Esta é a versão Director’s Cut do último artigo que publiquei na revista Vila Nova. Minha intenção era acrescer o artigo de alguns parágrafos onde eu discutiria mais detidamente trechos do livro de Bakhtin sobre Dostoiévski, tentando sintetizar os motivos pelos quais uma considerável parte da crítica dostoievskiana (não no Brasil, é claro) rejeita a teoria de Bakhtin sobre polifonia e carnavalização na obra do romancista russo. Mas eis que encontro online um artigo fundamental de ninguém menos que René Wellek, onde estão resumidos magistralmente todos os pontos que eu arrancaria os cabelos para demonstrar de forma clara e sucinta. Recomendo fortemente a leitura.
O texto a seguir preocupa-se menos com Bakhtin do que com seus seguidores brasileiros.
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Na introdução de seu aclamado Problemas da Poética de Dostoiévski (1929/1963), Mikhail Bakhtin faz uma varredura no que a crítica produzira até então sobre a obra do grande romancista russo e conclui: não há, antes do seu, nenhum estudo que ofereça uma leitura adequada da dimensão poética – ou estritamente formal – da obra de Dostoiévski; abundam interpretações do romancista filósofo ou ideólogo, mas se ignora ou não se chega à altura do artista.
Neste ponto Bakhtin estava certo, ainda que se discorde de seus conceitos e instrumentos de análise literária: é preciso chamar atenção à complexidade estética dos romances de Dostoiévski. Com efeito, trata-se de um autor perigoso, capaz de enredar facilmente o leitor desarmado. Lê-lo com a guarda baixa, com a mesma credulidade com que se percorre, digamos, um romance de Jane Austen, quase sempre será sinônimo de passar-lhe ao largo. Não apenas o universo dostoievskiano é um amálgama de referências históricas e culturais acessíveis integralmente apenas a seus contemporâneos ou a leitores especializados, mas também sua técnica narrativa é tão complicada quanto aquilo que seria o sentido último de sua obra (e não por acaso; em toda grande literatura, forma é conteúdo). Bakhtin percebeu isso e dedicou-se a sistematizar o “caos” dostoievskiano, porém com vistas não a dispersar a bruma e perceber-lhe o que há no fundo, senão para justificar teoricamente a pressuposta falta de “verdade acabada” dos romances de Dostoiévski.
Assim, temos que hoje, 80 anos após publicar-se a primeira versão de Problemas da Poética de Dostoiévski, durante os quais a teoria de Bakhtin tornou-se uma febre, dir-se-ia uma espécie de solução universal para a obra do autor russo[1], certa parte da crítica já afirma tranquilamente a irresolvibilidade desta obra, ou seja: o romance dostoievskiano é um labirinto insolúvel, feito num embate de vozes contraditórias que convivem num perpétuo conflito o qual é, ele mesmo, a única verdade disponível. O autor, para Bakhtin, seria o regente do coro dialógico de vozes, porém incapaz de fazer qualquer uma preponderar sobre as demais; cada voz ou personagem teria vida própria – o autor apenas possibilita sua expressão. Se não se trata, aqui, da repisada “morte do autor”, trata-se ao menos de uma redução violenta de sua importância, uma vez que a obra já não pode ser lida com recurso às intenções ou ao horizonte mental de seu criador, o que, segundo a lógica de Bakhtin, não passaria de bitolação monológica.
Do ponto de vista de uma visão monológica coerente e da concepção do mundo representado e do cânon monológico da construção do romance, o mundo de Dostoiévski pode afigurar-se um caos, e a construção de seus romances, algum conglomerado de matérias estranhas e princípios incompatíveis de formalização. Só à luz da meta artística central de Dostoiévski por nós formulada podem tornar-se compreensíveis a profunda organicidade, a coerência e a integridade de sua poética.
(In: Problemas da Poética de Dostoiévski. Ed. Forense Universirária, p. 6. Grifo meu.)
E, no entanto, é altamente questionável a hipótese do romance polifônico enquanto “meta artística central” de Dostoiévski, por motivos que espero esclarecer a seguir. O romance polifônico é, no máximo, a meta artística formulada por Bakhtin e aplicada à obra de Dostoiévski, não sem deformá-la em muitos sentidos. Em outras palavras, a teoria de Bakhtin é uma apropriação anacrônica da obra de Dostoiévski.
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Para entender isso, voltemos à Rússia do século XIX, à sociedade e às condições culturais que propiciaram o que hoje se conhece como a era de ouro da literatura daquele país. Púchkin, Gógol, Turguêniev, Leskov, Tolstói, Dostoiévski – já faz tempo que o Ocidente se encontra às voltas com esses nomes esquisitos, esforçando-se para pronunciá-los e, por meio de sua literatura, habitando seu mundo, um mundo de noites brancas, invernos para nós impossíveis, paixões inflamadas, samovares, mujiques, um mundo a um só tempo alheio e curiosamente nosso. É uma literatura que, sendo apaixonadamente russa, é universal, fala a todos os homens de todos os tempos. Mas o que explica o boom da literatura no século XIX russo, se é que algo o explica? Como é que esses homens com os nervos à flor da pele, vivendo em um país escravocrata e – segundo moldes ocidentais – atrasado em todos os sentidos, conseguiram tamanho feito cultural?
De fato, se comparada à Europa, a modernidade russa começou tarde e instaurou-se de um modo que a historiografia concorda em chamar de traumático. Na virada do século XVII para o XVIII, o imperador Pedro I implementou uma série de reformas para alinhar a Rússia feudal aos padrões de civilidade europeus. Após viajar pela Europa e se aconselhar com suas figuras mais eminentes, construiu São Petersburgo como “uma janela para o Ocidente”, uma cidade planejada, moderna e racional, oposta à antiquada e caótica Moscou, e mandou cortar as barbas aos nobres, que agora deviam trajar-se à europeia, entre inúmeras outras medidas no mesmo sentido, abrindo o país para o influxo desde então incontido de cultura ocidental.
O resultado imediato das reformas petrinas foi a criação de uma elite europeizada, cujos costumes passaram a contrastar fortemente com aqueles que caracterizavam a massa da população, composta por servos camponeses. Em médio prazo – isto é, em meados do século XIX –, tal cisão cultural era a manifestação concreta da crise de identidade da qual padecia todo e qualquer intelectual russo de então; quanto mais educados, quanto mais “europeizados”, mais urgentes pareciam a esses homens a questão nacional e a busca pela distinção do que seria o caráter russo.
Ao mesmo tempo, à medida que as noções europeias de civilização (àquela altura de matriz iluminista, romântica ou socialista) se iam infiltrando na mentalidade russa, crescia a hostilidade destes às condições sociais vigentes em seu país. E, com as críticas da intelligentsia ao status quo, crescia a censura tsarista à imprensa e puniam-se com severidade os crimes de opinião. Esta é parte da explicação para a preponderância da literatura no século XIX russo: a prosa de ficção e a crítica literária logo se mostraram eficientes veículos para uma forma velada de crítica social. Filosofia, política, religião, antropologia, sociologia – o romance russo do século XIX abrange todas as disciplinas que, em um ambiente marcado pela liberdade de expressão, tratar-se-iam detida e abertamente. Afinal, nas palavras de Aleksandr Herzen (1812-1870), a autocracia russa, em seus períodos mais defensivos, não perseguia apenas ideias contrárias a sua estabilidade, mas o pensamento per se[2].
Ainda assim, tratava-se de uma sociedade de tal modo obcecada pela “vida do espírito” e pelas “questões eternas” que nem o mais opressor dos regimes impediu-a de investigar seus problemas. É preciso reiterar o que já se disse acima: ainda que em grande medida, ou até determinado momento, a intelectualidade russa oitocentista tenha pensado com ideias de empréstimo, tratava-se de uma classe imbuída de um inescapável sentimento nacional e obcecada por sua “particularíssima situação concreta”. O próprio Dostoiévski costumava dizer: tome-se qualquer ideia estrangeira (digamos, o socialismo), os russos a incorporarão e neles ela se tornará em qualquer coisa grotescamente diversa do que era originalmente. Não se chegará a entender o boom cultural na Rússia do século XIX se se ignorar que a força motriz daqueles pensadores e escritores era a pergunta “quem somos nós?”. Tudo o que liam, tudo o que aprendiam a partir de fontes estrangeiras servia-lhes para alentar a fogueira nacional.
Há ainda um fator puramente sociológico que há de ter catalisado tal processo de autoconhecimento: o fato de que a elite pensante na Rússia desse período compunha-se de uma fração mínima da população, com a consequência de que cada geração de intelligentsy era formada por homens que conviviam entre si, liam-se reciprocamente e debatiam como cães em fúria (inclusive com grande incidência do chamado fogo amigo, tão ofensivo à sensibilidade dos intelectuais brasileiros de hoje). O debate público se dava pelas chamadas “revistas grossas”, cujo apelido as descreve bem: eram periódicos reunindo artigos jornalísticos e protofilosóficos os mais variados e cujo carro chefe era a literatura que se publicava fascicularmente, a qual hoje temos em nossas estantes na forma de bastos volumes. Normalmente cada periódico tinha uma linha editorial bem definida e publicava textos que corroboravam com o conjunto de ideias sustentado por seus editores.
Não há como escapar: tudo o que de melhor foi produzido pelas letras russas no século XIX reporta-se a um, ou melhor, a vários debates ideológicos. Não havia arte pela arte, onde fins estéticos não se remetessem às discussões que animavam a atmosfera cultural da sociedade. Porém, não se pode dizer que só se produzissem panfletos – houve alguns, mas ao lado destes houve também Tolstói e Dostoiévski –, o que aponta para o erro de se negar que artistas possam produzir obras de impressionante complexidade estética visando, ao mesmo tempo, à participação num debate político-filosófico, como é evidentemente o caso dos grandes russos do século XIX.
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O ponto em descrever todo esse panorama cultural é explicitar como a ideia bakhtiniana do romance polifônico e do debate entre vozes “equipolentes”[3] é incompatível com o espírito das letras russas oitocentistas. Se se deseja sustentar a tese de Bakhtin de que o romance dostoievskiano é um labirinto insolúvel, onde as ideias mais contraditórias têm igual plausibilidade, só se pode fazê-lo afirmando ao mesmo tempo que o romancista fracassou em seu projeto literário e que, por assim dizer, inventou o romance polifônico por acaso, contra sua própria vontade. Há material suficiente para se demonstrar que Dostoiévski, o intelectual de carne e osso, não tinha qualquer interesse em produzir uma literatura que não contribuísse com o debate político-ideológico que ele mantinha nos periódicos jornalísticos que editava. A breve título de exemplo (o material nesse sentido é realmente abundante), veja-se o seguinte trecho de uma carta onde o romancista comenta o famoso capítulo “Revolta”, de Os Irmãos Karamázov:
“A ideia é apresentar a extrema blasfêmia e as sementes da ideia de destruição difundidas atualmente na Rússia entre a nova geração que se apartou da realidade. As convicções de Ivan constituem o que eu considero a síntese do anarquismo russo contemporâneo. A negação não de Deus, mas de sua criação. Todo o socialismo partiu da negação do sentido da realidade histórica e chegou ao programa da destruição e do anarquismo. (....) A blasfêmia do meu herói vai ser triunfantemente refutada no próximo capítulo, no qual estou trabalhando agora com temor e tremor, pois considero minha tarefa – a refutação do anarquismo – uma proeza cívica.”[4] (Grifo meu)
O trecho suscita a pergunta: como pode ser o romance polifônico a “meta artística central” de um autor cuja “tarefa cívica” – estabelecida pelo próprio – é a refutação do anarquismo? Certamente não pretendo reduzir a literatura dostoievskiana às opiniões cerradas do autor. Sim, sua obra é genial na medida em que escapa às suas rédeas de ideólogo, e algumas de suas criações mais brilhantes coincidem justamente com seus momentos de procura cega, de angústia, de dúvida. Mas reconhecer isso de modo algum nos obriga a subscrever a tese da “equipolência” das vozes com que são povoados seus romances.
Há hierarquia de vozes nos romances de Dostoiévski. É perfeitamente possível extrair sentido do modo como as personagens-ideias interagem sob a regência do autor. Usando um exemplo já gasto: a suposta ambiguidade do Epílogo de Crime e Castigo não resiste ao mais básico esforço de análise textual. E, no entanto, como mostram alguns comentários ao texto do link, a obsessão pela “pluralidade de sentido” em literatura já faz com que o próprio questionamento em torno do significado de uma obra pareça supérfluo.
É certo que há discrepância entre as intenções de Dostoiévski e aquilo em que se concretiza cada trabalho seu. Ele não usa a literatura para meramente ilustrar suas opiniões jornalísticas – a literatura é, antes, seu meio de investigação do real, de modo que se pode atribuir, sim, alguma autonomia às criaturas a que ele dá vida enquanto autor, porém apenas até certo ponto, dentro de certos limites. E esses limites coincidem com a própria pessoa de Dostoiévski, onde “pessoa” não designa suas crenças e preferências conscientes; digamos, em termos didáticos, que um personagem ou um livro, enquanto em fase de composição, pode tornar-se qualquer coisa – dentro do conjunto de coisas nas quais pode tornar-se o próprio Dostoiévski. Seus personagens são imprevisíveis na medida em que encarnam as várias batalhas do autor contra seus próprios demônios, batalhas essas que ele trava enquanto escreve, as quais ele ganha ou perde junto ao sucesso ou fracasso de cada livro. De modo que, se suas intenções nem sempre coincidiram com o que sua literatura revelou, para nós hoje, seus leitores, já é possível com satisfatória clareza compreender a consonância entre autor e obra.[5]
Que a literatura de um autor possa resultar em qualquer coisa estranha a (independente de) ele mesmo é uma dessas ideias sossegadamente aceitas no meio acadêmico brasileiro, malgrado a enxurrada de complicações que comporta. Ouço com frequência que não se pode ler Dostoiévski à luz de sua visão de mundo autoral porque “a literatura é maior”, a literatura vai sempre mais longe do que seu autor. Dependendo do modo como se lê tal afirmação, ela pode fazer mais ou menos sentido. Não vou, porém, me deter nela. Quero apenas concluir este texto com o que é a contradição cabal de um bakhtinismo degenerado e, infelizmente, brasileiro.
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Bakhtin afirma:
Quando as ideias de Dostoiévski-pensador entram no seu romance polifônico, mudam a própria forma de sua existência, transformam-se em imagens artísticas das ideias: combinam-se numa unidade indissolúvel com as imagens das ideias (de Sônia, Míchkin, Zossima), rompem o seu fechamento monológico e seu acabamento, tornam-se inteiramente dialógicas e entram no grande diálogo do romance em absoluto pé de igualdade com outras imagens de ideias (as ideias de Raskólnikov, Ivan Karamázov e outros). É inteiramente inaceitável atribuir-lhes a função conclusiva das ideias dos autores do romance monológico. Aqui elas não têm absolutamente essa função, são participantes equipolentes do grande diálogo.
(In: Problemas da Poética de Dostoiévski. Ed. Forense Universirária, pp. 103-104. Grifo meu.)
Esta pode ser – e eu creio que é – uma leitura errada da dinâmica interna do romance dostoievskiano, mas é ao menos uma leitura honesta. Bakhtin conhece as ideias do Dostoiévski-pensador, sabe onde elas ganham tratamento literário explícito e não tenta disfarçá-lo. Ele sabe que o autor discorda de Raskólnikov e Ivan Karamázov, e no entanto crê que essas personagens negativas aos olhos do autor neutralizam-se no contexto polifônico do romance dostoievskiano. Quanto a isso, há ampla literatura argumentando em contrário, e remeto o leitor novamente ao texto de René Wellek.
O maior problema começa quando seguidores de Bakhtin usam a teoria polifônica para apagar o ponto de vista do autor, neutralizando suas posições que causem eventual incômodo, e terminam contradizendo não apenas Dostoiévski, mas o próprio Bakhtin, ao construir sobre os escombros da morte do autor a “verdade acabada” que melhor lhes aprouver. Ora, dizer que Crime e Castigo é um romance sobre um crime enquanto experimento social, fruto da mentalidade socialista de seu autor, não é dar-lhe uma interpretação monológica? Bakhtin se revira no túmulo. Bebeu do próprio veneno. Não por acaso o tradutor brasileiro de Crime e Castigo, o qual é hoje um dos grandes responsáveis pela distorção da imagem de Dostoiévski em autor de cosmovisão socialista, é também atualmente o grande tradutor e divulgador de Bakhtin no Brasil.
Resumo da ópera: a teoria bakhtiniana é uma apropriação anacrônica da obra de Dostoiévski e serve de instrumento para que críticos com visões de mundo contrárias à do romancista calem o autor em benefício de seus próprios interesses muito menos dialógicos do que ideológicos.
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[1] Atualmente, até onde posso ver, a febre bakhtiniana já saiu moda entre a eslavística internacional, ou ao menos está longe de ser hegemônica. Sinto não poder dizer o mesmo sobre o Brasil.
[2] Que o regime que a substituiu não tenha sido diferente é um dos problemas fundamentais a ser discutido pela historiografia política e cultural da Rússia.
[3] “Equipolentes são consciências e vozes que participam do diálogo com as outras vozes em pé de absoluta igualdade; não se objetificam, isto é, não perdem o seu SER como vozes e consciências autônomas.” (Problemas da Poética..., Nota do Tradutor, p. 5.)
[4] Carta a N. A. Liubimov, 10 de maio de 1879. In: “Dostoevsky on The Brothers Karamazov”, trad. S.S. Koteliansky, New Criterion, IV (1926), 552-53.
[5] Cf. a esse respeito o livro de René Girard, Dostoiévski: do Duplo à Unidade. “...a estrutura de Os Irmãos Karamázov é semelhante à das Confissões e à da Divina Comédia. É a estrutura da encarnação, a estrutura fundamental da arte ocidental, da experiência ocidental. Está presente todas as vezes em que o artista consegue dar a sua obra a forma da metamorfose espiritual que lhe deu origem. Não se confunde com a narrativa dessa metamorfose, ainda que possa coincidir com ela.” É Realizações, p. 142.