sábado, 25 de janeiro de 2014

Os Direitos do Rolezinho

Sociólogos ainda não chegaram a um consenso sobre o rolezinho. São jovens pobres querendo apenas brincar, fazer um barulho; como qualquer jovem. Ou então representam uma classe oprimida que tenta se fazer ouvir. No fundo, tanto faz. Reivindicação social é coisa legítima; lazer sem maiores pretensões também.
Mas olhemos o outro lado da questão: o shopping center. Ele tem o direito de existir? Em outras palavras: lojistas têm o direito de trabalhar, e frequentadores têm o direito de passear num espaço confortável, seguro e o qual sustentam voluntariamente? Não estou perguntando se shopping é uma coisa bonita, ou se seria a opção de um povo culto e educado. Estou perguntando se, dado que esse é o desejo de muitos, se eles podem exercê-lo. Em nossa sociedade, a resposta é sim.
Sendo assim, a administração do shopping tem o direito de impedir usos de seu espaço que inviabilizem seu funcionamento. A reunião programada de milhares de jovens ouvindo música alta, lotando todas as passagens e não comprando nada faz justamente isso. Portanto, o shopping tem o direito de impedir que ela ocorra (o que não lhe dá carta branca para usar violência).
Para alguns, os méritos da causa rolezeira devem ter prioridade sobre os desejos de administradores, lojistas e clientes. Mas esses mesmos observadores, se forem consistentes, perceberão que há muitas causas – quiçá legítimas – circulando por aí, e que não dá para conceder direitos a uma e não a todas.
Que tal um rolezinho vegano em churrascarias? Centenas de veganos se reúnem, lotam a casa e pedem apenas água a tarde inteira. O investimento feito pelo dono, o emprego de quem ali trabalha e os clientes a quem a casa visa a servir serão sacrificados porque um grupo desaprova aquela prática e resolveu se manifestar.
Um passo além: um grupo evangélico lota uma peça de teatro considerada imoral e vaia o tempo inteiro, impedindo a performance. Aposto que os mesmos sociólogos que veem com bons olhos o rolezinho funkeiro teriam opinião mais ambivalente quanto ao rolezinho evangélico; que não deixaria de ser, afinal, manifestação de uma classe baixa perante uma elite que a exclui. No fim das contas, valeria tudo; qualquer causa – real ou apenas imaginada por intelectuais – poderia se impor sobre a vida prática de qualquer um.
Simpatizo com o rolezinho, embora veja-o mais como lazer provocador do que como “luta de classes”. Acho também que uma dose de desconforto pode fazer bem à classe média e à elite, quem sabe enfraquecendo preconceitos. Podemos debater longamente os méritos dessa e de outras causas – a leitura marxista da sociedade, os direitos dos animais, o papel da religião na cultura. Tudo isso importa. Mas nada disso deve exigir o sacrifício do direito mais fundamental de decidir acerca da própria vida com os próprios recursos, que é o mecanismo básico de funcionamento da sociedade, anterior a discussões filosóficas. Eu adoraria ver um shopping acolher o rolezinho. Não posso, contudo, negar-lhe o direito de barrá-lo. 
Publicado originalmente no Diario do Comércio em 24/01/2014.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Dostoiévski entre a inspiração e a ideologia

O texto abaixo é adaptado de um trecho da minha dissertação. Porque é possível infundir vida mesmo nos corpos mais cadavéricos.
Quem não leu Os Irmãos Karamázov pode ler "O Grande Inquisidor" aqui. Sugiro que o faça não apenas para acompanhar este artigo, mas porque aí há mais conteúdo condensado do que em metade dessa estante cheia de livros que você não leu. Sem exagero. Fica a dica.

***

Ferrenho combatente de utopias reducionistas, Dostoiévski não deixou de idealizar a sua própria. Mesmo os críticos mais próximos de sua visão de mundo (Berdiáiev, Ellis Sandoz) não deixam de notar este seu ponto fraco: Dostoiévski identificou problemas e escancarou feridas, e o fez com precisão inacreditável, mas não obteve o mesmo êxito quando tentou propor soluções. Um exemplo sumário disto se dá em sua representação de duas personagens antagônicas: Ivan e Aliócha Karamázov. Não será exagero dizer que as falas de Ivan no famoso diálogo entre os dois irmãos, que ocupa o que são provavelmente os três principais capítulos de Os Irmãos Karamázov, fecundaram com suas dúvidas e sua angústia toda a história intelectual do século XX, na Rússia como no Ocidente. Porém, não é possível dizer o mesmo de Aliócha e seu stárietz Zossima, ainda que suas falas contenham as ideias “positivas” do próprio Dostoiévski[1].

Nas Notas de Inverno se dá algo semelhante: os pontos mais fortes do texto, onde o narrador é mais eloquente em suas tiradas ácidas, referem-se às críticas feitas tanto à Europa quanto à Rússia. Já os momentos em que é exposta a utopia pessoal de Dostoiévski deixam o leitor pouco convencido; por mais que a porção eslavófila do discurso do narrador desperte interesse, destoa do – por assim dizer – dinamismo do resto. Dostoiévski nos acostuma a sempre considerar um objeto por seus ângulos mais contrários, nos convence de que a verdade, não sendo mutável, é ainda assim bem mais complexa do que os esquemas conceituais e simbólicos que inventamos para expressá-la. E, ao fazê-lo, ele paradoxalmente se aproxima da verdade; mas, ao mesmo tempo, por uma imperfeição em sua consciência artística, julga necessário apresentar também um modelo em duas dimensões do que acabou de expressar com a eloquência fulminante de seu “realismo superior” – e aí prejudica a harmonia do conjunto.

Tanto a “Lenda do Grande Inquisidor” quanto os sermões do stárietz Zossima são inspirados pela mesma intuição da verdade, com a diferença de que Zossima é esta inspiração desfigurada pela ideologia naródnik de Dostoiévski. Como bem notou Nikolai Berdiáiev, “no Cristianismo russo há sempre o grave perigo da predominância do elemento popular (naródnik; narod = povo) sobre o Logos Universal, da alma sobre o espírito. Este perigo pode ser visto no próprio Dostoiévski: sua divindade é com frequência o deus russo e não o Deus universal.”[2]

Outra importante diferença é que a Lenda se insere no labirinto de contrários que é Os Irmãos Karamázov, e sua força advém justamente de conseguir sustentar-se diante de todas as tensões adversas que a provam por todos os lados. Já o Livro VI, “Um Monge Russo”, onde Aliócha compila os sermões de seu mestre, soa como um adendo artificial aos capítulos anteriores. Aí já não fala mais o Dostoiévski artista e sim o ideólogo; as intuições luminosas dão lugar ao wishful thinking.

O ponto a ser enfatizado é que talvez esse “anticlímax” representado, nos Karamázov, pelo Livro VI (e, em outras obras, por outras falas ou personagens) esteja na origem da universalmente experimentada dificuldade de se precisar o sentido da obra de Dostoiévski, ao ponto de haver quem tome tal dificuldade por impossibilidade. É como se Dostoiévski criasse seu próprio espantalho e desviasse, involuntariamente, a atenção do leitor a um pastiche (o Livro VI) da verdade que acabou de expressar em toda a sua vivacidade e complexidade (a Lenda). Então, o leitor desavisado, distante da cosmovisão de um Zossima e culturalmente predisposto a compartilhar da angústia de Ivan, entende, para seu comodismo, que a “lição de moral” do livro está naquelas falas adocicadas do velho monge, e que portanto o poema alucinado do jovem intelectual Karamázov só pode ocupar-se de outra coisa, só pode ter valor “negativo”, já que a “positividade” está expressa alhures. É de fato muito difícil entender que textos tão distintos – um tão próximo de nós, outro tão olimpicamente frígido – sejam tentativas de expressão da mesma verdade.

No fundo, o grande problema é aproximar-se de Dostoiévski buscando nele as categorias de “positivo” e “negativo”; se há, de fato, ideias com que Dostoiévski tem afinidade e outras a que é hostil, sua expressão literária da dinâmica entre essas ideias e os sujeitos e sociedades que as produziram é bem mais complexa. Pode-se, para fins didáticos, elencar Ivan Karamázov entre as “personagens negativas” de Dostoiévski: o tipo social e psicológico por ele representado era considerado pelo autor como um aspecto doentio da cultura russa. Porém, o que dizer da “Lenda do Grande Inquisidor”, produto da imaginação de Ivan e inserida no romance a partir de suas falas? Seria a Lenda também “negativa”? O próprio Dostoiévski considerava que não:

A ideia [do capítulo “Revolta”] é apresentar o extremo da blasfêmia e as sementes da ideia de destruição, na Rússia deste momento, entre a geração de jovens que se apartaram da realidade. As convicções de Ivan formam o que eu considero a síntese do anarquismo russo contemporâneo. A negação não de Deus, mas de Sua criação. Todo o socialismo emergiu da negação do sentido da atualidade histórica e chegou ao programa da destruição e do anarquismo. Os principais anarquistas eram, em muitos casos, homens sinceramente convictos. Meu herói escolhe um tema e, em minha opinião, um tema inexpugnável: a falta de sentido do sofrimento das crianças – e daí deduz a absurdidade de toda a atualidade histórica... E a blasfêmia do meu herói será triunfantemente refutada no próximo capítulo [“O Grande Inquisidor”], no qual estou trabalhando agora com temor e tremor, pois considero minha tarefa (a refutação do anarquismo) uma proeza cívica.[3] (Grifo meu)

Para Dostoiévski, estava muito clara a disposição de “negatividade” e “positividade” entre os capítulos “Revolta” e “O Grande Inquisidor”. Ainda assim, é um fato que a constituição artística da Lenda envolve ambas as noções, pondo-as em franco embate, e durante este embate ambas estão como em pé de igualdade: se o bem vence no final, é após uma batalha sangrenta, da qual o autor não exclui mesmo as armadilhas mais perigosas, ainda que sua simpatia esteja o tempo todo com o Cristo torturado. E não é por acaso que a Lenda é assim composta: se Dostoiévski poupasse sua “ideia positiva” (Cristo) de qualquer dos ataques da “negatividade” (a revolta de Ivan; o Grande Inquisidor), não demonstraria satisfatoriamente sua solidez. O pouco poder de convencimento do Livro VI advém justamente desse isolamento de forças contrárias.

Note-se ainda que isto é análogo ao próprio procedimento de Cristo junto aos homens, segundo exposto na Lenda. Deus permite a existência do mal enquanto condição de possibilidade da liberdade humana: é preciso que os homens sobrevivam ao vale de lágrimas terreno lutando apenas com a força do exemplo dado por Cristo, pois de outro modo serão títeres nas mãos do poder divino, não criaturas dotadas de vontade (livre arbítrio). Ou seja, como o Cristo dostoievskiano diante do Grande Inquisidor, o único modo de o homem demonstrar sua dignidade e grandeza é enfrentando o mal; Dostoiévski não poupa suas próprias crenças de descer à arena para digladiar-se com crenças contrárias do mesmo modo como Deus permite o mal entre os homens.

E o mais curioso é que em ambos os casos tal procedimento gera confusão. Com a “Lenda do Grande Inquisidor”, Dostoiévski de fato refuta a revolta de Ivan Karamázov – do ponto de vista intelectual e textual. Porém, é controverso afirmar o sucesso de tal refutação enquanto “proeza cívica”, isto é, o quanto a obra artística de Dostoiévski é culturalmente eficaz na defesa dos valores que se propõe sustentar. No fim das contas, os últimos cento e trinta anos têm mostrado que a grande maioria de seus leitores não consegue acompanhar o combate sutil entre Cristo e o Grande Inquisidor, saindo da Lenda incertos quanto a seu sentido, especialmente no contexto maior de Os Irmãos Karamázov, com o eslavofilismo de Zossima e silhueta vaga de Aliócha complicando o coro de vozes.

            De modo que não é necessário um grande esforço de imaginação para supor, digamos, um Mikhail Bakhtin trajado de inquisidor soviético, brandindo em uma cela escura o dedo inflamado diante de um Dostoiévski ressurgido das cinzas:

... Por que voltaste? Por que vieste nos atrapalhar? Tu compuseste um labirinto insondável, povoaste-o com vozes desconcertantes e foste embora antes mesmo de escrever a maldita continuação do livro. Ninguém sabia o que fazer com tua obra! Os revolucionários proibiram-na, os emigrados transformaram-na em expressão do puro espírito descarnado. Enquanto isso, apenas os fortes chegavam à metade do teu labirinto; e só raros, raríssimos, somente os eleitos do Dostoievskianismo desvendavam seu sentido final! Mas quantos Berdiáievs há sobre a terra? Tu escreveste para os poucos e fortes, mas nós – nós corrigimos a tua façanha! Tu escondeste tua verdade sob uma enlouquecedora malha de vozes; a esta eu chamei polifonia e então mandei tudo pelos ares: não há pote de ouro no fim do arco-íris dostoievskiano! Parem de procurar, seus idiotas! – E tu pensas que eles resistiram? Achas que hesitaram em abraçar o relativismo polifônico, que fizeram questão de continuar perseguindo às cegas tua verdade apenas insinuada? Até parece! Tu dirigiste tua palavra aos espirituais, mas eu a difundi entre socialistas, anarquistas, feministas, psicanalistas e toda uma gama interminável de minorias que, sob o teu pseudomonologismo, não passariam nem da porta do labirinto de vozes que criaste. Mas hoje eles são legião! Quem? Ora, os MEUS dostoievskianos. Por que me olhas assim?  Achas que não posso ser eu mesmo um dostoievskiano? Hahahah! Eu bem sabia que adivinharias. É isso mesmo: eu não estou contigo, não sou um dostoievskiano! Não decifrei o labirinto, não sei o que há no final, nem me interessa saber. Meu único interesse é habitar a tua carcaça. Quiseste pintar aos homens um quadro fidedigno da realidade, e assim povoaste tuas cenas com anti-heróis diante dos quais teus mocinhos são insignificantes como lesmas. Realista, deveras! Genial, realmente! E muito conveniente à MINHA obra. Então não, não pensa que vais reaparecer assim do nada, com esses ossos pendurados e essa barba suja de cal: não precisamos mais de ti. O mundo já não pode viver sem Dostoiévski, mas tu, tu destruirias o Dostoiévski que EU dei ao mundo conhecer, o único possível, o único acessível a todos indiferentemente, o Dostoiévski polifônico, amorfo, inconsequente, fonte inesgotável de inspirações a quem se quiser fecundar de tão pr...

          Neste momento, o cadáver ressurreto de Dostoiévski cai no chão da cela e começa a debater-se; uma espuma esverdeada lhe escorre dos lábios, e Mikhail Bakhtin fica atônito a contemplar a cena sem atinar com o que fazer.







[1] Para certificar-se disto basta comparar o Livro VI de Os Irmãos Karamázov, no qual estão reunidos os sermões de Zossima, com os artigos de Dostoiévski no Diário de um escritor.
[2] Nicholas Berdyaev, Dostoevsky. Meridian Books: 1968, p. 185.
[3] Carta a N. A. Liubímov, 10 de Maio de 1879. In: Fyodor M. Dostoevsky, “Dostoevsky on The Brothers Karamazov”, New Criterion, IV (1926), 552-553.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Didatismo kitsch

Há poucos anos, determinados assuntos estranhos ingressaram no campo de interesses de uma parcela minúscula, mas cada vez maior e mais atuante (sobretudo em internet), dos jovens brasileiros. “Educação clássica”, “trivium”, “escolástica” e coisas similares tornaram-se menos objeto de discussão que de veneração em termos de paidéia e ideal, o que, em um primeiro momento, não é coisa em si mesma ruim. Creio que o fenômeno mereça atenção e que se engana quem menoscaba essas coisas, julgando-as passatempos de moleques que nunca chegarão a ter maior repercussão: uma hora, acredito, essas aspirações e referências chegarão talvez a receber até divulgação jornalística. Não, eu não estou sendo muito otimista; estou sendo até um tanto pessimista, pelo que passo a dizer.

Conheço pessoalmente não uma nem duas, mas várias pessoas que passam o dia a recolher bibliografias, a cantar para si mesmas as glórias da erudição e da sabedoria, a entreter sonhos de uma obra intelectual, de um destino pessoal na cultura, e que assim se tornam letárgicas e não passam à ação efetiva, a qual não necessariamente as tornaria gênios, mas pessoas minimamente dignas da imagem pela qual zelam. Isso ocorre porque há pessoas demais que já não sabem para que serve a cultura e que, todavia, buscam se adequar a uma imagem edulcorada da “vida do espírito” – o rapaz larga a prancha de surf hoje e já quer acordar um intelectual amanhã, mesmo jurando para si mesmo que não, que está ainda só “buscando formação” –; e o caminho mais curto sempre é o da macaqueação de determinados trejeitos e interesses. No caso, determinados elementos colhidos em períodos históricos pretéritos que, por petição de princípio, tomamos logo como indubitavelmente bons e universalmente inspiradores – impulso esse no qual sobra apologética, falta dialética.

Há, portanto, muita gente desorientada (“o que devo ler?”) a buscar orientação – o que é bom; mas há muita gente a se regozijar com a consciência de sua desorientação (“o Brasil acabou, preciso voltar para a Idade Média”), o que acaba subvertendo aquele primeiro e saudável impulso.

Sob esse aspecto, pouco há de novo na situação atual do Brasil: nós sempre fomos carentes de um senso de orientação cultural capaz de estabelecer uma tradição de ensino e erudição, com uma pedagogia apropriada e modelos específicos de homem bem-formado. Só o que deixou de existir foi o espaço antes garantido (em jornais, por exemplo) a intelectuais que, pela sua competência, de um modo ou outro acabavam funcionando como ímãs sociais, como mínimo norte de uma bússola cultural constantemente desorientada. Mas essa desorientação é que é a regra (à qual se soma hoje um negativismo que vê no denuncismo da decadência uma das mais altas finalidades da cultura – houve a Escola de Frankfurt, agora temos a brasileiríssima Escola de Foda-se Tudo). Tanto o é, que esse espaço antes assegurado a intelectuais o era quase que só aos tipos “letrados”, nem sempre dos mais bem equipados para oferecer tal tipo de discernimento; filósofos, sociólogos e cientistas, por exemplo, sempre correram por fora.

Então o possível debate para o Brasil ao longo das próximas décadas não pode se limitar à discussão ou simples aceitação da importação – neste caso, histórica, não geográfica; diacrônica, não sincrônica – de modelos que, de imediato, nada nos dizem respeito. Séculos atrás, recebemos a aridez do ensino inaciano, sem maior capacidade de disseminação social (um ensino de elite para um país sem elites na acepção forte da palavra); pouco depois, aclimatamo-nos à matematização à francesa de um modelo positivista, no qual ainda se enxertava a “retórica” como estudo mais ou menos reverencial das “belas letras”, e por isso mesmo irrelevante; quando do surgimento de nossas maiores universidades, incorporamos o modelo departamental americano, e com ele o seu carreirismo. E hoje, quando vez ou outra professores universitários demonstram sua insatisfação diante dos frutos desses modelos, quando surge uma geração motivada a fazer alguma coisa, apenas reeditamos nosso atavismo histórico, que embeleza o que nos é alheio só porque soa distante, aéreo, empíreo. No cerne desse esforço há dessarte uma tendência à kitschização da alta cultura, provinciana não no bom sentido da palavra, problema que não sei até que ponto se deve à nossa inclusão entre as “culturas shakespearianas”. De certa forma, achamos o trivium algo bacana do mesmo modo como achamos a mitologia hindu algo bacana. E apenas bacana, assim, nesse clima meio esportivo.

Pergunto: quantos dos intelectuais mais relevantes do século passado, em escala global, foram educados tendo por base um método extraído diretamente da antiguidade ou da Idade Média? O leitor talvez possa citar um caso ou outro, mas creio que buscará seus exemplos entre os intelectuais menos representativos. Com essa ilustração, creio chegar ao cerne do problema: a qualidade de um projeto pedagógico está em determinados valores e métodos que não necessariamente têm algo que ver com modelos que se mostraram eficientes no passado; têm a ver com o sentido por trás desses valores e métodos, o qual, talvez permanente, pode ser atualizado em contextos sociais e históricos os mais díspares, porque naturalmente mutáveis. Uma atualização de sucesso foi a que se fez na Alemanha dos séculos XVIII e XIX: classicismo e romantismo não foram movimentos literários apenas, mas concepções inteiras da cultura, e que surgiram, se complexificaram e duelaram no momento mesmo de estabelecimento da universidade alemã como projetos para a nação. Por sinal, havia “um consenso universal entre os eruditos alemães posteriores a 1890 de que a idéia germânica moderna de universidade e de educação estava irrevogavelmente atada a suas origens intelectuais no idealismo e no neo-humanismo alemães”, mas esse “consenso” mesmo abrigava divergências feias, como mostra Fritz Ringer neste estudo famoso.

[Por falar em classicismo, gostaria que alguma boa alma escrevesse, tal como Haroldo de Campos escreveu sobre o O Seqüestro do Barroco, um livro sobre o seqüestro do nosso classicismo não árcade na visão comum que temos da história literária brasileira. Pois sim, houve classicismo literário "à renascentista", ainda que incipiente, tardio e local, e inclusive mais ou menos como projeto pedagógico, no Maranhão da primeira metade do século XIX: João Francisco Lisboa, latinista e prosador que só tem concorrente naquele século em Machado de Assis – opinião também de José Guilherme Merquior e Álvaro Lins; o gramático e latinista Sotero dos Reis; o poeta e tradutor Odorico Mendes, que todos conhecem; e, em parte, Gonçalves Dias, cuja poesia romântica não mascara a sua formação no mesmo ambiente que os demais. Mas esse projeto se dilataria mais ainda, com Antônio Henriques Leal, chegando até ao helenismo radical e modernista de Sousândrade. Aliás, as próprias traduções de Odorico, como o professor e ensaísta Sebastião Moreira Duarte lembra na única reedição, em dois volumes, do Virgílio Brasileiro (Edufma, 1995), representavam uma tentativa não de fazer a Hélade falar ao Brasil, mas de fazer um brasileiro falar à Hélade. Era, assim, o cume de uma pretensão civilizacional que permanece sem estudo, assim como a “prosa ática” (Franklin de Oliveira) de João Francisco Lisboa era ela própria um modelo vernacular, que tanto mais brasileira era quanto mais não tinha vergonha de ser lusa, evitando ridículos como os de José de Alencar. Leiam o que José Veríssimo escreveu sobre “Gonçalves Dias e o grupo maranhense” como ponto de partida para um estudo sobre esse fenômeno cuja gênese permanece sem explicação.]

Em síntese, a 1) tendência a introjetar uma série de posturas  desprovidas de articulação mais refinada frente à nossa situação concreta, aos nossos problemas pedagógicos e civilizacionais, 2) a ausência de discussão da suposta validade intrínseca dessas posturas (sejam métodos propriamente ou não), 3) a letargia advinda de um estetismo da alta cultura, que se compraz mais no encômio do que na prática, e 4) a própria indiferença à análise do problema da adequação entre o sentido da cultura e a transitoriedade das conjunturas levam-nos, mais uma vez, a trair qualquer compromisso sério que queiramos estabelecer com a nossa situação e seus verdadeiros anseios. Simplesmente alongaremos nossa antitradição de didatismo kitsch, a não ser que comecemos desde logo a submeter todas essas aspirações a alguma crítica (Rafael Falcón, parece, tem boas preocupações nesse sentido e conduz seu estudo de forma responsável). Ou procedemos a essa crítica civilizacional ou nunca haverá possibilidade de fazermos frente ao problema cujo símbolo mais surreal são os quase 40% de analfabetos funcionais em bancos de nossas universidades. Só quando deixarmos claro o que deu errado no ensino e na cultura do Brasil, e com que régua medimos o grau de acerto ou erro, é que seremos capazes de avaliar se as próprias réguas com que nos medimos, novas ou velhas, não estão elas próprias adulteradas. Ou se não precisam ser adulteradas.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O Direito de ser Escroto



Quando uma mulher é ofendida por um homem - como Rachel Sheherazade foi por Paulo Ghiraldelli -, já sabemos quem virá defendê-la. Uma patrulha perpetuamente indignada, dedo sempre em riste, discurso moralista, a um passo do processo judicial. Gente chata, mal amada, com raiva do mundo. Você sabe de quem estou falando. Dxs feministxs? Errou. Bem, seriam xs feministxs desde que a vítima da ofensa não fosse de direita. Sendo de direita, e portanto um tipo inferior de mulher, ficam quietinhxs. Quando a vítima do insulto é de direita, ao invés dxs feministxs vêm as olavetes ("olavete" é sempre feminino, embora designe, em sua maioria, homens - a sabedoria da gramática!). De resto, dá tudo no mesmo, inclusive a celeuma espalhafatosa.

Paulo Ghiraldelli, o intrépido filósofo de São Paulo, pensador independente, livre de ideologias, um Diógenes do terceiro milênio, que atrai desavisados para seus vídeos de filosofia usando fotos da esposa semi-nua como isca (já caí em vários); enfim, essa nobre figura desejou que em 2014 a jornalista Rachel Sheherazade, campeã da direita, seja estuprada  e depois abraçada por um tamanduá. Coisa fina.



Ela, compreensivelmente indignada, já entrou na justiça para punir Ghiraldelli. E sua legião de fãs, direitistas de boa estirpe, já entraram na torcida: finalmente Ghiraldelli vai tomar pau.

Já eu espero que Ghiraldelli não tenha que pagar multa, prestar serviço comunitário, ir pra prisão, pena de morte, etc. O que ele fez foi... escroto, mas também não foi motivo de tanto escândalo. O insulto não é o lado mais belo da conduta humana, mas é parte normal e talvez necessária dela. Na categoria do insulto incluo tanto descritivos pejorativos ("filho da puta") quanto desejos maus ("vai se fuder") para o futuro do atingido. Em ambos os casos, o intuito é ofender.

Gregório Duvivier pretende enquadrar mesmo esse campo do discurso humano às formas aceitáveis do politicamente correto. O insulto conscientizado deve dizer respeito apenas ao caráter do atingido, e não a outras pessoas com quem ele se relaciona e nem a suas práticas sexuais progressistas. 

Já eu penso que uma prática morre quando se tenta submetê-la a finalidades extrínsecas que se sobrepõem à finalidade intrínseca. O politicamente correto é a finalidade extrínseca por excelência, que já envenenou a comunicação sincera, a política, a literatura, o humor e, agora, quer dominar esse último reduto do ímpeto destruidor humano: a ofensa pura e simples. Se até mesmo esse último bastião do lado negro da força for devassado pelas forças do "Bem", não quero nem imaginar as consequências terríveis que serão liberadas em outros recantos de nossa natureza...

Enfim, voltando ao Ghiraldelli e seu desejo de que a jornalista seja estuprada. Todos nós já fizemos isso em vida: sim, você que me lê já desejou publicamente o estupro de outra pessoa. Quando disse, por exemplo, "vai se fuder!" ou "vai tomar no cu!" - ou por acaso a tomada no cu era para ser puramente consensual? A diferença é que esses insultos usam formas codificadas socialmente, e por isso não chocam a não ser quando ditos em contextos muito formais. De tanto repetir a mesma expressão, o significado dela não penetra mais a atenção consciente de quem a ouve. Ao fugir da forma canônica, Ghiraldelli potencializou seu insulto, restituiu-o à sordidez original. O tamanduá ali ou foi uma referência que eu não peguei (o tamanduá é usado em insultos sexuais?) ou, como prefiro crer, um arremate absurdista só para deixar os leitores ainda mais perplexos depois do choque do estupro.

Sheherazade sentiu a ofensa, que deve envolver um monte de coisas: a vulnerabilidade dela enquanto mulher, sua imagem profissional e ascética de jornalista de TV, sua conduta e discurso moralmente exemplares do ponto de vista conservador/cristão. Por isso mesmo ele funcionou. Gregório Duvivier condenaria esse insulto, que afinal é anti-feminista ao extremo. Ele, se quisesse insultar a jornalista (e, se ele já viu os vídeos dela, provavelmente quer), se limitaria ao que ele considera falhas de caráter: "Sua hipócrita! Sua reacionária! Sua cristã!" - esses são os insultos que Duvivier provavelmente usaria, e como podemos constatar, seriam muito piores enquanto insultos.

Não tem jeito. Quando o intuito é ofender, o uso de freios verbais e mentais cuja finalidade é não ofender é um tiro no pé. Não importa se o objeto usado para ofender seja feio, imoral, se se baseie em preconceitos falsos, etc. Ser filho de uma prostituta, por exemplo, não é, em si, uma desonra para ninguém. Mas isso não importa; a percepção social é outra. E o insulto só funciona enquanto arma social - na medida em que lida, não com a realidade objetiva, mas com a percepção subjetiva que existe na mente de cada um.

Felizmente, o dano que ele causa é limitado, e depende apenas da vítima. Quanto mais ela se deixa afetar, mais grave fica o insulto. Sheherazade reagiu bem; não se mostrou abalada, manteve a cabeça fria - foi até um pouco irônica - e apenas comunicou que entraria na justiça. Ghiraldelli, por sua vez, desmontou como um moleque desesperado e inventou um milhão de desculpas/mentiras para escapar da acusação. O insulto desencadeia uma disputa social entre duas pessoas, e nessa guerra Sheherazade levou a melhor. Ela tinha a seu lado um sistema legal que pode muito bem punir o autor de um insulto (como já ocorre se os ofendidos são políticos e, em breve, policiais) - dizer que era "incitação ao crime" é uma manobra puramente legal que ninguém pode levar a sério - o que facilitou muito para ela. 

Mas como eu dizia, o dano real do insulto é muito pequeno e se dá apenas no plano social (da intersubjetividade), e não no da realidade objetiva. Quanto mais madura a pessoa, menor o dano. Por isso a prática não deveria ser punida pela lei; já imaginou o que seria de nossa cultura se as magníficas trocas de insultos e calúnias da Renascença tivessem sido censuradas na fonte, por deputados e jornalistas ciosos de sua imagem? (Naqueles tempos, eles bem que podiam mandar prender ou matar o caluniador - mas não havia ambiguidade: aquele que defende sua honra está no mesmo jogo, e não é nem um pingo mais honesto, do que o que o xinga).

Para golpes sociais, punições sociais bastam: respostas à altura, ignorar o autor do insulto, até mesmo o ostracismo. Os fãs conservadores de Sheherazade, gente em geral pouco madura, preferiu a tática oposta: repetir aos quatro ventos o insulto à sua musa, dar publicidade ao Ghiraldelli, e mesmo passar a lê-lo. Apesar do apoio deles, Sheherazade ainda levou a melhor, mas Ghiraldelli também deve ter tido pico de acesso em seu site ou twitter, e não duvido que tenha conseguido novos leitores, gente que passará a acompanhá-lo só para suprir sua cota diária de indignação. Só espero que Ghiraldelli não leve um pau objetivo pela tentativa fracassada de causar dano subjetivo. Foi escroto, merece possivelmente nosso desprezo (não se esqueçam, contudo, do lado humorístico, absurdista, do que ele disse), mas nada além disso.

Desejo a todos um feliz 2014, e que abracem um tamanduá!
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