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terça-feira, 1 de abril de 2014

Dostoiévski e Herzen na Encruzilhada da História

Juro que é a última vez que publico trechos do meu mestrado; é que o momento é realmente propício ao tema. O que vai abaixo são as páginas finais da minha dissertação. O texto não está adaptado e por isso o leitor vá perdoando a monotonia do discurso acadêmico, bem como referências incompreensíveis fora de contexto. Creio, porém, que o fundamental está acessível.

O mais provável é que depois disto eu passe um bom tempo sem falar de Dostoiévski.

Para quem ainda não teve coragem de encarar: leia "O Grande Inquisidor" neste link.


***


(...) É preciso levar em consideração ainda outro aspecto importante do pensamento dos dois autores aqui comparados: sua eficácia enquanto leitores do processo histórico no que diz respeito às ideias e revoluções políticas. O fato de ambos vaticinarem o declínio irreversível da civilização ocidental e seu iminente assalto por instituições (segundo Herzen) ou valores (segundo Dostoiévski) russos já os afasta em igual medida do quadro verídico desenhado pela história do século passado até o momento presente. Ainda assim, em suas previsões imprecisas – e delirantes, em certos pontos –, cada qual teve sua margem de erro e acerto. Mais do que checar o “dom de profecia” de ambos, cotejar suas expectativas com a realidade (na medida em que a ciência histórica tem sido eficaz em descrevê-la) pode oferecer-nos algumas importantes lições.

            Dostoiévski, no Diário de um escritor, quase trinta anos após Herzen profetizar o cataclismo europeu, pinta um quadro muito semelhante para o futuro da Europa:

A conta final e o acerto da balança podem acontecer muito antes do que as mais delirantes fantasias predizem. Os sintomas não são bons. A situação política antinatural dos Estados europeus pode servir de estopim para tudo. Uma pequena parte da humanidade não pode possuir todo o resto como escravos, e no entanto foi exclusivamente com este objetivo que, até hoje, todas as instituições cívicas (as quais há muito deixaram de ser cristãs e são hoje inteiramente pagãs) da Europa foram criadas. Esta antinaturalidade e estas questões políticas “insolúveis” devem infalivelmente levar a uma enorme e derradeira guerra de partição na qual todos estarão envolvidos e a qual estourará neste século, talvez mesmo na próxima década. (...)
            E eis que os proletários saem às ruas. O que vocês acham: eles agora esperarão pacientemente como antes, morrendo de fome? Isto será possível, uma vez que temos o socialismo político, depois da Internacional, dos congressos sociais e da Comuna de Paris? Não, agora as coisas não mais serão como antes: os proletários varrerão a Europa e toda a velha ordem colapsará de uma vez por todas.[1]

            Os fatos previstos por Dostoiévski são essencialmente os mesmos da projeção de Herzen: a situação político-econômica da Europa, insustentável a longo prazo, culminará primeiro em uma grande guerra internacional que desorganizará os Estados europeus; então, em meio à balbúrdia geral, guerras domésticas eclodirão, com os proletários das grandes potências industriais tomando as ruas e concluindo a destruição do “velho mundo”.

            Nem Herzen nem Dostoiévski viam inteiramente com bons olhos este panorama. A diferença é que Dostoiévski opunha-se a ele em princípio, desde suas premissas teóricas até suas consequências práticas, ao passo em que a discordância de Herzen diz mais respeito à metodologia de uma revolução “descontrolada” do que ao fato em si de se destruir a velha ordem por meio de um levante popular. Isto é, a onda proletária desfigurando a face do continente europeu era quase a revolução idealizada por Herzen; para Dostoiévski, era em todos os sentidos uma ameaça nefasta e um pesadelo.

            E é sobre a perspectiva desta ameaça que Dostoiévski constrói seu edifício utópico. O papel da Rússia enquanto retificadora dos erros do Ocidente viria à tona, segundo o romancista, na esteira da desordem revolucionária europeia:

As ondas [da revolução proletária] quebrarão inofensivas apenas contra as nossas margens [russas], pois apenas então, claramente e para todos verem, virá a total revelação de quão distinto é o nosso organismo do organismo europeu. Então, mesmo vocês, pensadores doutrinários, talvez recobrem os sentidos e comecem a buscar em nossa pátria “os princípios do Povo”, dos quais vocês até agora apenas riem. E ainda assim, hoje, os senhores apontam para a Europa e nos instam a transplantar para cá aquelas mesmas instituições as quais entrarão em colapso por lá amanhã. (...) “Eles há muito resolveram seus problemas”, o senhor diz – e isto após vinte constituições em menos de um século e quase dez revoluções! Oh, talvez apenas então, livres da Europa por um momento, nós nos aproximaremos de nossos próprios ideais sociais, aqueles inequivocamente derivados de Cristo e do aprimoramento pessoal, Sr. Gradóvski.[2]

            Entre as previsões de Herzen e Dostoiévski há, portanto, uma semelhança particularmente significativa: ambos visualizavam a revolução proletária acontecendo na Europa. Dostoiévski via na Rússia o “antídoto” à onda revolucionária; Herzen limitava-se a inspirar-se em sua terra natal para propor uma revolução socialista mais limpa e gradualista, com os avanços tecnológicos ocidentais aliados ao modelo social da comuna camponesa russa. Ambos consideravam que a difusão das ideias socialistas, originalmente europeias, já estava adiantada na Rússia, porém não lhes ocorria a possibilidade de as condições imediatas de sua terra natal serem mais propícias à revolução do que no Ocidente.

            Enfim, eis que a grande guerra internacional de fato eclodiu, e os anos de 1914-18 realmente mudaram o mapa da Europa, desfigurando nacionalidades e fronteiras; e, o que é mais importante, a guerra criou, com efeito, a ocasião para a revolução socialista – na Rússia. Neste ponto o século XX foi uma resposta um tanto cruel e irônica às esperanças eslavófilas de Dostoiévski. O paradigma do poema Vlas, de Niekrássov, do pecador que na hora H se converte e passa a viver para expiar suas faltas, não descrevia, afinal, o eterno movimento da alma russa, como o romancista queria crer. O miserável e religioso povo russo não conteve a revolução; pelo contrário, serviu-lhe de substrato material. À altura da guerra civil, ambos os exércitos branco e vermelho eram compostos por camponeses[3].

            Se não deixa de ser legítimo, em certo sentido, dizer que a revolução socialista na Rússia expressou a vontade de seu povo, da mesma forma, diante dos relatos históricos sobre os variados destinos de famílias e grupos camponeses durante os anos revolucionários, é difícil atribuir a uma entidade abstrata chamada “povo” uma única vontade e um único destino. Ao que tudo indica, o principal traço comum entre as classes populares russas na virada do século XIX para o XX não era nem seu Cristianismo “puro”, nem seu tino político naturalmente aguçado, mas o alheamento com relação aos afazeres da nobreza e da intelligentsia. Assim, deflagrada a revolução, houve grupos populares que voluntariamente a abraçaram, como houve os que a rejeitaram, mas a grande maioria quedou indefesa e atônita sob as engrenagens do momento crítico.

            Olhando retrospectivamente, Dostoiévski e os pótchvienniki estavam no caminho certo ao aliar a exaltação dos valores populares tradicionais à necessidade da educação do narod; afinal, são raríssimos os casos de indivíduos que conseguem aprimorar-se – em sentido dostoievskiano – apenas com base em intuições morais rudimentares. Já vimos que Dostoiévski gostava de idealizar alguns camponeses que tomava por exemplares da “pureza interior” da alma russa, como o mujique Marei e a babá de Púchkin; para ele, estes indivíduos tinham pouca consciência de seu próprio valor e do valor daquilo que representavam – o sentimento fraterno de inspiração cristã –, mas somente o fato de viverem colocando em prática suas intuições rudimentares já bastaria para se construir, na Rússia, uma muralha contra os “erros do Ocidente”.

            Nada poderia ser mais falso. Não se contém uma revolução tendo como arma apenas as verdades inconscientes de um povo. Nesse sentido, a argumentação pótchviennik, partindo da noção de autoconsciência como base do conhecimento em geral, era razoável com relação ao problema do campesinato russo ao concluir pela urgência de sua educação. Com efeito, na hora H da história russa, o narod achou-se incapaz de avaliar seu próprio lugar histórico – e acabou servindo largamente como massa de manobra a causas cujo sentido último lhe escapava.

O Pótchviennitchestvo, porém, também continha algumas das ideias que, ao longo do desenvolvimento intelectual de Dostoiévski, degenerariam no aspecto mais equivocado de seu pensamento – seu nacionalismo xenófobo. A ênfase pótchviennik na importância da autoconsciência era análoga e complementar à importância dada à imersão do indivíduo em seu universo nacional. Até certo ponto, isto é muito razoável: um homem é feito também à imagem de suas circunstâncias. Mas Dostoiévski parece ter levado este preceito longe demais e, em seu processo de autoconhecimento por meio da incorporação da nacionalidade, fundiu-se a sua terra natal, cegando-se a todo o resto e bloqueando, assim, a própria possibilidade de compreender algo além de suas projeções da Rússia sobre os objetos que analisava.

Deste modo, seu talento para perceber movimentos psicossociais antes mesmo de estes tomarem formas concretas, tendo como base apenas a psicologia humana, acabou frustrado pelas armadilhas de sua própria psicologia. Mais do que nenhum outro autor, Dostoiévski entendeu a natureza da revolução russa, e se chamá-lo “profeta” já se tornou um cliché, mais difícil é encontrar termo mais apropriado ao seu papel enquanto pensador de seu tempo. E, no entanto, era ele mesmo um produto da mentalidade revolucionária russa.

O mencionado talento perceptivo de Dostoiévski poderia tê-lo feito um antípoda de Herzen, sendo este o mais perfeito expoente da desfiguração de um espírito nobre à força de sua exposição a estímulos contraditórios, à crença de que entre “bem” e “mal” há uma diferença meramente opinativa e de que os desejos humanos existem exclusivamente para obter a saciedade. Dostoiévski estava anos luz à frente de Herzen no que diz respeito à compreensão da natureza humana e de sua relação com tudo o que existe. Mas tem Dostoiévski precisamente a mesma altura que seu oponente revolucionário quando veste a carapuça de ideólogo. Ao fim e ao cabo, tendo chegado muito perto de verdadeiramente prever a essência da história política do século XX, sua ideologia eslavófila o obrigou a enxergar apenas aquilo que todos os socialistas já afirmavam: que a urbanização industrial e a política externa colonialista levariam a Europa ao caos, com guerras impulsionando os proletários às ruas, liquidando o Terceiro Estado e assim por diante. Dostoiévski precisava deste quadro para construir sua utopia eslavófila, e não fez questão de enxergar nada mais além dele. Se tivesse olhado a Rússia com um pouco mais de isenção, ele, que com tanta precisão descreveu os efeitos da cosmovisão utilitário-materialista na alma de seus conterrâneos, teria possivelmente atentado à iminência da eclosão revolucionária em seu país.

Quanto a Herzen, ele foi, nas palavras do próprio Dostoiévski, um gentilhomme russe et citoyen du monde. Seu sentimento pátrio era demasiado imiscuído às demandas de seu cosmopolitismo para que lhe coubesse enxergar o real papel da Rússia na história posterior do Ocidente. Ainda assim, suas expectativas políticas acabaram revelando-se mais próximas do que veio de fato a acontecer do que o pan-eslavismo de Dostoiévski. Isto é verdadeiro, ao menos, quanto ao século XX. Já na história mais recente da Rússia, temos presenciado o ressurgimento de ideologias muito próximas à professada pelo autor do Diário de um escritor. São, porém, as ideias pan-eslavistas de Dostoiévski transformadas pela experiência soviética, dando origem a doutrinas como Nacional-bolchevismo e o Eurasianismo, nas quais a ideia de um império encabeçado pela Rússia, destinado a corrigir os erros do Ocidente, alia-se ao militarismo autoritário tipicamente soviético, recorrendo ao mesmo tempo à religião ortodoxa como fator de identidade e união do povo russo.

Tudo isto nos remete, por fim, a “O Grande Inquisidor”, o verdadeiro coração da obra dostoievskiana. Uma das leituras mais comuns deste capítulo de Os Irmãos Karamázov o interpreta como uma antevisão do socialismo posto em prática – o que de fato ele é. Porém, fazendo uma leitura mais cerrada do texto, vemos que se trata disto e de mais um pouco.

Diz o Grande Inquisidor a Cristo:

Sabes tu que passarão os séculos e a humanidade proclamará através da sua sabedoria e da sua ciência que o crime não existe, logo, também não existe pecado, existem apenas os famintos? ‘Alimenta-os e então cobra virtudes deles!’ – eis o que escreverão na bandeira que levantarão contra ti e com a qual teu templo será destruído. No lugar do teu templo será erigido um novo edifício, será erigida uma nova e terrível torre de Babel, e ainda que esta não se conclua, como a anterior, mesmo assim poderias evitar essa torre e reduzir em mil anos os sofrimentos dos homens, pois é a nós que eles virão depois de sofrerem mil anos com sua torre! Eles nos reencontrarão debaixo da terra, nas catacumbas em que nos esconderemos (porque novamente seremos objeto de perseguição e suplício), nos encontrarão e nos clamarão: ‘Alimentai-nos, pois aqueles que nos prometeram o fogo dos céus não cumpriram a promessa’. E então nós concluiremos a construção de sua torre, pois a concluirá aquele que os alimentar, e só nós os alimentaremos em teu nome e mentiremos que é em teu nome que o fazemos.

            Este trecho e outros deixam bastante claro que o futuro referido pelo Grande Inquisidor já se passa em um momento posterior à revolução socialista. Segundo a profecia dostoievskiana, haverá, primeiro, o socialismo (“‘Alimenta-os e então cobra virtudes deles!’ – eis o que escreverão na bandeira que levantarão contra ti e com a qual teu templo será destruído.”); porém, esta “Torre de Babel” não será concluída e sucumbirá após trazer muito sofrimento à humanidade. Neste momento de desespero, pois “quem prometeu o fogo dos céus não cumpriu a promessa”, é que o Grande Inquisidor e os seus virão “concluir a construção da torre”, e o farão em nome de Cristo, sob a hipócrita aparência de uma igreja cristã.

Assim, o mais correto não é dizer que sob uma aparente crítica ao catolicismo Dostoiévski descreve o socialismo; esta leitura não é equivocada, porém não é a mais precisa. O que o romancista faz é lançar mão do livro bíblico do Apocalipse, segundo o qual o advento do Anticristo instaurará uma falsa igreja sobre a terra, para construir uma parábola carregada de significado, na qual o Grande Inquisidor não exatamente encarna – como quer uma leitura mais plana do texto – Stálin ou um ditador declaradamente socialista, mas, mais precisamente, o antipapa que se apossará da Igreja no fim dos tempos, após o fracasso socialista e após expulsar de Roma o verdadeiro pontífice, segundo previsto na escatologia cristã. Ou seja, é impreciso dizer que em “O Grande Inquisidor” Dostoiévski previu a realidade soviética, pois a profecia aí implícita, se alguma há, diz respeito a um futuro ainda por vir.

Vale enfatizar que o mencionado antipapa seria um continuador do socialismo disfarçado de líder cristão, e por isso é correto ler “O Grande Inquisidor” como uma parábola antissocialista. Contudo, se bem ler literatura é uma tentativa contínua de reinterpretação textual à luz de novos dados da realidade, não podemos deixar escapar esta nuance da obra máxima de Dostoiévski, tão significativa face ao rumo que vem tomando a história mais recente do confronto entre o Ocidente e a Rússia. Dostoiévski não tinha dúvidas de que o chefe impostor da Igreja viria de dentro da própria Roma; talvez haja aí um erro análogo ao que o fez negligenciar a iminência da revolução socialista em seu próprio país.





[1] A Writer’s Diary, vol. 2, pp. 1320-1321. “Four Lectures On Various Topics”.
[2] Idem, p. 1321.
[3] “Dada a composição social da Rússia naquele momento, não é de surpreender que a maior parte dos soldados em ambos os lados fossem camponeses. Enquanto a maioria dos trabalhadores das fábricas apoiavam os Bolcheviques, os camponeses tinham uma atitude profundamente ambígua com relação à guerra civil. Aqueles que podiam ficar de fora, ficavam. (...) O campesinato às vezes apoiava o Exército Vermelho, às vezes o Branco, mas a crueldade em ambos os lados rapidamente os alienava.” In: BROWN, Archie. The Rise and Fall of Communism. Vintage Books: 2010, p. 53.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Dostoiévski entre a inspiração e a ideologia

O texto abaixo é adaptado de um trecho da minha dissertação. Porque é possível infundir vida mesmo nos corpos mais cadavéricos.
Quem não leu Os Irmãos Karamázov pode ler "O Grande Inquisidor" aqui. Sugiro que o faça não apenas para acompanhar este artigo, mas porque aí há mais conteúdo condensado do que em metade dessa estante cheia de livros que você não leu. Sem exagero. Fica a dica.

***

Ferrenho combatente de utopias reducionistas, Dostoiévski não deixou de idealizar a sua própria. Mesmo os críticos mais próximos de sua visão de mundo (Berdiáiev, Ellis Sandoz) não deixam de notar este seu ponto fraco: Dostoiévski identificou problemas e escancarou feridas, e o fez com precisão inacreditável, mas não obteve o mesmo êxito quando tentou propor soluções. Um exemplo sumário disto se dá em sua representação de duas personagens antagônicas: Ivan e Aliócha Karamázov. Não será exagero dizer que as falas de Ivan no famoso diálogo entre os dois irmãos, que ocupa o que são provavelmente os três principais capítulos de Os Irmãos Karamázov, fecundaram com suas dúvidas e sua angústia toda a história intelectual do século XX, na Rússia como no Ocidente. Porém, não é possível dizer o mesmo de Aliócha e seu stárietz Zossima, ainda que suas falas contenham as ideias “positivas” do próprio Dostoiévski[1].

Nas Notas de Inverno se dá algo semelhante: os pontos mais fortes do texto, onde o narrador é mais eloquente em suas tiradas ácidas, referem-se às críticas feitas tanto à Europa quanto à Rússia. Já os momentos em que é exposta a utopia pessoal de Dostoiévski deixam o leitor pouco convencido; por mais que a porção eslavófila do discurso do narrador desperte interesse, destoa do – por assim dizer – dinamismo do resto. Dostoiévski nos acostuma a sempre considerar um objeto por seus ângulos mais contrários, nos convence de que a verdade, não sendo mutável, é ainda assim bem mais complexa do que os esquemas conceituais e simbólicos que inventamos para expressá-la. E, ao fazê-lo, ele paradoxalmente se aproxima da verdade; mas, ao mesmo tempo, por uma imperfeição em sua consciência artística, julga necessário apresentar também um modelo em duas dimensões do que acabou de expressar com a eloquência fulminante de seu “realismo superior” – e aí prejudica a harmonia do conjunto.

Tanto a “Lenda do Grande Inquisidor” quanto os sermões do stárietz Zossima são inspirados pela mesma intuição da verdade, com a diferença de que Zossima é esta inspiração desfigurada pela ideologia naródnik de Dostoiévski. Como bem notou Nikolai Berdiáiev, “no Cristianismo russo há sempre o grave perigo da predominância do elemento popular (naródnik; narod = povo) sobre o Logos Universal, da alma sobre o espírito. Este perigo pode ser visto no próprio Dostoiévski: sua divindade é com frequência o deus russo e não o Deus universal.”[2]

Outra importante diferença é que a Lenda se insere no labirinto de contrários que é Os Irmãos Karamázov, e sua força advém justamente de conseguir sustentar-se diante de todas as tensões adversas que a provam por todos os lados. Já o Livro VI, “Um Monge Russo”, onde Aliócha compila os sermões de seu mestre, soa como um adendo artificial aos capítulos anteriores. Aí já não fala mais o Dostoiévski artista e sim o ideólogo; as intuições luminosas dão lugar ao wishful thinking.

O ponto a ser enfatizado é que talvez esse “anticlímax” representado, nos Karamázov, pelo Livro VI (e, em outras obras, por outras falas ou personagens) esteja na origem da universalmente experimentada dificuldade de se precisar o sentido da obra de Dostoiévski, ao ponto de haver quem tome tal dificuldade por impossibilidade. É como se Dostoiévski criasse seu próprio espantalho e desviasse, involuntariamente, a atenção do leitor a um pastiche (o Livro VI) da verdade que acabou de expressar em toda a sua vivacidade e complexidade (a Lenda). Então, o leitor desavisado, distante da cosmovisão de um Zossima e culturalmente predisposto a compartilhar da angústia de Ivan, entende, para seu comodismo, que a “lição de moral” do livro está naquelas falas adocicadas do velho monge, e que portanto o poema alucinado do jovem intelectual Karamázov só pode ocupar-se de outra coisa, só pode ter valor “negativo”, já que a “positividade” está expressa alhures. É de fato muito difícil entender que textos tão distintos – um tão próximo de nós, outro tão olimpicamente frígido – sejam tentativas de expressão da mesma verdade.

No fundo, o grande problema é aproximar-se de Dostoiévski buscando nele as categorias de “positivo” e “negativo”; se há, de fato, ideias com que Dostoiévski tem afinidade e outras a que é hostil, sua expressão literária da dinâmica entre essas ideias e os sujeitos e sociedades que as produziram é bem mais complexa. Pode-se, para fins didáticos, elencar Ivan Karamázov entre as “personagens negativas” de Dostoiévski: o tipo social e psicológico por ele representado era considerado pelo autor como um aspecto doentio da cultura russa. Porém, o que dizer da “Lenda do Grande Inquisidor”, produto da imaginação de Ivan e inserida no romance a partir de suas falas? Seria a Lenda também “negativa”? O próprio Dostoiévski considerava que não:

A ideia [do capítulo “Revolta”] é apresentar o extremo da blasfêmia e as sementes da ideia de destruição, na Rússia deste momento, entre a geração de jovens que se apartaram da realidade. As convicções de Ivan formam o que eu considero a síntese do anarquismo russo contemporâneo. A negação não de Deus, mas de Sua criação. Todo o socialismo emergiu da negação do sentido da atualidade histórica e chegou ao programa da destruição e do anarquismo. Os principais anarquistas eram, em muitos casos, homens sinceramente convictos. Meu herói escolhe um tema e, em minha opinião, um tema inexpugnável: a falta de sentido do sofrimento das crianças – e daí deduz a absurdidade de toda a atualidade histórica... E a blasfêmia do meu herói será triunfantemente refutada no próximo capítulo [“O Grande Inquisidor”], no qual estou trabalhando agora com temor e tremor, pois considero minha tarefa (a refutação do anarquismo) uma proeza cívica.[3] (Grifo meu)

Para Dostoiévski, estava muito clara a disposição de “negatividade” e “positividade” entre os capítulos “Revolta” e “O Grande Inquisidor”. Ainda assim, é um fato que a constituição artística da Lenda envolve ambas as noções, pondo-as em franco embate, e durante este embate ambas estão como em pé de igualdade: se o bem vence no final, é após uma batalha sangrenta, da qual o autor não exclui mesmo as armadilhas mais perigosas, ainda que sua simpatia esteja o tempo todo com o Cristo torturado. E não é por acaso que a Lenda é assim composta: se Dostoiévski poupasse sua “ideia positiva” (Cristo) de qualquer dos ataques da “negatividade” (a revolta de Ivan; o Grande Inquisidor), não demonstraria satisfatoriamente sua solidez. O pouco poder de convencimento do Livro VI advém justamente desse isolamento de forças contrárias.

Note-se ainda que isto é análogo ao próprio procedimento de Cristo junto aos homens, segundo exposto na Lenda. Deus permite a existência do mal enquanto condição de possibilidade da liberdade humana: é preciso que os homens sobrevivam ao vale de lágrimas terreno lutando apenas com a força do exemplo dado por Cristo, pois de outro modo serão títeres nas mãos do poder divino, não criaturas dotadas de vontade (livre arbítrio). Ou seja, como o Cristo dostoievskiano diante do Grande Inquisidor, o único modo de o homem demonstrar sua dignidade e grandeza é enfrentando o mal; Dostoiévski não poupa suas próprias crenças de descer à arena para digladiar-se com crenças contrárias do mesmo modo como Deus permite o mal entre os homens.

E o mais curioso é que em ambos os casos tal procedimento gera confusão. Com a “Lenda do Grande Inquisidor”, Dostoiévski de fato refuta a revolta de Ivan Karamázov – do ponto de vista intelectual e textual. Porém, é controverso afirmar o sucesso de tal refutação enquanto “proeza cívica”, isto é, o quanto a obra artística de Dostoiévski é culturalmente eficaz na defesa dos valores que se propõe sustentar. No fim das contas, os últimos cento e trinta anos têm mostrado que a grande maioria de seus leitores não consegue acompanhar o combate sutil entre Cristo e o Grande Inquisidor, saindo da Lenda incertos quanto a seu sentido, especialmente no contexto maior de Os Irmãos Karamázov, com o eslavofilismo de Zossima e silhueta vaga de Aliócha complicando o coro de vozes.

            De modo que não é necessário um grande esforço de imaginação para supor, digamos, um Mikhail Bakhtin trajado de inquisidor soviético, brandindo em uma cela escura o dedo inflamado diante de um Dostoiévski ressurgido das cinzas:

... Por que voltaste? Por que vieste nos atrapalhar? Tu compuseste um labirinto insondável, povoaste-o com vozes desconcertantes e foste embora antes mesmo de escrever a maldita continuação do livro. Ninguém sabia o que fazer com tua obra! Os revolucionários proibiram-na, os emigrados transformaram-na em expressão do puro espírito descarnado. Enquanto isso, apenas os fortes chegavam à metade do teu labirinto; e só raros, raríssimos, somente os eleitos do Dostoievskianismo desvendavam seu sentido final! Mas quantos Berdiáievs há sobre a terra? Tu escreveste para os poucos e fortes, mas nós – nós corrigimos a tua façanha! Tu escondeste tua verdade sob uma enlouquecedora malha de vozes; a esta eu chamei polifonia e então mandei tudo pelos ares: não há pote de ouro no fim do arco-íris dostoievskiano! Parem de procurar, seus idiotas! – E tu pensas que eles resistiram? Achas que hesitaram em abraçar o relativismo polifônico, que fizeram questão de continuar perseguindo às cegas tua verdade apenas insinuada? Até parece! Tu dirigiste tua palavra aos espirituais, mas eu a difundi entre socialistas, anarquistas, feministas, psicanalistas e toda uma gama interminável de minorias que, sob o teu pseudomonologismo, não passariam nem da porta do labirinto de vozes que criaste. Mas hoje eles são legião! Quem? Ora, os MEUS dostoievskianos. Por que me olhas assim?  Achas que não posso ser eu mesmo um dostoievskiano? Hahahah! Eu bem sabia que adivinharias. É isso mesmo: eu não estou contigo, não sou um dostoievskiano! Não decifrei o labirinto, não sei o que há no final, nem me interessa saber. Meu único interesse é habitar a tua carcaça. Quiseste pintar aos homens um quadro fidedigno da realidade, e assim povoaste tuas cenas com anti-heróis diante dos quais teus mocinhos são insignificantes como lesmas. Realista, deveras! Genial, realmente! E muito conveniente à MINHA obra. Então não, não pensa que vais reaparecer assim do nada, com esses ossos pendurados e essa barba suja de cal: não precisamos mais de ti. O mundo já não pode viver sem Dostoiévski, mas tu, tu destruirias o Dostoiévski que EU dei ao mundo conhecer, o único possível, o único acessível a todos indiferentemente, o Dostoiévski polifônico, amorfo, inconsequente, fonte inesgotável de inspirações a quem se quiser fecundar de tão pr...

          Neste momento, o cadáver ressurreto de Dostoiévski cai no chão da cela e começa a debater-se; uma espuma esverdeada lhe escorre dos lábios, e Mikhail Bakhtin fica atônito a contemplar a cena sem atinar com o que fazer.







[1] Para certificar-se disto basta comparar o Livro VI de Os Irmãos Karamázov, no qual estão reunidos os sermões de Zossima, com os artigos de Dostoiévski no Diário de um escritor.
[2] Nicholas Berdyaev, Dostoevsky. Meridian Books: 1968, p. 185.
[3] Carta a N. A. Liubímov, 10 de Maio de 1879. In: Fyodor M. Dostoevsky, “Dostoevsky on The Brothers Karamazov”, New Criterion, IV (1926), 552-553.

domingo, 13 de outubro de 2013

O que brilha no altar é luz de lâmpada

Interior da Basílica de Nazaré, em Belém-PA

Durante a idade das trevas da minha adolescência rebelde (prolongada até demais, segundo o costume da época), mantive um único elo com a religião e o sagrado: a Virgem Maria. Não sei se poderia dizer que tinha “devoção” ou “fé”; era um contato, uma espécie de confiança automática e cega, mas real, tanto que me manteve de pé em diversos momentos de desespero, impedindo-me de desabar no completo vazio, embora eu tenha por diversas vezes me aproximado disso. Lembro-me de maldizer a Igreja e afirmar que a morte era o fim de tudo, mas não recordo um único período de minha vida em que não rezasse à Virgem Maria. Contraditório, sim, e inteiramente verossímil.

Eis a origem da contradição: sou paraense. Ano passado, nessa mesma época, escrevi um texto sobre o Círio de Nazaré, onde descrevia a transformação por que a cidade de Belém passa durante a quinzena da festa e sua profunda importância cultural para o povo do Norte. Agora estou aqui de novo, no Pará, no dia do Círio, e o raciocínio que comecei no texto do ano passado continua a se desenvolver.

Mas comecemos pelo começo.

*

Um dos meus passatempos favoritos quando morava aqui era sair para longas caminhadas (isso ainda era possível dez anos atrás, quando andar pelas ruas não era sinônimo de ser assaltado), caminhadas que invariavelmente passavam pelo meu local favorito na cidade: a Basílica de Nossa Senhora de Nazaré. Eu então não me interessava por religião, ou política, ou qualquer coisa que não fosse “a poesia do mundo”; a Basílica era um lugar aconchegante, silencioso e que (na expressão que me lembro de utilizar na época) parecia situar-se em outro tempo. Fora dela, a cidade feia e maltratada; dentro dela, a beleza, a austeridade e uma curiosa sensação de proteção. Eu não frequentava bibliotecas: ia para a Basílica ler e rabiscar pseudopoemas, inspirada pelo ambiente que me remetia para além do meu século.

É exatamente isso o que um templo religioso precisa transmitir às pessoas: a sensação de que ali se está fora do tempo, diante de algo maior do que o ambiente imediato e não condicionado por ele. É de propósito que falo em sensação e não em convencimento intelectual: a Igreja visível deve falar aos homens também pelos sentidos, propondo símbolos que impregnem nosso imaginário e nos despertem emoções propícias à fé – como uma obra de arte. Cada igreja, bem como os ritos que se realizam dentro dela, não deveriam ser menos do que obras de arte: a expressão simbólica do sagrado, ou ao menos a expressão da sempre insuficiente tentativa humana de amar publicamente a Deus. Falei algo em torno disso nesse poema.

Sem dúvida, tomaram parte no meu retorno ao catolicismo aquelas tardes passadas sob o teto da Basílica de Nazaré e o olhar guardião da Virgem, ainda que eu então não atentasse à gravidade do que se passava ali. Diferente da maioria das igrejas mais recentes, a Basílica – com sua arquitetura pensada para torná-la em símbolo tangível da fé cristã – é um verdadeiro apostolado de pedra dessa fé.

No entanto, nem só de pedra vivem os corações humanos... Penso no quanto teria sido fácil jamais ter me afastado da Igreja, se além de me acolherem aquelas belas paredes eu tivesse sido também intelectual e vivencialmente instruída na fé. Ao invés disso, tive aquelas aulas medonhas de catecismo que são responsáveis por afastar 9 em cada 10 apóstatas, entre várias outras experiências negativas que por fim se confundem com a experiência geral de ignorância religiosa do mundo contemporâneo.

Não tenho dúvidas de que Nossa Senhora de Nazaré, intimamente conhecida pelos paraenses como a Rainha da Amazônia, foi enviada por Deus para guardar esse Norte tão pobre do nosso país. E ela certamente o guarda. Porém hoje, retornando já adulta a Belém e à Basílica de Nazaré e capaz de entender melhor o que se passa ao meu redor, vejo com tristeza o quanto os paraenses cada vez mais se distanciam do sentido real do Círio e da pessoa de Jesus Cristo. As causas desse distanciamento são um tema que eu não saberia esgotar mesmo se dispusesse do espaço e do tempo apropriados. Mas não é necessário ser teólogo ou historiador para enxergar o óbvio: se as pessoas têm cada vez menos em conta o sagrado e o sobrenatural, é porque também a Igreja as levou a secularizar sua percepção do mundo. São exemplares, nesse sentido, os casos da Basílica de Nazaré e do Círio – esses dois espetaculares símbolos cristãos, mas que se vêm apequenando diante da cultura secular, ao invés de combatê-la.

A cada ano que passa, o Círio firma-se mais como uma idiossincrasia regional, um feriado com suas particularidades e tradições, que as pessoas repetem um tanto maquinalmente, sem saberem bem o que fazem ou por quê. (Repito aqui o que disse no ano passado: com “as pessoas” refiro-me primordialmente à classe média que não chega a envolver-se na procissão; os romeiros que vão na corda são um caso mais complexo.) O fato de a festa tomar as ruas e modificar a vida da cidade por vários dias (além da procissão principal, no segundo domingo de outubro, há várias outras adjacentes) lança no ar um magnetismo contagiante, motivo pelo qual não há paraense que não reconheça a experiência do Círio como algo “mágico, encantatório, sobrenatural”. O que eu gostaria é que não se empregassem tais adjetivos metaforicamente: o Círio celebra de fato algo sobrenatural e é preciso vivê-lo com a reverência de que são dignos os grandes mistérios. É preciso, intensamente, rezar... E não perder de vista que Maria é a Mãe de Jesus, redentor dos homens, substância da fé cristã, e não alguma genérica “Mãe”, à qual nos apegamos por uma espécie de carência afetiva (ver a partir de 3m30s).

Consola-me saber que Deus escreve certo por linhas tortas e que em nossos tempos menos é mais, e é preferível esse contato superficial a contato nenhum com a Virgem e o cristianismo. O Círio de Nazaré, tendo-se tornado patrimônio cultural do povo paraense, está arraigado a sua identidade e tem sobre ele uma influência poderosa. Como comentei anteriormente, há uma parte da população sinceramente devota e cristã e outra cujo cristianismo é apenas, digamos, cultural, e que provavelmente já nem teria qualquer relação com a religião se não vivesse em uma sociedade consagrada à Virgem de Nazaré (vide meu exemplo próprio, que relatei no início do texto).

O que me dói é ver quão prodigiosas são as graças que Deus dá aos paraenses, visíveis no Círio, na Basílica e na fé estranha que insiste em resistir no coração desse povo – me dói porque é preciso ver também, a cada ano, a cada Missa, tais prodígios serem tratados com um desrespeito imperdoável! Rezar a Santa Missa ao som de carimbó não vai trazer o povo à Igreja, vai antes fazer com que, no entendimento desse povo já completamente sem instrução religiosa, a Igreja identifique-se ao século, perdendo todo o seu peso simbólico e, por fim, toda a autoridade. E novamente não me refiro só à ignorância da população pobre, mas à classe média educada pela televisão, da qual provenho e que, digo de carteirinha, já não faz a mínima ideia do que há para se fazer em uma Missa a não ser torcer para que acabe o quanto antes. Porém, tornar a Missa mais “divertida”, disfarçando o máximo possível seu sentido de Sacrifício, não vai trazer mais ovelhas ao rebanho. Como diria W.H. Auden, no one has yet believed or liked a lie. Dizer às pessoas que o Inferno é uma metáfora é uma imensa crueldade da parte daqueles que deveriam ser nossos diretores espirituais.

Quem já viu o Círio de Nazaré pôde testemunhar o quanto esse povo quer se entregar, quer crer, quer viver a fé, e o faz na medida de suas possibilidades, com uma sinceridade evidente. Se, ao invés de contribuir com a cultura da superficialidade e da distração; se, ao invés de privar seu rebanho do peso real da Revelação cristã, a Igreja o instruísse, o acompanhasse de perto, com o respeito que é sempre incompatível com a condescendência que tapa o sol com a peneira, o povo paraense seria um dos exércitos mais poderosos lutando a batalha de Cristo. Mesmo com toda a confusão em voga, ele o é; mas poderia ser muito mais...

A procissão terminou há algumas horas e a cidade continua imersa na agitação da festa. Neste ano, pela primeira vez, vou embora de Belém com o coração apertado após ter visto o Círio. Há algo de muito errado no ar. Sinto como se tivesse diante dos olhos um corpo moribundo, do qual muito em breve só restará a casca. E não sei o que se pode fazer para salvá-lo...

Aparentemente, só nos resta a oração silenciosa e a súplica individual. E cuidar dos símbolos, que eles existem para nos orientar nesse mundo. Justamente por isso é que retornarei a Belém em fevereiro: para casar aqui. Na Basílica de Nazaré. A cada vida compete um simbolismo pessoal e intransferível: a minha exige que todo um passado de erros seja entregue no altar da morada que me acolheu quando eu nem desconfiava precisar dela. Tudo, absolutamente tudo sob os olhos da Virgem de Nazaré.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Para além da poética de Dostoiévski

Esta é a versão Director’s Cut do último artigo que publiquei na revista Vila Nova. Minha intenção era acrescer o artigo de alguns parágrafos onde eu discutiria mais detidamente trechos do livro de Bakhtin sobre Dostoiévski, tentando sintetizar os motivos pelos quais uma considerável parte da crítica dostoievskiana (não no Brasil, é claro) rejeita a teoria de Bakhtin sobre polifonia e carnavalização na obra do romancista russo. Mas eis que encontro online um artigo fundamental de ninguém menos que René Wellek, onde estão resumidos magistralmente todos os pontos que eu arrancaria os cabelos para demonstrar de forma clara e sucinta. Recomendo fortemente a leitura.

O texto a seguir preocupa-se menos com Bakhtin do que com seus seguidores brasileiros.

***

Na introdução de seu aclamado Problemas da Poética de Dostoiévski (1929/1963), Mikhail Bakhtin faz uma varredura no que a crítica produzira até então sobre a obra do grande romancista russo e conclui: não há, antes do seu, nenhum estudo que ofereça uma leitura adequada da dimensão poética – ou estritamente formal – da obra de Dostoiévski; abundam interpretações do romancista filósofo ou ideólogo, mas se ignora ou não se chega à altura do artista.

Neste ponto Bakhtin estava certo, ainda que se discorde de seus conceitos e instrumentos de análise literária: é preciso chamar atenção à complexidade estética dos romances de Dostoiévski. Com efeito, trata-se de um autor perigoso, capaz de enredar facilmente o leitor desarmado. Lê-lo com a guarda baixa, com a mesma credulidade com que se percorre, digamos, um romance de Jane Austen, quase sempre será sinônimo de passar-lhe ao largo. Não apenas o universo dostoievskiano é um amálgama de referências históricas e culturais acessíveis integralmente apenas a seus contemporâneos ou a leitores especializados, mas também sua técnica narrativa é tão complicada quanto aquilo que seria o sentido último de sua obra (e não por acaso; em toda grande literatura, forma é conteúdo). Bakhtin percebeu isso e dedicou-se a sistematizar o “caos” dostoievskiano, porém com vistas não a dispersar a bruma e perceber-lhe o que há no fundo, senão para justificar teoricamente a pressuposta falta de “verdade acabada” dos romances de Dostoiévski.

Assim, temos que hoje, 80 anos após publicar-se a primeira versão de Problemas da Poética de Dostoiévski, durante os quais a teoria de Bakhtin tornou-se uma febre, dir-se-ia uma espécie de solução universal para a obra do autor russo[1], certa parte da crítica já afirma tranquilamente a irresolvibilidade desta obra, ou seja: o romance dostoievskiano é um labirinto insolúvel, feito num embate de vozes contraditórias que convivem num perpétuo conflito o qual é, ele mesmo, a única verdade disponível. O autor, para Bakhtin, seria o regente do coro dialógico de vozes, porém incapaz de fazer qualquer uma preponderar sobre as demais; cada voz ou personagem teria vida própria – o autor apenas possibilita sua expressão. Se não se trata, aqui, da repisada “morte do autor”, trata-se ao menos de uma redução violenta de sua importância, uma vez que a obra já não pode ser lida com recurso às intenções ou ao horizonte mental de seu criador, o que, segundo a lógica de Bakhtin, não passaria de bitolação monológica.

Do ponto de vista de uma visão monológica coerente e da concepção do mundo representado e do cânon monológico da construção do romance, o mundo de Dostoiévski pode afigurar-se um caos, e a construção de seus romances, algum conglomerado de matérias estranhas e princípios incompatíveis de formalização. Só à luz da meta artística central de Dostoiévski por nós formulada podem tornar-se compreensíveis a profunda organicidade, a coerência e a integridade de sua poética. 
(In: Problemas da Poética de Dostoiévski. Ed. Forense Universirária, p. 6. Grifo meu.)
E, no entanto, é altamente questionável a hipótese do romance polifônico enquanto “meta artística central” de Dostoiévski, por motivos que espero esclarecer a seguir. O romance polifônico é, no máximo, a meta artística formulada por Bakhtin e aplicada à obra de Dostoiévski, não sem deformá-la em muitos sentidos. Em outras palavras, a teoria de Bakhtin é uma apropriação anacrônica da obra de Dostoiévski.

            *

Para entender isso, voltemos à Rússia do século XIX, à sociedade e às condições culturais que propiciaram o que hoje se conhece como a era de ouro da literatura daquele país. Púchkin, Gógol, Turguêniev, Leskov, Tolstói, Dostoiévski – já faz tempo que o Ocidente se encontra às voltas com esses nomes esquisitos, esforçando-se para pronunciá-los e, por meio de sua literatura, habitando seu mundo, um mundo de noites brancas, invernos para nós impossíveis, paixões inflamadas, samovares, mujiques, um mundo a um só tempo alheio e curiosamente nosso. É uma literatura que, sendo apaixonadamente russa, é universal, fala a todos os homens de todos os tempos. Mas o que explica o boom da literatura no século XIX russo, se é que algo o explica? Como é que esses homens com os nervos à flor da pele, vivendo em um país escravocrata e – segundo moldes ocidentais – atrasado em todos os sentidos, conseguiram tamanho feito cultural?

De fato, se comparada à Europa, a modernidade russa começou tarde e instaurou-se de um modo que a historiografia concorda em chamar de traumático. Na virada do século XVII para o XVIII, o imperador Pedro I implementou uma série de reformas para alinhar a Rússia feudal aos padrões de civilidade europeus. Após viajar pela Europa e se aconselhar com suas figuras mais eminentes, construiu São Petersburgo como “uma janela para o Ocidente”, uma cidade planejada, moderna e racional, oposta à antiquada e caótica Moscou, e mandou cortar as barbas aos nobres, que agora deviam trajar-se à europeia, entre inúmeras outras medidas no mesmo sentido, abrindo o país para o influxo desde então incontido de cultura ocidental.

O resultado imediato das reformas petrinas foi a criação de uma elite europeizada, cujos costumes passaram a contrastar fortemente com aqueles que caracterizavam a massa da população, composta por servos camponeses. Em médio prazo – isto é, em meados do século XIX –, tal cisão cultural era a manifestação concreta da crise de identidade da qual padecia todo e qualquer intelectual russo de então; quanto mais educados, quanto mais “europeizados”, mais urgentes pareciam a esses homens a questão nacional e a busca pela distinção do que seria o caráter russo.

Ao mesmo tempo, à medida que as noções europeias de civilização (àquela altura de matriz iluminista, romântica ou socialista) se iam infiltrando na mentalidade russa, crescia a hostilidade destes às condições sociais vigentes em seu país.  E, com as críticas da intelligentsia ao status quo, crescia a censura tsarista à imprensa e puniam-se com severidade os crimes de opinião. Esta é parte da explicação para a preponderância da literatura no século XIX russo: a prosa de ficção e a crítica literária logo se mostraram eficientes veículos para uma forma velada de crítica social. Filosofia, política, religião, antropologia, sociologia – o romance russo do século XIX abrange todas as disciplinas que, em um ambiente marcado pela liberdade de expressão, tratar-se-iam detida e abertamente. Afinal, nas palavras de Aleksandr Herzen (1812-1870), a autocracia russa, em seus períodos mais defensivos, não perseguia apenas ideias contrárias a sua estabilidade, mas o pensamento per se[2].

Ainda assim, tratava-se de uma sociedade de tal modo obcecada pela “vida do espírito” e pelas “questões eternas” que nem o mais opressor dos regimes impediu-a de investigar seus problemas. É preciso reiterar o que já se disse acima: ainda que em grande medida, ou até determinado momento, a intelectualidade russa oitocentista tenha pensado com ideias de empréstimo, tratava-se de uma classe imbuída de um inescapável sentimento nacional e obcecada por sua “particularíssima situação concreta”. O próprio Dostoiévski costumava dizer: tome-se qualquer ideia estrangeira (digamos, o socialismo), os russos a incorporarão e neles ela se tornará em qualquer coisa grotescamente diversa do que era originalmente. Não se chegará a entender o boom cultural na Rússia do século XIX se se ignorar que a força motriz daqueles pensadores e escritores era a pergunta “quem somos nós?”. Tudo o que liam, tudo o que aprendiam a partir de fontes estrangeiras servia-lhes para alentar a fogueira nacional.

Há ainda um fator puramente sociológico que há de ter catalisado tal processo de autoconhecimento: o fato de que a elite pensante na Rússia desse período compunha-se de uma fração mínima da população, com a consequência de que cada geração de intelligentsy era formada por homens que conviviam entre si, liam-se reciprocamente e debatiam como cães em fúria (inclusive com grande incidência do chamado fogo amigo, tão ofensivo à sensibilidade dos intelectuais brasileiros de hoje). O debate público se dava pelas chamadas “revistas grossas”, cujo apelido as descreve bem: eram periódicos reunindo artigos jornalísticos e protofilosóficos os mais variados e cujo carro chefe era a literatura que se publicava fascicularmente, a qual hoje temos em nossas estantes na forma de bastos volumes. Normalmente cada periódico tinha uma linha editorial bem definida e publicava textos que corroboravam com o conjunto de ideias sustentado por seus editores.

Não há como escapar: tudo o que de melhor foi produzido pelas letras russas no século XIX reporta-se a um, ou melhor, a vários debates ideológicos. Não havia arte pela arte, onde fins estéticos não se remetessem às discussões que animavam a atmosfera cultural da sociedade. Porém, não se pode dizer que só se produzissem panfletos – houve alguns, mas ao lado destes houve também Tolstói e Dostoiévski –, o que aponta para o erro de se negar que artistas possam produzir obras de impressionante complexidade estética visando, ao mesmo tempo, à participação num debate político-filosófico, como é evidentemente o caso dos grandes russos do século XIX.

*

O ponto em descrever todo esse panorama cultural é explicitar como a ideia bakhtiniana do romance polifônico e do debate entre vozes “equipolentes”[3] é incompatível com o espírito das letras russas oitocentistas. Se se deseja sustentar a tese de Bakhtin de que o romance dostoievskiano é um labirinto insolúvel, onde as ideias mais contraditórias têm igual plausibilidade, só se pode fazê-lo afirmando ao mesmo tempo que o romancista fracassou em seu projeto literário e que, por assim dizer, inventou o romance polifônico por acaso, contra sua própria vontade. Há material suficiente para se demonstrar que Dostoiévski, o intelectual de carne e osso, não tinha qualquer interesse em produzir uma literatura que não contribuísse com o debate político-ideológico que ele mantinha nos periódicos jornalísticos que editava. A breve título de exemplo (o material nesse sentido é realmente abundante), veja-se o seguinte trecho de uma carta onde o romancista comenta o famoso capítulo “Revolta”, de Os Irmãos Karamázov:

“A ideia é apresentar a extrema blasfêmia e as sementes da ideia de destruição difundidas atualmente na Rússia entre a nova geração que se apartou da realidade. As convicções de Ivan constituem o que eu considero a síntese do anarquismo russo contemporâneo. A negação não de Deus, mas de sua criação. Todo o socialismo partiu da negação do sentido da realidade histórica e chegou ao programa da destruição e do anarquismo. (....) A blasfêmia do meu herói vai ser triunfantemente refutada no próximo capítulo, no qual estou trabalhando agora com temor e tremor, pois considero minha tarefa – a refutação do anarquismo – uma proeza cívica.[4] (Grifo meu)

O trecho suscita a pergunta: como pode ser o romance polifônico a “meta artística central” de um autor cuja “tarefa cívica” – estabelecida pelo próprio – é a refutação do anarquismo? Certamente não pretendo reduzir a literatura dostoievskiana às opiniões cerradas do autor. Sim, sua obra é genial na medida em que escapa às suas rédeas de ideólogo, e algumas de suas criações mais brilhantes coincidem justamente com seus momentos de procura cega, de angústia, de dúvida. Mas reconhecer isso de modo algum nos obriga a subscrever a tese da “equipolência” das vozes com que são povoados seus romances.

Há hierarquia de vozes nos romances de Dostoiévski. É perfeitamente possível extrair sentido do modo como as personagens-ideias interagem sob a regência do autor. Usando um exemplo já gasto: a suposta ambiguidade do Epílogo de Crime e Castigo não resiste ao mais básico esforço de análise textual. E, no entanto, como mostram alguns comentários ao texto do link, a obsessão pela “pluralidade de sentido” em literatura já faz com que o próprio questionamento em torno do significado de uma obra pareça supérfluo.

É certo que há discrepância entre as intenções de Dostoiévski e aquilo em que se concretiza cada trabalho seu. Ele não usa a literatura para meramente ilustrar suas opiniões jornalísticas – a literatura é, antes, seu meio de investigação do real, de modo que se pode atribuir, sim, alguma autonomia às criaturas a que ele dá vida enquanto autor, porém apenas até certo ponto, dentro de certos limites. E esses limites coincidem com a própria pessoa de Dostoiévski, onde “pessoa” não designa suas crenças e preferências conscientes; digamos, em termos didáticos, que um personagem ou um livro, enquanto em fase de composição, pode tornar-se qualquer coisa – dentro do conjunto de coisas nas quais pode tornar-se o próprio Dostoiévski. Seus personagens são imprevisíveis na medida em que encarnam as várias batalhas do autor contra seus próprios demônios, batalhas essas que ele trava enquanto escreve, as quais ele ganha ou perde junto ao sucesso ou fracasso de cada livro. De modo que, se suas intenções nem sempre coincidiram com o que sua literatura revelou, para nós hoje, seus leitores, já é possível com satisfatória clareza compreender a consonância entre autor e obra.[5]

Que a literatura de um autor possa resultar em qualquer coisa estranha a (independente de) ele mesmo é uma dessas ideias sossegadamente aceitas no meio acadêmico brasileiro, malgrado a enxurrada de complicações que comporta. Ouço com frequência que não se pode ler Dostoiévski à luz de sua visão de mundo autoral porque “a literatura é maior”, a literatura vai sempre mais longe do que seu autor. Dependendo do modo como se lê tal afirmação, ela pode fazer mais ou menos sentido. Não vou, porém, me deter nela. Quero apenas concluir este texto com o que é a contradição cabal de um bakhtinismo degenerado e, infelizmente, brasileiro.

            *

 Bakhtin afirma:

Quando as ideias de Dostoiévski-pensador entram no seu romance polifônico, mudam a própria forma de sua existência, transformam-se em imagens artísticas das ideias: combinam-se numa unidade indissolúvel com as imagens das ideias (de Sônia, Míchkin, Zossima), rompem o seu fechamento monológico e seu acabamento, tornam-se inteiramente dialógicas e entram no grande diálogo do romance em absoluto pé de igualdade com outras imagens de ideias (as ideias de Raskólnikov, Ivan Karamázov e outros). É inteiramente inaceitável atribuir-lhes a função conclusiva das ideias dos autores do romance monológico. Aqui elas não têm absolutamente essa função, são participantes equipolentes do grande diálogo. 
(In: Problemas da Poética de Dostoiévski. Ed. Forense Universirária, pp. 103-104. Grifo meu.)

Esta pode ser – e eu creio que é – uma leitura errada da dinâmica interna do romance dostoievskiano, mas é ao menos uma leitura honesta. Bakhtin conhece as ideias do Dostoiévski-pensador, sabe onde elas ganham tratamento literário explícito e não tenta disfarçá-lo. Ele sabe que o autor discorda de Raskólnikov e Ivan Karamázov, e no entanto crê que essas personagens negativas aos olhos do autor neutralizam-se no contexto polifônico do romance dostoievskiano. Quanto a isso, há ampla literatura argumentando em contrário, e remeto o leitor novamente ao texto de René Wellek.

O maior problema começa quando seguidores de Bakhtin usam a teoria polifônica para apagar o ponto de vista do autor, neutralizando suas posições que causem eventual incômodo, e terminam contradizendo não apenas Dostoiévski, mas o próprio Bakhtin, ao construir sobre os escombros da morte do autor a “verdade acabada” que melhor lhes aprouver. Ora, dizer que Crime e Castigo é um romance sobre um crime enquanto experimento social, fruto da mentalidade socialista de seu autor, não é dar-lhe uma interpretação monológica? Bakhtin se revira no túmulo. Bebeu do próprio veneno. Não por acaso o tradutor brasileiro de Crime e Castigo, o qual é hoje um dos grandes responsáveis pela distorção da imagem de Dostoiévski em autor de cosmovisão socialista, é também atualmente o grande tradutor e divulgador de Bakhtin no Brasil.

Resumo da ópera: a teoria bakhtiniana é uma apropriação anacrônica da obra de Dostoiévski e serve de instrumento para que críticos com visões de mundo contrárias à do romancista calem o autor em benefício de seus próprios interesses muito menos dialógicos do que ideológicos.


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[1] Atualmente, até onde posso ver, a febre bakhtiniana já saiu moda entre a eslavística internacional, ou ao menos está longe de ser hegemônica. Sinto não poder dizer o mesmo sobre o Brasil.

[2] Que o regime que a substituiu não tenha sido diferente é um dos problemas fundamentais a ser discutido pela historiografia política e cultural da Rússia.

[3] “Equipolentes são consciências e vozes que participam do diálogo com as outras vozes em pé de absoluta igualdade; não se objetificam, isto é, não perdem o seu SER como vozes e consciências autônomas.” (Problemas da Poética..., Nota do Tradutor, p. 5.)

[4] Carta a N. A. Liubimov, 10 de maio de 1879. In: “Dostoevsky on The Brothers Karamazov”, trad. S.S. Koteliansky, New Criterion, IV (1926), 552-53.

[5] Cf. a esse respeito o livro de René Girard, Dostoiévski: do Duplo à Unidade. “...a estrutura de Os Irmãos Karamázov é semelhante à das Confissões e à da Divina Comédia. É a estrutura da encarnação, a estrutura fundamental da arte ocidental, da experiência ocidental. Está presente todas as vezes em que o artista consegue dar a sua obra a forma da metamorfose espiritual que lhe deu origem. Não se confunde com a narrativa dessa metamorfose, ainda que possa coincidir com ela.” É Realizações, p. 142.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Carta à Sra. Míchkina

O que vai abaixo não é exatamente uma mensagem que escrevi a alguém: em meu último post foi assim, mas dessa vez eu aproveitei a deixa de uma troca de mensagens para organizar em texto algumas ideias esparsas, já tendo em vista outros leitores além da interlocutora original, a distinta Sra. Míchkina. Mantenho o formato de carta porque ele facilita a exposição. E também porque o texto é orientado por questões levantadas pela Sra. M.

Os leitores me perdoem a insistência nos mesmos temas. Acontece que tudo isso – literatura, poesia, contemporaneidade – é, usando uma imagem brega, o papel de parede do meu mundo. São as coisas sobre as quais eu penso por necessidade pessoal. Todos têm direito a sua cota de ideias fixas.

***

I

Começando pelo tópico fácil, M.: sim, eu deletei meu blog de poemas. O motivo é o mesmo que tem me feito controlar minha participação na internet: combater a pressa, o imediatismo (“combater” não no mundo – o que seria ridículo –, mas na minha própria vida). A internet funciona por esse mecanismo do feedback instantâneo: você produz algo (um texto, um comentário, um poema), solta na rede e imediatamente começa a receber feedbacks. Isso é muito positivo em algumas áreas, como o jornalismo informativo e o debate blogueiro, mas para as artes é desastroso. A não ser que seu interesse seja produzir experimentos sócio-artísticos, desses que contam com a participação ativa do leitor/ouvinte/espectador.

Digo que é desastroso porque o artista, aos poucos, vai se submetendo à velocidade do processo de recepção virtual. Você não passa anos trabalhando num poema ao qual a internet não dedicará mais do que 24h. Sei que há exceções, mas tenho a impressão de que a qualidade da leitura que as pessoas em geral fazem na internet é bastante baixa; lê-se com pouca atenção, com pouca paciência. O escritor “de internet” está fadado a dissolver-se nessa lógica, a integrar-se a ela; quem tem maus leitores fatalmente escreverá mal, ou pior do que escreveria em mais estimulantes circunstâncias.

Se tivesse de dizer em uma linha, diria que a principal consequência da atual cultura da informação para a cultura como um todo é a perda da densidade – densidade que qualifica o intelecto daquele tipo em extinção, o erudito. Não é que o intelectual contemporâneo seja, utilizando a expressão do Gustavo Nogy, um “especialista em nada”; talvez ele até seja demasiado especialista, como aqueles professores da Filosofia USP que desde a graduação estudam o conceito X dentro da obra do filósofo Y. Mas a “cultura total” do antigo erudito (aliás nem tão antigo assim) é algo de que, no Brasil, nessa última geração, se apareceu algum exemplar foi totalmente a despeito do meio. E o problema é que as áreas do conhecimento humano são bem mais interdependentes do que querem nossos libertários que não leem literatura nem sabem usar crase. Longa e velha discussão, pois é.

Mas, voltando ao ponto: temos que parar de escrever “para a internet” – nós, cuja responsabilidade é não deixar a literatura brasileira desparecer completamente, nós que, salvo pessimismo meu, somos uma geração de atravessadores, destinados a traficar a maior quantidade possível de bens culturais lá da porção saudável das letras do país e fazê-los chegar até essa ilhota misteriosa que é o futuro, onde, ao que tudo indica, o terreno estará mais firme do que hoje para a produção de obras duradouras. Nossa geração teve uma vida cômoda demais para ser protagonista. Mas, voltando ao ponto: é necessário participar da vida virtual, pois ela nos dá a medida do que é o mundo contemporâneo e é nosso correio e ponto de encontro. Porém, aquilo que nós queremos – se é que queremos – comunicar às próximas gerações deve ser preparado com muito cuidado e muita calma, à margem do turbilhão da internet, posto que não somos gênios (somos atravessadores) e nosso trabalho é sobretudo braçal (apenas os gênios podem contar com a fecundidade da preguiça e do acaso).

Poemas devem ser escritos e reescritos demoradamente, até serem o melhor que podem ser. Romances, contos, teatro – idem. Nada de correr para mostrar seu primeiro rascunho aos amiguinhos e ganhar likes no Face.

Passei as duas últimas semanas com essas frases martelando na minha cabeça. Há meses não escrevo um poema que preste. Por vezes cheguei perto, mas a pressa foi abortiva. So long, blog de poemas.

II

Agora, sobre seu desejo de se tornar escritora: eu penso, M., que antes de mais nada o que um escritor precisa é ter o que dizer. O escritor não é tanto aquele que diz “tenho vontade de escrever livros” quanto aquele para quem há a gritante necessidade de comunicar tal coisa. Nunca tentei escrever prosa de ficção, mas minha experiência com escrita de modo geral me diz que uma ideia bem cultivada encontra como que naturalmente sua forma perfeita. Mas é claro que isso só funciona quando você já tem ao menos o domínio básico das regras do gênero no qual se propõe escrever. Se você não sabe como funciona a métrica em poesia, não espere “intuir” um belo alexandrino (um, talvez; mas um conjunto de catorze ou vinte e oito belos e harmônicos alexandrinos...). Porém, uma vez tendo afinado o seu instrumento (sabendo escrever uma prosa limpa e maleável, ou redondilhas certinhas, dependendo de em qual recipiente você quer vazar a sua “tal coisa”; com o acréscimo de que até aqui a festa é aberta a qualquer um, independendo de real vocação ou mero diletantismo) – uma vez tendo afinado o seu instrumento (créditos da expressão ao Emmanuel Santiago), resta perguntar-se o que você tem a dizer. É sua atitude diante dessa pergunta que fará de você escritora ou diletante.

Tenho visto uma quantidade alarmantemente grande de escritores jovens com algum talento, mas que não têm o que dizer. Ou ao menos ainda não o conseguiram. São montes de poemas e histórias sem norte, com um horizonte embaçado ou simplesmente vazio. O escritor senta diante da página em branco, sobre a qual incide a luz de uma janela aberta, e logo expele algo como: “A janela aberta na tarde em branco / eu isso eu aquilo / meus sentimentos”. O que acontece aí? Acontece uma pessoa cuja vontade de escrever um poema vem antes da consciência do que tem a comunicar. Quem nunca protagonizou tal cena atire a primeira pedra!

Sylvia Plath, em seu romance autobiográfico, The Bell Jar, brinca com isso engenhosamente. É um romance sobre sua juventude, quando ela era uma aspirante a escritora; nele, a personagem aspirante a escritora escreve uma história sobre uma jovem aspirante a escritora. A personagem está sentada no jardim com uma máquina de escrever, e o parágrafo de abertura do que ela escreve diz: “Fulana estava sentada no jardim com uma máquina de escrever”.

Isso é a imagem do diletantismo, ou do fetiche pela arte literária. Sylvia Plath é um bom exemplo de escritora de talento que foi consumida pelo fetiche. Desde muito cedo ela quis ser escritora, onde isso correspondia não tanto ao trabalho de quem tenta mapear o mundo com palavras, mas sobretudo a certos traços de personalidade supostamente comuns a quem escreve; escrever seria menos uma atividade com fins para além de si mesma do que um modo de ser e viver. É bastante natural que até certo momento tudo que se tenha seja uma inclinação vaga à expressão por meio de palavras, e Plath tinha isso genuinamente, o germe da literatura, mas ela acabou desperdiçando sua vocação (e, pior, sua vida) no culto a esse ídolo fajuto que é o Escritor Com Problemas Psicológicos. Mas antes fosse esse seu único ídolo. Quando estava feliz, Plath cultuava o Escritor de Salões Literários. Há uma passagem em seu diário em que ela exclama (cito livremente, de memória; só por muito dinheiro eu abriria de novo o diário da Sylvia Plath): “Eu nasci para isso! Para presidir reuniões literárias e ser a mulher escritora de um escritor!” Que lindo, Plath... Trocando a vida real por estereótipos livrescos, não é de se estranhar que seu casamento com o (também poeta) Ted Hughes tenha virado uma guerra de egos que terminou com você inalando gás, sua feather-headed fool.

De fato, conhecer as trajetórias pessoais e artísticas dos escritores nos ensina muito. Conhecer a história de Sylvia Plath me ajuda a manter meus próprios fetiches no cabresto (nem sempre consigo, mas estou tentando). Outro diário muito interessante de se ler é o do Lúcio Cardoso. Eis outro exemplo de vontade ardente de ser escritor, mas sem a correspondente capacidade de controlar os próprios demônios. Lúcio Cardoso atirou para todos os lados: conto, novela, romance, poesia. Foi em tudo medíocre. Seu diário, porém, revela um espírito profundo e um pensador capaz. Acompanhar as muitas páginas de suas considerações literárias e filosóficas e as anedotas de suas batalhas pessoais nos ensina uma grande lição de humildade: mesmo os mais aplicados aspirantes a literatos podem dar em nada – e com grande frequência é o que acontece. Dizendo ainda de outro modo: o mundo não estará necessariamente interessado nos ardores do seu coração, aspirante a escritor. Sim, o diário do escritor fracassado deveria ser leitura obrigatória a todo aspirante a escritor. (Nota maldosa: Lúcio Cardoso não respondia as cartas de Clarice Lispector, que na juventude teve por ele uma paixão não correspondida. Ela, que foi a escritora com “E” maiúsculo que ele nunca conseguiu ser. Aqui se faz, aqui se paga.)

Mas é claro que também devemos olhar para os exemplos de sucesso. E é claro que entre estes eu citarei Dostoiévski. É verdadeiro dizer de Dostoiévski que todos os seus protagonistas eram partes dele mesmo. Mas não é menos verdadeiro dizer que sua grandeza estava em saber ser outros, e outros extremamente opostos a si próprio. A literatura de Dostoiévski põe em prática a ética do amor ao próximo. Como em sua própria casa, ele recebia em cada um de seus livros os tipos humanos mais abjetos, dava-lhes de comer e beber, abrigava-os e conversava com eles de igual para igual. Seus protagonistas eram ele mesmo na medida em que representavam problemas que o moviam. Quando Dostoiévski começava a escrever um novo romance, era porque estava engasgado com algum desses problemas, que em sua escrita tomavam a forma de um ou mais homens (porque no mundo real também eram formas humanas). Dostoiévski não sentava para escrever sobre Dostoiévski querendo escrever; seu uso de experiências biográficas não era de fundo narcisista, era, quando muito, uma das pontas do novelo de suas criações literárias (desejo sorte aos que tentarem encontrar a outra ponta). O que impelia Dostoiévski à palavra era, primeiro, a urgência de resolver para si certos problemas e, segundo, a intenção de modificar os homens ao seu redor. “Ter o que dizer” é isso: é ter uma ideia melhor para o mundo em que você vive; é saber algo que, do modo como você o dirá, ainda não está dito. E pode ter certeza de que a cada dia tudo muda tanto que os problemas humanos, sendo sempre mais ou menos os mesmos, sempre podem ser revisitados.

Eu tenho grande confiança no potencial de utilidade de cada indivíduo humano. Não só cada homem é entre todos um universo único, mas em relação ao ambiente ao seu redor (sua família, seu grupo de amigos, seu país) esse – como dizer? – dom de originalidade torna-se ainda mais notável. Isto é, sempre há algo que nós, e muito especificamente cada um de nós, pode fazer pelo mundo que nos cerca. A cada dia não há nada de novo sob o sol, e ainda assim quanto não existe de importante, de imprescindível até, que vem sendo esquecido? Dizer incansavelmente as coisas importantes, repeti-las ao largo dos tempos, adaptando a mensagem aos olhos e ouvidos dos espectadores e ouvintes do momento presente – é para isso que no mundo existem escritores, além de engenheiros e professores de inglês. (Nota: Já me criticaram por “ficar falando do Bruno Tolentino como se fosse novidade quando há dez anos o Fulano e o Fulano já diziam tudo isso mimimi.” Pois é, e pode ter certeza de que, se daqui a dez anos mais gente não tiver se juntado ao coro, o serviço ainda estará incompleto.)

Agora, voltando a você, M.: acho que é possível ajudar um jovem escritor a partir de certo ponto – comentando seus escritos, por exemplo. Mas antes disso há um momento que eu creio seja inevitavelmente solitário, que é aquele em que você se pergunta onde está no meio de toda essa bagunça. O que há por trás do seu desejo de escrever? Qual problema causa em você essa alfinetada que impele às palavras? O que é isso que você tem a nos contar, que está diante dos nossos olhos, mas não vemos nem ouvimos? Após essas perguntas, todo o resto é trabalho braçal. E o trabalho não é pouco. Eu desconheço caminho além de ler e escrever, exaustivamente. De preferência, tendo leitores de confiança que sirvam de cobaias para suas tentativas – aliás, sem isso é praticamente impossível avançar.

E tentar, com todas as suas forças, não sucumbir à internet e aos elogios fáceis que a sustentam. 
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