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terça-feira, 1 de abril de 2014

Dostoiévski e Herzen na Encruzilhada da História

Juro que é a última vez que publico trechos do meu mestrado; é que o momento é realmente propício ao tema. O que vai abaixo são as páginas finais da minha dissertação. O texto não está adaptado e por isso o leitor vá perdoando a monotonia do discurso acadêmico, bem como referências incompreensíveis fora de contexto. Creio, porém, que o fundamental está acessível.

O mais provável é que depois disto eu passe um bom tempo sem falar de Dostoiévski.

Para quem ainda não teve coragem de encarar: leia "O Grande Inquisidor" neste link.


***


(...) É preciso levar em consideração ainda outro aspecto importante do pensamento dos dois autores aqui comparados: sua eficácia enquanto leitores do processo histórico no que diz respeito às ideias e revoluções políticas. O fato de ambos vaticinarem o declínio irreversível da civilização ocidental e seu iminente assalto por instituições (segundo Herzen) ou valores (segundo Dostoiévski) russos já os afasta em igual medida do quadro verídico desenhado pela história do século passado até o momento presente. Ainda assim, em suas previsões imprecisas – e delirantes, em certos pontos –, cada qual teve sua margem de erro e acerto. Mais do que checar o “dom de profecia” de ambos, cotejar suas expectativas com a realidade (na medida em que a ciência histórica tem sido eficaz em descrevê-la) pode oferecer-nos algumas importantes lições.

            Dostoiévski, no Diário de um escritor, quase trinta anos após Herzen profetizar o cataclismo europeu, pinta um quadro muito semelhante para o futuro da Europa:

A conta final e o acerto da balança podem acontecer muito antes do que as mais delirantes fantasias predizem. Os sintomas não são bons. A situação política antinatural dos Estados europeus pode servir de estopim para tudo. Uma pequena parte da humanidade não pode possuir todo o resto como escravos, e no entanto foi exclusivamente com este objetivo que, até hoje, todas as instituições cívicas (as quais há muito deixaram de ser cristãs e são hoje inteiramente pagãs) da Europa foram criadas. Esta antinaturalidade e estas questões políticas “insolúveis” devem infalivelmente levar a uma enorme e derradeira guerra de partição na qual todos estarão envolvidos e a qual estourará neste século, talvez mesmo na próxima década. (...)
            E eis que os proletários saem às ruas. O que vocês acham: eles agora esperarão pacientemente como antes, morrendo de fome? Isto será possível, uma vez que temos o socialismo político, depois da Internacional, dos congressos sociais e da Comuna de Paris? Não, agora as coisas não mais serão como antes: os proletários varrerão a Europa e toda a velha ordem colapsará de uma vez por todas.[1]

            Os fatos previstos por Dostoiévski são essencialmente os mesmos da projeção de Herzen: a situação político-econômica da Europa, insustentável a longo prazo, culminará primeiro em uma grande guerra internacional que desorganizará os Estados europeus; então, em meio à balbúrdia geral, guerras domésticas eclodirão, com os proletários das grandes potências industriais tomando as ruas e concluindo a destruição do “velho mundo”.

            Nem Herzen nem Dostoiévski viam inteiramente com bons olhos este panorama. A diferença é que Dostoiévski opunha-se a ele em princípio, desde suas premissas teóricas até suas consequências práticas, ao passo em que a discordância de Herzen diz mais respeito à metodologia de uma revolução “descontrolada” do que ao fato em si de se destruir a velha ordem por meio de um levante popular. Isto é, a onda proletária desfigurando a face do continente europeu era quase a revolução idealizada por Herzen; para Dostoiévski, era em todos os sentidos uma ameaça nefasta e um pesadelo.

            E é sobre a perspectiva desta ameaça que Dostoiévski constrói seu edifício utópico. O papel da Rússia enquanto retificadora dos erros do Ocidente viria à tona, segundo o romancista, na esteira da desordem revolucionária europeia:

As ondas [da revolução proletária] quebrarão inofensivas apenas contra as nossas margens [russas], pois apenas então, claramente e para todos verem, virá a total revelação de quão distinto é o nosso organismo do organismo europeu. Então, mesmo vocês, pensadores doutrinários, talvez recobrem os sentidos e comecem a buscar em nossa pátria “os princípios do Povo”, dos quais vocês até agora apenas riem. E ainda assim, hoje, os senhores apontam para a Europa e nos instam a transplantar para cá aquelas mesmas instituições as quais entrarão em colapso por lá amanhã. (...) “Eles há muito resolveram seus problemas”, o senhor diz – e isto após vinte constituições em menos de um século e quase dez revoluções! Oh, talvez apenas então, livres da Europa por um momento, nós nos aproximaremos de nossos próprios ideais sociais, aqueles inequivocamente derivados de Cristo e do aprimoramento pessoal, Sr. Gradóvski.[2]

            Entre as previsões de Herzen e Dostoiévski há, portanto, uma semelhança particularmente significativa: ambos visualizavam a revolução proletária acontecendo na Europa. Dostoiévski via na Rússia o “antídoto” à onda revolucionária; Herzen limitava-se a inspirar-se em sua terra natal para propor uma revolução socialista mais limpa e gradualista, com os avanços tecnológicos ocidentais aliados ao modelo social da comuna camponesa russa. Ambos consideravam que a difusão das ideias socialistas, originalmente europeias, já estava adiantada na Rússia, porém não lhes ocorria a possibilidade de as condições imediatas de sua terra natal serem mais propícias à revolução do que no Ocidente.

            Enfim, eis que a grande guerra internacional de fato eclodiu, e os anos de 1914-18 realmente mudaram o mapa da Europa, desfigurando nacionalidades e fronteiras; e, o que é mais importante, a guerra criou, com efeito, a ocasião para a revolução socialista – na Rússia. Neste ponto o século XX foi uma resposta um tanto cruel e irônica às esperanças eslavófilas de Dostoiévski. O paradigma do poema Vlas, de Niekrássov, do pecador que na hora H se converte e passa a viver para expiar suas faltas, não descrevia, afinal, o eterno movimento da alma russa, como o romancista queria crer. O miserável e religioso povo russo não conteve a revolução; pelo contrário, serviu-lhe de substrato material. À altura da guerra civil, ambos os exércitos branco e vermelho eram compostos por camponeses[3].

            Se não deixa de ser legítimo, em certo sentido, dizer que a revolução socialista na Rússia expressou a vontade de seu povo, da mesma forma, diante dos relatos históricos sobre os variados destinos de famílias e grupos camponeses durante os anos revolucionários, é difícil atribuir a uma entidade abstrata chamada “povo” uma única vontade e um único destino. Ao que tudo indica, o principal traço comum entre as classes populares russas na virada do século XIX para o XX não era nem seu Cristianismo “puro”, nem seu tino político naturalmente aguçado, mas o alheamento com relação aos afazeres da nobreza e da intelligentsia. Assim, deflagrada a revolução, houve grupos populares que voluntariamente a abraçaram, como houve os que a rejeitaram, mas a grande maioria quedou indefesa e atônita sob as engrenagens do momento crítico.

            Olhando retrospectivamente, Dostoiévski e os pótchvienniki estavam no caminho certo ao aliar a exaltação dos valores populares tradicionais à necessidade da educação do narod; afinal, são raríssimos os casos de indivíduos que conseguem aprimorar-se – em sentido dostoievskiano – apenas com base em intuições morais rudimentares. Já vimos que Dostoiévski gostava de idealizar alguns camponeses que tomava por exemplares da “pureza interior” da alma russa, como o mujique Marei e a babá de Púchkin; para ele, estes indivíduos tinham pouca consciência de seu próprio valor e do valor daquilo que representavam – o sentimento fraterno de inspiração cristã –, mas somente o fato de viverem colocando em prática suas intuições rudimentares já bastaria para se construir, na Rússia, uma muralha contra os “erros do Ocidente”.

            Nada poderia ser mais falso. Não se contém uma revolução tendo como arma apenas as verdades inconscientes de um povo. Nesse sentido, a argumentação pótchviennik, partindo da noção de autoconsciência como base do conhecimento em geral, era razoável com relação ao problema do campesinato russo ao concluir pela urgência de sua educação. Com efeito, na hora H da história russa, o narod achou-se incapaz de avaliar seu próprio lugar histórico – e acabou servindo largamente como massa de manobra a causas cujo sentido último lhe escapava.

O Pótchviennitchestvo, porém, também continha algumas das ideias que, ao longo do desenvolvimento intelectual de Dostoiévski, degenerariam no aspecto mais equivocado de seu pensamento – seu nacionalismo xenófobo. A ênfase pótchviennik na importância da autoconsciência era análoga e complementar à importância dada à imersão do indivíduo em seu universo nacional. Até certo ponto, isto é muito razoável: um homem é feito também à imagem de suas circunstâncias. Mas Dostoiévski parece ter levado este preceito longe demais e, em seu processo de autoconhecimento por meio da incorporação da nacionalidade, fundiu-se a sua terra natal, cegando-se a todo o resto e bloqueando, assim, a própria possibilidade de compreender algo além de suas projeções da Rússia sobre os objetos que analisava.

Deste modo, seu talento para perceber movimentos psicossociais antes mesmo de estes tomarem formas concretas, tendo como base apenas a psicologia humana, acabou frustrado pelas armadilhas de sua própria psicologia. Mais do que nenhum outro autor, Dostoiévski entendeu a natureza da revolução russa, e se chamá-lo “profeta” já se tornou um cliché, mais difícil é encontrar termo mais apropriado ao seu papel enquanto pensador de seu tempo. E, no entanto, era ele mesmo um produto da mentalidade revolucionária russa.

O mencionado talento perceptivo de Dostoiévski poderia tê-lo feito um antípoda de Herzen, sendo este o mais perfeito expoente da desfiguração de um espírito nobre à força de sua exposição a estímulos contraditórios, à crença de que entre “bem” e “mal” há uma diferença meramente opinativa e de que os desejos humanos existem exclusivamente para obter a saciedade. Dostoiévski estava anos luz à frente de Herzen no que diz respeito à compreensão da natureza humana e de sua relação com tudo o que existe. Mas tem Dostoiévski precisamente a mesma altura que seu oponente revolucionário quando veste a carapuça de ideólogo. Ao fim e ao cabo, tendo chegado muito perto de verdadeiramente prever a essência da história política do século XX, sua ideologia eslavófila o obrigou a enxergar apenas aquilo que todos os socialistas já afirmavam: que a urbanização industrial e a política externa colonialista levariam a Europa ao caos, com guerras impulsionando os proletários às ruas, liquidando o Terceiro Estado e assim por diante. Dostoiévski precisava deste quadro para construir sua utopia eslavófila, e não fez questão de enxergar nada mais além dele. Se tivesse olhado a Rússia com um pouco mais de isenção, ele, que com tanta precisão descreveu os efeitos da cosmovisão utilitário-materialista na alma de seus conterrâneos, teria possivelmente atentado à iminência da eclosão revolucionária em seu país.

Quanto a Herzen, ele foi, nas palavras do próprio Dostoiévski, um gentilhomme russe et citoyen du monde. Seu sentimento pátrio era demasiado imiscuído às demandas de seu cosmopolitismo para que lhe coubesse enxergar o real papel da Rússia na história posterior do Ocidente. Ainda assim, suas expectativas políticas acabaram revelando-se mais próximas do que veio de fato a acontecer do que o pan-eslavismo de Dostoiévski. Isto é verdadeiro, ao menos, quanto ao século XX. Já na história mais recente da Rússia, temos presenciado o ressurgimento de ideologias muito próximas à professada pelo autor do Diário de um escritor. São, porém, as ideias pan-eslavistas de Dostoiévski transformadas pela experiência soviética, dando origem a doutrinas como Nacional-bolchevismo e o Eurasianismo, nas quais a ideia de um império encabeçado pela Rússia, destinado a corrigir os erros do Ocidente, alia-se ao militarismo autoritário tipicamente soviético, recorrendo ao mesmo tempo à religião ortodoxa como fator de identidade e união do povo russo.

Tudo isto nos remete, por fim, a “O Grande Inquisidor”, o verdadeiro coração da obra dostoievskiana. Uma das leituras mais comuns deste capítulo de Os Irmãos Karamázov o interpreta como uma antevisão do socialismo posto em prática – o que de fato ele é. Porém, fazendo uma leitura mais cerrada do texto, vemos que se trata disto e de mais um pouco.

Diz o Grande Inquisidor a Cristo:

Sabes tu que passarão os séculos e a humanidade proclamará através da sua sabedoria e da sua ciência que o crime não existe, logo, também não existe pecado, existem apenas os famintos? ‘Alimenta-os e então cobra virtudes deles!’ – eis o que escreverão na bandeira que levantarão contra ti e com a qual teu templo será destruído. No lugar do teu templo será erigido um novo edifício, será erigida uma nova e terrível torre de Babel, e ainda que esta não se conclua, como a anterior, mesmo assim poderias evitar essa torre e reduzir em mil anos os sofrimentos dos homens, pois é a nós que eles virão depois de sofrerem mil anos com sua torre! Eles nos reencontrarão debaixo da terra, nas catacumbas em que nos esconderemos (porque novamente seremos objeto de perseguição e suplício), nos encontrarão e nos clamarão: ‘Alimentai-nos, pois aqueles que nos prometeram o fogo dos céus não cumpriram a promessa’. E então nós concluiremos a construção de sua torre, pois a concluirá aquele que os alimentar, e só nós os alimentaremos em teu nome e mentiremos que é em teu nome que o fazemos.

            Este trecho e outros deixam bastante claro que o futuro referido pelo Grande Inquisidor já se passa em um momento posterior à revolução socialista. Segundo a profecia dostoievskiana, haverá, primeiro, o socialismo (“‘Alimenta-os e então cobra virtudes deles!’ – eis o que escreverão na bandeira que levantarão contra ti e com a qual teu templo será destruído.”); porém, esta “Torre de Babel” não será concluída e sucumbirá após trazer muito sofrimento à humanidade. Neste momento de desespero, pois “quem prometeu o fogo dos céus não cumpriu a promessa”, é que o Grande Inquisidor e os seus virão “concluir a construção da torre”, e o farão em nome de Cristo, sob a hipócrita aparência de uma igreja cristã.

Assim, o mais correto não é dizer que sob uma aparente crítica ao catolicismo Dostoiévski descreve o socialismo; esta leitura não é equivocada, porém não é a mais precisa. O que o romancista faz é lançar mão do livro bíblico do Apocalipse, segundo o qual o advento do Anticristo instaurará uma falsa igreja sobre a terra, para construir uma parábola carregada de significado, na qual o Grande Inquisidor não exatamente encarna – como quer uma leitura mais plana do texto – Stálin ou um ditador declaradamente socialista, mas, mais precisamente, o antipapa que se apossará da Igreja no fim dos tempos, após o fracasso socialista e após expulsar de Roma o verdadeiro pontífice, segundo previsto na escatologia cristã. Ou seja, é impreciso dizer que em “O Grande Inquisidor” Dostoiévski previu a realidade soviética, pois a profecia aí implícita, se alguma há, diz respeito a um futuro ainda por vir.

Vale enfatizar que o mencionado antipapa seria um continuador do socialismo disfarçado de líder cristão, e por isso é correto ler “O Grande Inquisidor” como uma parábola antissocialista. Contudo, se bem ler literatura é uma tentativa contínua de reinterpretação textual à luz de novos dados da realidade, não podemos deixar escapar esta nuance da obra máxima de Dostoiévski, tão significativa face ao rumo que vem tomando a história mais recente do confronto entre o Ocidente e a Rússia. Dostoiévski não tinha dúvidas de que o chefe impostor da Igreja viria de dentro da própria Roma; talvez haja aí um erro análogo ao que o fez negligenciar a iminência da revolução socialista em seu próprio país.





[1] A Writer’s Diary, vol. 2, pp. 1320-1321. “Four Lectures On Various Topics”.
[2] Idem, p. 1321.
[3] “Dada a composição social da Rússia naquele momento, não é de surpreender que a maior parte dos soldados em ambos os lados fossem camponeses. Enquanto a maioria dos trabalhadores das fábricas apoiavam os Bolcheviques, os camponeses tinham uma atitude profundamente ambígua com relação à guerra civil. Aqueles que podiam ficar de fora, ficavam. (...) O campesinato às vezes apoiava o Exército Vermelho, às vezes o Branco, mas a crueldade em ambos os lados rapidamente os alienava.” In: BROWN, Archie. The Rise and Fall of Communism. Vintage Books: 2010, p. 53.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Dostoiévski entre a inspiração e a ideologia

O texto abaixo é adaptado de um trecho da minha dissertação. Porque é possível infundir vida mesmo nos corpos mais cadavéricos.
Quem não leu Os Irmãos Karamázov pode ler "O Grande Inquisidor" aqui. Sugiro que o faça não apenas para acompanhar este artigo, mas porque aí há mais conteúdo condensado do que em metade dessa estante cheia de livros que você não leu. Sem exagero. Fica a dica.

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Ferrenho combatente de utopias reducionistas, Dostoiévski não deixou de idealizar a sua própria. Mesmo os críticos mais próximos de sua visão de mundo (Berdiáiev, Ellis Sandoz) não deixam de notar este seu ponto fraco: Dostoiévski identificou problemas e escancarou feridas, e o fez com precisão inacreditável, mas não obteve o mesmo êxito quando tentou propor soluções. Um exemplo sumário disto se dá em sua representação de duas personagens antagônicas: Ivan e Aliócha Karamázov. Não será exagero dizer que as falas de Ivan no famoso diálogo entre os dois irmãos, que ocupa o que são provavelmente os três principais capítulos de Os Irmãos Karamázov, fecundaram com suas dúvidas e sua angústia toda a história intelectual do século XX, na Rússia como no Ocidente. Porém, não é possível dizer o mesmo de Aliócha e seu stárietz Zossima, ainda que suas falas contenham as ideias “positivas” do próprio Dostoiévski[1].

Nas Notas de Inverno se dá algo semelhante: os pontos mais fortes do texto, onde o narrador é mais eloquente em suas tiradas ácidas, referem-se às críticas feitas tanto à Europa quanto à Rússia. Já os momentos em que é exposta a utopia pessoal de Dostoiévski deixam o leitor pouco convencido; por mais que a porção eslavófila do discurso do narrador desperte interesse, destoa do – por assim dizer – dinamismo do resto. Dostoiévski nos acostuma a sempre considerar um objeto por seus ângulos mais contrários, nos convence de que a verdade, não sendo mutável, é ainda assim bem mais complexa do que os esquemas conceituais e simbólicos que inventamos para expressá-la. E, ao fazê-lo, ele paradoxalmente se aproxima da verdade; mas, ao mesmo tempo, por uma imperfeição em sua consciência artística, julga necessário apresentar também um modelo em duas dimensões do que acabou de expressar com a eloquência fulminante de seu “realismo superior” – e aí prejudica a harmonia do conjunto.

Tanto a “Lenda do Grande Inquisidor” quanto os sermões do stárietz Zossima são inspirados pela mesma intuição da verdade, com a diferença de que Zossima é esta inspiração desfigurada pela ideologia naródnik de Dostoiévski. Como bem notou Nikolai Berdiáiev, “no Cristianismo russo há sempre o grave perigo da predominância do elemento popular (naródnik; narod = povo) sobre o Logos Universal, da alma sobre o espírito. Este perigo pode ser visto no próprio Dostoiévski: sua divindade é com frequência o deus russo e não o Deus universal.”[2]

Outra importante diferença é que a Lenda se insere no labirinto de contrários que é Os Irmãos Karamázov, e sua força advém justamente de conseguir sustentar-se diante de todas as tensões adversas que a provam por todos os lados. Já o Livro VI, “Um Monge Russo”, onde Aliócha compila os sermões de seu mestre, soa como um adendo artificial aos capítulos anteriores. Aí já não fala mais o Dostoiévski artista e sim o ideólogo; as intuições luminosas dão lugar ao wishful thinking.

O ponto a ser enfatizado é que talvez esse “anticlímax” representado, nos Karamázov, pelo Livro VI (e, em outras obras, por outras falas ou personagens) esteja na origem da universalmente experimentada dificuldade de se precisar o sentido da obra de Dostoiévski, ao ponto de haver quem tome tal dificuldade por impossibilidade. É como se Dostoiévski criasse seu próprio espantalho e desviasse, involuntariamente, a atenção do leitor a um pastiche (o Livro VI) da verdade que acabou de expressar em toda a sua vivacidade e complexidade (a Lenda). Então, o leitor desavisado, distante da cosmovisão de um Zossima e culturalmente predisposto a compartilhar da angústia de Ivan, entende, para seu comodismo, que a “lição de moral” do livro está naquelas falas adocicadas do velho monge, e que portanto o poema alucinado do jovem intelectual Karamázov só pode ocupar-se de outra coisa, só pode ter valor “negativo”, já que a “positividade” está expressa alhures. É de fato muito difícil entender que textos tão distintos – um tão próximo de nós, outro tão olimpicamente frígido – sejam tentativas de expressão da mesma verdade.

No fundo, o grande problema é aproximar-se de Dostoiévski buscando nele as categorias de “positivo” e “negativo”; se há, de fato, ideias com que Dostoiévski tem afinidade e outras a que é hostil, sua expressão literária da dinâmica entre essas ideias e os sujeitos e sociedades que as produziram é bem mais complexa. Pode-se, para fins didáticos, elencar Ivan Karamázov entre as “personagens negativas” de Dostoiévski: o tipo social e psicológico por ele representado era considerado pelo autor como um aspecto doentio da cultura russa. Porém, o que dizer da “Lenda do Grande Inquisidor”, produto da imaginação de Ivan e inserida no romance a partir de suas falas? Seria a Lenda também “negativa”? O próprio Dostoiévski considerava que não:

A ideia [do capítulo “Revolta”] é apresentar o extremo da blasfêmia e as sementes da ideia de destruição, na Rússia deste momento, entre a geração de jovens que se apartaram da realidade. As convicções de Ivan formam o que eu considero a síntese do anarquismo russo contemporâneo. A negação não de Deus, mas de Sua criação. Todo o socialismo emergiu da negação do sentido da atualidade histórica e chegou ao programa da destruição e do anarquismo. Os principais anarquistas eram, em muitos casos, homens sinceramente convictos. Meu herói escolhe um tema e, em minha opinião, um tema inexpugnável: a falta de sentido do sofrimento das crianças – e daí deduz a absurdidade de toda a atualidade histórica... E a blasfêmia do meu herói será triunfantemente refutada no próximo capítulo [“O Grande Inquisidor”], no qual estou trabalhando agora com temor e tremor, pois considero minha tarefa (a refutação do anarquismo) uma proeza cívica.[3] (Grifo meu)

Para Dostoiévski, estava muito clara a disposição de “negatividade” e “positividade” entre os capítulos “Revolta” e “O Grande Inquisidor”. Ainda assim, é um fato que a constituição artística da Lenda envolve ambas as noções, pondo-as em franco embate, e durante este embate ambas estão como em pé de igualdade: se o bem vence no final, é após uma batalha sangrenta, da qual o autor não exclui mesmo as armadilhas mais perigosas, ainda que sua simpatia esteja o tempo todo com o Cristo torturado. E não é por acaso que a Lenda é assim composta: se Dostoiévski poupasse sua “ideia positiva” (Cristo) de qualquer dos ataques da “negatividade” (a revolta de Ivan; o Grande Inquisidor), não demonstraria satisfatoriamente sua solidez. O pouco poder de convencimento do Livro VI advém justamente desse isolamento de forças contrárias.

Note-se ainda que isto é análogo ao próprio procedimento de Cristo junto aos homens, segundo exposto na Lenda. Deus permite a existência do mal enquanto condição de possibilidade da liberdade humana: é preciso que os homens sobrevivam ao vale de lágrimas terreno lutando apenas com a força do exemplo dado por Cristo, pois de outro modo serão títeres nas mãos do poder divino, não criaturas dotadas de vontade (livre arbítrio). Ou seja, como o Cristo dostoievskiano diante do Grande Inquisidor, o único modo de o homem demonstrar sua dignidade e grandeza é enfrentando o mal; Dostoiévski não poupa suas próprias crenças de descer à arena para digladiar-se com crenças contrárias do mesmo modo como Deus permite o mal entre os homens.

E o mais curioso é que em ambos os casos tal procedimento gera confusão. Com a “Lenda do Grande Inquisidor”, Dostoiévski de fato refuta a revolta de Ivan Karamázov – do ponto de vista intelectual e textual. Porém, é controverso afirmar o sucesso de tal refutação enquanto “proeza cívica”, isto é, o quanto a obra artística de Dostoiévski é culturalmente eficaz na defesa dos valores que se propõe sustentar. No fim das contas, os últimos cento e trinta anos têm mostrado que a grande maioria de seus leitores não consegue acompanhar o combate sutil entre Cristo e o Grande Inquisidor, saindo da Lenda incertos quanto a seu sentido, especialmente no contexto maior de Os Irmãos Karamázov, com o eslavofilismo de Zossima e silhueta vaga de Aliócha complicando o coro de vozes.

            De modo que não é necessário um grande esforço de imaginação para supor, digamos, um Mikhail Bakhtin trajado de inquisidor soviético, brandindo em uma cela escura o dedo inflamado diante de um Dostoiévski ressurgido das cinzas:

... Por que voltaste? Por que vieste nos atrapalhar? Tu compuseste um labirinto insondável, povoaste-o com vozes desconcertantes e foste embora antes mesmo de escrever a maldita continuação do livro. Ninguém sabia o que fazer com tua obra! Os revolucionários proibiram-na, os emigrados transformaram-na em expressão do puro espírito descarnado. Enquanto isso, apenas os fortes chegavam à metade do teu labirinto; e só raros, raríssimos, somente os eleitos do Dostoievskianismo desvendavam seu sentido final! Mas quantos Berdiáievs há sobre a terra? Tu escreveste para os poucos e fortes, mas nós – nós corrigimos a tua façanha! Tu escondeste tua verdade sob uma enlouquecedora malha de vozes; a esta eu chamei polifonia e então mandei tudo pelos ares: não há pote de ouro no fim do arco-íris dostoievskiano! Parem de procurar, seus idiotas! – E tu pensas que eles resistiram? Achas que hesitaram em abraçar o relativismo polifônico, que fizeram questão de continuar perseguindo às cegas tua verdade apenas insinuada? Até parece! Tu dirigiste tua palavra aos espirituais, mas eu a difundi entre socialistas, anarquistas, feministas, psicanalistas e toda uma gama interminável de minorias que, sob o teu pseudomonologismo, não passariam nem da porta do labirinto de vozes que criaste. Mas hoje eles são legião! Quem? Ora, os MEUS dostoievskianos. Por que me olhas assim?  Achas que não posso ser eu mesmo um dostoievskiano? Hahahah! Eu bem sabia que adivinharias. É isso mesmo: eu não estou contigo, não sou um dostoievskiano! Não decifrei o labirinto, não sei o que há no final, nem me interessa saber. Meu único interesse é habitar a tua carcaça. Quiseste pintar aos homens um quadro fidedigno da realidade, e assim povoaste tuas cenas com anti-heróis diante dos quais teus mocinhos são insignificantes como lesmas. Realista, deveras! Genial, realmente! E muito conveniente à MINHA obra. Então não, não pensa que vais reaparecer assim do nada, com esses ossos pendurados e essa barba suja de cal: não precisamos mais de ti. O mundo já não pode viver sem Dostoiévski, mas tu, tu destruirias o Dostoiévski que EU dei ao mundo conhecer, o único possível, o único acessível a todos indiferentemente, o Dostoiévski polifônico, amorfo, inconsequente, fonte inesgotável de inspirações a quem se quiser fecundar de tão pr...

          Neste momento, o cadáver ressurreto de Dostoiévski cai no chão da cela e começa a debater-se; uma espuma esverdeada lhe escorre dos lábios, e Mikhail Bakhtin fica atônito a contemplar a cena sem atinar com o que fazer.







[1] Para certificar-se disto basta comparar o Livro VI de Os Irmãos Karamázov, no qual estão reunidos os sermões de Zossima, com os artigos de Dostoiévski no Diário de um escritor.
[2] Nicholas Berdyaev, Dostoevsky. Meridian Books: 1968, p. 185.
[3] Carta a N. A. Liubímov, 10 de Maio de 1879. In: Fyodor M. Dostoevsky, “Dostoevsky on The Brothers Karamazov”, New Criterion, IV (1926), 552-553.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Para além da poética de Dostoiévski

Esta é a versão Director’s Cut do último artigo que publiquei na revista Vila Nova. Minha intenção era acrescer o artigo de alguns parágrafos onde eu discutiria mais detidamente trechos do livro de Bakhtin sobre Dostoiévski, tentando sintetizar os motivos pelos quais uma considerável parte da crítica dostoievskiana (não no Brasil, é claro) rejeita a teoria de Bakhtin sobre polifonia e carnavalização na obra do romancista russo. Mas eis que encontro online um artigo fundamental de ninguém menos que René Wellek, onde estão resumidos magistralmente todos os pontos que eu arrancaria os cabelos para demonstrar de forma clara e sucinta. Recomendo fortemente a leitura.

O texto a seguir preocupa-se menos com Bakhtin do que com seus seguidores brasileiros.

***

Na introdução de seu aclamado Problemas da Poética de Dostoiévski (1929/1963), Mikhail Bakhtin faz uma varredura no que a crítica produzira até então sobre a obra do grande romancista russo e conclui: não há, antes do seu, nenhum estudo que ofereça uma leitura adequada da dimensão poética – ou estritamente formal – da obra de Dostoiévski; abundam interpretações do romancista filósofo ou ideólogo, mas se ignora ou não se chega à altura do artista.

Neste ponto Bakhtin estava certo, ainda que se discorde de seus conceitos e instrumentos de análise literária: é preciso chamar atenção à complexidade estética dos romances de Dostoiévski. Com efeito, trata-se de um autor perigoso, capaz de enredar facilmente o leitor desarmado. Lê-lo com a guarda baixa, com a mesma credulidade com que se percorre, digamos, um romance de Jane Austen, quase sempre será sinônimo de passar-lhe ao largo. Não apenas o universo dostoievskiano é um amálgama de referências históricas e culturais acessíveis integralmente apenas a seus contemporâneos ou a leitores especializados, mas também sua técnica narrativa é tão complicada quanto aquilo que seria o sentido último de sua obra (e não por acaso; em toda grande literatura, forma é conteúdo). Bakhtin percebeu isso e dedicou-se a sistematizar o “caos” dostoievskiano, porém com vistas não a dispersar a bruma e perceber-lhe o que há no fundo, senão para justificar teoricamente a pressuposta falta de “verdade acabada” dos romances de Dostoiévski.

Assim, temos que hoje, 80 anos após publicar-se a primeira versão de Problemas da Poética de Dostoiévski, durante os quais a teoria de Bakhtin tornou-se uma febre, dir-se-ia uma espécie de solução universal para a obra do autor russo[1], certa parte da crítica já afirma tranquilamente a irresolvibilidade desta obra, ou seja: o romance dostoievskiano é um labirinto insolúvel, feito num embate de vozes contraditórias que convivem num perpétuo conflito o qual é, ele mesmo, a única verdade disponível. O autor, para Bakhtin, seria o regente do coro dialógico de vozes, porém incapaz de fazer qualquer uma preponderar sobre as demais; cada voz ou personagem teria vida própria – o autor apenas possibilita sua expressão. Se não se trata, aqui, da repisada “morte do autor”, trata-se ao menos de uma redução violenta de sua importância, uma vez que a obra já não pode ser lida com recurso às intenções ou ao horizonte mental de seu criador, o que, segundo a lógica de Bakhtin, não passaria de bitolação monológica.

Do ponto de vista de uma visão monológica coerente e da concepção do mundo representado e do cânon monológico da construção do romance, o mundo de Dostoiévski pode afigurar-se um caos, e a construção de seus romances, algum conglomerado de matérias estranhas e princípios incompatíveis de formalização. Só à luz da meta artística central de Dostoiévski por nós formulada podem tornar-se compreensíveis a profunda organicidade, a coerência e a integridade de sua poética. 
(In: Problemas da Poética de Dostoiévski. Ed. Forense Universirária, p. 6. Grifo meu.)
E, no entanto, é altamente questionável a hipótese do romance polifônico enquanto “meta artística central” de Dostoiévski, por motivos que espero esclarecer a seguir. O romance polifônico é, no máximo, a meta artística formulada por Bakhtin e aplicada à obra de Dostoiévski, não sem deformá-la em muitos sentidos. Em outras palavras, a teoria de Bakhtin é uma apropriação anacrônica da obra de Dostoiévski.

            *

Para entender isso, voltemos à Rússia do século XIX, à sociedade e às condições culturais que propiciaram o que hoje se conhece como a era de ouro da literatura daquele país. Púchkin, Gógol, Turguêniev, Leskov, Tolstói, Dostoiévski – já faz tempo que o Ocidente se encontra às voltas com esses nomes esquisitos, esforçando-se para pronunciá-los e, por meio de sua literatura, habitando seu mundo, um mundo de noites brancas, invernos para nós impossíveis, paixões inflamadas, samovares, mujiques, um mundo a um só tempo alheio e curiosamente nosso. É uma literatura que, sendo apaixonadamente russa, é universal, fala a todos os homens de todos os tempos. Mas o que explica o boom da literatura no século XIX russo, se é que algo o explica? Como é que esses homens com os nervos à flor da pele, vivendo em um país escravocrata e – segundo moldes ocidentais – atrasado em todos os sentidos, conseguiram tamanho feito cultural?

De fato, se comparada à Europa, a modernidade russa começou tarde e instaurou-se de um modo que a historiografia concorda em chamar de traumático. Na virada do século XVII para o XVIII, o imperador Pedro I implementou uma série de reformas para alinhar a Rússia feudal aos padrões de civilidade europeus. Após viajar pela Europa e se aconselhar com suas figuras mais eminentes, construiu São Petersburgo como “uma janela para o Ocidente”, uma cidade planejada, moderna e racional, oposta à antiquada e caótica Moscou, e mandou cortar as barbas aos nobres, que agora deviam trajar-se à europeia, entre inúmeras outras medidas no mesmo sentido, abrindo o país para o influxo desde então incontido de cultura ocidental.

O resultado imediato das reformas petrinas foi a criação de uma elite europeizada, cujos costumes passaram a contrastar fortemente com aqueles que caracterizavam a massa da população, composta por servos camponeses. Em médio prazo – isto é, em meados do século XIX –, tal cisão cultural era a manifestação concreta da crise de identidade da qual padecia todo e qualquer intelectual russo de então; quanto mais educados, quanto mais “europeizados”, mais urgentes pareciam a esses homens a questão nacional e a busca pela distinção do que seria o caráter russo.

Ao mesmo tempo, à medida que as noções europeias de civilização (àquela altura de matriz iluminista, romântica ou socialista) se iam infiltrando na mentalidade russa, crescia a hostilidade destes às condições sociais vigentes em seu país.  E, com as críticas da intelligentsia ao status quo, crescia a censura tsarista à imprensa e puniam-se com severidade os crimes de opinião. Esta é parte da explicação para a preponderância da literatura no século XIX russo: a prosa de ficção e a crítica literária logo se mostraram eficientes veículos para uma forma velada de crítica social. Filosofia, política, religião, antropologia, sociologia – o romance russo do século XIX abrange todas as disciplinas que, em um ambiente marcado pela liberdade de expressão, tratar-se-iam detida e abertamente. Afinal, nas palavras de Aleksandr Herzen (1812-1870), a autocracia russa, em seus períodos mais defensivos, não perseguia apenas ideias contrárias a sua estabilidade, mas o pensamento per se[2].

Ainda assim, tratava-se de uma sociedade de tal modo obcecada pela “vida do espírito” e pelas “questões eternas” que nem o mais opressor dos regimes impediu-a de investigar seus problemas. É preciso reiterar o que já se disse acima: ainda que em grande medida, ou até determinado momento, a intelectualidade russa oitocentista tenha pensado com ideias de empréstimo, tratava-se de uma classe imbuída de um inescapável sentimento nacional e obcecada por sua “particularíssima situação concreta”. O próprio Dostoiévski costumava dizer: tome-se qualquer ideia estrangeira (digamos, o socialismo), os russos a incorporarão e neles ela se tornará em qualquer coisa grotescamente diversa do que era originalmente. Não se chegará a entender o boom cultural na Rússia do século XIX se se ignorar que a força motriz daqueles pensadores e escritores era a pergunta “quem somos nós?”. Tudo o que liam, tudo o que aprendiam a partir de fontes estrangeiras servia-lhes para alentar a fogueira nacional.

Há ainda um fator puramente sociológico que há de ter catalisado tal processo de autoconhecimento: o fato de que a elite pensante na Rússia desse período compunha-se de uma fração mínima da população, com a consequência de que cada geração de intelligentsy era formada por homens que conviviam entre si, liam-se reciprocamente e debatiam como cães em fúria (inclusive com grande incidência do chamado fogo amigo, tão ofensivo à sensibilidade dos intelectuais brasileiros de hoje). O debate público se dava pelas chamadas “revistas grossas”, cujo apelido as descreve bem: eram periódicos reunindo artigos jornalísticos e protofilosóficos os mais variados e cujo carro chefe era a literatura que se publicava fascicularmente, a qual hoje temos em nossas estantes na forma de bastos volumes. Normalmente cada periódico tinha uma linha editorial bem definida e publicava textos que corroboravam com o conjunto de ideias sustentado por seus editores.

Não há como escapar: tudo o que de melhor foi produzido pelas letras russas no século XIX reporta-se a um, ou melhor, a vários debates ideológicos. Não havia arte pela arte, onde fins estéticos não se remetessem às discussões que animavam a atmosfera cultural da sociedade. Porém, não se pode dizer que só se produzissem panfletos – houve alguns, mas ao lado destes houve também Tolstói e Dostoiévski –, o que aponta para o erro de se negar que artistas possam produzir obras de impressionante complexidade estética visando, ao mesmo tempo, à participação num debate político-filosófico, como é evidentemente o caso dos grandes russos do século XIX.

*

O ponto em descrever todo esse panorama cultural é explicitar como a ideia bakhtiniana do romance polifônico e do debate entre vozes “equipolentes”[3] é incompatível com o espírito das letras russas oitocentistas. Se se deseja sustentar a tese de Bakhtin de que o romance dostoievskiano é um labirinto insolúvel, onde as ideias mais contraditórias têm igual plausibilidade, só se pode fazê-lo afirmando ao mesmo tempo que o romancista fracassou em seu projeto literário e que, por assim dizer, inventou o romance polifônico por acaso, contra sua própria vontade. Há material suficiente para se demonstrar que Dostoiévski, o intelectual de carne e osso, não tinha qualquer interesse em produzir uma literatura que não contribuísse com o debate político-ideológico que ele mantinha nos periódicos jornalísticos que editava. A breve título de exemplo (o material nesse sentido é realmente abundante), veja-se o seguinte trecho de uma carta onde o romancista comenta o famoso capítulo “Revolta”, de Os Irmãos Karamázov:

“A ideia é apresentar a extrema blasfêmia e as sementes da ideia de destruição difundidas atualmente na Rússia entre a nova geração que se apartou da realidade. As convicções de Ivan constituem o que eu considero a síntese do anarquismo russo contemporâneo. A negação não de Deus, mas de sua criação. Todo o socialismo partiu da negação do sentido da realidade histórica e chegou ao programa da destruição e do anarquismo. (....) A blasfêmia do meu herói vai ser triunfantemente refutada no próximo capítulo, no qual estou trabalhando agora com temor e tremor, pois considero minha tarefa – a refutação do anarquismo – uma proeza cívica.[4] (Grifo meu)

O trecho suscita a pergunta: como pode ser o romance polifônico a “meta artística central” de um autor cuja “tarefa cívica” – estabelecida pelo próprio – é a refutação do anarquismo? Certamente não pretendo reduzir a literatura dostoievskiana às opiniões cerradas do autor. Sim, sua obra é genial na medida em que escapa às suas rédeas de ideólogo, e algumas de suas criações mais brilhantes coincidem justamente com seus momentos de procura cega, de angústia, de dúvida. Mas reconhecer isso de modo algum nos obriga a subscrever a tese da “equipolência” das vozes com que são povoados seus romances.

Há hierarquia de vozes nos romances de Dostoiévski. É perfeitamente possível extrair sentido do modo como as personagens-ideias interagem sob a regência do autor. Usando um exemplo já gasto: a suposta ambiguidade do Epílogo de Crime e Castigo não resiste ao mais básico esforço de análise textual. E, no entanto, como mostram alguns comentários ao texto do link, a obsessão pela “pluralidade de sentido” em literatura já faz com que o próprio questionamento em torno do significado de uma obra pareça supérfluo.

É certo que há discrepância entre as intenções de Dostoiévski e aquilo em que se concretiza cada trabalho seu. Ele não usa a literatura para meramente ilustrar suas opiniões jornalísticas – a literatura é, antes, seu meio de investigação do real, de modo que se pode atribuir, sim, alguma autonomia às criaturas a que ele dá vida enquanto autor, porém apenas até certo ponto, dentro de certos limites. E esses limites coincidem com a própria pessoa de Dostoiévski, onde “pessoa” não designa suas crenças e preferências conscientes; digamos, em termos didáticos, que um personagem ou um livro, enquanto em fase de composição, pode tornar-se qualquer coisa – dentro do conjunto de coisas nas quais pode tornar-se o próprio Dostoiévski. Seus personagens são imprevisíveis na medida em que encarnam as várias batalhas do autor contra seus próprios demônios, batalhas essas que ele trava enquanto escreve, as quais ele ganha ou perde junto ao sucesso ou fracasso de cada livro. De modo que, se suas intenções nem sempre coincidiram com o que sua literatura revelou, para nós hoje, seus leitores, já é possível com satisfatória clareza compreender a consonância entre autor e obra.[5]

Que a literatura de um autor possa resultar em qualquer coisa estranha a (independente de) ele mesmo é uma dessas ideias sossegadamente aceitas no meio acadêmico brasileiro, malgrado a enxurrada de complicações que comporta. Ouço com frequência que não se pode ler Dostoiévski à luz de sua visão de mundo autoral porque “a literatura é maior”, a literatura vai sempre mais longe do que seu autor. Dependendo do modo como se lê tal afirmação, ela pode fazer mais ou menos sentido. Não vou, porém, me deter nela. Quero apenas concluir este texto com o que é a contradição cabal de um bakhtinismo degenerado e, infelizmente, brasileiro.

            *

 Bakhtin afirma:

Quando as ideias de Dostoiévski-pensador entram no seu romance polifônico, mudam a própria forma de sua existência, transformam-se em imagens artísticas das ideias: combinam-se numa unidade indissolúvel com as imagens das ideias (de Sônia, Míchkin, Zossima), rompem o seu fechamento monológico e seu acabamento, tornam-se inteiramente dialógicas e entram no grande diálogo do romance em absoluto pé de igualdade com outras imagens de ideias (as ideias de Raskólnikov, Ivan Karamázov e outros). É inteiramente inaceitável atribuir-lhes a função conclusiva das ideias dos autores do romance monológico. Aqui elas não têm absolutamente essa função, são participantes equipolentes do grande diálogo. 
(In: Problemas da Poética de Dostoiévski. Ed. Forense Universirária, pp. 103-104. Grifo meu.)

Esta pode ser – e eu creio que é – uma leitura errada da dinâmica interna do romance dostoievskiano, mas é ao menos uma leitura honesta. Bakhtin conhece as ideias do Dostoiévski-pensador, sabe onde elas ganham tratamento literário explícito e não tenta disfarçá-lo. Ele sabe que o autor discorda de Raskólnikov e Ivan Karamázov, e no entanto crê que essas personagens negativas aos olhos do autor neutralizam-se no contexto polifônico do romance dostoievskiano. Quanto a isso, há ampla literatura argumentando em contrário, e remeto o leitor novamente ao texto de René Wellek.

O maior problema começa quando seguidores de Bakhtin usam a teoria polifônica para apagar o ponto de vista do autor, neutralizando suas posições que causem eventual incômodo, e terminam contradizendo não apenas Dostoiévski, mas o próprio Bakhtin, ao construir sobre os escombros da morte do autor a “verdade acabada” que melhor lhes aprouver. Ora, dizer que Crime e Castigo é um romance sobre um crime enquanto experimento social, fruto da mentalidade socialista de seu autor, não é dar-lhe uma interpretação monológica? Bakhtin se revira no túmulo. Bebeu do próprio veneno. Não por acaso o tradutor brasileiro de Crime e Castigo, o qual é hoje um dos grandes responsáveis pela distorção da imagem de Dostoiévski em autor de cosmovisão socialista, é também atualmente o grande tradutor e divulgador de Bakhtin no Brasil.

Resumo da ópera: a teoria bakhtiniana é uma apropriação anacrônica da obra de Dostoiévski e serve de instrumento para que críticos com visões de mundo contrárias à do romancista calem o autor em benefício de seus próprios interesses muito menos dialógicos do que ideológicos.


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[1] Atualmente, até onde posso ver, a febre bakhtiniana já saiu moda entre a eslavística internacional, ou ao menos está longe de ser hegemônica. Sinto não poder dizer o mesmo sobre o Brasil.

[2] Que o regime que a substituiu não tenha sido diferente é um dos problemas fundamentais a ser discutido pela historiografia política e cultural da Rússia.

[3] “Equipolentes são consciências e vozes que participam do diálogo com as outras vozes em pé de absoluta igualdade; não se objetificam, isto é, não perdem o seu SER como vozes e consciências autônomas.” (Problemas da Poética..., Nota do Tradutor, p. 5.)

[4] Carta a N. A. Liubimov, 10 de maio de 1879. In: “Dostoevsky on The Brothers Karamazov”, trad. S.S. Koteliansky, New Criterion, IV (1926), 552-53.

[5] Cf. a esse respeito o livro de René Girard, Dostoiévski: do Duplo à Unidade. “...a estrutura de Os Irmãos Karamázov é semelhante à das Confissões e à da Divina Comédia. É a estrutura da encarnação, a estrutura fundamental da arte ocidental, da experiência ocidental. Está presente todas as vezes em que o artista consegue dar a sua obra a forma da metamorfose espiritual que lhe deu origem. Não se confunde com a narrativa dessa metamorfose, ainda que possa coincidir com ela.” É Realizações, p. 142.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Enfrentando o Epílogo de Crime e Castigo


Agora que meu mestrado entrou na fase ou vai ou racha, em que um ano e meio de leituras tem de começar a transformar-se em texto, achei que era também a hora certa para reler a obra literária de Dostoiévski. É claro que estou continuamente consultando seus romances e contos, mas uma leitura integral e minuciosa da literatura dostoievskiana como sistema é algo que demanda um esforço paralelo à minha pesquisa em si, que é mais sobre história cultural da Rússia.

Pois bem, tenho empreendido essa integral e minuciosa leitura.  Confesso que às vezes, por mera curiosidade dir-se-ia psicológica, gostaria de voltar ao ponto em que me era possível defrontar ingenuamente um romance de Dostoiévski. Por exemplo, voltar à percepção que tinha quando li pela primeira vez Crime e Castigo e fiquei confusa quando, no fim do livro, Raskólnikov não se arrepende explicitamente de seu crime. Lembro de almoçar com a Day Teixeira no bandejão da USP e discutir – quase brigar – por causa disso. Era estranho, não fazia muito sentido, mas estava escrito lá: entre um êxtase religioso e outro, o protagonista do livro declarava não se arrepender de seu crime.

Para completar, recentemente tive o privilégio mórbido de assistir a uma palestra do tradutor Paulo Bezerra em que ele, peito estufado de orgulho, declarava: Raskólnikov não se arrepende! O crime foi um experimento social. Dostoiévski foi, até o fim da vida, um homem de cosmovisão socialista, se bem que perto da morte tenha deixado seu socialismo tingir-se de um certo matiz cristão.

Ao ouvir tal fala especializada, pude distinguir nitidamente onde e como o tradutor distorcia as ideias e a biografia de Dostoiévski, mas ao mesmo tempo havia em minha memória a impressão daquela primeira e já longínqua leitura de Crime e Castigo: de fato, parece que Raskólnikov não se arrepende...

Foi nesse momento que percebi que já estava na hora de parar de ler interpretações da obra de Dostoiévski e copiosas histórias da Rússia e fazer, por obrigação, aquilo de que mais gosto: enfrentar os romances, agora desde um ponto de vista abalizado. Alguns deles eu já relera e treslera, mas curiosamente Crime e Castigo ficara relegado àquela primeira leitura pueril, talvez por ser muito comentado pela crítica, o que cria a ilusão de que você conhece bem o romance só de ouvir falar tanto nele.

Durante a releitura, fui pensando numa possível justificativa para a frase que encontraria forçosamente no Epílogo – ele não se arrependia de seu crime. Pus-me a pensar sobre o pessimismo (ou “realismo superior”) de Dostoiévski, em como ele mostra as consequências funestas de certas ideias, elevando-as a sua máxima força e sugerindo, em geral sutil e prolixamente, que o leitor dê a seu destino um rumo diverso daquele representado em seus romances. O príncipe Míchkin é esmagado pelo mundo em O Idiota, Piotr Vierkhoviênski escapa no fim de Os Demônios... Ora, não seria tão absurdo assim Raskólnikov terminar Crime e Castigo ainda infectado pelo “drama da razão”. O que importa – pensava eu – é o leitor compreender que ele deveria arrepender-se, e nesse sentido a figura de Sônia se impõe majestosamente ao longo de todo o romance.

Seguindo essa linha de raciocínio, cheguei ao Epílogo do livro. E qual não foi minha surpresa ao descobrir que Dostoiévski não é nem tão críptico, nem tão enviesado quanto sonha nossa vã leitura ingênua! Eis o que nos diz, leitor, o Epílogo de Crime e Castigo (considerarei que meu interlocutor conhece o enredo e as personagens, pois explicá-lo complicaria o meio de campo aqui):

Após muito agastar-se e adoecer, às voltas com a consciência de seu crime, Raskólnikov entrega-se à polícia, é condenado e mandado aos trabalhos forçados na Sibéria. Sônia (a personagem positiva do livro; o puro espírito cristão) o acompanha. Podemos dividir o Epílogo em dois momentos diversos e antagônicos: o primeiro é mera continuação da porção precedente do livro e nele Raskólnikov mantém a mesma atitude soberba e altiva de antes; não reconhece seu crime; despreza Sônia; não consegue relacionar-se com os colegas de prisão (em outras palavras, com o povo russo). Esses são os elementos para os quais devemos olhar se quisermos entender a visão de Dostoiévski sobre seus personagens. Quando ele quiser nos comunicar a transformação espiritual de seu protagonista, usará essas mesmas senhas. Todos esses elementos (a relação com o que Sônia representa e com o povo russo) são passíveis de análise a partir do Epílogo, mas por questão de foco nos detenhamos apenas no problema do crime.

No primeiro momento, nos diz o narrador:


Sofrimentos e lágrimas – ora, isso também é vida. Mas ele não se arrependia de seu crime. Ele poderia ao menos enfurecer-se com sua tolice, como antes se enfurecera com os seus atos vis e mais tolos, que o levaram à prisão. Mas agora, já na prisão, em liberdade, mais uma vez analisou e ponderou todos os seus atos pregressos e de maneira alguma os achou tão tolos e vis como lhe pareciam antes, naquele período fatal.
“E por que meu ato lhes parece tão vil? – dizia de si para si. – Por ter sido uma perversidade? O que quer dizer a palavra ‘perversidade’? Minha consciência está tranquila. É claro que foi cometido um crime comum; é claro que foi violada a letra da lei e derramado sangue, mas tome a minha cabeça por letra da lei... e basta! Claro, neste caso até muitos benfeitores da humanidade, que não herdaram mas tomaram o poder, deveriam ser executados ao darem os seus primeiros passos. No entanto, aqueles homens aguentaram os seus passos e por isso estavam certos, mas eu não aguentei e, portanto, não tinha o direito de me permitir esse passo.”
Eis em que ele não reconhecia o seu crime: apenas no fato de não o ter aguentado e ter confessado a culpa. (p. 554, ed. 34, 2008. Grifos do autor.)


Aparentemente, o tradutor Paulo Bezerra só leu Crime e Castigo até aqui. É muito curioso pensar no peso que têm essas palavras sobre a percepção do leitor. Já disse que eu também me deixei enredar por elas anos atrás. São palavras claras demais e talvez ganhem realce diante da sutileza do que vem depois. É um efeito análogo ao que acontece em Os Irmãos Karamázov: os capítulos que se ocupam da revolta metafísica de Ivan Karamázov eclipsam os que vêm depois, os quais, segundo desejava Dostoiévski, deveriam ser “uma refutação triunfal” dos raciocínios de Ivan. Digo eclipsam aos olhos da crítica: basta comparar a quantidade de análises sobre “O Grande Inquisidor” com o quão pouco se escreveu sobre o Livro VI dos Karamázov, que contém a filosofia do stárietz Zossima, a qual coincide com a do próprio Dostoiévski. De fato, não é injusto dizer que o gênio do romancista produz seus mais instigantes frutos quando representa sua – por assim dizer – filosofia negativa; a expressão de suas ideias positivas costuma resultar utópica e um tanto piegas (notem que me refiro à expressão).

Mas voltemos a Crime e Castigo. Imediatamente após o trecho citado acima, o narrador descreve a reflexão de Raskólnikov sobre o ímpeto suicida que teve antes de entregar-se à polícia, enquanto sofria esmagado entre o sentimento de culpa e a convicção da plausibilidade de seu crime:

Ele sofria também ao pensar: por que não se matara naquele momento? Por que ficou parado acima do rio e preferiu confessar a culpa? Será que existe tamanha força nesse desejo de viver e é tão difícil superá-lo? (Idem.)

E então se segue o turning point, o parágrafo no qual o narrador nos indica que o presente estado mental e espiritual de Raskólnikov não é definitivo, não representa o estado do herói com que o romancista conclui a narrativa:

Ele se fazia essa pergunta atormentado, e não conseguia entender que, naquele momento em que estava sobre o rio, talvez pressentisse uma profunda mentira no seu íntimo e em suas convicções. Não compreendia que aquele pressentimento pudesse ser o prenúncio da futura transformação em sua vida, de sua futura ressurreição, da sua futura concepção nova de vida. (Idem. Grifo meu.)

Assim em destaque esse parágrafo é claro demais, mas é impressionante como certas leituras (como a de Paulo Bezerra e tantos outros; procurem o livro Crime and Punishment and the Critics) conseguem fazê-lo passar despercebido. O que esse parágrafo diz? Que Raskólnikov não se matou porque, no fundo, reconhecia o valor da vida e, mais ainda, no contexto geral do livro, indica que ele sabia que a condição de assassino o aferrava à existência, pois era preciso expiar o sangue derramado. Trata-se do mesmo instinto que o faz entrar na delegacia e confessar o crime, mesmo que ao longo de todo o caminho ele se perguntasse por que deveria confessar e não conseguisse chegar, racionalmente, a uma conclusão. Aqui é preciso repetir aquilo que vem dito na orelha de qualquer edição de Crime e Castigo: Raskólnikov é um nome derivado de raskól, palavra russa que significa “cisma”; é o indivíduo cindido entre convicções intelectuais e instinto moral – desenvolvimento de Bazárov, protagonista de Pais e Filhos, de Turguêniev.

Portanto, a tão temida (ou venerada) frase “ele não se arrependia de seu crime” está longe de ser a palavra final de Crime e Castigo. O Epílogo continua e nos mostra a lenta progressão espiritual de Raskólnikov. Sua transformação é precipitada pela figura de Sônia. Habituado a desprezá-la e a receber com desdém o amor e os cuidados abnegados dela, ele se surpreende com saudades quando por vários dias ela não o visita, pois ficara doente. Quando os dois se reencontram, dá-se a cena de seu verdadeiro encontro – Raskólnikov percebe que a ama e enfim consegue receber o amor dela. Porém tenhamos em mente que Sônia, no âmbito do romance, não é qualquer mulher – é o puro amor cristão. A partir do momento em que se une a ela, Raskólnikov retorna a suas “origens”, ao contato com o solo russo, com o Cristo russo. (Seria complicado explicar aqui a parte da filosofia de Dostoiévski que diz respeito ao povo e ao solo russo; contentemo-nos com a “infecção” de Raskólnikov pelo amor cristão.) Tanto é assim que, no mesmo dia em que se entrega espiritualmente a Sônia, sua relação com os colegas de prisão transforma-se:

Na noite do mesmo dia, quando o quartel já estava fechado, Raskólnikov, deitado na tarimba, pensava nela [Sônia]. Nesse dia até lhe pareceu que todos os galés, antes seus inimigos, já o olhavam de modo diferente. Ele mesmo começou a conversar com eles, e lhe respondiam de modo carinhoso. Agora ele se lembrava disso com esforço, mas era assim que devia ser: acaso tudo não devia mudar agora? (p. 559)

Por fim, o crime. O que pensa Raskólnikov sobre seu crime, agora que foi transformado?

Tudo, até o crime dele, até a condenação e o exílio, agora, no primeiro impulso, pareciam-lhe algum fato externo, estranho, até como se não tivesse acontecido com ele. Aliás, nessa noite ele não conseguia pensar de forma demorada e constante em nada, concentrar o pensamento em nada; demais, agora ele não resolveria nada de modo consciente; apenas sentia. A dialética dera lugar à vida, e na consciência devia elaborar-se algo inteiramente diferente. (Idem. Grifo meu.)


Raskólnikov já não é o indivíduo cindido. Ele abandona o racionalismo – a racionalidade alijada da vida, da experiência concreta. Uma vez que já entregou-se ao castigo e aceitou a cruz, está livre da obsessão pelo crime que cometeu.

O romance não poderia terminar de modo mais significativo: Raskólnikov abre o Evangelho, de que até então apenas escarnecera. Mas, pensando em Sônia, para quem aquele era o único livro sobre a terra, ele pergunta-se: “Será que agora as convicções dela podem não ser também as minhas convicções? Os seus sentimentos, as suas aspirações, ao menos...”(p. 561; última página do romance) Lembremos que Sônia é o indivíduo que, diante da confissão de assassino de Raskólnikov, dissera-lhe: “Vai agora, neste instante, pára em um cruzamento, inclina-te, beija a terra, que tu profanaste, e depois faz uma reverência a todo este mundo, em todas as direções que quiseres, e diz a todos, em voz alta: ‘Eu matei!’” (p. 428)

As convicções de Sônia agora são também as de Raskólnikov. Este é o livro que Dostoiévski escreveu, a despeito do wishful thinking do tradutor Paulo Bezerra.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Triste Utopia

Neste ano novo, proponho que o leitor use sua imaginação para, como na canção de John Lennon, imaginar um mundo novo, sem países, sem posses e sem religião; um mundo onde, supostamente, todos viveriam em paz.

Ignore a ingenuidade de se crer que, abolidos os três “vilões” – nações, posses e religião, esta última o meu interesse neste artigo –, reinaria a paz; as experiências do socialismo real que o digam! Admitamos, porém, que a religião pode servir à violência. Ouso dizer que se trata de uma perversão da fé: fruto da pessoa que ataca quem não partilha de sua crença para se proteger da própria insegurança – fenômeno não restrito às religiões, diga-se de passagem. Enfim, casos como a Inquisição católica ou a execução de apóstatas em Estados islâmicos dispensam comentário. Feita essa ressalva, quero olhar para o outro lado da moeda utópica: o que o mundo perderia se descartasse a religião?

Atribui-se ao romance Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, a frase “se Deus não existe, tudo é permitido”. Discordo. Mesmo sem crer em Deus, continuaríamos a saber que matar é errado, continuaríamos a amar nossos parentes e amigos etc. As pessoas sem fé têm muitos motivos para viver e fazer o bem. Conhecer o universo, experimentar as possibilidades da vida, criar coisas novas, fazer amizades, encontrar o amor, ajudar as gerações futuras; coisas boas que não dependem da crença numa aprovação divina.

Há, contudo, um espectro sombrio que paira sobre tudo isso. Podemos esquecer que ele está lá e fingir que a última palavra não será dele; mas será. Estou falando da morte. Para além de qualquer propósito elevado, lá está ela, decretando o fim de tudo. Caminhamos todos, nós e nossos sonhos, para a poeira cósmica.

Uma convenção clássica do teatro dizia que comédias terminam em casamento e tragédias em morte. Sendo assim, a vida humana é, no mundo sem Deus, necessariamente trágica. Sem Deus, o bem existe, mas será derrotado. Todos os nossos esforços na direção do que é bom e elevado ficam comprometidos pela falta de sentido último da empreitada. No máximo, podemos aproveitar esta vida, tirando dela o que for possível e se contentar com isso. Mas, se for assim, o que dizer de todas aquelas pessoas que não fruíram do bom e do melhor? O que pensar das vidas vividas no sofrimento, na indigência, no esquecimento, e de todos os “fracassados” e “perdedores”? E dos que se arrependem amargamente? Como justificar essas existências? A crueldade do mundo sem Deus é metafísica.

É por isso que, à sentença de Dostoievski, prefiro a de Guimarães Rosa – também parafraseada – em Grande Sertão: Veredas: “se Deus não existe, nada é permitido”. Todo erro é final; todo fracasso é uma vida jogada fora. Sem o “céu sobre nós”, como propunha a canção de Lennon, resta a vida como tragédia. O mal e o erro continuam a existir; o que acaba é o perdão vindo do alto, e com ele a redenção. Os fracassos continuarão; o que cessará é a possibilidade de que eles contribuam para uma vitória final. Com a fé, é possível encarar a vida como comédia. Não é à toa que uma das principais imagens da relação entre Cristo e a Igreja – o conjunto dos fiéis – seja a do casamento. A utopia sem o céu espiritual é um mundo sem esperança e sem perdão. Agora, imagine se alguém tiver vencido a morte; it’s easy if you try...

Publicado originalmente na Gazeta do Povo em 06/01/2013.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

De como Dostoiévski foi o primeiro olavete; e o desaparecimento iminente dos moderninhos com cara de nojo

I

Escrevi recentemente um artigo sobre Dostoiévski onde avalio a relação deste com a noção de Ocidente e a cultura ocidental. O artigo foi lido por Joel Pinheiro e Julio Lemos e desagradou a ambos pelo que seria um excessivo tom “olavista-voegelinista”. (Nota: Não conversei com Julio Lemos sobre o assunto; sua apreciação me foi brevemente transmitida por Joel Pinheiro. Já com este último venho discutindo abundantemente todas as questões em torno do malfadado artigo, de modo que boa parte do que direi nesse texto não lhe será novidade. No entanto, creio que a grande maioria das pessoas tem sobre Dostoiévski a mesma impressão truncada que verifiquei ser a do Joel. Este texto é uma tentativa de desfazer parte desses nós e de quebra pegar o gancho da discussão mais interessante que a internet viu nos últimos tempos: aquela em que Olavo de Carvalho respondeu às indiretas de Julio Lemos.)

No que pese a crítica razoável de que meu artigo deveria citar menos comentadores (notadamente, Ellis Sandoz, discípulo de Eric Voegelin) e mais o próprio Dostoiévski, é notório que o problema de Joel Pinheiro é principalmente com a linha interpretativa que eu sigo no artigo, tomada, sim, a Sandoz-Voegelin, uma vez que desconheço fonte teórica mais acertada para interpretar o Dostoiévski político (e acrescento que Dostoiévski é o objeto da minha pesquisa de mestrado; há pelo menos três anos não faço outra coisa senão ler interpretações de sua obra). Mas faço o mea culpa que me cabe: o leitor não-especializado, que não leu as mil e quinhentas páginas de textos jornalísticos de Dostoiévski, tampouco suas cartas e cadernos de notas, além, evidentemente, de sua obra literária, não tem obrigação de saber que o ideólogo por trás de obras enigmáticas como Os Irmãos Karamázov e Crime e Castigo identificou pioneiramente o fenômeno a que Eric Voegelin chamou “gnose moderna”. Eu deveria, portanto, ter escrito algo como um preâmbulo justificando a pertinência de minhas fontes teóricas. Concedido isto, sigamos adiante.

Joel Pinheiro declara que, ao invés do meu artigo, gostaria de ler

um ensaio sobre Dostoiévski, e não apenas sobre o "processo político/espiritual gnóstico da modernidade que foi profundamente percebido por Dostoiévski quando ele se defrontou, despido de todas as ideologias, com o problema do nada na alma russa, e como sua crítica vislumbrou os males do séc. XX e de nossa sociedade à beira do apocalipse".

E diz ainda que Ellis Sandoz, ao interpretar a Lenda do Grande Inquisidor à luz da teoria histórica voegeliniana, não está falando de Dostoiévski, mas usando o russo para “fazer política”. O que me faz inevitavelmente exclamar de mim para mim: que raios o Joel pensa ser o conteúdo e o sentido último da obra dostoievskiana?! Subtraia-se a Dostoiévski o sentido do “processo político/espiritual gnóstico da modernidade” e tem-se perfeitamente um corpo sem forma, um significante sem significado. O que não falta são leituras de Dostoiévski politicamente neutras como a desejada pelo Joel, mas eu continuo achando muito mais válido ler um autor pela chave que ele, com todas as letras, declarou ser a sua, e desse modo desdobrar os conteúdos ali implícitos, dando continuidade àquilo que o próprio autor se comprometeu com dizer.[1] No caso de um escritor prolixo como Dostoiévski, esse tipo de crítica é mais do que bem-vindo; mostrar quem é o Dostoiévski de carne e osso sob a parafernália polifônica alardeada pela leitura formalista de Mikhail Bakhtin é o melhor que se pode fazer, nos dias de hoje, pela memória de um autor com os pés tão fincados no real e muito pouco interessado em formalismos e abstrações.

Mas, com efeito, é bastante compreensível que um leitor não-especializado não dê pela importância disso, pois desconhece o projeto literário-político-filosófico do mentor de Os Demônios. Eis algo de que só me dei conta quando da discussão em torno do meu artigo: a grande maioria das pessoas não faz a mínima ideia de quem tenha sido o ideólogo Dostoiévski. Isto se deve, é claro, à dicção literária do romancista russo, que, tendo intenções filosóficas e não raro políticas muito bem definidas para cada uma de suas obras (e isto se verifica de modo muito claro em seus textos não-literários), não consegue senão retratar a realidade de forma polissêmica, dando um equivalente literário ao caos das coisas elas-mesmas. Donde resulta seu recrutamento pelos grupos ideológicos mais díspares, de socialistas a aristocratas wannabe.

É um fato atualíssimo: todos amam Dostoiévski. O autor russo que viveu administrando pedradas e cusparadas e aplausos os mais efusivos chegou, enfim, a ser plenamente adorado. Mas isto tem seu custo: diferentemente dos leitores de hoje, seus contemporâneos o conheciam, liam-no tanto em seus romances como – e talvez até mais – nos textos jornalísticos em torno dos quais ele construiu sua persona intelectual. E, assim, na Rússia do século XIX não era possível macaquear Dostoiévski: quem fosse partidário do velho Fiódor Mikháilovitch trazia necessariamente a si o estigma de suas opiniões tão controversas. Já seus leitores de hoje não o levam às últimas consequências e elogiam-no cada qual na medida de suas conveniências e interesses – seja pelo simples fato de ser um autor canônico, e assim não lê-lo é de uma deselegância inaceitável, seja por ele retratar o caos da alma humana, pelo que serve à causa-mor da contemporaneidade desnorteada – a implosão das ordens tradicionais.

Mas quem era, em verdade, esse Fiódor Dostoiévski? Pudesse ele avaliar seus leitores de hoje e o mundo de hoje, o que diria? Mais interessante ainda: se alguns de seus entusiastas atuais vivessem na época que o viu nascer, seriam ainda entusiastas, ou quem sabe engrossariam o time de seus detratores? Ainda uma última elucubração: se tivéssemos nos dias de hoje um intelectual com ideias semelhantes às de Dostoiévski e eloquência parelha à do autor russo, como seria sua recepção pelos nossos críticos e tão bem penteados homens de letras?


II

"Há uma grande tristeza em não se ver o bem no bem."
- Atribuído a Gógol por Lúcio Cardoso


Um paralelo entre Dostoiévski e Olavo de Carvalho é inevitável quando se leem os escritos jornalísticos de um e de outro. Não apenas suas preocupações político-culturais vão no mesmo sentido, como seus papéis sociais, na Rússia do século XIX e no Brasil do século XXI, respectivamente, são curiosamente semelhantes. Ambos partem de uma experiência pessoal, de um corpo a corpo com o movimento revolucionário de esquerda: Dostoiévski passou quatro anos em uma prisão na Sibéria por ter feito parte de um grupo simpatizante das ideias socialistas (o chamado círculo de Petrachévski); Olavo foi militante do Partido Comunista Brasileiro. Se a vida madura de ambos é marcada pelo combate à mentalidade revolucionária (termo olavético que – salvo engano meu – se aplica perfeitamente à realidade psicossocial de que tratava Dostoiévski, assim como a gnose de Voegelin), isto certamente deve remeter-se a terem visto de perto o olho do furacão. Diz Dostoiévski:

Todas essas convicções quanto à imoralidade das próprias fundações (cristãs) da sociedade contemporânea e à imoralidade da religião, da família, do direito à propriedade privada, e assim por diante – tudo isso eram influências a que éramos incapazes de resistir e as quais, de fato, capturaram nossos corações e mentes em nome de algo muito nobre. (...) Aqueles entre nós – isto é, não só os do círculo de Petrachévski, mas em geral todos os infectados e que no entanto mais tarde rejeitaram completamente toda essa escuridão e terror que se preparava para a humanidade supostamente para regenerá-la e restaurar-lhe a vida – nós àquela época ainda não conhecíamos as causas de nossa doença e portanto ainda éramos incapazes de lutar contra ela. E por que, então, os senhores supõem que mesmo um assassinato à la Nietcháiev nos teria parado – não todos nós, é claro, mas ao menos alguns de nós – naqueles tempos frenéticos, tomados por doutrinas que nos haviam capturado as almas, em meio aos devastadores eventos na Europa de então – eventos que nós, negligenciando nosso próprio país, seguíamos com angústia febril?

(In: Diário de Um Escritor, “Uma das falsidades de hoje”, 1873. Nietcháiev foi o mentor do evento que inspirou o romance “Os Demônios”, em que um jovem foi morto ao tentar desligar-se de uma célula revolucionária.)

O relato de Olavo sobre sua experiência comunista complementa muito naturalmente o de Dostoiévski:

Levei décadas para compreender que a sedução esquerdista não me conquistou – nem a mim nem a meus companheiros de geração – pelo conteúdo ativo da sua proposta ideológica, que só conhecíamos muito superficialmente, mas sim pela oferta implícita de um novo código de moralidade, que chegava a nós sem palavras, pela impregnação difusa na convivência diária. (...) Libertávamo-nos da “moral burguesa” escravizando-nos à autoridade irracional de um círculo de “companheiros”, cuja afeição se tornava o único fiador da salvação da nossa alma ante o tribunal da História. O apego ao grupo era fortalecido pelo ódio a inimigos que não conhecíamos, dos quais nada sabíamos, mas de quem imaginávamos com facilidade as piores coisas, deleitando-nos então de pertencer à comunidade dos bons. (...) Considerando-se a extensão e a gravidade dos crimes praticados pelo comunismo contra a espécie humana, o dever mais óbvio daqueles que se desiludem com ele é aprofundar a ruptura, investigando dentro de si até extirpar as últimas raízes do erro monstruoso em que se acumpliciaram. (In: http://www.olavodecarvalho.org/semana/080731jb.html)

Dostoiévski, como Olavo, saiu da experiência socialista disposto a dedicar sua vida a combater o movimento revolucionário. Isto se verifica com clareza em seus romances, mas é também um dos principais motivos de seus artigos jornalísticos. Tal combate, no entanto, toma a forma de uma crítica social ampla, buscando nos fatos correntes do cotidiano de seu país os indícios de que a mentalidade revolucionária se alastrava, o que o obrigava a insistir terminantemente – os moderninhos enojados diriam “histericamente” – nas terríveis consequências que adviriam da tomada do poder pelos autoproclamados “novos homens”. Eu me sinto segura o bastante para afirmar que Dostoiévski de bom grado teria aberto mão de toda sua obra literária por um único artigo que tivesse sido eficaz no combate às ideias revolucionárias em seu país. Essa era sua “tarefa cívica”, sua justificada obsessão. E não poderia ser de outro modo.

Não poderia ser de outro modo porque não há nada mais importante na história da cultura russa do século XIX do que o advento do pensamento socialista. Qualquer homem minimamente inteligente, interessado por cultura e que vivesse naquele tempo percebê-lo-ia. Em se tratando não apenas de um homem minimamente inteligente, mas de uma potência criativa como Dostoiévski, era inevitável que ele se voltasse à maior das questões de seu tempo, uma vez que tinha diante de si a gestação de uma ideia com o potencial destrutivo de uma bomba atômica – de efeitos materiais mas sobretudo morais. Repito: vivendo quando e onde viveu, e tendo o alcance intelectual que tinha, Dostoiévski não poderia senão ocupar-se da maior questão de seu tempo: é o que fazem os grandes homens.

Mas o Brasil do início do século XXI não é nenhuma Rússia pré-revolucionária, dirão. Não, não é; o Brasil contemporâneo é, sim, um país em plena revolução, e nós, que aqui vivemos hoje, presenciamos a cada dia o avanço da onda que há aproximadamente duas gerações vem desfigurando nossa sociedade civil e esterilizando nossa cultura. É muito difícil perceber isso, e seria praticamente impossível sem os esforços de Olavo de Carvalho. Ele é nosso Dostoiévski, e não lhe faltam no Brasil atual detratores como os teve Dostoiévski. Também o russo teve de viver sob acusações de loucura e conspiracionismo; também ele não se amedrontou e manteve até o fim sua convicção de que alguma coisa gigantesca estava sendo gestada na Rússia oitocentista e que em breve o mundo o testemunharia.[2]

E é assim que, sempre que leio um Julio Lemos fazer pouco de Olavo de Carvalho porque este suja demais as mãos no excremento dos fatos do dia, respiro fundo e penso em Dostoiévski, e me consola a certeza de que a injustiça do momento será paga com a justiça da História. Não tenho dúvidas de que, estivesse Dostoiévski vivo e tivesse a peculiar sorte de nascer brasileiro, ele estaria precisamente denunciando o Foro de São Paulo e as falcatruas do PT – ele estaria, de modo geral, chafurdando naquilo que reconhecesse como o mal no mundo. Se tem coisa que eu não entendo é esse nariz empinado de quem diz “vocês são uns suburbanos denunciando o mal no mundo!”. Ora, eu me pergunto, se um sujeito com veleidades de ser um “homem de ideias” não ocupa seu pensamento com a busca pelas metamorfoses do mal em seu tempo (e identificar o mal é inerente a delinear a verdade), faz o quê? Julio Lemos aparentemente já fez de tudo, já passou por todos os processos em que agora se debatem os olavetes suburbanos, que, ingênuos, creem ter descoberto a pólvora quando ele próprio, o Buda da internet, agora estuda as ciências naturais porque já colheu todos os frutos da metafísica.

Mas realmente não me cabe ficar aqui divagando sobre a psicologia dos detratores de Olavo de Carvalho, pelo simples fato de que Ronald Robson já o fez num texto definitivo. De 2008 a 2012 o cenário parece ter-se agravado, tornado-se mais copioso, mas sem uma mudança substancial na dinâmica de forças. E é ao mesmo Ronald Robson que eu tomo a citação que dá de modo irretocável a razão da superioridade de figuras como Dostoiévski e Olavo de Carvalho sobre seus críticos nojentinhos: “só está apto a produzir algo que fale a todos os homens de todas as épocas o indivíduo que olhou com clareza atroz o que se passa ao seu redor e amou ou odiou, com todo o empenho do seu ser, a sua particularíssima situação concreta.” O que por sua vez remete a uma carta escrita por Dostoiévski a seu amigo Nikolai Strákhov, em que critica um artigo de Turguêniev onde este descreve sua incapacidade de olhar de frente uma execução pública:
 [O]s filhos dos homens não têm o direito de dar as costas a nada que aconteça sobre a terra; não, segundo os princípios morais mais elevados, eles não têm. Peculiarmente cômico é quando ele [Turguêniev] de fato as costas, assim evitando assistir à execução. “Vejam, senhores, que refinada educação é a minha! Eu não pude suportar uma tal cena!” O tempo todo, ele se trai. A impressão mais definitiva que se tem do artigo de modo geral é que ele está desesperadamente preocupado consigo próprio e sua paz de espírito, mesmo quando se trata de cabeças sendo decepadas.

Does it ring a bell, leitor? Temos ou não temos entre nós vários filhotes de Turguêniev? Mais engraçado ainda é ver como Dostoiévski, antecipando os sofrimentos de Olavo de Carvalho, tinha de justificar o tempo todo sua escolha pelos temas do dia, os mais provincianos possíveis (no sentido que “província” tem no supracitado texto de Robson). A partir de 1873 ele passa a publicar o Diário de Um Escritor, periódico em que comentava os principais assuntos do momento e respondia a cartas – espécie, digamos assim, de True Outspeak por escrito –, sobre o qual escreve a uma conhecida:

A senhora escreve que eu estou desperdiçando meus talentos com bagatelas no Diário. Não é a primeira pessoa de quem escuto isto. Portanto quero agora dizer à senhora e aos outros: eu cheguei à conclusão de que um artista deve estar a par, até o mais mínimo detalhe, não apenas da técnica da escrita, mas de tudo – tanto eventos atuais quanto históricos – relativo à realidade a qual ele deseja retratar. (...) Eu devo dedicar-me especialmente a certas peculiaridades do momento presente. E neste presente momento a geração mais jovem me interessa particularmente e, relativa a ela, a questão da vida em família russa, a qual, em meu entendimento, é bastante diversa hoje do que era vinte anos atrás. Também várias outras questões do momento interessam-me.

Veja bem, leitor: nada disto quer dizer que é obrigatório ao intelectual tomar para si o trabalho de escrutínio do presente de que se ocupam Dostoiévski e Olavo de Carvalho. Quer dizer, as pessoas têm vocações e desígnios diferentes. Felizes seremos todos se Julio Lemos se tornar um grande lógico ou matemático; eu mesma não quero fazer outra coisa senão escrever poesia, assim como alguns serão críticos literários e outros engenheiros, e desse modo nem todos combaterão de frente o projeto diabólico da mentalidade revolucionária – mas daí a desdenhar de quem o faz é necessário um grande salto de desonestidade. Não se trata de ignorância, pois Julio Lemos sabe que Olavo de Carvalho se ocupa de coisas importantes, assim como sabe que o olavete de Facebook não representa os verdadeiros discípulos do Olavo – entre os quais não me incluo, pois diante de Ronald Robson e Rafael Falcón sou meramente uma pessoa que gosta de poesia.

Quem julgar que este texto é de um nauseante baixo nível, por tratar “de pessoas e não de ideias”, vá lamber sabão. Devíamos estar todos fartos de viver de aparências. Os debates no Brasil são essa coisa inócua porque instituiu-se que não se pode proferir palavra sem antes embrulhá-la com o papel de seda do bom mocismo.

Agora, voltando a Dostoiévski, faço uma última pergunta: alguém aí, que não seja especialista em cultura russa do século XIX, já ouviu falar em Dobroliúbov, Granóvski, Píssariev, Vladímir Zotóv? Dou um dente a cada pessoa que disser que sim. E então façam as contas e descubram quem chegará à posteridade, se Olavo de Carvalho ou as miniaturas de aristocratas que, na falta de coisa melhor, lhe fazem as vezes de críticos.



***

P.S.: Por falta de espaço, não pude comentar, como planejara, outros trechos de cartas de Dostoiévski muito interessantes ao paralelo do russo com Olavo de Carvalho. Mas postarei esses trechos em apêndice no primeiro comentário desse post, apenas para curiosidade e deleite do leitor.







[1] A título de breve exemplo, vejam-se os seguintes trechos de cartas escritas por Dostoiévski à época da criação de Os Irmãos Karamávov, em que discorre sobre suas intenções para esta obra:

“Its idea is the presentation of extreme blasphemy and of the seeds of the idea of destruction at present in Russia among the young generation that has torn itself away from reality. Ivan’s convictions form what I consider the synthesis of contemporary Russian anarchism. The denial not of God, but of his creation. The whole of socialism sprang up and started with the denial of the meaning of historical actuality, it arrived at the program of destruction and anarchism. The principal anarchists were, in many cases, sincerely convinced men.” (…)  
“The modern denier, the most vehement one, straightway supports the advice of the devil and asserts that that is a surer way of bringing happiness to mankind than Christ is. For our Russian socialism, stupid, but terrible (for the young are with it) – there is a warning [in the Legend], and I think a forcible one. Greed, the Tower of Babel (i.e. the future kingdom of socialism), and the completest overthrow of conscience – that is what the desperate denier and atheist arrives at. The difference only being that our socialists (and they are not only the underground nihilists) are conscious Jesuits and liars, who will not confess that their idea is the idea of the violation of man’s conscience and of the reduction of mankind to the level of a herd of cattle.”  (…) 
“The West has become blinded and has lost Christ. The course of the whole misfortune in Europe, everything, everything, everything without exception, has been that she gained the Church of Rome and lost Christ, and then decided that they could do without Christ.”

[2] Se é verdade que a crença positiva de Dostoiévski era sobretudo no potencial russo de produzir uma mensagem capaz de salvar o mundo do ateísmo revolucionário, essa era uma crença complementar à sua convicção de que, se os socialistas tomassem o poder, seria o fim; donde vencê-los seria um acontecimento tão significativo que deveria implicar necessariamente a posse da chave para os problemas não só da Rússia como de todo o Ocidente.
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