segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Triste Utopia

Neste ano novo, proponho que o leitor use sua imaginação para, como na canção de John Lennon, imaginar um mundo novo, sem países, sem posses e sem religião; um mundo onde, supostamente, todos viveriam em paz.

Ignore a ingenuidade de se crer que, abolidos os três “vilões” – nações, posses e religião, esta última o meu interesse neste artigo –, reinaria a paz; as experiências do socialismo real que o digam! Admitamos, porém, que a religião pode servir à violência. Ouso dizer que se trata de uma perversão da fé: fruto da pessoa que ataca quem não partilha de sua crença para se proteger da própria insegurança – fenômeno não restrito às religiões, diga-se de passagem. Enfim, casos como a Inquisição católica ou a execução de apóstatas em Estados islâmicos dispensam comentário. Feita essa ressalva, quero olhar para o outro lado da moeda utópica: o que o mundo perderia se descartasse a religião?

Atribui-se ao romance Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, a frase “se Deus não existe, tudo é permitido”. Discordo. Mesmo sem crer em Deus, continuaríamos a saber que matar é errado, continuaríamos a amar nossos parentes e amigos etc. As pessoas sem fé têm muitos motivos para viver e fazer o bem. Conhecer o universo, experimentar as possibilidades da vida, criar coisas novas, fazer amizades, encontrar o amor, ajudar as gerações futuras; coisas boas que não dependem da crença numa aprovação divina.

Há, contudo, um espectro sombrio que paira sobre tudo isso. Podemos esquecer que ele está lá e fingir que a última palavra não será dele; mas será. Estou falando da morte. Para além de qualquer propósito elevado, lá está ela, decretando o fim de tudo. Caminhamos todos, nós e nossos sonhos, para a poeira cósmica.

Uma convenção clássica do teatro dizia que comédias terminam em casamento e tragédias em morte. Sendo assim, a vida humana é, no mundo sem Deus, necessariamente trágica. Sem Deus, o bem existe, mas será derrotado. Todos os nossos esforços na direção do que é bom e elevado ficam comprometidos pela falta de sentido último da empreitada. No máximo, podemos aproveitar esta vida, tirando dela o que for possível e se contentar com isso. Mas, se for assim, o que dizer de todas aquelas pessoas que não fruíram do bom e do melhor? O que pensar das vidas vividas no sofrimento, na indigência, no esquecimento, e de todos os “fracassados” e “perdedores”? E dos que se arrependem amargamente? Como justificar essas existências? A crueldade do mundo sem Deus é metafísica.

É por isso que, à sentença de Dostoievski, prefiro a de Guimarães Rosa – também parafraseada – em Grande Sertão: Veredas: “se Deus não existe, nada é permitido”. Todo erro é final; todo fracasso é uma vida jogada fora. Sem o “céu sobre nós”, como propunha a canção de Lennon, resta a vida como tragédia. O mal e o erro continuam a existir; o que acaba é o perdão vindo do alto, e com ele a redenção. Os fracassos continuarão; o que cessará é a possibilidade de que eles contribuam para uma vitória final. Com a fé, é possível encarar a vida como comédia. Não é à toa que uma das principais imagens da relação entre Cristo e a Igreja – o conjunto dos fiéis – seja a do casamento. A utopia sem o céu espiritual é um mundo sem esperança e sem perdão. Agora, imagine se alguém tiver vencido a morte; it’s easy if you try...

Publicado originalmente na Gazeta do Povo em 06/01/2013.
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