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segunda-feira, 1 de julho de 2013

A política da imaginação autoritária



As recentes manifestações por todo país não são o efeito direto de uma nova consciência política do povo brasileiro. Pelo contrário, revelam o sintoma de uma profunda desordem na experiência da imaginação política da sociedade brasileira como um todo, que não é outra coisa senão a própria crise da consciência do homem público. Nesse sentido, as manifestações devam ser tomadas como fenômenos espontâneos que indicam alguma outra coisa de mais profunda, e não a própria coisa a ser refletida.

A relação entre imaginação e política percorre a história da experiência política, todavia, muitas doutrinas são frutos da produção de um imaginário precário e autoritário: o poder é uma tentação irresistível. Analisemos um exemplo: o transporte coletivo em grandes centros urbanos é extremamente complexo e de péssima qualidade. Isso não é imaginação, mas um fato. Como torná-lo mais eficiente e ao mesmo tempo oferecer aos usuários melhores condições de uso por um preço mais justo? Essa é uma pergunta complexa impossível de ser respondida com fórmulas mágicas. Quem afirma possuir a solução inequívoca demonstra estar longe dos fatos.

É um fato também que as ondas de protestos tiveram início a partir da pretensão de se dar uma resposta mágica e inequívoca ao problema dos transportes formulado acima. A resposta dada pelo Movimento Passe Livre (MPL) enfatiza o nível da imaginação política do grupo. Para o MLP, não interessa a complexidade dos fatos, importa apenas aquilo que foi determinado por um princípio derivado do imaginário dos membros do grupo.

O MPL ganhou notoriedade nos últimos dias por ter deflagrado as ondas de protestos. Assim que os prefeitos voltaram atrás com o reajuste das tarifas, o grupo retirou-se das manifestações. Quando temas típicos da chamada “agenda conservadora” – aborto, corrupção, maioridade penal – começaram dar o tom das manifestações, o movimento voltou atrás tentando recolocar a pauta da tarifa dos transportes. Assim, o vai-e-volta demonstra a total falta de senso de realidade, a incapacidade de lidar com a complexidade dos fenômenos sociais, o fiasco estratégico e o ápice da imaginação autoritária conduzindo os interesses políticos.

Ao perguntarem para os líderes do grupo quanto custaria e quais são as efetivas propostas para implementação da tarifa zero, a resposta é sempre categórica: “Pra gente é uma questão política e não técnica”. Após reunião com a presidente Dilma (dia 24) – que, aliás, neste ponto, acertou ao lembrá-los da impossibilidade de tarifa zero! –, a resposta indica o nível doentio do estado de imaginação do grupo: "Vimos a Presidente completamente despreparada. Eles não sabem nem quanto custaria a tarifa zero". Ora, mas a proposta de tarifa zero é do MPL, seus líderes têm obrigação de saber quanto custa e quais às técnicas.

Por fim, embora confesse ser apartidário, o MPL não esconde seu vínculo profundo com ideologias de extrema-esquerda, cujo objetivo último não é, como todos sabem, os 20 centavos ou a conquista da tarifa zero – essa seria só uma etapa da pauta da esquerda revolucionária –, mas a superação da “lógica da mercadoria” por meio da coletivização dos meios de produção, isto é, em última instância, pôr fim ao capitalismo de mercado, e com isso realizar o velho sonho de acabar com a propriedade privada. Consequentemente, com as liberdades individuais em nome do bem coletivo como a resposta última para realização de um mundo melhor.

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Texto originalmente publicado em Gazeta do Povo em 27 de Junho de 2013.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Quem - ou o quê - lidera os protestos

A cada dia fico mais seguro de que liberais e libertários tomaram uma decisão sábia ao não integrar a Marcha do Passe Livre, preferindo um protesto a parte. Não fomos massa de manobra do MPL, que conseguiu emplacar a revogação dos vinte centavos; sua única causa, malgrado as juras em contrário da maioria dos participantes.

A verdadeira causa final de uma manifestação popular não é necessariamente o que vai na cabeça da maioria. É a intenção daqueles manifestantes que de fato conseguem atingir seu objetivo. O objetivo da grande marcha pacífica de segunda-feira (17/06) e das que se seguiram foi alcançado: 20 centavos a menos na passagem. O custo extra sairá de algum outro investimento estatal, ou virará aumento de imposto. Espero que você, manifestante engajado, que se encantou com a beleza do povo nas ruas, goste desse resultado, porque foi isso que sua ação produziu. Até o meio da semana passada.

Só que a massa que foi de manobra está fermentando, crescendo sem parar, e agora parece dar o tom. Para muita gente da esquerda, a coisa não vai bem: a "direita" está dominando cada vez mais as manifestações com seus traços distintivos: apartidarismo, roupas brancas, narizes de palhaço, faixas pedindo o fim da corrupção e, acima de tudo, muita, mas muita bandeira nacional.

Devo dizer que, quando a Marcha cruzou o protesto libertário na segunda-feira (17/06), eu achava que havia possibilidade de briga. Nosso lado não deixou de provocar, entoando inclusive refrões contra o passe livre, pedindo - isso sim - livre concorrência e menos Estado. Muitos que passavam tiravam foto. Conversando com manifestantes do MPL e distribuindo panfletos, encontrei interesse, curiosidade, muita discordância inicial e, conforme discutíamos, uma maior abertura a ideias liberais: no final das contas, a maioria é a favor à livre iniciativa de motos, taxis e vans, e de algum tipo de concorrência nos ônibus. Foi uma noite produtiva.

Apesar da paz que reinou no encontro das duas manifestações, houve um ato de agressão. E não, não veio de algum esquerdista querendo implantar à força a ditadura do proletariado. Veio de um "moderado", um apartidário, que se ofendeu sobremaneira ao ver a faixa do Libertários chegar perto dele. Meteu um soco no peito, e quase recebeu de volta uma porrada com um mastro. (Em um protesto subsequente na Paulista um "apartidário" foi bem sucedido: conseguiu finalmente levar uma bandeirada de um petista e já integra o rol dos mártires).

O mais bizarro foi o que aconteceu logo depois. Após os gritos de "sem violência!" - dos quais participei - um manifestante exaltado, vestindo a bandeira nacional, aproveitou uma brecha de silêncio e fez seu manifesto. "Esta é nossa única bandeira!". Aplausos. Após mais alguns gritos - estranhos pelo grau de raiva - ele e seus amigos entoaram um hino nacional, que foi acompanhado por quase todos. (Só a primeira parte, claro; a segunda ninguém decora.)

Eu e mais alguns nos olhamos perplexos. O que era aquilo? Qual o sentido de se exaltar o amor à pátria numa manifestação dessas? Vi um cartaz que dizia apenas "Pelo Brasil", como se amor à pátria fosse proposta política. O que isso comunica? Zero. E zero também é o que constitui o núcleo de todos os moderados e apartidários que foram e continuam indo às ruas.

Os apartidários não são apenas contra partidos políticos; são contra ideias. Não têm absolutamente nada a oferecer além de platitudes que cada um pode interpretar da maneira mais conveniente para sua ideologia, de forma que todos se iludam com um sentimento de união e de estar "lutando por algo maior". No caso, o "algo maior" ainda era ditado pelo MPL, pela "esquerda". Agora, já não é mais ele quem dá as cartas do levante popular.

A única causa que um discurso patriótico e apartidário pode ter é a do combate à corrupção (ato antipatriótico por excelência, embora não antibrasileiro...), que muitos erroneamente veem como o pior mal do Brasil. O discurso anticorrupção serve como bandeira para ser contra o partido da vez - a vez atual, que já dura 10 anos, é o PT. É uma acusação neutra, que não depende de ideologia, feita na esperança de angariar o apoio mais amplo e despolitizado possível, já que, na hora da urna, voto é voto. E é uma bandeira supérflua, posto que todo mundo é contrário à corrupção. Fora essa pseudorreivindicação, sobra o vazio absoluto.

Esse vazio revela o beco sem saída ideológico em que todo mundo que não é francamente de esquerda entrou. Todo eleitor da oposição é um "apartidário" em potencial, posto que não tem nada a mostrar ou argumentar contra uma esquerda que aplica, com consistência, as mesmas teses que ele afirma de corpo mole. Some-se a isso um ódio crescente a um inimigo pessoal, mítico e demonizado, e temos o antipetismo: a cristalização discursiva de um rancor contra uma classe de governantes vista como promovendo o mal em todo o pais e levando-o para o buraco. Como a oposição não pode se dar no plano das ideias, tem que se dar no da vontade: o PT é mau, é corrupto, é populista, é comunista, e por isso tem que ser extirpado.

Digo sem receios: o governo petista tem sido péssimo sim, e de fato levará o país para o buraco se continuar neste rumo; Argentina e Venezuela apontam o caminho. Mas não é por causa de alguma maldade intrínseca não. É porque as ideias da população acerca do funcionamento da sociedade e do mercado são completamente equivocadas, e sempre terão resultados ruins. Essa é uma percepção que só um liberal pode ter; entre o intervencionismo do PT e do PSDB (nenhum deles é socialista), temos as mesmas premissas abraçadas com mais convicção por aquele e menos por este, e só. Pessoas boas, que querem o melhor para  a sociedade, se guiadas por ideias erradas, podem causar males muito maiores do que corruptos inveterados.

Quando se internaliza essa percepção, o diálogo político fica muito mais fácil. Quem discorda não é mais um inimigo malévolo a ser vencido, e nem uma fera irracional a ser evitada. É perfeitamente natural a discussão entre Libertários e membros do Passe Livre. Eu, aliás, partilho da revolta, até admiro sua garra, mas repudio as propostas; e posso dar minhas razões, propondo soluções melhores. Ele fará o mesmo. Com alguém que empunha a bandeira do Brasil e, difusamente irado com os desgovernos estatais, parte para a briga contra todos os partidos (ou seja, contra todas as propostas), o que pode ser dito?

Mas a esquerda também não é boba, e a resposta a essa massa, que foi de manobrada a manobrista, já está correndo as redes sociais: os apartidários seriam parte de um mega-golpe militar ou mesmo "fascista" (e depois reclamam quando a direita usa "comunista" levianamente...). Os militantes de sempre estão "muito preocupados". O fato de muitos quererem passeatas sem partido virou, nesses editoriais, o desejo de abolir todos os partidos e de impor a opressão mais violenta em cima das classes pobres. Já tem até campanha da Avaaz contra o golpe iminente da elite burguesa contra Dilma. Menas, please! Essa narrativa dos apartidários como fascistas é, como todas as narrativas conspiratórias e que veem grandes sentidos unívocos a movimentações coletivas, mais um desejo do que uma avaliação dos fatos. 

O que as manifestações apartidárias revelam é o que todos já sabíamos: o grosso da população brasileira não é de esquerda; é conservadora. E está P da vida. Não tem ideias muito claras sobre como a sociedade deveria se organizar, mas (ou por isso) não quer que chegue alguém tirando o que batalharam para conseguir em prol de alguma causa social. Sim, têm lá sua "mente pequena", não pensam muito nos pobres deste mundo (embora façam diversos atos de caridade pessoal) e não se interessam por política: querem viver, trabalhar, cuidar de sua família e ter seus amigos sem ser atrapalhados e sem atrapalhar ninguém. Preferem o local ao universal, o conhecido ao desconhecido, as mudanças graduais de vida (por meio do trabalho) aos grandes saltos de revolução social. Sentem raiva de um governo que vem dificultando a vida de todos os remediados, seja com impostos, restrições abusivas ou inflação. Sem entender direito as causas, encontram na corrupção e na incompetência explicações fáceis, e em figuras como Joaquim Barbosa - o carrasco dos mensaleiros, embora plenamente de esquerda - seu representante natural.

Esse conservadorismo é mau? Não. É humano; imperfeito, talvez, mas uma base natural e boa para diversas virtudes. Vai dizer que os personagens da Grande Família são fascistas sanguinários que querem oprimir os pobres? E é, inevitavelmente, a mentalidade da maioria da população em todos os lugares e todos os tempos. 

Ao contrário dos manifestantes de esquerda, os apartidários estão protestando por si mesmos, e não em nome de uma suposta classe explorada. O povão pobre, diga-se, está ausente desses protestos da classe média. E a verdade é que a maioria do povão aspira a se tornar um membro da classe média conservadora, apesar de todo o trabalho de intelectuais de esquerda junto às "comunidades". Alçá-lo às condições de vida da pequena burguesia (carro, casa, eletrodomésticos, cinema, viagem) é, por isso, o objetivo do governo federal. Para quem ingressa nela agora, a vida está melhorando, e não sentem os novos custos; para quem   a incorporava há mais tempo, está ficando mais difícil.

A oposição, então, não se dá entre duas classes sociais: reacionários de classe média e povo pobre de esquerda. Dá-se entre duas facções das classes médias (e altas): direita e esquerda; conservadores e progressistas ou socialistas. A condição normal dessa população é o conservadorismo apático e reacionário (que reage, negativamente, a mudanças políticas vindas de fora). Quem quer ir além disso, quem tem desejos de fazer do mundo um lugar melhor (ao contrário dos intelectuais conservadores, considero isso algo positivo), quem pensa no universal e nos grandes problemas sociais, quase sempre desemboca na esquerda estatizante (ou em raros casos - talvez ainda piores - na direita estatizante); essa é a segunda classe do confronto.

Em quase todas as dinâmicas sociais, a tendência das pessoas é identificar-se a um grupo. E essa identificação se dá principalmente pela oposição a outro grupo. Na polarização política atual, vejo um caso desse fenômeno: antipetistas de um lado, antirreaças de outro. O foco é sempre no adversário, e o aprofundamento no que os diferencia se dá por essa via negativa, do querer se diferenciar. Um lado não quer ser o comuna-hippie-sujo, ou o mensaleiro corrupto; e o outro não quer ser "coxinha", termo que melhor capta tudo o que nossa esquerda cultural abomina; e que se refere antes a um jeito de ser do que a um ideário político-econômico. Nenhum dos dois lados pensa em aplicar um golpe seu, mas ambos morrem de medo do golpe do outro.

A dinâmica do Estado cria conflitos e intensifica essa tendência: se quero beneficiar um grupo via Estado, outro terá de ser prejudicado na mesma medida. É um cabo de guerra eterno, e oposto à dinâmica do mercado, em que a vitória de um grupo advém da derrota de outro. No mercado, superar a tendência natural a se agrupar e demonizar o diferente traz enormes benefícios: poder contar com uma rede de cooperação muito maior. Quanto mais troca, menos ignorância e demonização; isso vale tanto numa consideração econômica quanto intelectual. A lógica do mercado é a do ganha-ganha: é só ajudando que se é ajudado, criando valor que se obtém valor.

Isso é uma proposta para que todos pensem apenas em obter valor dos outros? De forma alguma. É o reconhecimento da única forma de organização social que não cria uma contradição interna entre indivíduos ou classes, e que harmoniza interesses individuais e coletivos, engendrando, ademais, um processo educativo que dá às pessoas o gosto de servir aos demais. A relação entre comerciante e cliente é o exato oposto da entre indivíduo e cobrador de impostos.

Por enquanto vivemos entre medos infundados de "revoluções comunistas" e "golpes fascistas", numa cultura com cada vez menos discussão imparcial e mais acusações pessoais de parte a parte. Dilma conseguiu, mediante um discurso perfeitamente convencional e esperado (e em que ela acenou explicitamente às causas da "direita apartidária"), acalmar os ânimos mais radicais, mas os protestos não devem cessar. Só espero não ouvir mais sobre supostas ameaças de golpe, que mais não fazem do que aumentar a chance... de um golpe!

Esquerdistas têm a vantagem dos grandes projetos e aspirações. Conservadores têm suas intuições no lugar certo: o Brasil que se desenha é cada vez menos um lugar propício ao progresso na qualidade de vida. Só os libertários, contudo, têm a solução, e não se confundem com nenhum desses grupos.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Vinte centavos de cu é rola!


Eu ando de ônibus. Se tivesse de ir trabalhar de ônibus todos os dias da semana, gastaria, contando idas e vindas, R$ 33 (a R$ 3,30 a passagem de Jacareí a São José dos Campos, via Satélite); seriam R$ 132 por mês (mais caro, portanto, que a mensalidade de meu plano de saúde); cerca de R$ 1580 anuais. E não são apenas os trabalhadores que arcam com os custos da passagem; muitas empresas dividem tal despesa com seus funcionários por meio do vale-transporte. Então não é por causa do último reajuste: a conta vem pesando no bolso faz tempo. Lembro-me do tempo em que andar de ônibus era tão barato quanto tomar um refri de 290 ml na padoca. Eu lembro. Sempre andei de ônibus. Pior do que o custo salgado do serviço, porém, são as péssimas condições nas quais ele é oferecido. Quando pego o ônibus de manhã para o trabalho sei que, invariavelmente, ficará lotado. Não falha uma única vez.

A revolta é justa e o buraco é mais embaixo. Por trás da tarifa abusiva do transporte público está um problema mais amplo, que é a relação perniciosa que as empresas prestadoras de serviço mantêm com os governos de todas as esferas — federal, estaduais e municipais —, principalmente naquelas áreas em que está garantido o monopólio sobre o mercado.

Em minha cidade, Jacareí, existe a lenda de que a empresa de ônibus que atua no município presenteia os vereadores com automóveis para que eles legislem a favor dos interesses dela. Não sei se é verdade, mas todos sabemos como funciona esse jogo sujo: as empresas investem pesado nas campanhas dos candidatos, a maior parte na forma de dinheiro não contabilizado (o chamado “caixa 2”). Depois o sujeito é eleito e está com o rabo preso. Eis que vêm os aumentos abusivos (quando considerados a médio e a longo prazo), os cortes de gasto e a depreciação progressiva da qualidade dos serviços prestados. Com exceção do povo, todos saem ganhando, uma vez que parte desse dinheiro a mais que as empresas levam sobre o usuário acaba nos cofres da campanha dos políticos, quando não em seus bolsos. Estou falando de propina, é claro.

Tanto faz quem esteja no poder: sai PSDB, entra PT, o esquema já está armado; o sistema, funcionando. É prática corrente no país inteiro e envolve o transporte público, a merenda escolar, a coleta de lixo, a publicidade oficial etc. E as empreiteiras. Ah, as empreiteiras... Se abrissem essa caixa-preta, seria um deus-nos-acuda generalizado. Como cantava o saudoso Bezerra da Silva: se gritar pega ladrão...

Lembram-se do assassinato de Celso Daniel, prefeito de Santo André? Há a suspeita de que seja um crime político, ligado a um esquema de cobrança de propina das empresas que prestam serviço à prefeitura, com o objetivo de abastecer de recursos o Partido dos Trabalhadores local. Até hoje a investigação encontra entraves para avançar. E o que foi o mensalão, se não o repasse sistemático de dinheiro realizado por uma empresa que tinha interesses nas contas de publicidade do governo federal? Infelizmente, tal modus operandi não é uma exclusividade do PT, como o mensalão tucano em Minas Gerais demonstra.

Há um nexo estrutural ligando tais escândalos e o aumento da passagem de ônibus. O conluio de governos com as empresas que lhes prestam serviços tem extorquido os contribuintes e lesado os cidadãos. Como resultado, assistimos atônitos à baixíssima qualidade dos serviços que, teoricamente, seriam assegurados a nós por direito e à total ausência de vontade política para mudar a situação. A máquina burocrática tornou-se um universo à parte, funcionando autonomamente no sentido de se retroalimentar e perpetuar projetos de poder.

O que está acontecendo agora é que os cidadãos, ao pressentirem que as ações políticas nunca vêm ao encontro de seus interesses, que elas nunca se encaminham em direção ao bem comum, começam a emitir claros sinais de insatisfação, o que foi canalizado pela demanda específica contra o aumento nas passagens de ônibus. Mas o descontentamento é geral, embora difuso, e vem de longe. Como o problema é sistêmico, não se trata de um movimento contra a prefeitura (que é responsável por gerir o transporte público), nem contra o governo do estado (que comanda a polícia) ou contra a União. É uma revolta contra a totalidade de nosso sistema político, por isso as autoridades estão todas desbaratinadas diante da movimentação popular, impossibilitadas de decifrá-la. Enquanto conseguiram manter o povo fora do centro da ribalta — o povo atuando apenas como coadjuvante, como massa de manobra —, elas se acostumaram a enxergar o jogo político como uma disputa partidária, uma luta entre projetos de poder concorrentes. Os últimos acontecimentos, no entanto, conseguiram acuar situação e oposição no corner.

Engana-se quem imagina que a gritaria atual não tem nada a ver com a qualidade geral do serviço público, com os recentes escândalos de corrupção, com o fato de a população ter de arcar com a maior campanha publicitária da história deste país (a Copa do mundo e as Olimpíadas). Todos esses fatores estão emaranhados; os vinte centavos são apenas a ponta do novelo.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Tudo é por mais do que vinte centavos: a luta da classe média

por Diego Ivo

É muito curiosa essa onda de pessoas, até então caladas e à mercê de qualquer discussão política, que de uma hora para a outra tornou-se manifestante e abraçou a causa dos "vinte centavos". Vinte centavos não são nada nem para o mais pobre dos mendigos, que não raro devolveria tão avara esmola se a oferecêssemos. Quem diria para essa classe média que em sua metamorfose dormiu alienada e acordou militante.

Deste modo, os "vinte centavos" parecem ser, justamente por coisa ínfima, o gatilho que faz as pessoas abrirem as suas revoltas inconscientes e abraçar um movimento mais ou menos organizado que, como de praxe, não pode ser coisa racional posto que não tem objeto definido. Ele não é propriamente contra uma coisa, nem a favor de outra, é sempre contra o "estado de coisas". Ou seja, sabe-se lá por que estão protestando e aderindo ao movimento. Trata-se de um objeto que não pode ser combatido ou refutado, uma vez que ele só existe precisamente na subjetividade de cada um dos presentes, nunca nas reclamações dos manifestantes vistas em unidade.

Convém observar que o problema não está em reclamar de algo tão ínfimo quando muitos desses manifestantes possuem bens materiais incompatíveis com a bendita reclamação, como fez sugerir alguns comentaristas. Não há objeção a um manifestante possuir tênis de marca e seu celular ser de última geração, apenas é em alguns casos contraditório. Porém, é sempre de suspeitar uma turba que da noite para o dia se transforma; pois bem, como em qualquer transformação há uma causa, causa essa que eu mais ou menos ignoro no caso presente, mas que sei que não cheira muito bem: o meu espírito aristocrático suspeita que quando há muita mosca em torno de algo, esse algo deve ser muito fétido.

Como sabemos, não haveria tamanha comoção se a causa fosse um problema político específico, como a moralidade, a legalização das drogas, o aborto ou qualquer objeto definido. "Não são os vinte centavos, são todas as outras coisas. Você não entendeu ainda pelo que estamos protestando?", convocou um deles no Facebook, sem também nada explicar. Cada um parecia estar ali protestando ou apoiando o movimento de uma forma subjetiva, inconsciente eu diria. Porém, precisamos atentar ao fato de que não é uma coisa normal: uma onda de manifestações explodiu e parece que ninguém sabe de onde ela veio, apenas se está dizendo que o povo acordou. Mas o que eu vejo é justamente o contrário: que o povo talvez não tenha acordado e esteja dormindo mais profundamente do que nunca. Resta saber qual o objetivo por trás de tamanho movimento, afinal tem alguém pagando a conta e ela não é baixa.

Espanta, de certa forma,  ser a classe média a grande propagadora deste movimento, através das redes sociais com imagens modernas e descoladas e estampando uma bandeira branca do alto de seus edifícios, em solidariedade aos companheiros que estão na rua pondo suas vidas em risco. Justamente essa bendita classe média que há pouco tempo era alvejada pelos ditos intelectuais e formadores de opinião brasileiros, por sua violência e truculência; uma dessas intelectuais, chegando a bradar que odiava toda essa gente bem vestida e bem burguesa: "odeio a classe média", disse ela. E, sabe-se lá por que diabos, é a tal da classe média que, da noite para o dia, resolveu sair às ruas e viver seu momento maio de 68, com um poder de fazer a cidade parar de dar inveja ao PCC. Terá alguma coisa a ver o movimento atual e as recentes críticas à classe média? Sei lá, mas fica aí uma pulga atrás da orelha e quem sabe na próxima greve não apoiarão, em coro, os estudantes da USP.

E para que estas breves linhas não recaiam no mesmo erro dos reclamantes, isto é, de não ter algo mais objetivo de que esteja falando, aqui vai uma leve suspeita que eu tenho. O gatilho para o inconsciente que se tornaram os "vinte centavos" fez despertar uma série de reclamações mais ou menos justas que as pessoas tinham: basicamente, melhores condições de transporte público, emprego, segurança, etc, etc. Reclamações todas elas mais do que justificáveis, repito. Entretanto, ao que tudo indica 99% das pessoas estavam convocando o Estado brasileiro a resolver todos esses problemas, como responsabilidade transferida, reconhecendo-se portanto incapazes no fundo de qualquer ação objetiva que produzisse um bem qualquer. A que esse movimento abre espaço? A um Estado cada vez mais e mais forte, um Estado que não permita o mínimo vácuo onde possa haver defeitos e falhas, em suma um Estado totalitário, pois todos ali pareciam brigar contra o nosso Estado que já está demasiado pequeno para todas as suas necessidades sonhadas.
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