ler

um ensaio sobre Dostoiévski, e não apenas sobre o "processo político/espiritual gnóstico da modernidade que foi profundamente percebido por Dostoiévski quando ele se defrontou, despido de todas as ideologias, com o problema do nada na alma russa, e como sua crítica vislumbrou os males do séc. XX e de nossa sociedade à beira do apocalipse".

E diz ainda que Ellis Sandoz, ao interpretar a Lenda do Grande Inquisidor à luz da teoria histórica voegeliniana, não está falando de Dostoiévski, mas usando o russo para “fazer política”. O que me faz inevitavelmente exclamar de mim para mim: que raios o Joel pensa ser o conteúdo e o sentido último da obra dostoievskiana?! Subtraia-se a Dostoiévski o sentido do “processo político/espiritual gnóstico da modernidade” e tem-se perfeitamente um corpo sem forma, um significante sem significado. O que não falta são leituras de Dostoiévski politicamente neutras como a desejada pelo Joel, mas eu continuo achando muito mais válido ler um autor pela chave que ele, com todas as letras, declarou ser a sua, e desse modo desdobrar os conteúdos ali implícitos, dando continuidade àquilo que o próprio autor se comprometeu com dizer.[1] No caso de um escritor prolixo como Dostoiévski, esse tipo de crítica é mais do que bem-vindo; mostrar quem é o Dostoiévski de carne e osso sob a parafernália polifônica alardeada pela leitura formalista de Mikhail Bakhtin é o melhor que se pode fazer, nos dias de hoje, pela memória de um autor com os pés tão fincados no real e muito pouco interessado em formalismos e abstrações.

Mas, com efeito, é bastante compreensível que um leitor não-especializado não dê pela importância disso, pois desconhece o projeto literário-político-filosófico do mentor de Os Demônios. Eis algo de que só me dei conta quando da discussão em torno do meu artigo: a grande maioria das pessoas não faz a mínima ideia de quem tenha sido o ideólogo Dostoiévski. Isto se deve, é claro, à dicção literária do romancista russo, que, tendo intenções filosóficas e não raro políticas muito bem definidas para cada uma de suas obras (e isto se verifica de modo muito claro em seus textos não-literários), não consegue senão retratar a realidade de forma polissêmica, dando um equivalente literário ao caos das coisas elas-mesmas. Donde resulta seu recrutamento pelos grupos ideológicos mais díspares, de socialistas a aristocratas wannabe.

É um fato atualíssimo: todos amam Dostoiévski. O autor russo que viveu administrando pedradas e cusparadas e aplausos os mais efusivos chegou, enfim, a ser plenamente adorado. Mas isto tem seu custo: diferentemente dos leitores de hoje, seus contemporâneos o conheciam, liam-no tanto em seus romances como – e talvez até mais – nos textos jornalísticos em torno dos quais ele construiu sua persona intelectual. E, assim, na Rússia do século XIX não era possível macaquear Dostoiévski: quem fosse partidário do velho Fiódor Mikháilovitch trazia necessariamente a si o estigma de suas opiniões tão controversas. Já seus leitores de hoje não o levam às últimas consequências e elogiam-no cada qual na medida de suas conveniências e interesses – seja pelo simples fato de ser um autor canônico, e assim não lê-lo é de uma deselegância inaceitável, seja por ele retratar o caos da alma humana, pelo que serve à causa-mor da contemporaneidade desnorteada – a implosão das ordens tradicionais.

Mas quem era, em verdade, esse Fiódor Dostoiévski? Pudesse ele avaliar seus leitores de hoje e o mundo de hoje, o que diria? Mais interessante ainda: se alguns de seus entusiastas atuais vivessem na época que o viu nascer, seriam ainda entusiastas, ou quem sabe engrossariam o time de seus detratores? Ainda uma última elucubração: se tivéssemos nos dias de hoje um intelectual com ideias semelhantes às de Dostoiévski e eloquência parelha à do autor russo, como seria sua recepção pelos nossos críticos e tão bem penteados homens de letras?


II

"Há uma grande tristeza em não se ver o bem no bem."
- Atribuído a Gógol por Lúcio Cardoso


Um paralelo entre Dostoiévski e Olavo de Carvalho é inevitável quando se leem os escritos jornalísticos de um e de outro. Não apenas suas preocupações político-culturais vão no mesmo sentido, como seus papéis sociais, na Rússia do século XIX e no Brasil do século XXI, respectivamente, são curiosamente semelhantes. Ambos partem de uma experiência pessoal, de um corpo a corpo com o movimento revolucionário de esquerda: Dostoiévski passou quatro anos em uma prisão na Sibéria por ter feito parte de um grupo simpatizante das ideias socialistas (o chamado círculo de Petrachévski); Olavo foi militante do Partido Comunista Brasileiro. Se a vida madura de ambos é marcada pelo combate à mentalidade revolucionária (termo olavético que – salvo engano meu – se aplica perfeitamente à realidade psicossocial de que tratava Dostoiévski, assim como a gnose de Voegelin), isto certamente deve remeter-se a terem visto de perto o olho do furacão. Diz Dostoiévski:

Todas essas convicções quanto à imoralidade das próprias fundações (cristãs) da sociedade contemporânea e à imoralidade da religião, da família, do direito à propriedade privada, e assim por diante – tudo isso eram influências a que éramos incapazes de resistir e as quais, de fato, capturaram nossos corações e mentes em nome de algo muito nobre. (...) Aqueles entre nós – isto é, não só os do círculo de Petrachévski, mas em geral todos os infectados e que no entanto mais tarde rejeitaram completamente toda essa escuridão e terror que se preparava para a humanidade supostamente para regenerá-la e restaurar-lhe a vida – nós àquela época ainda não conhecíamos as causas de nossa doença e portanto ainda éramos incapazes de lutar contra ela. E por que, então, os senhores supõem que mesmo um assassinato à la Nietcháiev nos teria parado – não todos nós, é claro, mas ao menos alguns de nós – naqueles tempos frenéticos, tomados por doutrinas que nos haviam capturado as almas, em meio aos devastadores eventos na Europa de então – eventos que nós, negligenciando nosso próprio país, seguíamos com angústia febril?

(In: Diário de Um Escritor, “Uma das falsidades de hoje”, 1873. Nietcháiev foi o mentor do evento que inspirou o romance “Os Demônios”, em que um jovem foi morto ao tentar desligar-se de uma célula revolucionária.)

O relato de Olavo sobre sua experiência comunista complementa muito naturalmente o de Dostoiévski:

Levei décadas para compreender que a sedução esquerdista não me conquistou – nem a mim nem a meus companheiros de geração – pelo conteúdo ativo da sua proposta ideológica, que só conhecíamos muito superficialmente, mas sim pela oferta implícita de um novo código de moralidade, que chegava a nós sem palavras, pela impregnação difusa na convivência diária. (...) Libertávamo-nos da “moral burguesa” escravizando-nos à autoridade irracional de um círculo de “companheiros”, cuja afeição se tornava o único fiador da salvação da nossa alma ante o tribunal da História. O apego ao grupo era fortalecido pelo ódio a inimigos que não conhecíamos, dos quais nada sabíamos, mas de quem imaginávamos com facilidade as piores coisas, deleitando-nos então de pertencer à comunidade dos bons. (...) Considerando-se a extensão e a gravidade dos crimes praticados pelo comunismo contra a espécie humana, o dever mais óbvio daqueles que se desiludem com ele é aprofundar a ruptura, investigando dentro de si até extirpar as últimas raízes do erro monstruoso em que se acumpliciaram. (In: http://www.olavodecarvalho.org/semana/080731jb.html)

Dostoiévski, como Olavo, saiu da experiência socialista disposto a dedicar sua vida a combater o movimento revolucionário. Isto se verifica com clareza em seus romances, mas é também um dos principais motivos de seus artigos jornalísticos. Tal combate, no entanto, toma a forma de uma crítica social ampla, buscando nos fatos correntes do cotidiano de seu país os indícios de que a mentalidade revolucionária se alastrava, o que o obrigava a insistir terminantemente – os moderninhos enojados diriam “histericamente” – nas terríveis consequências que adviriam da tomada do poder pelos autoproclamados “novos homens”. Eu me sinto segura o bastante para afirmar que Dostoiévski de bom grado teria aberto mão de toda sua obra literária por um único artigo que tivesse sido eficaz no combate às ideias revolucionárias em seu país. Essa era sua “tarefa cívica”, sua justificada obsessão. E não poderia ser de outro modo.

Não poderia ser de outro modo porque não há nada mais importante na história da cultura russa do século XIX do que o advento do pensamento socialista. Qualquer homem minimamente inteligente, interessado por cultura e que vivesse naquele tempo percebê-lo-ia. Em se tratando não apenas de um homem minimamente inteligente, mas de uma potência criativa como Dostoiévski, era inevitável que ele se voltasse à maior das questões de seu tempo, uma vez que tinha diante de si a gestação de uma ideia com o potencial destrutivo de uma bomba atômica – de efeitos materiais mas sobretudo morais. Repito: vivendo quando e onde viveu, e tendo o alcance intelectual que tinha, Dostoiévski não poderia senão ocupar-se da maior questão de seu tempo: é o que fazem os grandes homens.

Mas o Brasil do início do século XXI não é nenhuma Rússia pré-revolucionária, dirão. Não, não é; o Brasil contemporâneo é, sim, um país em plena revolução, e nós, que aqui vivemos hoje, presenciamos a cada dia o avanço da onda que há aproximadamente duas gerações vem desfigurando nossa sociedade civil e esterilizando nossa cultura. É muito difícil perceber isso, e seria praticamente impossível sem os esforços de Olavo de Carvalho. Ele é nosso Dostoiévski, e não lhe faltam no Brasil atual detratores como os teve Dostoiévski. Também o russo teve de viver sob acusações de loucura e conspiracionismo; também ele não se amedrontou e manteve até o fim sua convicção de que alguma coisa gigantesca estava sendo gestada na Rússia oitocentista e que em breve o mundo o testemunharia.[2]

E é assim que, sempre que leio um Julio Lemos fazer pouco de Olavo de Carvalho porque este suja demais as mãos no excremento dos fatos do dia, respiro fundo e penso em Dostoiévski, e me consola a certeza de que a injustiça do momento será paga com a justiça da História. Não tenho dúvidas de que, estivesse Dostoiévski vivo e tivesse a peculiar sorte de nascer brasileiro, ele estaria precisamente denunciando o Foro de São Paulo e as falcatruas do PT – ele estaria, de modo geral, chafurdando naquilo que reconhecesse como o mal no mundo. Se tem coisa que eu não entendo é esse nariz empinado de quem diz “vocês são uns suburbanos denunciando o mal no mundo!”. Ora, eu me pergunto, se um sujeito com veleidades de ser um “homem de ideias” não ocupa seu pensamento com a busca pelas metamorfoses do mal em seu tempo (e identificar o mal é inerente a delinear a verdade), faz o quê? Julio Lemos aparentemente já fez de tudo, já passou por todos os processos em que agora se debatem os olavetes suburbanos, que, ingênuos, creem ter descoberto a pólvora quando ele próprio, o Buda da internet, agora estuda as ciências naturais porque já colheu todos os frutos da metafísica.

Mas realmente não me cabe ficar aqui divagando sobre a psicologia dos detratores de Olavo de Carvalho, pelo simples fato de que Ronald Robson já o fez num texto definitivo. De 2008 a 2012 o cenário parece ter-se agravado, tornado-se mais copioso, mas sem uma mudança substancial na dinâmica de forças. E é ao mesmo Ronald Robson que eu tomo a citação que dá de modo irretocável a razão da superioridade de figuras como Dostoiévski e Olavo de Carvalho sobre seus críticos nojentinhos: “só está apto a produzir algo que fale a todos os homens de todas as épocas o indivíduo que olhou com clareza atroz o que se passa ao seu redor e amou ou odiou, com todo o empenho do seu ser, a sua particularíssima situação concreta.” O que por sua vez remete a uma carta escrita por Dostoiévski a seu amigo Nikolai Strákhov, em que critica um artigo de Turguêniev onde este descreve sua incapacidade de olhar de frente uma execução pública:
 [O]s filhos dos homens não têm o direito de dar as costas a nada que aconteça sobre a terra; não, segundo os princípios morais mais elevados, eles não têm. Peculiarmente cômico é quando ele [Turguêniev] de fato as costas, assim evitando assistir à execução. “Vejam, senhores, que refinada educação é a minha! Eu não pude suportar uma tal cena!” O tempo todo, ele se trai. A impressão mais definitiva que se tem do artigo de modo geral é que ele está desesperadamente preocupado consigo próprio e sua paz de espírito, mesmo quando se trata de cabeças sendo decepadas.

Does it ring a bell, leitor? Temos ou não temos entre nós vários filhotes de Turguêniev? Mais engraçado ainda é ver como Dostoiévski, antecipando os sofrimentos de Olavo de Carvalho, tinha de justificar o tempo todo sua escolha pelos temas do dia, os mais provincianos possíveis (no sentido que “província” tem no supracitado texto de Robson). A partir de 1873 ele passa a publicar o Diário de Um Escritor, periódico em que comentava os principais assuntos do momento e respondia a cartas – espécie, digamos assim, de True Outspeak por escrito –, sobre o qual escreve a uma conhecida:

A senhora escreve que eu estou desperdiçando meus talentos com bagatelas no Diário. Não é a primeira pessoa de quem escuto isto. Portanto quero agora dizer à senhora e aos outros: eu cheguei à conclusão de que um artista deve estar a par, até o mais mínimo detalhe, não apenas da técnica da escrita, mas de tudo – tanto eventos atuais quanto históricos – relativo à realidade a qual ele deseja retratar. (...) Eu devo dedicar-me especialmente a certas peculiaridades do momento presente. E neste presente momento a geração mais jovem me interessa particularmente e, relativa a ela, a questão da vida em família russa, a qual, em meu entendimento, é bastante diversa hoje do que era vinte anos atrás. Também várias outras questões do momento interessam-me.

Veja bem, leitor: nada disto quer dizer que é obrigatório ao intelectual tomar para si o trabalho de escrutínio do presente de que se ocupam Dostoiévski e Olavo de Carvalho. Quer dizer, as pessoas têm vocações e desígnios diferentes. Felizes seremos todos se Julio Lemos se tornar um grande lógico ou matemático; eu mesma não quero fazer outra coisa senão escrever poesia, assim como alguns serão críticos literários e outros engenheiros, e desse modo nem todos combaterão de frente o projeto diabólico da mentalidade revolucionária – mas daí a desdenhar de quem o faz é necessário um grande salto de desonestidade. Não se trata de ignorância, pois Julio Lemos sabe que Olavo de Carvalho se ocupa de coisas importantes, assim como sabe que o olavete de Facebook não representa os verdadeiros discípulos do Olavo – entre os quais não me incluo, pois diante de Ronald Robson e Rafael Falcón sou meramente uma pessoa que gosta de poesia.

Quem julgar que este texto é de um nauseante baixo nível, por tratar “de pessoas e não de ideias”, vá lamber sabão. Devíamos estar todos fartos de viver de aparências. Os debates no Brasil são essa coisa inócua porque instituiu-se que não se pode proferir palavra sem antes embrulhá-la com o papel de seda do bom mocismo.

Agora, voltando a Dostoiévski, faço uma última pergunta: alguém aí, que não seja especialista em cultura russa do século XIX, já ouviu falar em Dobroliúbov, Granóvski, Píssariev, Vladímir Zotóv? Dou um dente a cada pessoa que disser que sim. E então façam as contas e descubram quem chegará à posteridade, se Olavo de Carvalho ou as miniaturas de aristocratas que, na falta de coisa melhor, lhe fazem as vezes de críticos.



***

P.S.: Por falta de espaço, não pude comentar, como planejara, outros trechos de cartas de Dostoiévski muito interessantes ao paralelo do russo com Olavo de Carvalho. Mas postarei esses trechos em apêndice no primeiro comentário desse post, apenas para curiosidade e deleite do leitor.







[1] A título de breve exemplo, vejam-se os seguintes trechos de cartas escritas por Dostoiévski à época da criação de Os Irmãos Karamávov, em que discorre sobre suas intenções para esta obra:

“Its idea is the presentation of extreme blasphemy and of the seeds of the idea of destruction at present in Russia among the young generation that has torn itself away from reality. Ivan’s convictions form what I consider the synthesis of contemporary Russian anarchism. The denial not of God, but of his creation. The whole of socialism sprang up and started with the denial of the meaning of historical actuality, it arrived at the program of destruction and anarchism. The principal anarchists were, in many cases, sincerely convinced men.” (…)  
“The modern denier, the most vehement one, straightway supports the advice of the devil and asserts that that is a surer way of bringing happiness to mankind than Christ is. For our Russian socialism, stupid, but terrible (for the young are with it) – there is a warning [in the Legend], and I think a forcible one. Greed, the Tower of Babel (i.e. the future kingdom of socialism), and the completest overthrow of conscience – that is what the desperate denier and atheist arrives at. The difference only being that our socialists (and they are not only the underground nihilists) are conscious Jesuits and liars, who will not confess that their idea is the idea of the violation of man’s conscience and of the reduction of mankind to the level of a herd of cattle.”  (…) 
“The West has become blinded and has lost Christ. The course of the whole misfortune in Europe, everything, everything, everything without exception, has been that she gained the Church of Rome and lost Christ, and then decided that they could do without Christ.”

[2] Se é verdade que a crença positiva de Dostoiévski era sobretudo no potencial russo de produzir uma mensagem capaz de salvar o mundo do ateísmo revolucionário, essa era uma crença complementar à sua convicção de que, se os socialistas tomassem o poder, seria o fim; donde vencê-los seria um acontecimento tão significativo que deveria implicar necessariamente a posse da chave para os problemas não só da Rússia como de todo o Ocidente.
Tecnologia do Blogger.

Total de visualizações