Quando uma mulher é ofendida por um homem - como Rachel Sheherazade foi por Paulo Ghiraldelli -, já sabemos quem virá defendê-la. Uma patrulha perpetuamente indignada, dedo sempre em riste, discurso moralista, a um passo do processo judicial. Gente chata, mal amada, com raiva do mundo. Você sabe de quem estou falando. Dxs feministxs? Errou. Bem, seriam xs feministxs desde que a vítima da ofensa não fosse de direita. Sendo de direita, e portanto um tipo inferior de mulher, ficam quietinhxs. Quando a vítima do insulto é de direita, ao invés dxs feministxs vêm as olavetes ("olavete" é sempre feminino, embora designe, em sua maioria, homens - a sabedoria da gramática!). De resto, dá tudo no mesmo, inclusive a celeuma espalhafatosa.
Paulo Ghiraldelli, o intrépido filósofo de São Paulo, pensador independente, livre de ideologias, um Diógenes do terceiro milênio, que atrai desavisados para seus vídeos de filosofia usando fotos da esposa semi-nua como isca (já caí em vários); enfim, essa nobre figura desejou que em 2014 a jornalista Rachel Sheherazade, campeã da direita, seja estuprada e depois abraçada por um tamanduá. Coisa fina.
Ela, compreensivelmente indignada, já entrou na justiça para punir Ghiraldelli. E sua legião de fãs, direitistas de boa estirpe, já entraram na torcida: finalmente Ghiraldelli vai tomar pau.
Já eu espero que Ghiraldelli não tenha que pagar multa, prestar serviço comunitário, ir pra prisão, pena de morte, etc. O que ele fez foi... escroto, mas também não foi motivo de tanto escândalo. O insulto não é o lado mais belo da conduta humana, mas é parte normal e talvez necessária dela. Na categoria do insulto incluo tanto descritivos pejorativos ("filho da puta") quanto desejos maus ("vai se fuder") para o futuro do atingido. Em ambos os casos, o intuito é ofender.
Gregório Duvivier pretende enquadrar mesmo esse campo do discurso humano às formas aceitáveis do politicamente correto. O insulto conscientizado deve dizer respeito apenas ao caráter do atingido, e não a outras pessoas com quem ele se relaciona e nem a suas práticas sexuais progressistas.
Já eu penso que uma prática morre quando se tenta submetê-la a finalidades extrínsecas que se sobrepõem à finalidade intrínseca. O politicamente correto é a finalidade extrínseca por excelência, que já envenenou a comunicação sincera, a política, a literatura, o humor e, agora, quer dominar esse último reduto do ímpeto destruidor humano: a ofensa pura e simples. Se até mesmo esse último bastião do lado negro da força for devassado pelas forças do "Bem", não quero nem imaginar as consequências terríveis que serão liberadas em outros recantos de nossa natureza...
Enfim, voltando ao Ghiraldelli e seu desejo de que a jornalista seja estuprada. Todos nós já fizemos isso em vida: sim, você que me lê já desejou publicamente o estupro de outra pessoa. Quando disse, por exemplo, "vai se fuder!" ou "vai tomar no cu!" - ou por acaso a tomada no cu era para ser puramente consensual? A diferença é que esses insultos usam formas codificadas socialmente, e por isso não chocam a não ser quando ditos em contextos muito formais. De tanto repetir a mesma expressão, o significado dela não penetra mais a atenção consciente de quem a ouve. Ao fugir da forma canônica, Ghiraldelli potencializou seu insulto, restituiu-o à sordidez original. O tamanduá ali ou foi uma referência que eu não peguei (o tamanduá é usado em insultos sexuais?) ou, como prefiro crer, um arremate absurdista só para deixar os leitores ainda mais perplexos depois do choque do estupro.
Sheherazade sentiu a ofensa, que deve envolver um monte de coisas: a vulnerabilidade dela enquanto mulher, sua imagem profissional e ascética de jornalista de TV, sua conduta e discurso moralmente exemplares do ponto de vista conservador/cristão. Por isso mesmo ele funcionou. Gregório Duvivier condenaria esse insulto, que afinal é anti-feminista ao extremo. Ele, se quisesse insultar a jornalista (e, se ele já viu os vídeos dela, provavelmente quer), se limitaria ao que ele considera falhas de caráter: "Sua hipócrita! Sua reacionária! Sua cristã!" - esses são os insultos que Duvivier provavelmente usaria, e como podemos constatar, seriam muito piores enquanto insultos.
Não tem jeito. Quando o intuito é ofender, o uso de freios verbais e mentais cuja finalidade é não ofender é um tiro no pé. Não importa se o objeto usado para ofender seja feio, imoral, se se baseie em preconceitos falsos, etc. Ser filho de uma prostituta, por exemplo, não é, em si, uma desonra para ninguém. Mas isso não importa; a percepção social é outra. E o insulto só funciona enquanto arma social - na medida em que lida, não com a realidade objetiva, mas com a percepção subjetiva que existe na mente de cada um.
Felizmente, o dano que ele causa é limitado, e depende apenas da vítima. Quanto mais ela se deixa afetar, mais grave fica o insulto. Sheherazade reagiu bem; não se mostrou abalada, manteve a cabeça fria - foi até um pouco irônica - e apenas comunicou que entraria na justiça. Ghiraldelli, por sua vez, desmontou como um moleque desesperado e inventou um milhão de desculpas/mentiras para escapar da acusação. O insulto desencadeia uma disputa social entre duas pessoas, e nessa guerra Sheherazade levou a melhor. Ela tinha a seu lado um sistema legal que pode muito bem punir o autor de um insulto (como já ocorre se os ofendidos são políticos e, em breve, policiais) - dizer que era "incitação ao crime" é uma manobra puramente legal que ninguém pode levar a sério - o que facilitou muito para ela.
Mas como eu dizia, o dano real do insulto é muito pequeno e se dá apenas no plano social (da intersubjetividade), e não no da realidade objetiva. Quanto mais madura a pessoa, menor o dano. Por isso a prática não deveria ser punida pela lei; já imaginou o que seria de nossa cultura se as magníficas trocas de insultos e calúnias da Renascença tivessem sido censuradas na fonte, por deputados e jornalistas ciosos de sua imagem? (Naqueles tempos, eles bem que podiam mandar prender ou matar o caluniador - mas não havia ambiguidade: aquele que defende sua honra está no mesmo jogo, e não é nem um pingo mais honesto, do que o que o xinga).
Para golpes sociais, punições sociais bastam: respostas à altura, ignorar o autor do insulto, até mesmo o ostracismo. Os fãs conservadores de Sheherazade, gente em geral pouco madura, preferiu a tática oposta: repetir aos quatro ventos o insulto à sua musa, dar publicidade ao Ghiraldelli, e mesmo passar a lê-lo. Apesar do apoio deles, Sheherazade ainda levou a melhor, mas Ghiraldelli também deve ter tido pico de acesso em seu site ou twitter, e não duvido que tenha conseguido novos leitores, gente que passará a acompanhá-lo só para suprir sua cota diária de indignação. Só espero que Ghiraldelli não leve um pau objetivo pela tentativa fracassada de causar dano subjetivo. Foi escroto, merece possivelmente nosso desprezo (não se esqueçam, contudo, do lado humorístico, absurdista, do que ele disse), mas nada além disso.
Desejo a todos um feliz 2014, e que abracem um tamanduá!