sábado, 23 de junho de 2012

Dilemas para testar nossas intuições morais

Vou propor dois cenários básicos, cada um deles composto de três dilemas, e gostaria de discutir as implicações deles. Em todos os seis dilemas, o resultado final de se fazer a escolha em jogo é que uma pessoa morre e cinco pessoas vivem. Creio, contudo, que haja diferenças morais relevantes entre eles.


CENÁRIO 1:

Dilema 1: Você está na plataforma de uma estação ferroviária à espera de um trem. O trem se aproxima e você nota que ele está desgovernado. Cinco meninos brincam no trilho do trem e estão na rota de colisão (se o trem estivesse funcionando bem, eles não estariam, pois brincam depois do local de parada do trem); se o trem atropelá-los, a morte é certa. Num trilho paralelo, há um menino brincando sozinho, o Jalmir. Na plataforma, ao seu lado, há uma alavanca que permite desviar o percurso do trem do trilho atual, onde os cinco brincam, para o trilho paralelo, onde ele atropelará (e matará) apenas o Jalmir. É certo puxar essa alavanca? É moralmente obrigatório fazê-lo?

Dilema 2: A situação é exatamente a mesma. Ocorre que dessa vez não há alavanca para mudar o curso do trem. MAS, você, como exímio conhecedor de física de trens, sabe que se um objeto denso e grande o bastante for jogado na frente do trem, o trem diminuirá sua velocidade o bastante para os cinco meninos se salvarem. Ao seu lado, na plataforma, está Jalmir, um homem muito gordo, que preenche perfeitamente os requisitos desse objeto. Se você empurrar Jalmir nos trilhos, ele será atropelado e morrerá, mas os cinco meninos se salvarão. É certo fazê-lo? É moralmente obrigatório fazê-lo?

Dilema 3: Exatamente como o dilema 2, mas neste dilema o homem gordo é você mesmo, e não há nenhum Jalmir por perto. E você então considera: "Se eu pular nos trilhos, serei atropelado e morrerei, mas salvarei os cinco meninos". É certo fazê-lo? É moralmente obrigatório fazê-lo?


CENÁRIO 2:

Dilema 4: Você é um médico num grande hospital. Cinco pacientes estão na fila de espera para doação de órgãos, precisando de um órgão cada um, e morrerão hoje caso não consigam um doador. Se conseguirem os órgãos, viverão vidas perfeitamente saudáveis.. Um outro paciente, Jalmir, também em estado de urgência, necessita de cinco órgãos, e será perfeitamente saudável se consegui-los. Um novo paciente morre, deixando cinco órgãos saudáveis para serem doados. Originalmente, a enfermeira que cuidou do caso alocou os cinco órgãos desse paciente para o Jalmir. Você olha o prontuário e considera que, se tirar o Jalmir da lista e levar os órgãos para os outros cinco, poderá salvá-los. É certo fazê-lo? É moralmente obrigatório?

Dilema 5: Mesmo cenário acima. Você é médico e os cinco pacientes precisam desesperadamente de órgãos. Jalmir, contudo, é um homem saudável que entrou no hospital só para usar o banheiro. Ele tem os órgãos de que os cinco precisam. Você, como médico, considera que, se der uma injeção de calmante no Jalmir e levá-lo para uma sala de operação, poderá extrair os órgãos dele e salvar os cinco pacientes. Jalmir, evidentemente, morrerá. É certo fazê-lo? É moralmente obrigatório?

Dilema 6: O cenário se repete. Dessa vez, contudo, não há nenhum Jalmir saudável por perto. Você se olha no espelho e constata que está em perfeito estado de saúde e tem os órgãos em perfeitas condições. Se você chamar um colega de profissão, ele poderá extrair seus órgãos e salvar os cinco doentes. Você, evidentemente, morrerá. É certo fazê-lo? É moralmente obrigatório?

***

(É, esse é o tipo de post que só funciona se vocês participarem. Convoco todos os membros do blog, e convido os leitores, a darem suas respostas.)

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Aborto moralmente lícito? - uma qualificação

Alguns meses atrás argumentei que o aborto é errado mesmo no caso do anencéfalo, por consistir numa destruição direta e voluntária de uma vida humana inocente. Levantei, contudo, um caso em que é lícito abortar: quando o feto apresenta risco real de vida para a mãe, caso em que o aborto seria moralmente equivalente à legítima defesa. (O fato do agressor, neste caso, ser inocente, não é relevante; afinal, é moralmente lícito enfrentar um agressor com força letal mesmo que ele seja portador de deficiência mental séria, ou mesmo que ele aja sob efeito do sonambulismo, casos em que sua ação seria, do ponto de vista moral, perfeitamente inocente).

Com efeito, não creio que ninguém negue que, num caso extremo como uma gravidez ectópica (em que o feto se desenvolve fora útero, e cujo resultado é a morte tanto da mãe quanto do próprio feto), seja lícito retirar o feto, mesmo sabendo que ele morrerá. No meu texto original, contudo, eu fui além disso e disse que seria lícito mesmo matar o feto. Um conhecido apontou que isso, a destruição voluntária do feto, também seria errada, pela doutrina católica atual. Fui pesquisar e vi que, de fato, no caso da gravidez ectópica, considera-se lícito retirar o feto, sabendo que ele morrerá, mas não destruí-lo.

Inicialmente achei um preciosismo desnecessário, mas depois me convenci que, de fato, a posição está correta (aproveitei a alterei o texto inicial). Pensemos em exemplos análogos.

Um navio naufraga e um grupo de pessoas consegue subir num bote salva-vidas, que chega à sua lotação máxima, já dando claros sinais de que, se mais gente subir, ele pode afundar. Você, único membro da tripulação do navio em meio aqueles passageiros, é a autoridade natural naquele barquinho. Ocorre que você vê, a 5 metros de distância, um sobrevivente do naufrágio nadando até o bote. É muito provável que o bote vire/afunde se o homem conseguir subir, matando a todos. Não parece, contudo, que ele possa ser dissuadido por esse argumento razoável; para ele, subir no bote é ter uma chance de sobreviver, enquanto ficar na água é a certeza da morte. O que fazer?

Uma alternativa que, ao que julgo, ninguém consideraria imoral, é impedir fisicamente que o homem suba no bote: empurrando-o com um remo, por exemplo, ou remando o bote para longe dele.

Será diferente, no entanto, se, ao ver o sujeito, você sacar uma arma e der-lhe um tiro. Se ele se mostrasse resoluto a subir no bote e a única maneira realista de impedi-lo fosse dando o tiro, daí sim seria moralmente lícito; mas até que se saiba disso deve-se tentar mantê-lo longe sem matá-lo o máximo que for razoavelmente possível. Afinal, não queremos matá-lo, mas apenas defender os que estão no bote. Se isso se revelar realisticamente impossível, daí sim muda-se de estratégia. E mesmo nesse caso a intenção não é matá-lo, mas apenas salvar as vidas que a presença dele coloca em risco, agora com força letal; a tomada da estratégia inicial - não-letal - prova que essa é nossa intenção.

** O uso dos advérbios e adjetivos - "realista", "razoavelmente", etc. - se faz necessário porque no plano da ação humana nunca chegamos a circunstâncias claras e absolutas. Nunca se tem a "certeza" de que nenhuma outra forma de dissuasão é possível; "talvez se todos os presentes no bote começarem a gritar e se debater ele ache que estamos possuídos pelo demônio e desista de subir" - em circunstâncias reais, não dá para testar todas as possibilidades, portanto o juízo sempre conterá um tanto de julgamento pessoal e falível; o mais importante não é que esteja absolutamente certo, mas que seja razoável. 

Isso impede que se estabeleça uma medida universal do "quanto" se deve tentar impedir o cara sem matá-lo, mas ao menos mantém a relação qualitativa entre os dois tipos de ação: primeiro tenta-se aquilo que o impede de subir sem matar, e apenas depois de algum esforço infrutífero nesse sentido procede-se a ações que, com grande dose de certeza, matá-lo-ão.



Assim, é claro que, em certas circunstâncias, não há tempo ou recursos que sejam, na perspectiva da razoabilidade, suficientes para que se tente primeiro uma abordagem não-letal e depois, se ela falhar, proceda-se à letal. Se alguém com cara de maníaco, segurando um machado, corre na sua direção no meio da noite, atire primeiro e pergunte depois. **

"Mas o feto vai morrer de qualquer jeito! O sujeito do bote salva-vidas ao menos teria alguma chance de viver mesmo fora do bote, por isso devemos evitar matá-lo". Pense então num outro caso: um homem cai de um arranha-céu rumo à morte certa no chão de concreto; sua morte é inevitável. Dado esse caso, seria um ato moralmente indiferente dar-lhe um tiro de rifle no meio de sua queda? A pessoa que fizesse isso não seria uma assassina? Matar é diferente de deixar morrer.

Claro que minha afirmação vai um passo além: estou dizendo que matar (causar diretamente o dano letal) é moralmente diferente de agir de uma forma tal que o indivíduo morra por causas terceiras alheias à minha vontade. Estou argumentando que, se o homem estiver caindo do prédio e embaixo dele houver um transeunte, é melhor empurrar o transeunte para fora da rota de colisão do que desintegrar o homem em queda com um tiro de bazuca. Desligar as máquinas de um paciente em life support é diferente de dar-lhe uma facada no peito. Matar é moralmente diferente de deixar morrer. Ou seriam ações equivalentes?

Em contextos não dramáticos, as ações são equivalentes; isto é, equivalentemente más. Se voluntariamente impeço um amigo de entrar na minha casa durante uma nevasca mortal, trancando a porta, sou tão assassino (ou quase tão assassino) quanto se tivesse lhe dado um tiro no peito; um desprezo tal pela vida alheia é equivalente ao desprezo que nos levaria a tirá-la. Mas em condições dramáticas, cujas circunstâncias são tais que os atos (em si perfeitamente defensáveis) de um indivíduo sejam a causa de dano grave para os demais, é lícito se defender dele. O objetivo é apenas se defender do dano, mesmo sabendo que, em consequência de nossa ação, ele estará sujeito a causas terceiras que o matarão (e se fosse razoavelmente possível barrar essas causas, salvando a vida do sujeito, é o que faríamos). Finalmente, nos casos em que isso é impossível, temos que mesmo se a consequência direta de nossa defesa for a morte do agressor, o ato é lícito; é o caso da legítima defesa normal. Em uma gravidez em que o feto comprometa a vida da mãe e, por algum motivo médico, seja impossível retirá-lo sem antes matá-lo, o aborto direto seria lícito.

Quem negar isso - e será produtivo se alguém negar, para promover alguma discussão - terá que apontar porque o feto merece mais consideração do que um agressor adulto (que pode ser tão moralmente inocente quanto um feto - louco, deficiente mental, sonâmbulo, etc.), de quem é perfeitamente lícito se defender com força letal se necessário.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Tomás de Aquino: ninguém nunca quer o mal, Agostinho viajou na batatinha


**TRECHO DA MINHA (ASSIM ESPERO) DISSERTAÇÃO DE MESTRADO**

3.4.3.3 Problema: o mal enquanto tal
Do que foi exposto até aqui, fica claro que o mal nunca é uma finalidade direta da ação humana. O argumento, sinteticamente, é esse: nossas inclinações racionais primeiras visam a um bem. Toda ação humana tem um fim dado por alguma inclinação racional primeira. Portanto, toda ação humana visa a um bem. Logo, nenhuma visa ao mal enquanto tal.
Tomás é bastante consistente nesse ponto, repetindo-o ao longo de toda sua obra. “A vontade é o apetite racional. Todo apetite é apenas de algo bom” [1]. Considerando apenas o primeiro princípio prático, já havia-se concluído que todo agente busca o bem considerado formalmente; agora conclui-se que, para além da consideração puramente formal do bem (cuja busca seria compatível com perseguir algo mal em si mesmo, sob a ilusão de que tal coisa má era boa), há sempre um bem concreto que atrai o agente. Ou seja, mesmo no pior dos pecados haverá algum bem que o agente procura, e esse bem é de fato bom para o agente e digno de busca pelo ser humano, embora esteja sendo buscado numa ocasião, ou de maneira, inadequadas.
O mal em si não movimenta a vontade. Ele só pode ocorrer, portanto, “à parte da vontade do agente”, seja de maneira totalmente involuntária (como quando o agente pensa beber mel mas bebe veneno de gato) ou como um efeito colateral previsível mas que não foi o suficiente para desviar o agente do bem que ele buscava com aquela ação específica [2]. Mesmo um ato plenamente autodestrutivo como o suicídio é feito por motivos bons, inteligíveis a qualquer animal racional; Tomás cita a perspectiva de uma vida infeliz, a vergonha do pecado, o medo do estupro e mesmo o medo de que, se não morrer, consentir-se-á a algum pecado (perdendo portanto a vida eterna) [3]. Nenhum desses, é preciso deixar claro, justifica o suicídio aos olhos de Tomás. Eles apenas mostram como mesmo uma ação destrutiva da felicidade do indivíduo é feita em vista de algum princípio prático; e, portanto, em vista de algum componente da mesma felicidade que se destrói no ato. Mesmo nesse caso, o mal não é desejado enquanto tal.

3.4.3.3.1 As peras de Agostinho
Essa posição contrapõe-se a uma forte tradição de pensamento filosófico cristão que chegara até Tomás e com a qual ele frequentemente dialoga: o pensamento de Agostinho, segundo o qual a liberdade da vontade e a corrupção da natureza humana são tais que o homem é capaz de, e de fato busca se não for ajudado pela graça divina, o mal enquanto tal. Embora fuja ao escopo deste trabalho comparar a fundo as diferenças entre o pensamento de Tomás e o de Agostinho (e ainda menos entre este e a tradição agostiniana com a qual Tomás tinha contato), é instrutivo apontar um caso peculiar que sublinha exemplarmente essa diferença.
Na obra de Agostinho, entre as muitas passagens que se dedicam a expor e explorar a maldade do pecado e da condição humana, uma se sobressai na história do pensamento como singularmente eloquente: o relato de um aparente pequeno delito da juventude, o furto de algumas peras junto a amigos, que na verdade ocultou a mais profunda maldade na alma de Agostinho. Suas palavras não poderiam ser mais claras quanto ao que ele desejara:

“Carregamos uma grande quantidade de peras, não para comer, mas para jogá-las aos porcos mal as tendo provado. Isso nos aprouve ainda mais porque era proibido. Assim era meu coração, ó Deus, assim era meu coração – do qual vós vos apiedaste mesmo naquele poço sem fundo. Observe, deixe meu coração confessar a vós o que ele procurava, naquela prodigalidade gratuita, sem nada que me induzisse ao mal que não o próprio mal. Era torpe, e eu o amei. Amei perecer, amei minha própria falta; não aquilo pelo que eu a cometia, mas a falta em si.” [4]

Tomás não tem nenhum comentário às Confissões e, embora citações e referências a Agostinho sejam quase onipresentes em sua obra, raramente se detém sobre ele como seu objeto de estudo. Tampouco há alguma questão ou algum artigo de sua obra que se refira diretamente a essa passagem. Contudo, no De Malo, Tomás se refere a essa passagem. E, condizente com o que foi apresentado sobre seu pensamento até aqui, vê-se forçado a contradizer o texto de Agostinho. Cito a ocorrência integralmente, que se dá em dois momentos no artigo 13 da questão 3, em que se pergunta se é possível a um homem pecar por malícia deliberada.
O primeiro momento em que a passagem de Agostinho ocorre é em um argumento da seção dos argumentos em contrário, que, embora concorde com a posição que Tomás defenderá (a de que é possível pecar por malícia), discorda na hora de definir o que é a malícia.

“Segunda objeção em contrário: Agostinho diz em suas Confissões que quando ele estava roubando frutas, ele amou sua delinquência, isto é, o próprio roubo, e não a fruta em si. Mas amar o próprio mal é pecar por malícia. Portanto, uma pessoa pode pecar por malícia.”

O segundo momento se dá ao fim do artigo, quando Tomás responde a esse argumento, um expediente incomum (o normal é que ele só responda aos argumentos que discordam de sua tese) embora não único:

“Embora os argumentos apresentados na seção cheguem a conclusões verdadeiras, devemos notar, com respeito ao segundo argumento, que quando Agostinho diz que amava sua própria delinquência, e não o fruto que ele roubava, não devemos entender essa afirmação como se a própria delinquência ou a deformidade da falta moral pudessem ser primária e intrinsecamente desejadas. Na verdade, seu desejo primário e intrínseco era ou exibir um comportamento típico a seus pares ou experimentar algo ou fazer algo proibido ou alguma coisa do tipo.” [5]

É uma pena que Tomás não tenha se dedicado mais longamente à passagem das Confissões, pois seus exemplos dos possíveis bens buscados por Agostinho fogem um pouco à listagem normal. Tendo que adequá-los à lista apresentada anteriormente, classificaria os possíveis motivos aventados por Tomás da seguinte maneira: o desejo de impressionar seus pares provavelmente se encaixaria no princípio da amizade ou sociabilidade; o “experimentar algo” (“experientiam habere alicuius”) se encaixa, possivelmente, no princípio prático do conhecimento; a grande incógnita é o “fazer algo proibido”; Tomás pareceria indicar que há um bem intrínseco em se agir de forma autônoma, em afirmar a própria individualidade ou poder. Que o homem seja mais livre que o resto da criação material, e que essa sua autonomia seja um bem metafísico, é afirmado em diversos momentos. Mas a concretização dessa autonomia livre é justamente agir segundo o ordenamento da razão, ou seja, segundo leis, coisa de que as feras são incapazes. Aqui, o bem da autonomia vem justamente de se violar um preceito racional (não roubar, constante do Decálogo), e permanece, portanto, enigmática.
Seja como for, está bem claro que, segundo Tomás, o mal não pode ser desejado enquanto tal; isso vai contra a própria definição do que é o mal humano (aquilo que repele o homem e que, conforme o primeiro princípio, ele busca evitar). Mesmo nos atos mais baixos, há um bem que guia a vontade do agente; ocorre que, naquela instância, a busca daquele bem ignora ou até impede a busca dos demais bens que compõem a felicidade, tornando-se portanto má. O pecado é trocar o bem permanente por um bem transiente. E o pecado por malícia ocorre quando essa troca não advém de uma ignorância ou de uma paixão incontrolável, mas de um “hábito [que] às vezes inclina a vontade, quando o comportamento costumeiro transformou, por assim dizer, a inclinação a tal bem em um hábito ou disposição natural pelo bem transiente, e então a vontade, por seu próprio movimento e independentemente de qualquer emoção, se inclina por si mesma ao bem em questão” [6]. A malícia é antes uma absolutização de um bem parcial do que a busca intrínseca pelo mal; ocorre quando, num ato deliberado da razão, o agente, “para se deleitar no bem desejado [a pessoa] não evita incorrer no mal” [7].


[1] ST I-II, q. 8, a. 1.
[2] SCG III-I, 4.
[3] ST II-II, q. 64, a. 5, ad 3.
[4] Agostinho. Confissões, III, 4.
[5] De Malo, q. 3, a. 13, rsed 1-2.
[6] De Malo, q. 3, a. 13.
[7] Ibid., ad 1.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Um Certo Distanciamento Crítico


Eles são especialistas daqueles tão especializados que passam a ver seu objeto de estudo com o que chamam de distanciamento crítico — e apenas assim. É verdade que distanciadamente é único modo como algumas pessoas conseguem se aproximar (paradoxo significativo) das coisas, e contudo eu tenho uma dificuldade enorme para entender isso. Como pode? Como, um ateu estudioso de Santo Agostinho? Como, um comunista dostoievskiano? Eu me pergunto: como, e a resposta é sempre a mesma: com distanciamento crítico.

Nossas universidades estão cheias disso. O que me faz lembrar de mim mesma aos dezesseis para dezessete anos, estudando para ingressar no curso de Letras porque lá eu encontraria pessoas que gostassem de literatura. Para mim a relação era simples e direta: todas as pessoas que lêem poesia são sensíveis e interessantes. Sim, eu fui uma adolescente ingênua e uma leitora sem muitos comparsas. Depositei todas as minhas esperanças, pois, no bendito curso de Letras, onde todos seriam como eu e sincera e devotadamente amariam a literatura!

Criança miserável, estavas errada. Quem eram aquelas pessoas? O que faziam com livros de poesia entre as mãos? Não eram muito diferentes dos broncos ignorantes do meu colégio. Liam literatura, mas com distanciamento crítico. “Todos os problemas de Drummond já estão resolvidos em Baudelaire”, diz o cínico aspirante a crítico literário, nenhum sinal de tremor nas mãos, nenhum tique nervoso de pálpebra que denunciasse um mínimo princípio de incerteza.

Para esses seres (costuma ser complicado chamá-los de indivíduos), filosofia e literatura são “coisas” paralelas à realidade, que pairam sobre o mundo propriamente dito. Afinal de contas, ler as Confissões de Santo Agostinho, e estudá-las teoricamente, não precisa levar ninguém a fazer um exame de consciência em si mesmo (exemplo roubado de uma das inspiradas falas de minha BFF, Day Teixeira), certo? Trata-se de um mundo em que o envolvimento do estudioso com seu objeto é coisa não só dispensável, mas até indesejada, pois a qualidade do trabalho será diretamente proporcional à quantidade de distanciamento crítico empregado pelo dito pesquisador ao lidar com seu objeto.

Não faz muito tempo ouvi da boca de um doutorando uspiano: “São Tomás de Aquino é bem legal, mas religião em si é um horror.” E eu me pergunto: como?! Dentro da psicologia de uma pessoa viva nesse mundo — como?! Porque em verdade eu ainda não me livrei daquela adolescente de dezesseis anos e, se preciso escrever um artigo sobre um romance para uma matéria da faculdade, busco um jeito de me envolver com ele, se não puder ser por empatia, que seja por discordância, por simples repulsa — mas é preciso haver alguma relação, um canal direto entre a minha subjetividade e o que quer que seja o bendito objeto. E que eu compreenda esse objeto pelo que ele é plenamente, sem qualquer recurso a essas lentes mágicas que os scholars usam para retalhar uma obra em pedacinhos não necessariamente comunicáveis entre si. Modo pelo qual conseguem, por exemplo, estudar Dostoiévski sem passar pelo cristianismo, pois “a obra não é do autor, é do mundo, já que desde Freud não se pode mais falar em intenção do autor.”

Todas as frases entre aspas neste texto são verídicas. Eu gostaria que não fossem, mas são, e essa última é de autoria de um Professor Doutor do Departamento de Letras Modernas da USP.
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