sábado, 30 de novembro de 2013

A alma do fantoche de palha


Devo alertar a juventude de que quando lhe falam todas essas coisas como de descobertas de nosso tempo, estão zombando dela: essas novidades são tão velhas quanto deploráveis quimeras.

François-René de Chateaubriand, Ensaios sobre as revoluções, 1797.

A atual ascensão daquilo que se poderia chamar de uma espécie aparentemente contraditória de “nova mentalidade conservadora” brasileira traz um fato curioso e, ao mesmo tempo, flagrante: se de fato existiu doutrinação ideológica, então os “novos conservadores” são frutos de anos de inculturação promovida pela mentalidade progressista de esquerda. Oferecendo-nos, assim, uma ideia razoavelmente clara do esgotamento do projeto revolucionário que visava a realização do novo homem e do bem utópico.

Deste modo, os “novos conservadores” são os próprios “filhos da revolução” cultural. Pois são os herdeiros diretos da precária e distorcida política pedagógica na qual o país foi construído e submetido ao longo de décadas. Neste sentido, não há nessa nova geração de conservadores nada do refinamento intelectual e moral típicos da verídica tradição conservadora que eles alegam defender e herdar. Nenhum sinal da prudente aptidão que deve servir de exigência mínima a conduzir uma reacionária resistência.

Fazer esta exigência poderá até soar como pedantismo. Entretanto, a exigência intelectual e moral para ir a público defender uma genuína tradição conservadora não condiz com a formação dessa nova geração de conservadores que, em geral, tem começado atuar no debate público. É relativamente fácil, a partir do advento da internet, tomar consciência da existência de uma tradição intelectual e moral conservadora a fim de constatar que, no Brasil -- de fato --, carecemos dessa formação.

Só que a experiência do tempo do novo afã conservador não coincide com a experiência do tempo de formação intelectual e de preparação moral necessárias para fundamentar uma consistente mentalidade conservadora de uma nação, seja no nível estético, literário, acadêmico, político e cultural. Ora, se o Brasil sofreu um apagão cultural de intelectuais conservadores em particular e da alta cultura em geral ao longo das últimas gerações, então não será do dia para noite que se testemunhará o renascimento dessa tradição. A vida intelectual é assustadoramente custosa e exageradamente penosa.

As novas e eficientes possibilidades de comunicação proporcionadas pelas tecnologias de internet não acompanham a demanda da preparação do intelecto. É até muito bacana e empolgante ir a um “hangout”, ao vivo, desabafar sobre os intrincados problemas de filosofia política e da “guerra” contra a civilização ocidental. Eu diria até corajoso e muito nobre botar a cara à tapa e falar com orgulho sobre o significado de ser um conservador em um país carente de produção intelectual conservadora.

Porém não se deve confundir o ímpeto da tomada de consciência com o próprio conteúdo de uma consciência conservadora. E os flagrantes vícios de linguagem e o maneirismo da postura moral depõem contra essa nova geração de conservadores que, pelo menos em referências a esses aspectos, cumpre adequadamente bem o papel de “conservadores”: manter intacto -- e até prestar certo tributo à memória -- o programa político-pedagógico do progressismo de esquerda em que foram formados. Não se pode esquecer e duvidar jamais deste dado cultural: a “paidéia” dos novos conservadores é, hegelianamente, progressista.

Em outras palavras, conservam precisamente aquela pitoresca imagem que a esquerda, ao longo de todos esses anos de doutrinação, esboçou da genuína tradição conservadora. Como se o fantoche de palha tivesse sido insuflado com a alma fabricada a partir de todos tipos de colagem produzidos com o precário e desforme imaginário progressista acerca do que vem a ser a verídica tradição da mentalidade conservadora e agora está aí perambulando pelas redes sócias.

A verídica tradição conservadora repousa e vive à luz de três noções fundamentais: reação, prudência e ironia. Grosso modo, uma noção política e uma moral que, na experiência mental de um conservador, não poderiam jamais viver separadas. E a ironia que deve ser adotada como o refinado espírito metodológico: um conservador precisa saber, antes de tudo, a ser o primeiro a rir de si mesmo, ou seja, “saber esconder sua brincadeira na seriedade e sua seriedade na brincadeira”, como diria Kierkegaard.

Reagir por reagir implicaria cair na mesma estratégia dos adversários progressistas, pois é uma ação de “homens ocos”, para usar uma expressão de Russell Kirk. E o mau humor do espírito progressista foi decisivo para a emergência de gente vazia. A reação conservadora necessita superar o frenesi inútil da mentalidade revolucionária e, por isso, tem de se afastar do ímpeto utópico construído no imaginário alquímico das ideologias produzidas como símbolos do excesso de gente que se leva demais a sério e nunca coloca a si mesmo em xeque.

Uma reação cega não poderia apontar para outra coisa senão para uma espécie de hybris, isto é, a desmesura. Portanto, a um conservador reacionário deve-se exigir a ética da prudência, caso contrário, sua reação torna-se necessariamente revolucionária e fundamentada apenas no violento e desgovernado impulso da mudança pela mudança. O que seria uma vertiginosa demonstração de nunca terem feito uma radical auto-avaliação e auto-reflexão das crenças e do imaginário que acabaram de ser descobertos. 

Sendo assim, se a desmesura define-se pela incapacidade de lidar com a adequação entre teoria e prática – entendidas neste contexto como “a tomada de consciência e o estudo da tradição intelectual conservadora” e “a condição de possibilidade para agir como um conservador” –, então a prudência deverá ser exigida exatamente como a experiência de mediação na consciência de um conservador entre reflexão e ação conduzida sempre pela espirituosa capacidade de rir de si mesmo. Em outras palavras, prudência e ironia se impõem como as únicas possibilidades de realização do “bem factível” de homens reais e razoáveis vivendo e reagindo em um mundo real. 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Erros de perspectiva


Estou aproveitando a ocasião do último post do Rafael para escrever algumas coisas que aprendi matutando sobre poesia nos últimos anos. Não se trata de implicância com Bruno Gripp — que não conheço pessoalmente ou mesmo “virtualmente” —, nem de uma defesa da poesia de Bruno Tolentino, com a qual tive pouquíssimo contato, geralmente por meio de poemas esparsos que podem ser encontrados na internet. Se me remeto à celeuma que se estabeleceu entre Falcón e Gripp é para refletir sobre uma postura muito corrente entre alguns leitores mais cultos de poesia.

Bruno Gripp, para demonstrar a inépcia técnica de seu xará, o Tolentino, tomou os versos de um dos poemas de Imitação do amanhecer, escandiu-os e terminou por concluir que o poeta não sabia manejar os alexandrinos. O Rafael, por meio de uns versos de Castro Alves, procurou alertá-lo sobre a utilização da versificação espanhola (para quem quiser se instruir mais sobre o assunto, sugiro a leitura da introdução de Péricles Eugênio da Silva Ramos à poesia completa de Álvares de Azevedo, publicada pela Saraiva no começo da década de 1960). Mesmo percebendo que muitos dos problemas identificados até então “caíam por terra”, Gripp continou insistindo na inadequação de três versos ao esquema métrico que parecia ser o do poema em questão.

A lição que o Rafael nos deu com seu texto — e aqui não estou dizendo no sentido de que ele teria “dado uma lição” no Gripp, mas sim que ele apresentou uma visão muito útil de como a poesia precisa ser lida — é que um poema, assim como qualquer texto literário, é alguma coisa mais do que a soma de suas partes. Quando Gripp analisa metricamente cada verso de maneira isolada, ele, logo de saída, está perdendo de vista algo que deveria ser considerado desde o princípio: a unidade rítmica do poema. Não estou afirmando que tal unidade seja evidente no poema de Tolentino, que é de fato de difícil apreensão formal, e sim que o importante é saber se os versos estão estruturalmente integrados e não se cada um dos deles foi metrificado exatamente do modo como os manuais prescrevem. Muitas vezes, um bom poeta se distingue por reconhecer a necessidade de distorcer algum verso para que este melhor se subordine à fluência do conjunto. Farei aqui uma analogia com a escultura.

O escritor ouropretano Bernardo Guimarães descreve, no capítulo IV de O seminarista, uma visita de sua personagem principal à Igreja Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, no adro da qual se encontram os Doze Profetas do Aleijadinho. O narrador apresenta as célebres estátuas da seguinte maneira:

Não é preciso ser profissional para reconhecer nelas a incorreção do desenho, a pouca harmonia e falta de proporção de certas formas. Cabeças mal contornadas, proporções mal guardadas, corpos por demais espessos e curtos e outros muitos defeitos capitais e de detalhes estão revelando que esses profetas são filhos de um cinzel tosco e ignorante... Todavia as atitudes em geral são características, imponentes e majestosas, as roupagens dispostas com arte, e por vezes o cinzel do rude escultor soube imprimir às fisionomias uma expressão digna dos profetas.

Ele chega a atribuir a feiura do conjunto às deformidades do artista: “É sabido que estas estátuas são obra de um escultor maneta ou aleijado da mão direita, o qual, para trabalhar, era mister que lhe atassem ao punho os instrumentos./ Por isso sem dúvida a execução artística está muito longe da perfeição”. No que pese o preconceito que até então vigorava em relação à arte barroca, a dificuldade de se talhar a pedra-sabão (que se esfarela facilmente, sendo difícil imprimir-lhe contornos mais delicados) e a evidente fealdade de algumas estátuas, Bernardo Guimarães deixou passar um detalhe importante: a aparente desproporção das formas tem por objetivo corrigir a distorção que a perspectiva causa às figuras. As estátuas dos profetas foram feitas para serem vistas de cima para baixo, e não frontalmente. As cabeçorras e os braços estendidos, enormes e longuíssimos — ao passo que as pernas são atarracadas —, têm por função compensar o fato de que as formas mais distantes, percebidas mais ao alto, aparentarão ser menores do que aquelas que estão mais próximas. Portanto, parece que Antônio Francisco Lisboa desconhecia completamente as leis da proporção, quando na verdade era Bernardo Guimarães que desconhecia as da perspectiva. Às vezes, pouco conhecimento é mais perigoso do que conhecimento nenhum.

Com a poesia se dá o mesmo: é preciso considerar a harmonia do conjunto e não se restringir a uma análise de cada verso em separado. Com isso não estou querendo dizer que não há espaço para a consideração dos versos individualizados, mas tal consideração deve estar subordinada à visão do todo, e não o contrário. A escansão é apenas uma das etapas do procedimento interpretativo. Da mesma maneira, é complicado considerar isoladamente as imagens que o poema traz; é preciso também verificar se elas conseguem se integrar coerentemente num todo semântico maior, que é o do poema. O problema de dar ênfase à escansão dos versos em detrimento da harmonia entre eles (colocando a fórmula acima da forma) é que isso deseduca os sentidos, prejudicando o desenvolvimento da experiência estética, que ocorre pela síntese dos elementos e dos aspectos da obra na imaginação do leitor. A verdadeira crítica literária é aquela que consegue demonstrar os termos pelos quais tal síntese é operada, pois a interpretação (que incorpora também a dimensão formal da obra) é sempre o objetivo maior.

Será então que o poema de Tolentino é harmônico, malgrado sua heterogeneidade métrica (ou mesmo por conta desta)? Para responder a isso eu precisaria dedicar um tempo ao estudo do poema, o que, por ora, não pretendo fazer, pois acredito que mais importante do que saber se Tolentino é o maior poeta da língua portuguesa depois de Camões é mostrar para os leitores as armadilhas de uma leitura muito fechada nas questões técnicas primárias.

Uma linha de investigação que eu adotaria no caso do poema que deu origem a esta discussão é pensar se a ampla utilização do enjambement, que encurta ou abrevia a pausa no final dos versos, não força uma reconfiguração da posição das cesuras para o bem do equilíbrio rítmico de todo o conjunto. Estará Tolentino fazendo algo semelhante ao que fez Aleijadinho com seus profetas, distorcendo os metros para que eles soem mais harmônicos ao ouvido interno dos leitores? É o caso de procurar perceber se há alguma ordem por trás da variação métrica, se ela segue algum princípio discernível. Enfim, as objeções técnicas de Gripp à versificação de Tolentino não provam nada. Deveríamos nos questionar se a variedade dos metros, e até mesmo de estilos de versificação, é fortuita (resultando, neste caso, da inaptidão do poeta em manter uma metrificação homogênea) ou se ela tem uma razão de ser, formalmente falando. Ela (a variedade) não é, necessariamente, uma deficiência.

Em suma, foi mais ou menos isto que aconteceu: a princípio, Gripp imaginou que quase metade dos versos do poema analisados estavam metrificados de forma equivocada; com a descoberta de que muitos desses versos eram dodecassílabos à espanhola (sem gracinhas, por favor), restaram três com a métrica em discussão. Posteriormente, duas hipóteses foram aventadas que explicavam a aparente inadequação de um desses versos; ainda restam dois. É de se imaginar, pelo andar da carruagem, que logo teremos também uma explicação aceitável para ambos. Por outro lado, Falcón tem insistido, desde o começo, na suposta harmonia do todo. O ouvido interno do Rafael, até agora, mostrou-se mais eficiente do que o esquadro do Gripp. E digo isto não para insinuar uma inaptidão ou a falta de sensibilidade estética deste, mas para criticar certa tendência de alguns leitores de poesia que acabam incorrendo numa redução dos poemas a seus aspectos meramente técnicos, ignorando a dimensão propriamente formal da obra, cuja consideração vai além da análise dos procedimentos empregados na construção do objeto poético.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Ad Hominem Entrevista: Olavo de Carvalho

HÁ QUASE vinte anos, a indigência intelectual brasileira, sempre tão orgulhosa de suas nobres realizações, ganhava nome e sobrenome: O Imbecil Coletivo – Atualidades Inculturais Brasileiras. O sucesso clamoroso do livro, que em pouquíssimos meses esgotou várias edições, era, a um só tempo, acontecimento preocupante e auspicioso: se de um lado ficava evidente que a inteligência nacional – ou sua falta – seria suficiente para preencher dezenas de volumes, em contrapartida o interesse pelo diagnóstico e possível tratamento sugeria que talvez não estivéssemos condenados a desaparecer do mundo civilizado de forma definitiva.

Muita coisa piorou de lá pra cá. A ascensão do PT ao poder, a hegemonia do pensamento de esquerda – predominantemente em sua versão gramsciana – e a quase absoluta sonegação de todo pensamento filosófico e político que não seja, de modo mais ou menos explícito, afeito às comodidades e cumplicidades daquilo que um dia já ousaram chamar de “jornalismo”, parecem denunciar o fracasso do empreendimento intelectual e pedagógico de Olavo de Carvalho. Se tudo piorou e a “longa marcha da vaca para o brejo” é mesmo o inescapável roteiro do pensamento guarani-kaiowá, que é que se ganhou com tudo isso?

Pois a ironia é precisamente esta: quase vinte anos depois, Olavo de Carvalho publica O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota e inicia novo ciclo com novo sucesso. Milhares de exemplares vendidos e a mesma certeza: se a intelligentsia brasileira continua a dar o exemplo do que não se deve fazer, o filósofo reafirma seu propósito de mostrar que nem todo mundo está dormindo enquanto a vaca marcha, lentamente, para o infausto destino. E – Deus nos leia! – talvez o prognóstico seja outro, e menos acabrunhante, depois que os imbecis passaram a ser chamados, sem respeitos humanos, pelos respectivos e apropriados nomes.

Ad Hominem entrevista Olavo de Carvalho: para os imbecis de sempre, para os idiotas de costume, e para todos os outros que não se contentam em ser nem uma coisa nem outra.

***

O sucesso instantâneo do seu novo livro nos leva a crer que o “olavismo” já não cabe nos limites de um gueto virtual – como querem alguns –, mas se alastra com velocidade entre as mais diversas camadas da sociedade brasileira. Se isto é muito bom, ao mesmo tempo há quem aponte um efeito colateral da dita “orkutização do olavismo”, a saber, o surgimento de um exército de entusiastas das suas ideias os quais aparentam não ter preparo intelectual para compreender o que justifica seu próprio entusiasmo. O senhor concorda com essa análise? Como avalia essa recepção “quase cega” das suas ideias por parte de seus leitores?

Tenho uns trinta e seis mil “seguidores” no Facebook (que só são seguidores num sentido ótico da palavra), uns cem mil leitores espalhados pelo Brasil e talvez uns duzentos mil ouvintes e espectadores no Youtube. Mas, de todos esses, só uns dois mil – menos de um por cento – são meus alunos no Seminário de Filosofia, e estes, a pedido meu, evitam participar de discussões na internet, só o fazendo quando é no quadro de alguma atividade profissional ou intelectual mais sistemática, como é o caso do Felipe Moura Brasil, o do Ronald Robson, o do Gustavo Nogy e o de mais alguns poucos. Por isso, o que acaba aparecendo superficialmente como “discussão” das minhas idéias é justamente o que vem do público mais geral, que não tem comigo nenhuma relação de aprendizado e que me chama de “professor” apenas por gentileza. Não tem sentido esperar que esse público tenha uma compreensão das minhas idéias no nível que a têm os meus alunos. Deles vêm, com freqüência, perguntas mal formuladas e opiniões toscas, que refletem um esforço de aprendizado sincero mas ainda muito incipiente. Alguns observadores maliciosos ou burros, no entanto, nada sabendo nem querendo saber dos meus cursos ou dos meus alunos, fazem questão de tomar justamente esse público geral como amostra típica dos resultados do meu ensinamento. É uma deformação caricatural monstruosa. Todo escritor ou filósofo tem um público geral que o aprecia sem compreendê-lo muito, mas tem também o direito de ser julgado pelos seus escritos e pelo seu ensinamento direto e não pela resposta incontrolável que obtém de um público difuso. Já pensou o que seria de Sócrates se não fosse julgado pelo que Platão e Aristóteles aprenderam dele, mas pelo que se lê a seu respeito no trabalho escolar de um estudante brasileiro do segundo grau? Que seria de Karl Marx se toda a imagem que temos dele não fosse baseada no que ele legou a um Georg Lukács ou um Karl Korsch, mas tão-somente no que o Punheteu sabe a respeito? Todo escritor, todo filósofo é “orkutizado”, mas somente um – este entrevistado – é aferido preferencialmente pela sua imagem orkutiana, que não o reflete de maneira alguma. Alguns fazem essa caricatura de análise por malícia, outros por ignorância genuína, mas nos dois casos o que está verdadeiramente orkutizado é o cérebro dessas criaturas. A confusão entre os dois níveis de recepção é um erro tão grosseiro, que o fato mesmo de que tantos o cometam é um índice sociológico da crise nacional de QI. Pior ainda é que aqueles que criticam a adesão simplória de certa parte do público às minhas idéias têm uma visão ainda mais simplória dessas idéias, baseada inteiramente em frases que ouviram nos meus programa de rádio sem nunca ter lido os meus livros nem freqüentado os meus cursos. Esses detratores do meu trabalho criticam nas outras pessoas o erro que eles próprios estão cometendo, em maior escala, nesse mesmo instante. Por que a simpatia “quase cega” deveria ser mais desprezível do que a hostilidade igualmente cega? Aplaudir sem compreender muito é por certo mais decente do que condenar sem compreender nada.

Apesar das frequentes advertências que o senhor, baseado no esquema aristotélico dos quatro discursos, fez e continua fazendo quanto à necessidade de dominar os registros poéticos e retóricos antes de passar ao estudo da filosofia, boa parte de seus admiradores e até alunos parece interessar-se sobretudo nos estudos teóricos (tendentes à lógica, segundo a classificação aristotélica). Isso produz fenômenos curiosos, como algumas interpretações bastante rudimentares de conceitos densos da teologia. Como o senhor explica isso? O que o senhor julga que pode ser feito para despertar as pessoas para a importância filosófica do estudo das letras?

O problema é muito mais sério do que eu mesmo imaginava no início. A presente geração foi toda alfabetizada pelo método socioconstrutivista, que a incapacitou não só para o domínio das regras da gramática, mas para a percepção das nuances, dos tons, da harmonia. É como uma surdez tonal adquirida. Para corrigir isso, a simples leitura de boas obras de literatura não basta. O pessoal, com isso, adquire cultura e às vezes progride um pouco na percepção das formas verbais, mas continua incapaz de “entrar” pessoalmente na tradição literária, de participar dela ativamente. Não sei como resolver esse problema, mas entendo que é ele que leva tantas pessoas a se sentirem mais à vontade em terrenos mais impessoais, onde a simples apreensão do sentido explícito dos conceitos parece bastar. É claro que nisso se enganam. Sem um bom “ouvido” literário não se pode ler com proveito nem o Tractatus de Wittgenstein, para não falar de livros de teologia.

Por falar em literatura, o senhor certa vez disse que Bruno Tolentino foi o melhor poeta em língua portuguesa desde Camões – e seus críticos adoram repetir essa frase em tom de chacota. O que faz de Tolentino um poeta tão grande, em sua opinião? Em que sentido ele seria comparável a Camões?

Acho que quem não percebe isso à primeira vista tem um cérebro lesado. A temática do Bruno abarca o universo quase inteiro da experiência humana e intelectual do século XX, da qual seus concorrentes brasileiros mal chegam a apreender uns pedacinhos, e ele a expressa com um domínio técnico alucinante. Nenhum outro poeta brasileiro fez isso. Nem Drummond, nem Manuel Bandeira. Em carne e osso, o Bruno foi notoriamente um semilouco, um mitômano, mas quantos poetas não o foram? Nunca ouviram falar de Guillaume Apollinaire, de Christopher Marlowe, de Fernando Pessoa?

A tese exposta em sua obra Aristóteles em Nova Perspectiva – Introdução à Teoria dos Quatro Discursos – o discurso humano é uma potência que se atualiza de quatro formas diferentes, não necessariamente contraditórias entre si, mas complementares e com diferentes níveis de credibilidade – foi, desde seu lançamento, ou ignorada ou completamente incompreendida pelos estudiosos. Menção honrosa deve ser feita aos portugueses (professor Mendo Castro Henriques entre eles). O senhor sabe de algum professor brasileiro que tenha lido a obra, ou chegou a se corresponder com alguém, acerca desse estudo?

Quando esse livro saiu, fazia trinta anos exatos que nada se publicava de autor brasileiro sobre Aristóteles. Isso dá uma idéia do terreno miserável onde plantei aquela semente. Para não admitir que tinha ficado para trás, o pessoal da USP desencavou uma tese do Oswaldo Porchat Pereira, já velha de três décadas, e a publicou às pressas, mas era apenas um bom trabalho escolar, sem nada de original. Só obtive audiência inteligente no círculo de estudiosos de lógica, discípulos de Newton da Costa, especialmente Alexandre Costa Leite. No exterior, o meu livro foi muito bem recebido. O primeiro a lê-lo e aplaudi-lo foi o biólogo Antoine Danchin. Depois veio o círculo inteiro dos discípulos de Eric Voegelin – Frederick Wagner, Tudor Munteanu, Jody Bruhn, David Walsh. Roger Kimball recomendou o livro à Encounter Books, que prometeu publicá-lo se eu lhe acrescentar mais textos sobre o mesmo assunto para formar um volume mais grosso. Em Portugal, Mendo Castro Henriques, João Seabra Botelho, Carlos Aurélio e todo o pessoal da revista Leonardo. Na Romênia, Andrei Pleshu, Horia Patapievici, Gabriel Liiceanu e muitos outros.

O senhor tem dito que alguns de seus alunos já estão mais bem preparados para atuar na vida intelectual do que muitos professores universitários. E também alerta com frequência sobre a importância de passar anos estudando antes de se manifestar publicamente. Levando isso em conta, para quando podemos esperar a aparição pública de seus melhores alunos? Eles tenderão a ingressar nos meios já existentes (como universidades e jornais) ou criar postos de autoridade paralelos ao cenário cultural atual? O que o senhor julga ser mais adequado?

Estou recolhendo e analisando centenas de projetos de trabalhos de conclusão de curso que, mais dia menos dia, serão publicados em forma de livros. Quando digo que meus alunos têm mais preparo do que o típico professor universitário brasileiro de hoje, falo com base nessa documentação e não em impressões gerais. Nem menciono o meu filho Luiz Gonzaga, que, sem nunca ter freqüentado universidade alguma, não tem concorrentes à sua altura no meio universitário nos campos da sua escolha, as religiões comparadas e a filosofia medieval. Alguns dos meus alunos já têm livros publicados e dão uma amostra do que estou dizendo. Virgilio Dalla Rosa e Rodrigo Gurgel são exemplos. Eles superam de longe qualquer concorrente nos seus campos respectivos. Quando a produção dos demais começar a aparecer, ela injetará vida nova na atividade intelectual deste país. Talvez eu crie uma revista de cultura e promova cursos dados pelos meus alunos, mas, fora disso, não tenho planos. Cada um conduzirá sua vida como bem entenda.

Atualmente, que filósofos vivos o senhor considera dignos de atenção? E por quê?

Jean-Luc Marion, John Deely, Harry Redner, Glenn Hughes, Horia Patapievici, muitos outros. A inteligência não morreu no mundo. Só no Brasil.

Em um artigo de 2006 (A fossa de Babel, constante em O mínimo..., p. 287), o senhor escreve: “É verdade que nem todo mundo reclama do que escrevo. Há quem goste. Mas uma boa parte gosta naquela mesma clave lúdica em que o conhecimento adquirido é uma forma de diversão, sem alcance sobre a vida prática e as decisões reais. Quando dou conselhos a essa gente, quase sempre me sinto como um médico que, tendo receitado uma medicação de emergência, depois a encontra esquecida num canto da sala onde a família presta sua última homenagem ao cadáver do paciente. Não me sinto um gênio incompreendido, não tenho nem um pouco de dó de mim mesmo: tenho dó daqueles a quem estendi o socorro dos meus conhecimentos e que só os aproveitaram como deslumbre passageiro. Não entenderam que eu não queria os seus aplausos, mas a sua salvação.” Sete anos após ter escrito essas linhas, o que mudou?

Muita coisa. Hoje tenho milhares de alunos que estudam a sério e tiram até mais proveito das minhas aulas do que eu teria esperado. Tudo melhorou muito, mas muito mesmo.

A maior e mais importante parte da sua obra permanece em estado bruto: em gravações de vídeo e em transcrições, por exemplo. Várias obras esperadas por seus alunos, como O Olho do Sol e A Mente Revolucionária, ao que parece não terão mais uma forma unitária, restando dispersas em registros de diferente natureza (apostilas, transcrições de aulas, palestras, artigos etc.). O que de concreto em termos de publicação, no entanto, seus leitores podem esperar para breve, seja em inéditos, seja em reedições, como se fez recentemente com Aristóteles em Nova Perspectiva?

Estou preparando para publicação o curso Sociologia da Filosofia e o Rodrigo Gurgel está dando retoques em Raízes da Modernidade, que sairá com outro título porque descobri que o Pe. Lima Vaz publicou um livro com esse título faz muitos anos. Esses dois sairão no ano que vem, sem falta. E Visões de Descartes tem lançamento marcado para 22 de novembro. Mas a massa de papéis arquivados à espera de correção é uma monstruosidade. Mesmo que eu chegue à mais extrema velhice não creio que conseguirei preparar todo esse material para edição. Legarei o abacaxi às boas almas que o desejem.

O senhor já afirmou algumas vezes que a multiplicidade de focos de atenção e intervenção da sua obra lhe impossibilita de dar a ela uma forma bem ordenada e editorialmente de fácil apresentação. O senhor poderia falar um pouco mais sobre que relação há entre sua postura intelectual e os modos de registro da mesma?

Na filosofia é tradicional o contraste entre as mentes sistemáticas, que vão construindo uma obra ordenadamente, como Kant ou Husserl, e as mentes reativas, que precisam de algum estímulo momentâneo para registrar suas idéias por escrito, como Leibniz ou Pascal. Guardadas as devidas proporções, pertenço decididamente ao segundo tipo. Às vezes fico meditando um assunto por anos a fio, sem escrever uma palavra. Mas basta que alguém diga uma bobagem a respeito, e instantaneamente começo a preencher páginas e páginas. A questão do Império sempre andava na minha cabeça, mas foi só a conferência desastrada do José Américo Mota Pessanha que me fez escrever O Jardim das Aflições. O problema, hoje, é que os estímulos são em número excessivo, ultrapassam a minha capacidade de reagir por escrito. Então registro minhas idéias oralmente, nas aulas.

No Brasil, nenhum filósofo conseguiu até hoje criar discípulos na acepção eminente da palavra: intelectuais de alto nível que prossigam com pesquisas que, de algum modo, são respostas à orientação que receberam dos seus mestres. Isso, que é coisa comum em outros países (inclusive em alguns da América Latina), no Brasil inexiste e é até visto com certo desprezo. O senhor, contudo, em alguma medida já criou condições para que nas próximas décadas se desenvolva um discipulado a partir de sua obra. Ao avaliar o seu pensamento e sua atuação pública, o que o senhor imagina serem as contribuições e problemas mais importantes com que no futuro seus alunos acabarão se preocupando mais?

O problema essencial é restaurar o senso da filosofia como uma disciplina integral da inteligência, superando, de um lado, a mutilação burocrático-profissional e, de outro, o empastelamento ideológico-partidário. Creio que alguns dos meus alunos já estão bem afiados para entrar nessa luta. Em segundo lugar, é preciso despertar da “longa noite” em que a cultura brasileira mergulhou nas últimas décadas. Temos de voltar a ser os contemporâneos de Manuel Bandeira, de Gilberto Freyre, de Otto Maria Carpeaux, de Mário Ferreira dos Santos, de Álvaro Lins e de tantos outros. Temos de fazer a ponte entre as gerações e produzir obras que não desmereçam o legado desses nossos ancestrais. Com isso o campo de batalha já se estende para muito além da área da filosofia em sentido estrito. Em terceiro lugar, é preciso escrever a história cultural e psicológica das últimas décadas, que os profissionais universitários abandonaram ou falsificaram quase que por completo. Em quarto, é preciso abrir um rombo no mercado editorial e inundá-lo com livros fundamentais do século XX que permanecem desgraçadamente ignorados no nosso meio. Neste ponto, muita coisa já se fez nos últimos anos, partindo de sugestões que dei nos meus livros e artigos, mas ainda há muito por fazer. Em quinto, é preciso atualizar o público brasileiro com a nova situação político-militar do mundo, que a nossa mídia ensina a ignorar. Esse é o programa.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Pra não dizer que eu realmente não falei das flores


Hoje tive uma conversa pra lá de constrangedora na sala dos professores com alguns de meus colegas mais “engajados”. Basicamente há dois tipos de conversas entre meus colegas de trabalho: falar mal de aluno e reclamar da educação.
A conversa teve início depois de eu soltar um disparate: “a última coisa do ensino de filosofia é sua função social; e, vou mais longe, a educação também não deveria ter isso como preocupação”. Mal terminei a frase e todos os olhares dispersos despencaram sobre a minha heresia e Paulo Freire deu duas cambalhotas no túmulo. 
“Ora, como assim”, disse uma colega professora de sociologia em tom irado, “não há função social na educação? Você está louco!”. Não, não estava louco e é exatamente isso o que eu disse: o processo de decadência da educação no Brasil começou, precisamente, quando toda sua finalidade foi reduzida à noção de “educação como função social”.
Foi difícil explicar, confesso. Talvez a vaidade e a recusa em abandonar velhas ideias caquéticas e estúpidas tornam o ser humano mais opaco do que já é naturalmente. Mas eu me esforcei:
Tanto a filosofia em particular quanto a educação em geral não deveriam — já que essencialmente não têm mesmo — ter como finalidade a banal preocupação de estar “voltada para o social”. Por que banal? Ora, porque não há necessidade de ter como meta a “função social”, uma vez que o ser humano é, essencialmente, um ser social.
A educação deve “cultivar” a alma humana para a vida em sociedade e, portanto, eve estar fechada para “as coisas do mundo”. Se já não é mais o espaço de reflexão e se abre totalmente para “a vida”, então torna-se suscetível a todos os males e a todos os problemas do mundo: drogas, violências e discursos ideológicos são os primeiros bárbaros a romperem os limites que separam civilização da barbárie. Drogas e violência entram por parte do aluno, discurso ideológico tarafe do professor.
Se até um espirro tem função social, quem dirá a formação escolar! Então, não há sentido em submeter toda formação de alguém ao social. Outro colega, mais aliviado, manda: “Ah, então você concorda que a Educação tem função social! Ufa…”.
Na verdade, o que se mascara por trás dessa ideia de “função social da educação” é uma das mais corrosivas e perniciosas concepções de ensino: sua politização ideológica manifestada na noção de escola aberta para vida (formar cidadãos conscientes com senso crítico etc etc)! A crença — ou ingenuidade? — da maioria dos meus colegas deriva da noção de que nós professor devemos fazer, em última instância, a molecada se “engajar politicamente”. "Social", neste contexto ideológico, significa não outra coisa senão o “engajamento contra o neoliberalismo e o moralismo do Ocidente”.
“Devemos plantar a sementinha revolucionária”, como disse, no ápice da cafonice, uma colega – pasmem! – professora de Química. “Os meninos de hoje”, continua, “são alienados, e precisamos urgentemente fazer alguma coisa!” Como se a pronúncia de tal frase garantisse imediatamente a isenção de um discurso igualmente alienado e profundamente estúpido. Pelo contrário: é justamente quem diz “eles são os alienados” o primeiro suspeito de ser um completo alienado.
E outra. Se hoje os jovens são tão alienados, então são alienados e intoxicados precisamente pelo excesso de politização aos quais foram submetidos durante décadas. Jovens que, ao invés de terem aulas de verdade, foram submetidos a uma verdadeira lavagem cerebral (o tratamento de Alexander DeLarge, em Laranja Mecânica, é fichinha perto do tratamento que muitos dos nossos alunos têm sido submetidos).
Jovem não tem ter “senso crítico”, jovem precisa estudar. Simples! Durante décadas massacramos nossos alunos com a conversa fiada de que “vocês precisam mudar o mundo”, “salvar o planeta”, “precisamos fazer alguma coisa contra o sistema”, “lutar contra o neoliberalismo”, “entender o sofrimento das baleias” etc.
Tivéssemos concentrado todos nossos esforços em mostrar a beleza da inutilidade da educação e ensinado a formularem as perguntas mais genuínas e significativas (aquelas que surgem de maneira heurística no espírito humano, ou seja, livres de “funções” e “utilidades” — sobretudo políticas), não estaríamos discutindo a função social da massa de analfabetos formados todos os anos pelo ensino de nobre função social. Esse "socialismo engajado" da educação não teve outra função a não ser a de socializar a ignorância.
Alguns anos atrás fui demitido de uma escola de Ensino Fundamental, no início da minha carreira, logo depois de me apresentarem uma pesquisa interna feita com os alunos no final do ano a fim de avaliar o desempenho dos professores. Na época eu lecionava uma disciplina chamada “Atualidades”. A dona da escola alegou que os alunos (de 5º série!) tinham “senso crítico” suficiente para saber o que era “bom” pra eles. Segundo o “ipope”, eles não gostavam da minha aula por que eu exigia muita leitura e a aula, por ser de “atualidades”, tinha de ser mais “debate”.
É tão ridículo assim pensar que não cabe ao professor de Matemática ensinar "ativismo político", mas ensinar — não é pedir demais isso — Matemática? Que não é demais ao professor de Química ensinar simplesmente Química? Ao de Biologia, Biologia? Ao de História, História! E ao de Filosofia, Filosofia? Confesso que fiquei feliz com a minha demissão das aulas de "Atualidades"; na minha opinião, tal disciplina não tinha qualquer finalidade (talvez, no máximo, uma espécie de tentativa de substituir a conversa franca que os pais deveriam ter com os filhos na mesa do jantar!). 
"O verdadeiro fundador" do declínio da educação foi o primeiro professor descolado que, tendo cercado seus alunos em uma sala de aula, "lembrou-se de dizer isto é minha pequena assembleia política particular" e encontrou pessoas suficientemente "cheias de senso críticos e analfabetas" para acreditá-lo. Não tenho mais dúvidas de que o responsável pelo fim da educação foi o professor que, cheio de si e crente piedoso de sua concepção política de mundo, exaustivamente doutrinou todos aqueles que estavam interessados não em mudar o mundo, mas simplesmente em compreendê-lo.
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