segunda-feira, 29 de julho de 2013

Duas Mortes

Vovô morreu calmo, era noite e dormia
Em paz com a vida e de bem com os seus
Flutuou sem medo e sem agonia
Do sono dos justos ao colo de Deus

Meu tio em seu carro, acidente de estrada
Morreu maldizendo a Deus e o mundo
A carne era dor nas chamas assada
A alma lançada no abismo profundo

Seria obra-prima do acaso ou em parte
Discreta justiça do último instante?
Meu tio blasfemava asfixiado de morte
Vovô cochilava sereno ao volante

Existe amor na blogosfera?

Todo conservador
Conserva a dor.
A dor do pobre.
A dor do negro.
A dor do índio.
A dor da mulher.
A dor do palestino.

Chega de conservar dor!
Agora eu quero ver
Todo mundo ser
Conservamor

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Uma Defesa Cética da Homeopatia

Não acredito em homeopatia;
mas que funciona, funciona.
Volta e meia algum grupo de céticos ou de defensores da ortodoxia médica organiza um "suicídio coletivo" por overdose de homeopatia. O suicídio falha e todo mundo festeja a refutação de mais uma pseudociência. Alguns querem-na banida das farmácias e dos consultórios.

Médicos homeopáticos não se deixam intimidar; afinal, pelo mecanismo proposto pela homeopatia, uma overdose não deve mesmo ter efeito algum. (E uma infradose, menor do que a proposta pelo médico? Seria ela perigosa?). Ainda assim, os céticos provavelmente têm razão: os vidrinhos de homeopatia líquida contêm água ou álcool; as pílulas, açúcar. E é isso.

Toda a teoria homeopática é anterior à medicina moderna. Foi formulada antes que se soubesse que micro-organismos causam doenças. A teoria de que a diluição do princípio ativo potencializa seu efeito carece de qualquer base. Depois que se provou que as substâncias não são infinitamente diluíveis, e que a partir de certo ponto o esperado é que não sobre nem uma molécula do princípio ativo num frasco, foram boladas teses ainda mais inverossímeis, como a da memória da água, que também carecem de fundamentação. 

Nada disso deterá o crente; pois, dirá, apesar das dificuldades teóricas, o negócio funciona. Funciona? O teste da experiência casual é falho; se aceitamo-lo no caso da homeopatia, por que não no caso da sangria, prática terapêutica consagrada por milênios de experiência, e que na verdade piorava a saúde do paciente? (Curiosamente, o sucesso empírico inicial da homeopatia se deveu exatamente ao fato de que, nos hospitais homeopáticos, não se aplicavam tratamentos nocivos como a sangria). A experiência não rigorosa, informal, do dia a dia, não é nada confiável para aferir a eficácia de tratamentos médicos. Além disso, apesar da resistência dos homeopatas em testar seus métodos, os resultados de testes empíricos rigorosos apontam que sua taxa de sucesso não supera a de tratamentos com placebo.

É possível que esses estudos estejam errados, assim como boa parte da física, química e biologia modernas, e a homeopatia realmente funcionar pelos motivos alegados por homeopatas? É. Mas até que isso seja provado, é mais razoável crer que o remédio homeopático seja inerte mesmo, e que não passe de placebo. A questão é que pode ser um excelente placebo.

Por trás de um mesmo nome, escondem-se efeitos de intensidades muitos diferentes. Quando um feiticeiro aborígene australiano aponta um osso de lagarto na direção de um outro membro de sua cultura e recita uma fórmula mágica, este morre em poucos dias. Não porque os rituais tenham poderes sobrenaturais ou estejam baseados em crenças verdadeiras, mas porque a mente humana é poderosa, e dependendo do significado que diferentes eventos têm em uma cultura, os efeitos que eles produzem podem ir muito além do que a análise físico-química permite prever.

Nesse sentido, a homeopatia está muito bem colocada para produzir efeitos placebo. A bala de açúcar é o menos relevante; o que importa é tudo o que a rodeia. O contato frequente com um médico que conhece o paciente e se importa com ele, tentando desenvolver um medicamento único; a aparência de um processo científico e tecnológico por trás (em nossa cultura, essa percepção conta muito); um remédio do qual se toma muitas doses e com o qual se deve tomar várias precauções (já encostou nas bolinhas homeopáticas de algum conhecido para ver como ele reage?); por envolver um tiquinho assim de magia e mistério, abre nossa mente para efeitos ainda maiores do que a banalidade que é a ciência convencional. Por fim, é uma terapia que conta com crença generalizada na sociedade, sendo aceita até mesmo por instâncias oficiais do poder. Mesmo quem não crê nela tem aquele pingo de dúvida, resto de insegurança; e se for real...? Para o placebo, essa aceitação subconsciente e a contragosto já basta; talvez seja até melhor.

Assim, digo que a homeopatia é farmacologicamente inócua. Mas funciona. Funciona como placebo, e faz um ótimo trabalho nesse quesito. Por isso, não há por que ser tão contrário à ela. Para todas aquelas doenças que a mente humana sozinha é incapaz de curar, não deve de forma alguma ser usada à exclusão de tratamentos convencionais. Mas em conjunção com eles, ou sozinha para aqueles problemas mal-definidos e pouco conhecidos nos quais a própria mente está diretamente envolvida (seja como causadora involuntária, seja como fator curador), pode ter grande valia. Muitas pessoas, depois de anos infrutíferos na alopatia, passam para a homeopatia e se curam de males como alergias, indisposições, etc. Como placebo, como gatilho de efeitos psicológicos curativos, a homeopatia pode ser superior à alopatia. Não duvido que funcione até para céticos como eu. O efeito placebo ocorre mesmo quando se sabe perfeitamente que se toma um placebo, desde que se acredite que o efeito placebo funciona. Se minhas alergias piorarem, é para lá que eu vou.

Portanto, céticos, procurem algo mais útil para combater! Se, graças a seus esforços, a homeopatia perder seu efeito (como ocorre com muitas crenças tradicionais depois do contato com o homem branco, ou com remédios antigos dentro de nossa própria sociedade), e não tivermos nada para colocar em seu lugar, nossa saúde terá piorado, sem que nosso conhecimento tenha avançado um centímetro sequer. Até o dia em que consigamos produzir em tratamentos reais os mesmos efeitos placebo das medicinas alternativas (aumentando, talvez, o cuidado nos rituais e convenções que os rodeiam?), deixem o pajé, a rezadeira e o homeopata em paz! Cumprem o mesmo papel que o médico alopata, e custam bem menos ao nosso bolso.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Cariocas; e ludovicenses


Moro há pouco tempo no Rio e, para mim, que venho de São Luís, cidade que também tem algo de aristocracia decaída, tudo o que Pedro Sette-Câmara sintetizou neste texto é muito evidente. Vejo cariocas invocarem a ira dos deuses porque a margarina estava sem o preço na prateleira do supermercado. Subitamente abandonarem com violência uma lanchonete porque um garçom lhes apontou a mesa mas não os conduziu até lá. A recíproca idem: o comerciante carioca não vende – apenas consente, a contragosto, em sentir-se roubado.  O empresário carioca se acha um mártir do capitalismo: sente cada ato seu, para que uma moeda lhe caia no bolso, como uma tortura. Aqui o padeiro nordestino pode ser identificado pela sua boa disposição (até indiscrição) em atender. E o paulista é aquele cara que sempre ficará para trás na guerra campal para conseguir pegar um táxi ou entrar em um ônibus – e que às vezes perguntará, sem que ninguém entenda do que diabos ele fala: “Cadê a fila? Ei, cadê a fila?” A fila seria uma boa idéia, mas...

A princípio, tive a impressão terrível de que o carioca é uma versão concentrada da alcovitaria maledicente que, no geral, é uma marca do brasileiro (o brasileiro jamais será capaz de considerar um problema político tão a sério quanto considera a vida do vizinho – o que é muito bom e muito ruim, sob diferentes aspectos). Via pessoas se tratarem com uma docilidade constrangedora, cheias de ademanes (é a palavra certa) e prestezas, e, ao darem as costas umas às outras, acusarem-se das maiores baixezas. A primeira impressão é que seja um caso quase patológico de falsidade. Mas não é falsidade. O carioca trata muito bem seu interlocutor, caso esteja em uma situação “não mediada” (se não estiver em causa uma relação comercial, por exemplo); enquanto o faz, o faz com toda a sinceridade. Com toda a idêntica sinceridade com que em seguida o chamará de mau caráter, aproveitador e sabe Deus o quê – a mesma, mesmíssima sinceridade, com que será capaz de num terceiro momento voltar a tratar o mau caráter em questão como um rei que recebe, com todas as honras, um estrangeiro em seu paço imperial. O carioca quer tudo mesmo quando não pode quase nada; age com base nisso. Ele diz e desdiz e não está nem aí. “Afinal, para que permanecer rígido em uma mesma posição, uma mesma idéia?” – é o que todo carioca parece dizer. A sua disciplina é de outra ordem. Ainda não sei exatamente de qual.

A propósito, mas mais a propósito do que disse no primeiro parágrafo, encontro no Dicionário Universal de Citações (verbete “Rio de Janeiro”) de Paulo Rónai o trecho de Genolino Amado que segue. O estilo é ruim, mas tem sua verdade:

“Nas cidades tristes, nevoentas, como Londres, ou mesmo como São Paulo, o esforço do trabalho está somente em trabalhar. Mas, no Rio, o primeiro e grande esforço está somente em ir para o serviço, em aceitar a pequenez de um destino burocrático ou proletário, quando vem dos panoramas, inundando o coração da gente, a imagem de tantas grandezas, a sensação do mundo em festa.” (Os Inocentes do Leblon)

Um parêntese.

Certa vez um estrangeiro que viveu no Brasil observou que a pergunta cuja resposta todo brasileiro deve saber – “Quem descobriu o Brasil?” – não faz o menor sentido para um inglês ou um italiano. Ninguém descobriu a Europa. A Europa sempre esteve lá e de lá os europeus vieram. E então passam, os europeus, a discutir o quanto a Europa tem de Israel, de Grécia, de Roma, de Bizâncio ou de Índia. Vocês conseguem imaginar um brasileiro discutindo o quanto o Brasil tem de ibérico, mediterrâneo ou árabe? Há bons livros a respeito – e algumas figuras excêntricas, como um amigo meu que, vendo Afonso I se materializar no ar, diz, punho em riste, ser brasileiro há mais de 800 anos –, principalmente quanto aos elementos indígena e africano; mas esse tipo de especulação definitivamente não é esporte nacional.

O que é esporte pelo menos provincial, ao menos em minha província, São Luís, é enobrecer-se pela discussão de quem descobriu a terrinha; ou qualquer outra discussão similar. Uns tantos de nós ludovicenses (ludovicense > Ludovicus > Luís XIII – o “rei menino” que se homenageou com o nome da ilha) separamos todo dia 8 de setembro, aniversário oficial da cidade, para fazer alguns inimigos. Uns são partidários de que na data realmente se deve comemorar a fundação de São Luís; ou seja, de que foi fundada pelos franceses de Daniel de La Touche em 8 de setembro de 1612. Outros são partidários de que a data não é esta; ou seja, de que foi fundada pelos portugueses de Jerônimo de Albuquerque, em algum momento de 1615 ou 1616, após expulsarem os franceses. Sou do primeiro time, e me ufano de sê-lo, mas aviso a possíveis adversários que não discutirei isso aqui. Independentemente de quem estiver certo (mas eu estou, disso eu sei), o fato é que o partido lusitano sofre da mesma inclinação que acusa nos “oficialistas” pró-franceses: querer enobrecer a cidade com uma fundação “mítica”; no caso, com a ascendência em um nobre que, não bastasse ser francês, era ainda pirata e huguenote, a trazer consigo capuchinhos que deixariam os melhores relatos (melhores inclusive literariamente) sobre uma missão no Brasil nos primeiros séculos; coisa que tornaria São Luís bastante excêntrica frente ao resto da colonização brasileira. O partido lusitano, por sua vez, enobrece a fundação por outro meio: atribuindo-a a Jerônimo de Albuquerque, um homem de guerra já sexagenário, aclimatado à terra, filho de português e de índia, que se casou pagã e cristãmente com uma nativa e teve dezenas de filhos, experimentado em diversas guerras de mata cerrada ao longo do litoral nordestino. Uns, então, querem o exotismo europeu; outros, o exotismo autóctone; mas ambos queremos algum tipo de extravagância, e São Luís realmente é uma cidade muito extravagante. Porque a nobreza é extravagante, mais ainda se decadente. E é por isso que depois de secas todas as garrafas, depois que o Brasil for uma gigantesca São Paulo, continuará sendo uma questão de honra, e bem mais interessante que decidir o que há de ibérico ou não no brasileiro, determinar se foram os franceses ou os portugueses que fundaram São Luís.

Fecha parêntese.

O aristocrata decadente que é o carioca, contudo, infelizmente é um tipo que já rareia entre os mais jovens. Basta observar o comum de sua fala hoje; entre eles é o português de baile funk que se dissemina. A tendência natural a realizar uma elevação tonal ao fim de frases ditas com ênfase (o que dá a impressão de que o carioca quase usa de falsete ao terminar de dizer algo que lhe indigna) acabou debordando em uma fala ao mesmo tempo de ritmo lento e melodia de repentista (variações tonais sempre retornando a um mesmo ponto). É um fenômeno curioso, que eu agora não saberia descrever de forma muito objetiva, que dirá técnica. Mas é assim que a insensatez quixotesca de determinadas posturas vai se tornando simplesmente má educação, deboche e indiferença num português terrível, numa “língua de pau”. Esta é o produto mais aparente do carioca que deixa de ser aristocraticamente voluntarioso para ser toscamente queixoso.

Termino apenas lembrando – e esta é uma observação meio errática, ligada apenas ao fato de que nasci e cresci num lugar e hoje vivo noutro, ambos com alguma remota marca aristocrática – que a pessoalidade das relações do carioca não é nada se comparada à necessidade vital do ludovicense já não digo de driblar a impessoalidade das relações democráticas, mas de ter boas relações francamente mafiosas. Se os cariocas tiveram os bajuladores de D. Pedro II, nós ludovicenses tivemos e temos os bajuladores de Sarney I (nesse quesito a ser substituído por um Flávio Dino ou outro qualquer – o que é pena, pois também nos levará do voluntarismo à queixa). E nos é muito mais intragável que a eles que o rei seja, como escreveu Tolstói, “escravo da História”. História, com a gente, é mesmo com “h” minúsculo e suscetível de ser atirada ao mar. Somos todos uns reizinhos, mas reizinhos que efetivamente mandam na história; não temos satisfação alguma a prestar a essa disciplina de plebeus de cátedra. Por isso o ludovicense chama o parente sulista para ver o maior prédio em azulejaria da América Latina ou ver missa em alguma igreja do século XVII, mas não tem o mínimo pudor em carregar alguns azulejos e relíquias para sua própria casa. Amamos nossa cidade e por isso nos achamos no direito de saqueá-la e depredá-la sem piedade.

Mas não conheço nenhum ludovicense tão folgado quanto o carioca médio. Nenhum.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Carta à Sra. Míchkina

O que vai abaixo não é exatamente uma mensagem que escrevi a alguém: em meu último post foi assim, mas dessa vez eu aproveitei a deixa de uma troca de mensagens para organizar em texto algumas ideias esparsas, já tendo em vista outros leitores além da interlocutora original, a distinta Sra. Míchkina. Mantenho o formato de carta porque ele facilita a exposição. E também porque o texto é orientado por questões levantadas pela Sra. M.

Os leitores me perdoem a insistência nos mesmos temas. Acontece que tudo isso – literatura, poesia, contemporaneidade – é, usando uma imagem brega, o papel de parede do meu mundo. São as coisas sobre as quais eu penso por necessidade pessoal. Todos têm direito a sua cota de ideias fixas.

***

I

Começando pelo tópico fácil, M.: sim, eu deletei meu blog de poemas. O motivo é o mesmo que tem me feito controlar minha participação na internet: combater a pressa, o imediatismo (“combater” não no mundo – o que seria ridículo –, mas na minha própria vida). A internet funciona por esse mecanismo do feedback instantâneo: você produz algo (um texto, um comentário, um poema), solta na rede e imediatamente começa a receber feedbacks. Isso é muito positivo em algumas áreas, como o jornalismo informativo e o debate blogueiro, mas para as artes é desastroso. A não ser que seu interesse seja produzir experimentos sócio-artísticos, desses que contam com a participação ativa do leitor/ouvinte/espectador.

Digo que é desastroso porque o artista, aos poucos, vai se submetendo à velocidade do processo de recepção virtual. Você não passa anos trabalhando num poema ao qual a internet não dedicará mais do que 24h. Sei que há exceções, mas tenho a impressão de que a qualidade da leitura que as pessoas em geral fazem na internet é bastante baixa; lê-se com pouca atenção, com pouca paciência. O escritor “de internet” está fadado a dissolver-se nessa lógica, a integrar-se a ela; quem tem maus leitores fatalmente escreverá mal, ou pior do que escreveria em mais estimulantes circunstâncias.

Se tivesse de dizer em uma linha, diria que a principal consequência da atual cultura da informação para a cultura como um todo é a perda da densidade – densidade que qualifica o intelecto daquele tipo em extinção, o erudito. Não é que o intelectual contemporâneo seja, utilizando a expressão do Gustavo Nogy, um “especialista em nada”; talvez ele até seja demasiado especialista, como aqueles professores da Filosofia USP que desde a graduação estudam o conceito X dentro da obra do filósofo Y. Mas a “cultura total” do antigo erudito (aliás nem tão antigo assim) é algo de que, no Brasil, nessa última geração, se apareceu algum exemplar foi totalmente a despeito do meio. E o problema é que as áreas do conhecimento humano são bem mais interdependentes do que querem nossos libertários que não leem literatura nem sabem usar crase. Longa e velha discussão, pois é.

Mas, voltando ao ponto: temos que parar de escrever “para a internet” – nós, cuja responsabilidade é não deixar a literatura brasileira desparecer completamente, nós que, salvo pessimismo meu, somos uma geração de atravessadores, destinados a traficar a maior quantidade possível de bens culturais lá da porção saudável das letras do país e fazê-los chegar até essa ilhota misteriosa que é o futuro, onde, ao que tudo indica, o terreno estará mais firme do que hoje para a produção de obras duradouras. Nossa geração teve uma vida cômoda demais para ser protagonista. Mas, voltando ao ponto: é necessário participar da vida virtual, pois ela nos dá a medida do que é o mundo contemporâneo e é nosso correio e ponto de encontro. Porém, aquilo que nós queremos – se é que queremos – comunicar às próximas gerações deve ser preparado com muito cuidado e muita calma, à margem do turbilhão da internet, posto que não somos gênios (somos atravessadores) e nosso trabalho é sobretudo braçal (apenas os gênios podem contar com a fecundidade da preguiça e do acaso).

Poemas devem ser escritos e reescritos demoradamente, até serem o melhor que podem ser. Romances, contos, teatro – idem. Nada de correr para mostrar seu primeiro rascunho aos amiguinhos e ganhar likes no Face.

Passei as duas últimas semanas com essas frases martelando na minha cabeça. Há meses não escrevo um poema que preste. Por vezes cheguei perto, mas a pressa foi abortiva. So long, blog de poemas.

II

Agora, sobre seu desejo de se tornar escritora: eu penso, M., que antes de mais nada o que um escritor precisa é ter o que dizer. O escritor não é tanto aquele que diz “tenho vontade de escrever livros” quanto aquele para quem há a gritante necessidade de comunicar tal coisa. Nunca tentei escrever prosa de ficção, mas minha experiência com escrita de modo geral me diz que uma ideia bem cultivada encontra como que naturalmente sua forma perfeita. Mas é claro que isso só funciona quando você já tem ao menos o domínio básico das regras do gênero no qual se propõe escrever. Se você não sabe como funciona a métrica em poesia, não espere “intuir” um belo alexandrino (um, talvez; mas um conjunto de catorze ou vinte e oito belos e harmônicos alexandrinos...). Porém, uma vez tendo afinado o seu instrumento (sabendo escrever uma prosa limpa e maleável, ou redondilhas certinhas, dependendo de em qual recipiente você quer vazar a sua “tal coisa”; com o acréscimo de que até aqui a festa é aberta a qualquer um, independendo de real vocação ou mero diletantismo) – uma vez tendo afinado o seu instrumento (créditos da expressão ao Emmanuel Santiago), resta perguntar-se o que você tem a dizer. É sua atitude diante dessa pergunta que fará de você escritora ou diletante.

Tenho visto uma quantidade alarmantemente grande de escritores jovens com algum talento, mas que não têm o que dizer. Ou ao menos ainda não o conseguiram. São montes de poemas e histórias sem norte, com um horizonte embaçado ou simplesmente vazio. O escritor senta diante da página em branco, sobre a qual incide a luz de uma janela aberta, e logo expele algo como: “A janela aberta na tarde em branco / eu isso eu aquilo / meus sentimentos”. O que acontece aí? Acontece uma pessoa cuja vontade de escrever um poema vem antes da consciência do que tem a comunicar. Quem nunca protagonizou tal cena atire a primeira pedra!

Sylvia Plath, em seu romance autobiográfico, The Bell Jar, brinca com isso engenhosamente. É um romance sobre sua juventude, quando ela era uma aspirante a escritora; nele, a personagem aspirante a escritora escreve uma história sobre uma jovem aspirante a escritora. A personagem está sentada no jardim com uma máquina de escrever, e o parágrafo de abertura do que ela escreve diz: “Fulana estava sentada no jardim com uma máquina de escrever”.

Isso é a imagem do diletantismo, ou do fetiche pela arte literária. Sylvia Plath é um bom exemplo de escritora de talento que foi consumida pelo fetiche. Desde muito cedo ela quis ser escritora, onde isso correspondia não tanto ao trabalho de quem tenta mapear o mundo com palavras, mas sobretudo a certos traços de personalidade supostamente comuns a quem escreve; escrever seria menos uma atividade com fins para além de si mesma do que um modo de ser e viver. É bastante natural que até certo momento tudo que se tenha seja uma inclinação vaga à expressão por meio de palavras, e Plath tinha isso genuinamente, o germe da literatura, mas ela acabou desperdiçando sua vocação (e, pior, sua vida) no culto a esse ídolo fajuto que é o Escritor Com Problemas Psicológicos. Mas antes fosse esse seu único ídolo. Quando estava feliz, Plath cultuava o Escritor de Salões Literários. Há uma passagem em seu diário em que ela exclama (cito livremente, de memória; só por muito dinheiro eu abriria de novo o diário da Sylvia Plath): “Eu nasci para isso! Para presidir reuniões literárias e ser a mulher escritora de um escritor!” Que lindo, Plath... Trocando a vida real por estereótipos livrescos, não é de se estranhar que seu casamento com o (também poeta) Ted Hughes tenha virado uma guerra de egos que terminou com você inalando gás, sua feather-headed fool.

De fato, conhecer as trajetórias pessoais e artísticas dos escritores nos ensina muito. Conhecer a história de Sylvia Plath me ajuda a manter meus próprios fetiches no cabresto (nem sempre consigo, mas estou tentando). Outro diário muito interessante de se ler é o do Lúcio Cardoso. Eis outro exemplo de vontade ardente de ser escritor, mas sem a correspondente capacidade de controlar os próprios demônios. Lúcio Cardoso atirou para todos os lados: conto, novela, romance, poesia. Foi em tudo medíocre. Seu diário, porém, revela um espírito profundo e um pensador capaz. Acompanhar as muitas páginas de suas considerações literárias e filosóficas e as anedotas de suas batalhas pessoais nos ensina uma grande lição de humildade: mesmo os mais aplicados aspirantes a literatos podem dar em nada – e com grande frequência é o que acontece. Dizendo ainda de outro modo: o mundo não estará necessariamente interessado nos ardores do seu coração, aspirante a escritor. Sim, o diário do escritor fracassado deveria ser leitura obrigatória a todo aspirante a escritor. (Nota maldosa: Lúcio Cardoso não respondia as cartas de Clarice Lispector, que na juventude teve por ele uma paixão não correspondida. Ela, que foi a escritora com “E” maiúsculo que ele nunca conseguiu ser. Aqui se faz, aqui se paga.)

Mas é claro que também devemos olhar para os exemplos de sucesso. E é claro que entre estes eu citarei Dostoiévski. É verdadeiro dizer de Dostoiévski que todos os seus protagonistas eram partes dele mesmo. Mas não é menos verdadeiro dizer que sua grandeza estava em saber ser outros, e outros extremamente opostos a si próprio. A literatura de Dostoiévski põe em prática a ética do amor ao próximo. Como em sua própria casa, ele recebia em cada um de seus livros os tipos humanos mais abjetos, dava-lhes de comer e beber, abrigava-os e conversava com eles de igual para igual. Seus protagonistas eram ele mesmo na medida em que representavam problemas que o moviam. Quando Dostoiévski começava a escrever um novo romance, era porque estava engasgado com algum desses problemas, que em sua escrita tomavam a forma de um ou mais homens (porque no mundo real também eram formas humanas). Dostoiévski não sentava para escrever sobre Dostoiévski querendo escrever; seu uso de experiências biográficas não era de fundo narcisista, era, quando muito, uma das pontas do novelo de suas criações literárias (desejo sorte aos que tentarem encontrar a outra ponta). O que impelia Dostoiévski à palavra era, primeiro, a urgência de resolver para si certos problemas e, segundo, a intenção de modificar os homens ao seu redor. “Ter o que dizer” é isso: é ter uma ideia melhor para o mundo em que você vive; é saber algo que, do modo como você o dirá, ainda não está dito. E pode ter certeza de que a cada dia tudo muda tanto que os problemas humanos, sendo sempre mais ou menos os mesmos, sempre podem ser revisitados.

Eu tenho grande confiança no potencial de utilidade de cada indivíduo humano. Não só cada homem é entre todos um universo único, mas em relação ao ambiente ao seu redor (sua família, seu grupo de amigos, seu país) esse – como dizer? – dom de originalidade torna-se ainda mais notável. Isto é, sempre há algo que nós, e muito especificamente cada um de nós, pode fazer pelo mundo que nos cerca. A cada dia não há nada de novo sob o sol, e ainda assim quanto não existe de importante, de imprescindível até, que vem sendo esquecido? Dizer incansavelmente as coisas importantes, repeti-las ao largo dos tempos, adaptando a mensagem aos olhos e ouvidos dos espectadores e ouvintes do momento presente – é para isso que no mundo existem escritores, além de engenheiros e professores de inglês. (Nota: Já me criticaram por “ficar falando do Bruno Tolentino como se fosse novidade quando há dez anos o Fulano e o Fulano já diziam tudo isso mimimi.” Pois é, e pode ter certeza de que, se daqui a dez anos mais gente não tiver se juntado ao coro, o serviço ainda estará incompleto.)

Agora, voltando a você, M.: acho que é possível ajudar um jovem escritor a partir de certo ponto – comentando seus escritos, por exemplo. Mas antes disso há um momento que eu creio seja inevitavelmente solitário, que é aquele em que você se pergunta onde está no meio de toda essa bagunça. O que há por trás do seu desejo de escrever? Qual problema causa em você essa alfinetada que impele às palavras? O que é isso que você tem a nos contar, que está diante dos nossos olhos, mas não vemos nem ouvimos? Após essas perguntas, todo o resto é trabalho braçal. E o trabalho não é pouco. Eu desconheço caminho além de ler e escrever, exaustivamente. De preferência, tendo leitores de confiança que sirvam de cobaias para suas tentativas – aliás, sem isso é praticamente impossível avançar.

E tentar, com todas as suas forças, não sucumbir à internet e aos elogios fáceis que a sustentam. 

segunda-feira, 1 de julho de 2013

A política da imaginação autoritária



As recentes manifestações por todo país não são o efeito direto de uma nova consciência política do povo brasileiro. Pelo contrário, revelam o sintoma de uma profunda desordem na experiência da imaginação política da sociedade brasileira como um todo, que não é outra coisa senão a própria crise da consciência do homem público. Nesse sentido, as manifestações devam ser tomadas como fenômenos espontâneos que indicam alguma outra coisa de mais profunda, e não a própria coisa a ser refletida.

A relação entre imaginação e política percorre a história da experiência política, todavia, muitas doutrinas são frutos da produção de um imaginário precário e autoritário: o poder é uma tentação irresistível. Analisemos um exemplo: o transporte coletivo em grandes centros urbanos é extremamente complexo e de péssima qualidade. Isso não é imaginação, mas um fato. Como torná-lo mais eficiente e ao mesmo tempo oferecer aos usuários melhores condições de uso por um preço mais justo? Essa é uma pergunta complexa impossível de ser respondida com fórmulas mágicas. Quem afirma possuir a solução inequívoca demonstra estar longe dos fatos.

É um fato também que as ondas de protestos tiveram início a partir da pretensão de se dar uma resposta mágica e inequívoca ao problema dos transportes formulado acima. A resposta dada pelo Movimento Passe Livre (MPL) enfatiza o nível da imaginação política do grupo. Para o MLP, não interessa a complexidade dos fatos, importa apenas aquilo que foi determinado por um princípio derivado do imaginário dos membros do grupo.

O MPL ganhou notoriedade nos últimos dias por ter deflagrado as ondas de protestos. Assim que os prefeitos voltaram atrás com o reajuste das tarifas, o grupo retirou-se das manifestações. Quando temas típicos da chamada “agenda conservadora” – aborto, corrupção, maioridade penal – começaram dar o tom das manifestações, o movimento voltou atrás tentando recolocar a pauta da tarifa dos transportes. Assim, o vai-e-volta demonstra a total falta de senso de realidade, a incapacidade de lidar com a complexidade dos fenômenos sociais, o fiasco estratégico e o ápice da imaginação autoritária conduzindo os interesses políticos.

Ao perguntarem para os líderes do grupo quanto custaria e quais são as efetivas propostas para implementação da tarifa zero, a resposta é sempre categórica: “Pra gente é uma questão política e não técnica”. Após reunião com a presidente Dilma (dia 24) – que, aliás, neste ponto, acertou ao lembrá-los da impossibilidade de tarifa zero! –, a resposta indica o nível doentio do estado de imaginação do grupo: "Vimos a Presidente completamente despreparada. Eles não sabem nem quanto custaria a tarifa zero". Ora, mas a proposta de tarifa zero é do MPL, seus líderes têm obrigação de saber quanto custa e quais às técnicas.

Por fim, embora confesse ser apartidário, o MPL não esconde seu vínculo profundo com ideologias de extrema-esquerda, cujo objetivo último não é, como todos sabem, os 20 centavos ou a conquista da tarifa zero – essa seria só uma etapa da pauta da esquerda revolucionária –, mas a superação da “lógica da mercadoria” por meio da coletivização dos meios de produção, isto é, em última instância, pôr fim ao capitalismo de mercado, e com isso realizar o velho sonho de acabar com a propriedade privada. Consequentemente, com as liberdades individuais em nome do bem coletivo como a resposta última para realização de um mundo melhor.

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Texto originalmente publicado em Gazeta do Povo em 27 de Junho de 2013.
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