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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Ad Hominem Entrevista: Olavo de Carvalho

HÁ QUASE vinte anos, a indigência intelectual brasileira, sempre tão orgulhosa de suas nobres realizações, ganhava nome e sobrenome: O Imbecil Coletivo – Atualidades Inculturais Brasileiras. O sucesso clamoroso do livro, que em pouquíssimos meses esgotou várias edições, era, a um só tempo, acontecimento preocupante e auspicioso: se de um lado ficava evidente que a inteligência nacional – ou sua falta – seria suficiente para preencher dezenas de volumes, em contrapartida o interesse pelo diagnóstico e possível tratamento sugeria que talvez não estivéssemos condenados a desaparecer do mundo civilizado de forma definitiva.

Muita coisa piorou de lá pra cá. A ascensão do PT ao poder, a hegemonia do pensamento de esquerda – predominantemente em sua versão gramsciana – e a quase absoluta sonegação de todo pensamento filosófico e político que não seja, de modo mais ou menos explícito, afeito às comodidades e cumplicidades daquilo que um dia já ousaram chamar de “jornalismo”, parecem denunciar o fracasso do empreendimento intelectual e pedagógico de Olavo de Carvalho. Se tudo piorou e a “longa marcha da vaca para o brejo” é mesmo o inescapável roteiro do pensamento guarani-kaiowá, que é que se ganhou com tudo isso?

Pois a ironia é precisamente esta: quase vinte anos depois, Olavo de Carvalho publica O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota e inicia novo ciclo com novo sucesso. Milhares de exemplares vendidos e a mesma certeza: se a intelligentsia brasileira continua a dar o exemplo do que não se deve fazer, o filósofo reafirma seu propósito de mostrar que nem todo mundo está dormindo enquanto a vaca marcha, lentamente, para o infausto destino. E – Deus nos leia! – talvez o prognóstico seja outro, e menos acabrunhante, depois que os imbecis passaram a ser chamados, sem respeitos humanos, pelos respectivos e apropriados nomes.

Ad Hominem entrevista Olavo de Carvalho: para os imbecis de sempre, para os idiotas de costume, e para todos os outros que não se contentam em ser nem uma coisa nem outra.

***

O sucesso instantâneo do seu novo livro nos leva a crer que o “olavismo” já não cabe nos limites de um gueto virtual – como querem alguns –, mas se alastra com velocidade entre as mais diversas camadas da sociedade brasileira. Se isto é muito bom, ao mesmo tempo há quem aponte um efeito colateral da dita “orkutização do olavismo”, a saber, o surgimento de um exército de entusiastas das suas ideias os quais aparentam não ter preparo intelectual para compreender o que justifica seu próprio entusiasmo. O senhor concorda com essa análise? Como avalia essa recepção “quase cega” das suas ideias por parte de seus leitores?

Tenho uns trinta e seis mil “seguidores” no Facebook (que só são seguidores num sentido ótico da palavra), uns cem mil leitores espalhados pelo Brasil e talvez uns duzentos mil ouvintes e espectadores no Youtube. Mas, de todos esses, só uns dois mil – menos de um por cento – são meus alunos no Seminário de Filosofia, e estes, a pedido meu, evitam participar de discussões na internet, só o fazendo quando é no quadro de alguma atividade profissional ou intelectual mais sistemática, como é o caso do Felipe Moura Brasil, o do Ronald Robson, o do Gustavo Nogy e o de mais alguns poucos. Por isso, o que acaba aparecendo superficialmente como “discussão” das minhas idéias é justamente o que vem do público mais geral, que não tem comigo nenhuma relação de aprendizado e que me chama de “professor” apenas por gentileza. Não tem sentido esperar que esse público tenha uma compreensão das minhas idéias no nível que a têm os meus alunos. Deles vêm, com freqüência, perguntas mal formuladas e opiniões toscas, que refletem um esforço de aprendizado sincero mas ainda muito incipiente. Alguns observadores maliciosos ou burros, no entanto, nada sabendo nem querendo saber dos meus cursos ou dos meus alunos, fazem questão de tomar justamente esse público geral como amostra típica dos resultados do meu ensinamento. É uma deformação caricatural monstruosa. Todo escritor ou filósofo tem um público geral que o aprecia sem compreendê-lo muito, mas tem também o direito de ser julgado pelos seus escritos e pelo seu ensinamento direto e não pela resposta incontrolável que obtém de um público difuso. Já pensou o que seria de Sócrates se não fosse julgado pelo que Platão e Aristóteles aprenderam dele, mas pelo que se lê a seu respeito no trabalho escolar de um estudante brasileiro do segundo grau? Que seria de Karl Marx se toda a imagem que temos dele não fosse baseada no que ele legou a um Georg Lukács ou um Karl Korsch, mas tão-somente no que o Punheteu sabe a respeito? Todo escritor, todo filósofo é “orkutizado”, mas somente um – este entrevistado – é aferido preferencialmente pela sua imagem orkutiana, que não o reflete de maneira alguma. Alguns fazem essa caricatura de análise por malícia, outros por ignorância genuína, mas nos dois casos o que está verdadeiramente orkutizado é o cérebro dessas criaturas. A confusão entre os dois níveis de recepção é um erro tão grosseiro, que o fato mesmo de que tantos o cometam é um índice sociológico da crise nacional de QI. Pior ainda é que aqueles que criticam a adesão simplória de certa parte do público às minhas idéias têm uma visão ainda mais simplória dessas idéias, baseada inteiramente em frases que ouviram nos meus programa de rádio sem nunca ter lido os meus livros nem freqüentado os meus cursos. Esses detratores do meu trabalho criticam nas outras pessoas o erro que eles próprios estão cometendo, em maior escala, nesse mesmo instante. Por que a simpatia “quase cega” deveria ser mais desprezível do que a hostilidade igualmente cega? Aplaudir sem compreender muito é por certo mais decente do que condenar sem compreender nada.

Apesar das frequentes advertências que o senhor, baseado no esquema aristotélico dos quatro discursos, fez e continua fazendo quanto à necessidade de dominar os registros poéticos e retóricos antes de passar ao estudo da filosofia, boa parte de seus admiradores e até alunos parece interessar-se sobretudo nos estudos teóricos (tendentes à lógica, segundo a classificação aristotélica). Isso produz fenômenos curiosos, como algumas interpretações bastante rudimentares de conceitos densos da teologia. Como o senhor explica isso? O que o senhor julga que pode ser feito para despertar as pessoas para a importância filosófica do estudo das letras?

O problema é muito mais sério do que eu mesmo imaginava no início. A presente geração foi toda alfabetizada pelo método socioconstrutivista, que a incapacitou não só para o domínio das regras da gramática, mas para a percepção das nuances, dos tons, da harmonia. É como uma surdez tonal adquirida. Para corrigir isso, a simples leitura de boas obras de literatura não basta. O pessoal, com isso, adquire cultura e às vezes progride um pouco na percepção das formas verbais, mas continua incapaz de “entrar” pessoalmente na tradição literária, de participar dela ativamente. Não sei como resolver esse problema, mas entendo que é ele que leva tantas pessoas a se sentirem mais à vontade em terrenos mais impessoais, onde a simples apreensão do sentido explícito dos conceitos parece bastar. É claro que nisso se enganam. Sem um bom “ouvido” literário não se pode ler com proveito nem o Tractatus de Wittgenstein, para não falar de livros de teologia.

Por falar em literatura, o senhor certa vez disse que Bruno Tolentino foi o melhor poeta em língua portuguesa desde Camões – e seus críticos adoram repetir essa frase em tom de chacota. O que faz de Tolentino um poeta tão grande, em sua opinião? Em que sentido ele seria comparável a Camões?

Acho que quem não percebe isso à primeira vista tem um cérebro lesado. A temática do Bruno abarca o universo quase inteiro da experiência humana e intelectual do século XX, da qual seus concorrentes brasileiros mal chegam a apreender uns pedacinhos, e ele a expressa com um domínio técnico alucinante. Nenhum outro poeta brasileiro fez isso. Nem Drummond, nem Manuel Bandeira. Em carne e osso, o Bruno foi notoriamente um semilouco, um mitômano, mas quantos poetas não o foram? Nunca ouviram falar de Guillaume Apollinaire, de Christopher Marlowe, de Fernando Pessoa?

A tese exposta em sua obra Aristóteles em Nova Perspectiva – Introdução à Teoria dos Quatro Discursos – o discurso humano é uma potência que se atualiza de quatro formas diferentes, não necessariamente contraditórias entre si, mas complementares e com diferentes níveis de credibilidade – foi, desde seu lançamento, ou ignorada ou completamente incompreendida pelos estudiosos. Menção honrosa deve ser feita aos portugueses (professor Mendo Castro Henriques entre eles). O senhor sabe de algum professor brasileiro que tenha lido a obra, ou chegou a se corresponder com alguém, acerca desse estudo?

Quando esse livro saiu, fazia trinta anos exatos que nada se publicava de autor brasileiro sobre Aristóteles. Isso dá uma idéia do terreno miserável onde plantei aquela semente. Para não admitir que tinha ficado para trás, o pessoal da USP desencavou uma tese do Oswaldo Porchat Pereira, já velha de três décadas, e a publicou às pressas, mas era apenas um bom trabalho escolar, sem nada de original. Só obtive audiência inteligente no círculo de estudiosos de lógica, discípulos de Newton da Costa, especialmente Alexandre Costa Leite. No exterior, o meu livro foi muito bem recebido. O primeiro a lê-lo e aplaudi-lo foi o biólogo Antoine Danchin. Depois veio o círculo inteiro dos discípulos de Eric Voegelin – Frederick Wagner, Tudor Munteanu, Jody Bruhn, David Walsh. Roger Kimball recomendou o livro à Encounter Books, que prometeu publicá-lo se eu lhe acrescentar mais textos sobre o mesmo assunto para formar um volume mais grosso. Em Portugal, Mendo Castro Henriques, João Seabra Botelho, Carlos Aurélio e todo o pessoal da revista Leonardo. Na Romênia, Andrei Pleshu, Horia Patapievici, Gabriel Liiceanu e muitos outros.

O senhor tem dito que alguns de seus alunos já estão mais bem preparados para atuar na vida intelectual do que muitos professores universitários. E também alerta com frequência sobre a importância de passar anos estudando antes de se manifestar publicamente. Levando isso em conta, para quando podemos esperar a aparição pública de seus melhores alunos? Eles tenderão a ingressar nos meios já existentes (como universidades e jornais) ou criar postos de autoridade paralelos ao cenário cultural atual? O que o senhor julga ser mais adequado?

Estou recolhendo e analisando centenas de projetos de trabalhos de conclusão de curso que, mais dia menos dia, serão publicados em forma de livros. Quando digo que meus alunos têm mais preparo do que o típico professor universitário brasileiro de hoje, falo com base nessa documentação e não em impressões gerais. Nem menciono o meu filho Luiz Gonzaga, que, sem nunca ter freqüentado universidade alguma, não tem concorrentes à sua altura no meio universitário nos campos da sua escolha, as religiões comparadas e a filosofia medieval. Alguns dos meus alunos já têm livros publicados e dão uma amostra do que estou dizendo. Virgilio Dalla Rosa e Rodrigo Gurgel são exemplos. Eles superam de longe qualquer concorrente nos seus campos respectivos. Quando a produção dos demais começar a aparecer, ela injetará vida nova na atividade intelectual deste país. Talvez eu crie uma revista de cultura e promova cursos dados pelos meus alunos, mas, fora disso, não tenho planos. Cada um conduzirá sua vida como bem entenda.

Atualmente, que filósofos vivos o senhor considera dignos de atenção? E por quê?

Jean-Luc Marion, John Deely, Harry Redner, Glenn Hughes, Horia Patapievici, muitos outros. A inteligência não morreu no mundo. Só no Brasil.

Em um artigo de 2006 (A fossa de Babel, constante em O mínimo..., p. 287), o senhor escreve: “É verdade que nem todo mundo reclama do que escrevo. Há quem goste. Mas uma boa parte gosta naquela mesma clave lúdica em que o conhecimento adquirido é uma forma de diversão, sem alcance sobre a vida prática e as decisões reais. Quando dou conselhos a essa gente, quase sempre me sinto como um médico que, tendo receitado uma medicação de emergência, depois a encontra esquecida num canto da sala onde a família presta sua última homenagem ao cadáver do paciente. Não me sinto um gênio incompreendido, não tenho nem um pouco de dó de mim mesmo: tenho dó daqueles a quem estendi o socorro dos meus conhecimentos e que só os aproveitaram como deslumbre passageiro. Não entenderam que eu não queria os seus aplausos, mas a sua salvação.” Sete anos após ter escrito essas linhas, o que mudou?

Muita coisa. Hoje tenho milhares de alunos que estudam a sério e tiram até mais proveito das minhas aulas do que eu teria esperado. Tudo melhorou muito, mas muito mesmo.

A maior e mais importante parte da sua obra permanece em estado bruto: em gravações de vídeo e em transcrições, por exemplo. Várias obras esperadas por seus alunos, como O Olho do Sol e A Mente Revolucionária, ao que parece não terão mais uma forma unitária, restando dispersas em registros de diferente natureza (apostilas, transcrições de aulas, palestras, artigos etc.). O que de concreto em termos de publicação, no entanto, seus leitores podem esperar para breve, seja em inéditos, seja em reedições, como se fez recentemente com Aristóteles em Nova Perspectiva?

Estou preparando para publicação o curso Sociologia da Filosofia e o Rodrigo Gurgel está dando retoques em Raízes da Modernidade, que sairá com outro título porque descobri que o Pe. Lima Vaz publicou um livro com esse título faz muitos anos. Esses dois sairão no ano que vem, sem falta. E Visões de Descartes tem lançamento marcado para 22 de novembro. Mas a massa de papéis arquivados à espera de correção é uma monstruosidade. Mesmo que eu chegue à mais extrema velhice não creio que conseguirei preparar todo esse material para edição. Legarei o abacaxi às boas almas que o desejem.

O senhor já afirmou algumas vezes que a multiplicidade de focos de atenção e intervenção da sua obra lhe impossibilita de dar a ela uma forma bem ordenada e editorialmente de fácil apresentação. O senhor poderia falar um pouco mais sobre que relação há entre sua postura intelectual e os modos de registro da mesma?

Na filosofia é tradicional o contraste entre as mentes sistemáticas, que vão construindo uma obra ordenadamente, como Kant ou Husserl, e as mentes reativas, que precisam de algum estímulo momentâneo para registrar suas idéias por escrito, como Leibniz ou Pascal. Guardadas as devidas proporções, pertenço decididamente ao segundo tipo. Às vezes fico meditando um assunto por anos a fio, sem escrever uma palavra. Mas basta que alguém diga uma bobagem a respeito, e instantaneamente começo a preencher páginas e páginas. A questão do Império sempre andava na minha cabeça, mas foi só a conferência desastrada do José Américo Mota Pessanha que me fez escrever O Jardim das Aflições. O problema, hoje, é que os estímulos são em número excessivo, ultrapassam a minha capacidade de reagir por escrito. Então registro minhas idéias oralmente, nas aulas.

No Brasil, nenhum filósofo conseguiu até hoje criar discípulos na acepção eminente da palavra: intelectuais de alto nível que prossigam com pesquisas que, de algum modo, são respostas à orientação que receberam dos seus mestres. Isso, que é coisa comum em outros países (inclusive em alguns da América Latina), no Brasil inexiste e é até visto com certo desprezo. O senhor, contudo, em alguma medida já criou condições para que nas próximas décadas se desenvolva um discipulado a partir de sua obra. Ao avaliar o seu pensamento e sua atuação pública, o que o senhor imagina serem as contribuições e problemas mais importantes com que no futuro seus alunos acabarão se preocupando mais?

O problema essencial é restaurar o senso da filosofia como uma disciplina integral da inteligência, superando, de um lado, a mutilação burocrático-profissional e, de outro, o empastelamento ideológico-partidário. Creio que alguns dos meus alunos já estão bem afiados para entrar nessa luta. Em segundo lugar, é preciso despertar da “longa noite” em que a cultura brasileira mergulhou nas últimas décadas. Temos de voltar a ser os contemporâneos de Manuel Bandeira, de Gilberto Freyre, de Otto Maria Carpeaux, de Mário Ferreira dos Santos, de Álvaro Lins e de tantos outros. Temos de fazer a ponte entre as gerações e produzir obras que não desmereçam o legado desses nossos ancestrais. Com isso o campo de batalha já se estende para muito além da área da filosofia em sentido estrito. Em terceiro lugar, é preciso escrever a história cultural e psicológica das últimas décadas, que os profissionais universitários abandonaram ou falsificaram quase que por completo. Em quarto, é preciso abrir um rombo no mercado editorial e inundá-lo com livros fundamentais do século XX que permanecem desgraçadamente ignorados no nosso meio. Neste ponto, muita coisa já se fez nos últimos anos, partindo de sugestões que dei nos meus livros e artigos, mas ainda há muito por fazer. Em quinto, é preciso atualizar o público brasileiro com a nova situação político-militar do mundo, que a nossa mídia ensina a ignorar. Esse é o programa.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Carta à Sra. Míchkina

O que vai abaixo não é exatamente uma mensagem que escrevi a alguém: em meu último post foi assim, mas dessa vez eu aproveitei a deixa de uma troca de mensagens para organizar em texto algumas ideias esparsas, já tendo em vista outros leitores além da interlocutora original, a distinta Sra. Míchkina. Mantenho o formato de carta porque ele facilita a exposição. E também porque o texto é orientado por questões levantadas pela Sra. M.

Os leitores me perdoem a insistência nos mesmos temas. Acontece que tudo isso – literatura, poesia, contemporaneidade – é, usando uma imagem brega, o papel de parede do meu mundo. São as coisas sobre as quais eu penso por necessidade pessoal. Todos têm direito a sua cota de ideias fixas.

***

I

Começando pelo tópico fácil, M.: sim, eu deletei meu blog de poemas. O motivo é o mesmo que tem me feito controlar minha participação na internet: combater a pressa, o imediatismo (“combater” não no mundo – o que seria ridículo –, mas na minha própria vida). A internet funciona por esse mecanismo do feedback instantâneo: você produz algo (um texto, um comentário, um poema), solta na rede e imediatamente começa a receber feedbacks. Isso é muito positivo em algumas áreas, como o jornalismo informativo e o debate blogueiro, mas para as artes é desastroso. A não ser que seu interesse seja produzir experimentos sócio-artísticos, desses que contam com a participação ativa do leitor/ouvinte/espectador.

Digo que é desastroso porque o artista, aos poucos, vai se submetendo à velocidade do processo de recepção virtual. Você não passa anos trabalhando num poema ao qual a internet não dedicará mais do que 24h. Sei que há exceções, mas tenho a impressão de que a qualidade da leitura que as pessoas em geral fazem na internet é bastante baixa; lê-se com pouca atenção, com pouca paciência. O escritor “de internet” está fadado a dissolver-se nessa lógica, a integrar-se a ela; quem tem maus leitores fatalmente escreverá mal, ou pior do que escreveria em mais estimulantes circunstâncias.

Se tivesse de dizer em uma linha, diria que a principal consequência da atual cultura da informação para a cultura como um todo é a perda da densidade – densidade que qualifica o intelecto daquele tipo em extinção, o erudito. Não é que o intelectual contemporâneo seja, utilizando a expressão do Gustavo Nogy, um “especialista em nada”; talvez ele até seja demasiado especialista, como aqueles professores da Filosofia USP que desde a graduação estudam o conceito X dentro da obra do filósofo Y. Mas a “cultura total” do antigo erudito (aliás nem tão antigo assim) é algo de que, no Brasil, nessa última geração, se apareceu algum exemplar foi totalmente a despeito do meio. E o problema é que as áreas do conhecimento humano são bem mais interdependentes do que querem nossos libertários que não leem literatura nem sabem usar crase. Longa e velha discussão, pois é.

Mas, voltando ao ponto: temos que parar de escrever “para a internet” – nós, cuja responsabilidade é não deixar a literatura brasileira desparecer completamente, nós que, salvo pessimismo meu, somos uma geração de atravessadores, destinados a traficar a maior quantidade possível de bens culturais lá da porção saudável das letras do país e fazê-los chegar até essa ilhota misteriosa que é o futuro, onde, ao que tudo indica, o terreno estará mais firme do que hoje para a produção de obras duradouras. Nossa geração teve uma vida cômoda demais para ser protagonista. Mas, voltando ao ponto: é necessário participar da vida virtual, pois ela nos dá a medida do que é o mundo contemporâneo e é nosso correio e ponto de encontro. Porém, aquilo que nós queremos – se é que queremos – comunicar às próximas gerações deve ser preparado com muito cuidado e muita calma, à margem do turbilhão da internet, posto que não somos gênios (somos atravessadores) e nosso trabalho é sobretudo braçal (apenas os gênios podem contar com a fecundidade da preguiça e do acaso).

Poemas devem ser escritos e reescritos demoradamente, até serem o melhor que podem ser. Romances, contos, teatro – idem. Nada de correr para mostrar seu primeiro rascunho aos amiguinhos e ganhar likes no Face.

Passei as duas últimas semanas com essas frases martelando na minha cabeça. Há meses não escrevo um poema que preste. Por vezes cheguei perto, mas a pressa foi abortiva. So long, blog de poemas.

II

Agora, sobre seu desejo de se tornar escritora: eu penso, M., que antes de mais nada o que um escritor precisa é ter o que dizer. O escritor não é tanto aquele que diz “tenho vontade de escrever livros” quanto aquele para quem há a gritante necessidade de comunicar tal coisa. Nunca tentei escrever prosa de ficção, mas minha experiência com escrita de modo geral me diz que uma ideia bem cultivada encontra como que naturalmente sua forma perfeita. Mas é claro que isso só funciona quando você já tem ao menos o domínio básico das regras do gênero no qual se propõe escrever. Se você não sabe como funciona a métrica em poesia, não espere “intuir” um belo alexandrino (um, talvez; mas um conjunto de catorze ou vinte e oito belos e harmônicos alexandrinos...). Porém, uma vez tendo afinado o seu instrumento (sabendo escrever uma prosa limpa e maleável, ou redondilhas certinhas, dependendo de em qual recipiente você quer vazar a sua “tal coisa”; com o acréscimo de que até aqui a festa é aberta a qualquer um, independendo de real vocação ou mero diletantismo) – uma vez tendo afinado o seu instrumento (créditos da expressão ao Emmanuel Santiago), resta perguntar-se o que você tem a dizer. É sua atitude diante dessa pergunta que fará de você escritora ou diletante.

Tenho visto uma quantidade alarmantemente grande de escritores jovens com algum talento, mas que não têm o que dizer. Ou ao menos ainda não o conseguiram. São montes de poemas e histórias sem norte, com um horizonte embaçado ou simplesmente vazio. O escritor senta diante da página em branco, sobre a qual incide a luz de uma janela aberta, e logo expele algo como: “A janela aberta na tarde em branco / eu isso eu aquilo / meus sentimentos”. O que acontece aí? Acontece uma pessoa cuja vontade de escrever um poema vem antes da consciência do que tem a comunicar. Quem nunca protagonizou tal cena atire a primeira pedra!

Sylvia Plath, em seu romance autobiográfico, The Bell Jar, brinca com isso engenhosamente. É um romance sobre sua juventude, quando ela era uma aspirante a escritora; nele, a personagem aspirante a escritora escreve uma história sobre uma jovem aspirante a escritora. A personagem está sentada no jardim com uma máquina de escrever, e o parágrafo de abertura do que ela escreve diz: “Fulana estava sentada no jardim com uma máquina de escrever”.

Isso é a imagem do diletantismo, ou do fetiche pela arte literária. Sylvia Plath é um bom exemplo de escritora de talento que foi consumida pelo fetiche. Desde muito cedo ela quis ser escritora, onde isso correspondia não tanto ao trabalho de quem tenta mapear o mundo com palavras, mas sobretudo a certos traços de personalidade supostamente comuns a quem escreve; escrever seria menos uma atividade com fins para além de si mesma do que um modo de ser e viver. É bastante natural que até certo momento tudo que se tenha seja uma inclinação vaga à expressão por meio de palavras, e Plath tinha isso genuinamente, o germe da literatura, mas ela acabou desperdiçando sua vocação (e, pior, sua vida) no culto a esse ídolo fajuto que é o Escritor Com Problemas Psicológicos. Mas antes fosse esse seu único ídolo. Quando estava feliz, Plath cultuava o Escritor de Salões Literários. Há uma passagem em seu diário em que ela exclama (cito livremente, de memória; só por muito dinheiro eu abriria de novo o diário da Sylvia Plath): “Eu nasci para isso! Para presidir reuniões literárias e ser a mulher escritora de um escritor!” Que lindo, Plath... Trocando a vida real por estereótipos livrescos, não é de se estranhar que seu casamento com o (também poeta) Ted Hughes tenha virado uma guerra de egos que terminou com você inalando gás, sua feather-headed fool.

De fato, conhecer as trajetórias pessoais e artísticas dos escritores nos ensina muito. Conhecer a história de Sylvia Plath me ajuda a manter meus próprios fetiches no cabresto (nem sempre consigo, mas estou tentando). Outro diário muito interessante de se ler é o do Lúcio Cardoso. Eis outro exemplo de vontade ardente de ser escritor, mas sem a correspondente capacidade de controlar os próprios demônios. Lúcio Cardoso atirou para todos os lados: conto, novela, romance, poesia. Foi em tudo medíocre. Seu diário, porém, revela um espírito profundo e um pensador capaz. Acompanhar as muitas páginas de suas considerações literárias e filosóficas e as anedotas de suas batalhas pessoais nos ensina uma grande lição de humildade: mesmo os mais aplicados aspirantes a literatos podem dar em nada – e com grande frequência é o que acontece. Dizendo ainda de outro modo: o mundo não estará necessariamente interessado nos ardores do seu coração, aspirante a escritor. Sim, o diário do escritor fracassado deveria ser leitura obrigatória a todo aspirante a escritor. (Nota maldosa: Lúcio Cardoso não respondia as cartas de Clarice Lispector, que na juventude teve por ele uma paixão não correspondida. Ela, que foi a escritora com “E” maiúsculo que ele nunca conseguiu ser. Aqui se faz, aqui se paga.)

Mas é claro que também devemos olhar para os exemplos de sucesso. E é claro que entre estes eu citarei Dostoiévski. É verdadeiro dizer de Dostoiévski que todos os seus protagonistas eram partes dele mesmo. Mas não é menos verdadeiro dizer que sua grandeza estava em saber ser outros, e outros extremamente opostos a si próprio. A literatura de Dostoiévski põe em prática a ética do amor ao próximo. Como em sua própria casa, ele recebia em cada um de seus livros os tipos humanos mais abjetos, dava-lhes de comer e beber, abrigava-os e conversava com eles de igual para igual. Seus protagonistas eram ele mesmo na medida em que representavam problemas que o moviam. Quando Dostoiévski começava a escrever um novo romance, era porque estava engasgado com algum desses problemas, que em sua escrita tomavam a forma de um ou mais homens (porque no mundo real também eram formas humanas). Dostoiévski não sentava para escrever sobre Dostoiévski querendo escrever; seu uso de experiências biográficas não era de fundo narcisista, era, quando muito, uma das pontas do novelo de suas criações literárias (desejo sorte aos que tentarem encontrar a outra ponta). O que impelia Dostoiévski à palavra era, primeiro, a urgência de resolver para si certos problemas e, segundo, a intenção de modificar os homens ao seu redor. “Ter o que dizer” é isso: é ter uma ideia melhor para o mundo em que você vive; é saber algo que, do modo como você o dirá, ainda não está dito. E pode ter certeza de que a cada dia tudo muda tanto que os problemas humanos, sendo sempre mais ou menos os mesmos, sempre podem ser revisitados.

Eu tenho grande confiança no potencial de utilidade de cada indivíduo humano. Não só cada homem é entre todos um universo único, mas em relação ao ambiente ao seu redor (sua família, seu grupo de amigos, seu país) esse – como dizer? – dom de originalidade torna-se ainda mais notável. Isto é, sempre há algo que nós, e muito especificamente cada um de nós, pode fazer pelo mundo que nos cerca. A cada dia não há nada de novo sob o sol, e ainda assim quanto não existe de importante, de imprescindível até, que vem sendo esquecido? Dizer incansavelmente as coisas importantes, repeti-las ao largo dos tempos, adaptando a mensagem aos olhos e ouvidos dos espectadores e ouvintes do momento presente – é para isso que no mundo existem escritores, além de engenheiros e professores de inglês. (Nota: Já me criticaram por “ficar falando do Bruno Tolentino como se fosse novidade quando há dez anos o Fulano e o Fulano já diziam tudo isso mimimi.” Pois é, e pode ter certeza de que, se daqui a dez anos mais gente não tiver se juntado ao coro, o serviço ainda estará incompleto.)

Agora, voltando a você, M.: acho que é possível ajudar um jovem escritor a partir de certo ponto – comentando seus escritos, por exemplo. Mas antes disso há um momento que eu creio seja inevitavelmente solitário, que é aquele em que você se pergunta onde está no meio de toda essa bagunça. O que há por trás do seu desejo de escrever? Qual problema causa em você essa alfinetada que impele às palavras? O que é isso que você tem a nos contar, que está diante dos nossos olhos, mas não vemos nem ouvimos? Após essas perguntas, todo o resto é trabalho braçal. E o trabalho não é pouco. Eu desconheço caminho além de ler e escrever, exaustivamente. De preferência, tendo leitores de confiança que sirvam de cobaias para suas tentativas – aliás, sem isso é praticamente impossível avançar.

E tentar, com todas as suas forças, não sucumbir à internet e aos elogios fáceis que a sustentam. 

sábado, 8 de junho de 2013

Jovens poetas e o cadáver inútil de Rilke

O texto abaixo é minha resposta a um e-mail que me enviou José Renato Lima.

*** 

José,

Acabo de me dar conta da existência deste gênero literário: resposta a carta deixada longamente por responder. Ele é facilmente identificável. Começa sempre com o devido pedido de desculpas pelo tempo em que o escriba deixou seu interlocutor “no vácuo”; em seguida, elencam-se os motivos para a deplorável demora e afirma-se ao interlocutor o quanto, o tempo todo, se endereçava a ele uma resposta imaginária; e, finalmente, discutem-se quaisquer que sejam os assuntos tratados na carta a que se responde. (Sim, Rilke, dirigindo-se ao jovem poeta, é por excelência o pai do gênero.)

Não respondi seu e-mail antes porque... estou a fim de ficar um pouco desligada do mundo, mesmo. E também porque não tenho conseguido pensar em poesia. Penso, mas penso pela metade, ou menos que isso; os últimos poemas que escrevi foram todos arrancados na marra de inspirações incompletas; teimei em concluí-los apenas para sentir o gostinho de colocar um ponto final num quadro de versos, mas não me satisfiz com nenhum.

O mestrado atrapalha: se eu passo o dia lendo e/ou escrevendo sobre a comuna camponesa russa (e é o que mais tenho feito), não sobra muita alma para a poesia. Pretendo, em julho, tirar algumas semanas de férias só para ler literatura e tentar colocar em prática alguns projetos literários.

Quanto à pergunta que você fez: "E agora, como fazer uma poesia viva hoje, par a par com os produtos da nossa alta cultura poética?" – É evidentemente uma questão para a qual não há uma única resposta, já pelo fato de que não há um só modo de interpretá-la. Se eu disser a um jovem brasileiro que para se escrever poesia em português é preciso absorver o sumo da tradição poética ocidental, e mais o que se conseguir das outras, e escrever constantemente, dominar as mais variadas formas fixas, conhecer diferentes idiomas, etc – isso ainda é apenas o começo do esforço (sua, por assim dizer, condição de possibilidade) para engendrar-se a uma voz poética eficaz. Eis o que me tem obcecado ultimamente – o problema da eficácia cultural da poesia. Erudição e habilidade técnica não solucionam a pergunta anterior ao “como”: que diabos quer dizer “fazer uma poesia viva hoje”? O que é poesia viva, para início de conversa? É poesia bem acabada formalmente? É poesia que fale ao coração de nossa época (mas o que é o coração de nossa época?)? É um diálogo com o contemporâneo obtido de uma reflexão sobre o passado? Ou vice-versa?... 

“Words, words, words!” E, enquanto isso, nada ameniza a sorte do jovem poeta brasileiro esmagado entre a página em branco e uma voz sem forma, sem quê nem pra quê. O jovem poeta brasileiro e seus versos de circunstância, e que quando decide alçar-se num voo mais pretensioso precisa despedir-se de sua identidade de “jovem” e “brasileiro”, precisa aprender a estar só e a falar para paredes que, provavelmente, nunca serão mais do que paredes – provavelmente não haverá a renovação da cultura, provavelmente não modificarão alma alguma os seus versos, que provavelmente não serão lembrados como os de Dante. Digo isso não por ter motivos concretos para prever qualquer coisa, mas apenas porque é preciso saber aceitar a possibilidade do fracasso; o poeta precisa aprender a não desesperar mesmo em meio às piores circunstâncias. Digamos, então, que o pior suceda – consideremos que sucederá necessariamente. É muito fácil ser poeta diante do prospecto de um renascimento das letras nacionais ou algo que o valha; o que eu quero é ver poetas capazes de escrever para o nada, para o abismo, entoando louvores à alegria – poetas anônimos e fadados ao esquecimento mas fiéis ao convite que nos faz a cada um de nós a beleza. Fiéis não apenas em sentimento, mas principalmente em disposição para o trabalho. Que o poeta em terras devastadas não se contente com chorar pitangas!

Pergunto-me se quaisquer versos escritos nos dias de hoje, por melhores que sejam, serão “lembrados”. Uma obra poética feita em símbolo de uma nação, de um povo, e que carregue adiante, na esteira dos tempos, a alma daquele povo. Pode ser que venha de fato a exprimir a alma de um povo. Mas carregá-la adiante?... Não sei se isso ainda é papel da poesia.

Repito: que diabos quer dizer “fazer poesia viva hoje”?! Por que, aliás, fazer poesia, se há o cinema, as artes plásticas, a música, a dança, o teatro – formas artísticas de tão maior apelo junto ao grande público? Há algo que se diga exclusivamente por meio da poesia, e que a justifique enquanto forma de expressão sui generis? Sim, a poesia devolve às palavras de uma língua sua pluralidade semântica original, e tem toda aquela coisa da consagração do instante, eu sei, mas a mim continua sendo um mistério de que modo a riqueza da poesia se devolve à realidade cognitiva, linguística e psicológica de um povo QUE NÃO LÊ.  Há sentido em se cantar um belo canto entre ouvidos moucos? Bruno Tolentino aconteceu à cultura brasileira, e ainda assim é possível ouvir o assobio do abismo não muito distante em nosso horizonte atual... Temos de dar mais tempo a que a obra tolentiniana faça sentir seus efeitos? Talvez. De fato, tenho visto poetas brotarem da influência de Tolentino. E esse é o único modo como consigo compreender, por enquanto, a eficácia cultural da poesia contemporânea: no intercurso entre indivíduos e obras; estabelece-se uma linguagem em comum entre uma pequena rede de buriladores da língua, que se modificam mutuamente; de que modo seu trabalho ecoará no “todo social”, grosseiramente iletrado no caso brasileiro, eu não saberia dizer, mas, pensando bem, há de haver um modo, pelo seguinte: há continuamente indivíduos sendo convidados a produzir poesia; é uma vocação estranha, em nossos dias até vergonhosa, que você só pode declarar em público disfarçando-a de passatempo, mas é real. E, se não fosse útil, não existiria. Será que isso faz sentido?

Enfim, José, sei que não respondi nada e só fiz mais confusão sobre confusão. Mas isto é o que posso oferecer nesse momento.

Pessoalmente, minha atitude para com tudo isso tem sido esta: mesmo sem entender bem por que, buscar a poesia; buscá-la no que há de mais “eu” em mim; o velho desafio de erguer o particularíssimo em universal. Não me refiro tanto à poesia “sobre impressões e sentimentos pessoais” como à poesia cuja forma é ela mesma moldada pelo caráter do indivíduo autor. Definição confusa, eu sei. Quero dizer que não se trata de “escrever sobre o que vejo e sinto”, mas de escrever sobre o que quer que seja, pela perspectiva do que eu sou. O poeta tem de ser capaz de escrever sobre tudo, absolutamente tudo; restringir-se aos temas de sua “mais íntima intimidade” é o cancro da má poesia recente. A mais íntima intimidade não deve ser conteúdo, deve ser forma. Desde que me dei conta disso, tenho tentado escrever sobre temas “exteriores a mim” – por exemplo, dar formato poético ao enredo de uma fábula ou conto qualquer. Isso é muito útil ao treino da expressividade; toda a pujança interior do poeta concentra-se no modo de dizer. (Os poemas que tenho postado no meu blog são a raspa do tacho: as tentativas em cujo potencial eu realmente confio estão aqui guardadas, fragmentos e mais fragmentos, esperando por uma fase onde haja, se não inspiração, ao menos concentração.)

E, finalmente, tento temperar tudo isso com a consciência de que posso – o que, aliás, é muito provável – não vir a ser poeta nenhuma. Sendo bem sincera, nunca me desceu bem essa coisa do Rilke de “se não puder escrever, morrerei”. Acredito que alguns escritores sintam-se assim. Clarice Lispector era uma delas. Mas propor essa questão a um jovem poeta, o qual está ainda a tatear sua possível vocação, me parece meio arriscado. Nunca vi aspirante a poeta que não se julgasse fulminado por um raio caso privado da possibilidade de escrever. Às vezes a coisa é sincera e é verdadeiro sintoma de vocação, mas acho que seria mais prudente da parte de Rilke sondar a disposição de seu pupilo por meio de questão menos arrojada, menos tempestuosa... Até porque, se o sujeito diz que se quer poeta, está meio que obrigado a declarar-se ameaçado de morte por tão terrível talento, sob o risco de cair em irremediável contradição.

De resto, consola-me a possibilidade mais plausível de que, na ausência de talento poético, ainda poderei ter filhos.

Já escrevi demais e não cheguei a grandes conclusões. Agradeço novamente por ter confiado a mim suas angústias, José. E peço desculpas novamente por não dispor de nada como respostas.

Um abraço,


Lorena

segunda-feira, 4 de março de 2013

Janelas sobre o caos


O Ad Hominem não é um blog de repostagens, mas consegui junto ao departamento de Marketing & Estratégia a autorização para publicar este texto de Bruno Tolentino, cuja leitura pelo maior número possível de pessoas considero uma medida de higiene sociocultural. O texto pode ser considerado, também, como a resposta de Tolentino à entrevista com alguns poetas contemporâneos brasileiros, publicada aqui há pouco tempo. E é, finalmente, uma oportunidade para divulgarmos o excelente site de Leonardo T. Oliveira sobre vida e obra do mencionado poeta. Vasculhem o site, leiam as entrevistas e artigos de Bruno Tolentino, aprendam mais sobre essa figura tão fundamental quanto subestimada em nosso país. 
***
por Bruno Tolentino
Entre as oito ou dez grandes línguas de cultura do Ocidente, nossa última flor do Lácio marca presença maior neste fim de milênio? Antes que uma resposta leve a novas perguntas, observe-se que é em sua lírica que toda civilização vai buscar o grão e o adubo que fazem – ou não – florescer uma “terra de cultura”. É no verbo poético que o espírito da língua encontra a seiva que há de nutrir a árvore múltipla do pensamento e da linguagem. Ensaio ou ficção, a mais iluminante e mais profunda prosa deita raízes naquele subsolo da sensibilidade que os poetas da raça tornaram fértil por meio do verbo em seu estado a um só tempo puro, elementar e maior. Em termos rilkianos, (“der unerschöpflich Eines, Reines, spricht”), a ininterrupta e límpida unidade “de discurso” do verbo água-de-fonte.
Um dos pais fundadores da cultura do Ocidente, Aristóteles reclamava para a poesia a dignidade de primórdio do ato cognoscente, dava-a como o “primeiro andar” do edifício do discurso humano, o instante intuitivo do seu quadrifólio desdobramento. A questão que nos legou persiste: pode uma cultura desenvolver uma arte da discussão política (Retórica), uma arte da triagem racional dos discursos (Dialética), ou uma técnica da demonstração apodítica (Lógica), sem antes possuir um universo mitopoético que funda a comunidade de sentimentos e valores em que se há de arraigar a credibilidade pública dos argumentos?
Nessa perspectiva, agrava-se a responsabilidade dos poetas, porque seriam os semeadores, dariam a medida das possibilidades futuras do espírito. Se Aristóteles tinha razão, o que se passa no horizonte intelectual do Brasil nos últimos tempos é preocupante. Senão vejamos: o horizonte mental do intelectual brasileiro de hoje, saiba-o ele ou não, é medido pela envergadura do Carlos Drummond de Andrade, nosso poeta maior até ontem. Ora, a poesia de Drummond é tão grande quanto é filosoficamente estreito o universo de concepções que nos legou. O homem drummondiano não parece ter por objeto de vida sobre a terra nada mais alto que a estetização do cotidiano e a busca das raízes, do telúrico, do “nacional”, pontilhado este último por arroubos de idealismo político-social.
É nesse sentido que a intelectualidade dos nossos dias passou a mover-se dentro da moldura drummondiana do mundo. Os impulsos de transcendência, a inquirição metafísica, a busca de uma dimensão sacro-mítica, o mesmo intuito religioso que a poderiam erguer acima do “mundinho poetizado”, ainda que poderosamente, pelo grande vate, ao fim e ao cabo satisfazem-se e esgotam-se com a luta política inflada em meta suprema da existência. O social “per se”, a história idealizada como locus de um suposto progresso ad infinitum, atingiram entre nós o nível de uma absurda paródia do sagrado, uma verdadeira (?) metafísica historicista, obviamente uma contradição em termos. Mas é justamente esta espécie de mal du siècle local que desbota e sufoca a vida do espírito no Brasil de hoje. Um impasse de suma gravidade, pois, como se há de moldar e afirmar o novo poeta maior dentro de uma moldura tão estreita e estrangulante? Se o father founder de nosso tempo, em vez de Carlos Drummond de Andrade, tivesse sido Fernando Pessoa, por exemplo, teríamos uma pletora de caminhos e opções, do pessimismo progressista de Álvaro de Campos ao ruralismo arcádico de Alberto Caeiro, do neoclassicismo agnóstico de Ricardo Reis à metafísica melancólico-messiânica do próprio Pessoa. E assim foi com Portugal, que os quatro heterônimos fecundaram do pós-guerra em diante.
Sobre esse ponto, a tempo: a tão lamentada reclassicização de nossa poesia, por volta de 1940, tem tanto a ver com o esgotamento da proposta modernista, o fracasso da estética da estridência, quanto com a chegada ao Brasil dos livrinhos da Ática cheios da inolvidável voz do célebre quarteto, sobretudo Reis e “ele-mesmo”, na bagagem de Jayme Cortezão, Augustinho Silva e outros ilustres exilados de Salazar. E, aliás, T.S. Eliot também pegou essa carona: é a Maria da Saüdade, filha de Jayme e noiva-quase-esposa de Murilo Mendes, que se deve sua introdução a nossos escritores, pouco anglófonos, da era. Existiria A Máquina do Mundo sem que Saüdade fizesse ler a um Drummond quarentão sua fina (e até hoje inédita) versão do Little GiddingI doubt it… O certo é que a Irlanda que se nutriu de Yeats foi especialmente visionária, bem mais do que rebelde. A Itália de Ungaretti e Montale oscilaria décadas inteiras entre a visão integral sacralizante de um e o ceticismo interrogativo do outro. Claudel e Valéry dividiram também, dramaticamente, uma França que caiu aos pes de Vichy e gerou o levante gaulista: Jeanne D’Arc versus Candide. A tragédia espanhola espelha-se na dicotomia de Unamuno e Machado, a Espanha peregrina nasce no túmulo de Lorca… E assim por diante. Se qualquer desses tivesse sido nosso poeta maior, dificilmente teríamos a viver hoje um panorama tão acabrunhante.
Ora, se é ao poeta, espécie maior de um momento crucial da raça, que cabe buscar e fundar o novo Mitus a ser subseqüentemente iluminado pelo advento racional do novo Logos, é a essa figura epônima que se voltam por força os olhos de um antologista. Digo isso porque venho limpando as lentes e apertando os olhos desde que certa editora européia me pediu uma “Apresentação da Poesia Brasileira” desta segunda metade do século. O desafio me tem dado tratos à bola por conta das considerações acima. Como compor um panorama que, por especificação de quem o encomenda, deve compreender o período pós-João Cabral de Melo Neto, ou seja, excluí-lo e aos sete grandes que o precedem, Manuel Bandeira, Drummond, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes e Murilo Mendes? O ponto de partida é óbvio: é imperativo começar por Ferreira Gullar e Mário Faustino, seguir com Adélia Prado e Alberto da Cunha Melo, somar-lhes os universos particularíssimos de Manoel de Barros e Gerardo Mello Mourão, e o segmento da vanguarda que não abandonou o discurso, ou seja, Mário Chamie. Até aí, tudo é ponto pacífico, mas prosseguir em que direção, com que metro e tendo em vista que horizonte?
O que você faria, leitor? Reflita no que lhe propus acima e compadeça-se desta escriba. Use meu e-mail para vir ao socorro de minhas perplexidades e responsabilidades em tarefa tão ingrata. Mais que bem-vindas, suas sugestões serão meditadas e respondidas. Temos seis meses para que o livro saia, em setembro. Já tem nome: o muriliano Janelas sobre o Caos: A Poesia do Brasil ao ano 2000. Todos os autores deverão ter nascido durante a primeira metade do século que se acaba, isto é, até 1950. Disporão de 400 páginas, mas olhe que não se trata de uma meia dúzia qualquer… Ou ando otimista demais?

In: Revista Bravo! n. 29, fevereiro/2000, pp. 21-2.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Ad Hominem Entrevista: Poetas Brasileiros Contemporâneos


Dando sequência ao Ad Hominem Entrevista, conversamos com alguns nomes representativos da mais recente poesia brasileira. Eles responderam às seguintes questões:

Há atualmente duas atitudes extremas em relação à poesia brasileira contemporânea: uma, pessimista e saudosista, considera que a poesia no país perdeu-se à altura dos anos 1960 e desde então vem lutando, sem sucesso, para reencontrar-se; outra, normalmente entusiasta das novas poéticas urbano-pós-modernas, crê que a poesia, como as artes em geral, vai muito bem nesse Brasil do início do século XXI, afinal de contas os saraus universitários vão de vento em popa.
Qual sua percepção sobre o estado presente da poesia brasileira? Como você avalia sua obra dentro do cenário atual? Essa segunda pergunta pretende abranger tanto suas intenções quanto os resultados concretos que já alcançou com sua poesia.

O objetivo era que o entrevistado respondesse a uma caricatura, cabendo-lhe desenhar um cenário mais realista para a poesia brasileira contemporânea. Felizmente a proposta deu certo e obtivemos excelentes pontos de vista que, cotejados, nos dão uma boa ideia do que se passa no âmbito de nossos fazedores de versos.

Com a palavra, os poetas:



Emmanuel Santiago São Lourenço-MG, 1984. Autor de Pavão Bizarro, ainda inédito.

Com a internet e a proliferação de editoras de menor porte e revistas especializadas, a produção poética foi muito pulverizada. Por um lado, o fenômeno é positivo, pois torna muito mais fácil a divulgação do trabalho, principalmente para poetas estreantes; por outro, torna mais difícil para os bons poetas colocarem a cabeça para fora da boiada, destacando-se. Criou-se, no Brasil, uma situação paradoxal: há uma inflação na oferta de poesia ao mesmo tempo em que houve, de umas décadas para cá, uma retração da cultura literária entre o público, daquele background necessário à fruição da literatura mais exigente, o que afeta, sobretudo, a recepção da poesia. Como consequência, há pouca ou nenhuma possibilidade de um novo poeta construir seu nome pelo reconhecimento do público, de um público mais amplo e heterogêneo, que atravessa diferentes grupos sociais, com formações culturais diversificadas. Ficamos então cada vez mais dependentes de pequenos grupos que, devido a sua posição no campo literário, são capazes de conceder algum prestígio. O problema é que tais grupos funcionam geralmente segundo a lógica da panelinha, em situação de constante concorrência institucional com os demais, o que significa que um poeta reconhecido em determinado círculo corre o risco de ser excluído dos círculos concorrentes.

Tendo em vista tal lógica de funcionamento do campo literário atual, devo reconhecer que fiz algumas péssimas escolhas quando resolvi levar a sério a poesia. Em primeiro lugar, cortei uma possibilidade de identificação com um público maior, em meio ao qual vigora uma concepção da poesia como a expressão exclusiva de sentimentos e emoções, de conteúdos de natureza irredutivelmente pessoal — a ideia da poesia como confissão íntima do poeta. Abracei, logo de saída, um construtivismo eivado de reflexões metalinguísticas, de referências intertextuais e demonstrações de virtuosismo técnico, que contrariam a noção de que a poesia deva ser algo espontâneo e natural. Tais características, que integram o repertório das mencionadas “poéticas urbano-pós-modernas”, não são o suficiente, entretanto, para me facultar a entrada no círculo dos poetas antenados, da poesia up-to-date, devido ao meu flerte descarado (meio irônico, meio a sério) com as poéticas do final do século XIX, como o simbolismo e o malfadado parnasianismo, detestado por toda a galerinha que se filia à escola que vai desde nossos primeiros modernistas — sobretudo Oswald e Mário de Andrade —, passando pelo concretismo, até chegar aos tropicalistas e poetas marginais. Tenho uma compreensão artesanal do trabalho poético, que parece estar ultrapassada. Contudo, tampouco posso ser sumamente vinculado a uma poética tradicionalista, pois incorporo muitos procedimentos que tiveram sua origem com a experimentação poética levada a cabo pelos concretistas. Para piorar, minha poesia — que visa, muitas das vezes, o efeito de choque — assume alguns tons que podem desagradar sensibilidades mais suscetíveis, apelando constantemente para o erotismo, a pornografia, o sadismo, o satanismo, a blasfêmia etc. Pelo que pude notar também, o caráter fortemente virtuosístico de minha poesia tem um potencial de desagradar a gregos e troianos.

Em suma, minha poesia se dirige contra um amplo arco de expectativas de recepção, o que tende a me deixar isolado, de fora das panelinhas, não por uma grande originalidade de minha parte, mas pelo grande número de dissonâncias que procurei deliberadamente incorporar ao meu trabalho. Acho que para tal situação contribuíram tanto um espírito de revolta juvenil quanto uma tendência pessoal ao individualismo, assim como o fato de minha formação cultural e intelectual ter se dado fora dos grandes centros nos quais as linhas dominantes da poesia contemporânea (e aquelas que a elas reagem) se consolidaram. Um misto de idiossincrasias e condições geográficas, portanto, é em grande parte responsável pelo não lugar que minha poesia ocupa frente ao panorama atual.

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Érico Nogueira Bragança Paulista-SP, 1979. Autor de O Livro de Scardanelli (2008) e Dois (2010), ambos pela É Realizações.

Desde logo, dizer que a poesia brasileira vai bem ou vai mal não implica, creio, subscrever as posições ou atitudes extremas, como você as descreve. Há uma pletora de razões possíveis que podem justificar um juízo positivo ou negativo a esse respeito. No que me toca a mim – e seguindo, nisto, o conselho de Pound, que propôs e realizou, em poesia, o que chamou de crítica por comparação –, acho que a poesia brasileira vai bem, obrigado, e isto simplesmente porque leio e vibro com certos poetas contemporâneos em quem noto enorme competência técnica aliada a sensibilidade, bom gosto e profundidade de pensamento e emoção: gente pra quem a poesia, em suma, como bem disse o Drummond, “é toda a minha vida que joguei”. Quem acha que exagero vá ler o Cláudio Neves e o Marco Catalão, por exemplo, compare-os com o Murilo ou o Bandeira dos dois ou três primeiros livros, e tire suas próprias conclusões. Nesse sentido – isto é, partindo da comparação mais ou menos objetiva de grandezas poéticas mensuráveis, tais como a perícia técnica, o escopo teórico e teor emocional de um poema –, não temo dizer que Yacala, de Alberto da Cunha Melo, é o maior poema-livro que já se escreveu por aqui, seguido de perto por A balada do cárcere, de Bruno Tolentino. De modo que, pra mim, o auge da poesia brasileira foi o final dos anos noventa, veja só.

Quanto à minha poesia, gosto de vê-la na confluência entre João Cabral, Bruno Tolentino e Haroldo de Campos – mistura explosiva, logo se vê. Do primeiro herdei a obsessão pelo rigor formal; do segundo, a tendência a filosofar sobre a forma; – e do terceiro, enfim, a compreensão profunda de que a tradução é uma das atividades mais nobres e úteis a que um poeta pode se dedicar: e é uma verdadeira “singing school”, além disso, como diz o Yeats naquele poema.  

Finalmente, sou um poeta classicista e um classicista poeta, à semelhança dos bibliotecários de Alexandria – coisa que o Pedro Sette-Câmara já disse, aliás, referindo-se a certa atitude mais ou menos comum a vários poetas brasileiros, hoje. Não separo a atividade acadêmica, de investigação de problemas filológicos, da atividade propriamente poética, de tradução de poesia alheia e invenção da própria. O que aprendi com o mestre e amigo João Angelo Oliva Neto, pesquisador de ponta e tradutor de escol – o melhor em atividade, hoje, no Brasil.

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João Filho – Bom Jesus da Lapa-BA, 1975. Autor de Três sibilas (Ed. Dulcinéia Catadora, 2008) e A dimensão necessária e Raízes aéreas, ainda inéditos.

Apesar de geral, tendo a concordar com essa descrição inicial dos dois extremos. A reinvenção da roda, o vanguardismo a todo custo, é mais insistente na poesia do que na prosa brasileira. O que denota uma perspectiva equivocada com o tempo histórico, que, nesse caso, é amputado, quando muito tratado como objeto e quase nunca como diálogo autêntico, reciprocidade. E falo de cátedra, pois passei por tudo isso. No entanto, atualmente, há um nicho no qual certa linhagem poética prospera; são alguns elementos delineadores dessa linhagem o diálogo consciente com a tradição ocidental, reutilização inteligente das formas fixas e do verso livre, a verticalidade (mas nem sempre) do conteúdo, a condição humana trabalhada em termos metafísicos etc.; esses elementos dialogam com poetas do tipo como Cecília Meireles, Alphonsus de Guimaraens Filho, Dante Milano, Orides Fontela, Alberto da Cunha Melo, Hilda Hilst, Bruno Tolentino, para citar alguns. Penso que o que escrevo se inclui aí. Uma das minhas ambições é o livro-poema, uma unidade perfazendo o conjunto. E a busca incessante de cruzamentos de ritmos, formas, vozes, construções etc. Com isso, a tentativa é abarcar o máximo de possibilidades possíveis, por isso criei heterônimos: o poema-flash assino como Lúcia Delorme; o soneto, como Fabiano Garcia Meireles; o poema ético-narrativo longo, como Dom Filipe; como João Filho assino os poemas com maior tendência metafísica. Confesso, porém, que insatisfação e insegurança soem estar de sentinela. O conteúdo, que para mim é importante, contempla-se no que disse O. Maria Carpeaux citando I. A. Richards, que por sua vez citava o Chung Yung, livro clássico chinês “o isolamento do homem no universo, a pavorosa incompreensibilidade de nascimento e morte, a imensidade do espaço e o lugar do homem no tempo, e a nossa infinita ignorância humana que nos impõe a humildade.”

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Marco Catalão Campinas-SP, 1974. Autor de Palimpsestos (2008), O Cânone Acidental (É Realizações, 2010), Sob a face neutra (Funarte, 2012).

Minha percepção sobre a poesia brasileira contemporânea é lacunar e arbitrária. Depois de ter me interessado sinceramente por dezenas de supostos gênios anunciados pelos cadernos culturais ― e de ter me decepcionado repetidamente com cada um deles ― fui ficando escaldado, e hoje não leio mais do que dois ou três por ano. Mas não sou saudosista a ponto de imaginar que tenha havido uma “época de ouro” da poesia brasileira. Hoje, como sempre, basta um pouco de paciência para encontrar um ou outro bom poema em meio a centenas de poemas medianos e milhares de poemas medíocres. Difícil mesmo, terrivelmente difícil, é descobrir um livro memorável, e mesmo na primeira metade do século XX não encontramos mais do que meia dúzia de livros de poesia realmente memoráveis. Onde estaria o Claro enigma ou o Libertinagem da última década? Ainda não os encontrei, mas isso não significa que eles não existam... 

Com relação à segunda pergunta, eu me vejo como uma daquelas tartaruguinhas que acabaram de sair dos seus ovos e se arrastam desajeitadas em direção ao mar. Olho para um lado e vejo o poeta Érico Nogueira se lançando numa direção; olho para o outro e observo que o poeta Ricardo Domeneck segue no sentido oposto; à minha direita, o poeta João Filho tenta um caminho alternativo; à esquerda, o poeta Caio Gagliardi aponta uma quarta via... E esses são só os mais próximos numa multidão de tartaruguinhas. Sei que a maior parte de nós sequer vai conseguir chegar ao mar e vai cozinhar na areia escaldante. Mesmo entre as que escaparem do sol e da areia, a maioria vai ser engolida na água rasa pelos peixes que há muito tempo esperam com a boca aberta. O que eu posso fazer, a não ser me lançar na direção a que o meu instinto e a minha precária razão me impelem? Para mim, escrever poesia é isso: uma aposta cega e absurda, sem qualquer garantia de êxito.

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Mariana IanelliSão Paulo-SP, 1979. Autora de Trajetória de antes (1999), Duas chagas (2001), Passagens (2003), Fazer silêncio (2005), Almádena (2007), Treva alvorada (2010) e O amor e depois (2012), todos pela Ed. Iluminuras.

O que vejo é, de um lado, uma poesia mais suspicaz e, de outro, uma poesia que ainda acredita no inefável. Não são incomunicáveis, pelo menos, certas expressões poéticas, quando produzem menos admiração que desconfiança, abrem grandes espaços vazios onde fica visível o desafio de ainda ser capaz de comover, de vincular, de saber ler a realidade na sua dimensão simbólica. Poesia e espírito crítico hoje vêm juntos e inspiração é um termo que acabou degenerado por más interpretações, mas a poesia que me importa dentro desse panorama é a que não se esgota em justificações teóricas ou literárias por mais consciencioso que seja o trabalho do poeta, uma poesia que inclui mistério, sutileza, comoção, que se coloca no lugar da paciência e do silêncio, não competindo com uma época que promove seu contrário, uma poesia, portanto, otimista num sentido menos aparente e nada imediato.

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Paulo Henriques Britto – Rio de Janeiro-RJ, 1951. Autor de Liturgia da matéria (Civilização Brasileira, 1982), Mínima lírica (Livraria Duas Cidades, 1989), Trovar claro (Companhia das Letras, 1997) e Macau (Companhia das Letras, 2003).

O negativismo em relação à poesia atual normalmente tem uma de duas causas.

Uma, comum em todas as épocas, é o que podemos chamar de falha de perspectiva. O crítico olha para trás, e vê no passado Bandeira, Drummond, Jorge de Lima, Murilo Mendes, João Cabral; aí olha a sua volta, não vê nada comparável e diz: estamos na decadência. Quando a gente lê sobre a história de uma arte, seja a poesia ou a música ou qualquer outra, volta e meia encontra esse sentimento. Não tenho dúvida que mais de um contemporâneo de Leonardo e Michelangelo, contemplando a arte da Grécia, exprimiu sentimentos semelhantes, sem imaginar que as gerações seguintes viriam aquele momento que ele próprio estava vivendo como um dos maiores na história da arte ocidental. A falha de perspectiva tem dois aspectos: (a) Contrastar “o passado” com “o presente” é injusto, porque “o passado” é, por definição, muito mais extenso que “o presente”. Bandeira, Drummond e Cabral pertencem a três gerações diferentes; o período em que Bandeira estava no auge não é o mesmo em que Cabral publicava suas obras definitivas. Sem dúvida, há períodos em que há mais grandes artistas atuando do que em outros, mas (b) é sempre mais difícil julgar o presente do que julgar o passado; o que está próximo demais não pode ser visto com nitidez. É só do ponto de vista de agora que podemos avaliar, por exemplo, a década de 1950 como um período de extraordinária criatividade para a poesia brasileira. Para quem estava vivo e acompanhando a poesia na época, o quadro ainda não estava tão claro; muitas vezes só se faz justiça à grandeza de uma obra com um certo distanciamento no tempo. É só daqui a vinte anos que vamos poder ter uma visão distanciada do momento atual.

A outra causa do negativismo é um problema especificamente brasileiro — ou, talvez, de nações que, como o Brasil, acabam de sair de um longo período de construção nacional. Podemos dizer que mais ou menos entre o romantismo e a tropicália, um período de pouco mais de um século, a questão do que significava ser brasileiro era a que mais preocupava os artistas e intelectuais. Era importante afirmar-se brasileiro — num primeiro momento, em oposição a Portugal; depois, em oposição à França; e por fim, já chegando ao meu próprio período de formação (anos 60), em oposição aos Estados Unidos. A tropicália foi, sobre esse aspecto, a última das vanguardas e uma antivanguarda; ao contrário das vanguardas propriamente ditas, que se definiam por negatividade — os naturalistas negando os românticos, os modernistas de 22 negando o parnasianismo, o concretismo negando a geração de 45, o poema-práxis atacando os concretos — a tropicália se definiu justamente pela inclusividade: João Gilberto e Roberto Carlos, baião e rock, Batman e macumba. Os tropicalistas, em última análise, estavam afirmando: o Brasil, enquanto nação, está construído, e é um construto sólido o bastante para não precisar mais temer o estrangeiro; também a arte sofisticada não precisa amaldiçoar a arte de consumo, porém pode utilizá-la como matéria prima. Mas alguns críticos, da minha geração ou um pouco mais velhos, até hoje continuam mentalmente no período pré-tropicalista. Para eles, a poesia tem que ser, como dizia Mário de Andrade, uma arte “interessada”, contribuindo para a construção do Brasil, criticando o capitalismo, afirmando valores genuinamente nacionais etc. — ou então, ainda dentro da lógica da vanguarda, realizando experiências formais radicais, dando mais “um passo à frente” em relação aos últimos movimentos e afirmando a posição do Brasil como nação “moderna”. Para esses críticos, tanto os da vertente engajada quando os da vanguardista, uma poesia que não esteja interessada na questão nacional, ou que não seja o dernier cri em matéria de experimentação, não tem nenhum valor. Eles não conseguem entender por que motivo os poetas do século XXI não são mais como os poetas da primeira metade do século XX, porque jamais conseguiram sair da primeira metade do século XX.

A meu ver, a poesia [brasileira] vai bem. Há muitos poetas em atividade, o que me parece algo positivo: quanto mais praticantes de uma arte, maior a possibilidade de que ao menos uns poucos entre eles venham a se tornar grandes artistas. Dos poetas de agora, uns me parecem melhores, outros mais fracos; como todo mundo, tenho minhas preferências, meus critérios de avaliação; mas o fato de eu estar imerso no presente me nega aquele distanciamento que me parece fundamental para uma avaliação mais certeira. Creio que daqui a uma ou duas décadas grande parte da poesia produzida agora vai se revelar efêmera, e uma outra parte — necessariamente menor — vai perdurar. Não posso ter certeza de que os poetas que me parecem os mais fortes agora sejam os que vão ficar; é bem possível que algum poeta que eu nem conheça, que tenha publicado um ou dois livros mal distribuídos, ou que ainda nem tenha saído em livro, venha no futuro a ser reconhecido como o principal nome do nosso tempo. Quem viver verá.

Se já é difícil avaliar a poesia dos contemporâneos, avaliar a poesia que se produz, então, é dificílimo. Deixo essa avaliação para os outros. Não sou um vanguardista; não escrevo com intenções de atingir tais e tais resultados concretos. Escrevo os poemas que consigo escrever.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Ad Hominem Entrevista: Rodrigo Gurgel

Prêmios literários no Brasil obedecem a uma curiosa regra: existem para confirmar reputações tidas e havidas como indiscutíveis ou alavancar reputações futuramente tidas e havidas como indiscutíveis. O que menos se espera de um jurado, aparentemente, é que julgue e premeie obras literárias de fato relevantes. E se a literatura brasileira “é uma das formas mais eficazes do tédio”, da crítica literária brasileira não se poderia mesmo esperar outra coisa que não enfado e subserviência.


Ocorre que, de tempos em tempos, aparece alguma figura rigorosamente sensata que, de tão deslocada no cenário nacional acostumado a pantomimas e salamaleques, passa a impressão de quixotesca ou, como se costuma dizer nesses casos, polemista.


É o caso de Rodrigo Gurgel, o famigerado Jurado C, na última edição do nunca assaz celebrado Prêmio Jabuti. Desde o desaparecimento do curitibano Wilson Martins, não se tinha notícia de crítico que julgasse obras literárias com os dois únicos ou principais critérios com que se espera um crítico julgue uma obra e, por conseguinte, seu criador: inteligência e honestidade inegociável.

Gurgel acaba de se tornar figura non grata entre os escritores e respectivos editores que preferem a adulação ao julgamento; o compadrio ao destemor; a imitação à literatura. 

E é com tal figura a nós gratíssima que achamos por bem começar o Ad Hominem Entrevista.

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Você provocou um pequeno rebuliço nos meios editorial e literário brasileiros apenas por julgar um livro a partir do que considerou seus deméritos intrínsecos, e não pelo nome do autor. Qual a sua avaliação final do incidente? O que lhe diz sobre as condições da crítica literária hoje no Brasil?


Como já disse em meu blog, a avaliação do incidente pode ser resumida no pensamento de Samuel Johnson: “É difícil contentar aqueles que desconhecem o que exigem ou aqueles que exigem propositalmente o que julgam impossível obter”. No que se refere à crítica literária, em 2010, numa entrevista ao jornal O Globo, o professor de literatura da PUC-RJ, Karl Erik Schøllhammer, questionado pelo jornalista Miguel Conde sobre os críticos que receavam fazer julgamentos de valor, respondeu claramente: “As pessoas não têm coragem. A dura verdade é essa. Existe no Brasil uma cordialidade exagerada entre crítica e escritor, que é ambígua, mas que é mantida assim: o crítico diz para o autor ‘Isso é muito bom’, mas vira a cabeça e diz ‘Isso é uma droga’. Essa cordialidade, essa falsa afinidade, essa conivência bloqueiam a franqueza na discussão. Com poucas exceções. Existem algumas exceções na crítica brasileira”. Quando li essas palavras, fiquei em estado de júbilo: alguém pensava como eu. Essa é, portanto, minha avaliação. Grande parte dos nossos críticos esconde sua opinião nos jargões acadêmicos exatamente para não julgar. Quando não utilizam o discurso hermético, ficam naquilo que minha avó chamava de “conversa para boi dormir”. Nos dois casos, trata-se do que eu chamo de síndrome do bom-mocismo. No fundo, uma forma de hipocrisia.
Por falar em julgar uma obra pelo que lhe é intrínseco... O seu livro, Muita Retórica Pouca Literatura (Vide, 2012), adota um procedimento similar aos do new criticism: comentar os textos lidando com passagens específicas, sem se afastar da materialidade da obra para incorrer em afirmações muito genéricas. É de se supor que considere esse um procedimento útil aos nossos meios jornalístico e acadêmico. Ou não? E por quê?


Utilizo essa forma de analisar o texto por um motivo didático e não por ser filiado ao new criticism. Não entendo a crítica literária como um exercício acadêmico e narcisista, que busca apenas sua autossatisfação. Não. A crítica literária é um instrumento a serviço do homem. Serviço, aliás, extremamente honroso, pois elabora o diálogo que sempre deve haver entre a obra literária e o leitor. O discurso da crítica é imprescindível e deve ser feito com destemor e autoridade. Sem ele, sem a crítica, teríamos o depauperamento da cultura, da própria civilização. 

Qual é, na sua opinião, o papel da literatura na vida humana?

A literatura pode servir como bom passatempo. Pode também desempenhar o papel de força inspiradora – são inúmeros os casos de escritores que, antes de começar o exercício diário de escrita, leem uma ou duas páginas de autores geniais. Mas ela tem duas funções primordiais. A primeira é permitir ao leitor que ele se abra à variedade da experiência humana; ou seja, reconstituir, na imaginação, os conflitos humanos, como Olavo de Carvalho sempre repete. Poucas pessoas têm a oportunidade, em suas vidas, de experimentar, por exemplo, situações em que uma extrema coragem é exigida. Refiro-me àquele momento em que você se torna herói ou covarde. Em termos morais, em termos de aperfeiçoamento da personalidade, trata-se de uma situação fundamental, que testa os limites do ser humano. Pois bem, a literatura coloca nas mãos do leitor a chance de experimentar tal realidade, ainda que de forma, digamos, oblíqua ou indireta: basta ler “Lorde Jim”, de Joseph Conrad. A segunda função primordial é “ajudar o indivíduo a se confundir, em paz e na alegria, com a uniformidade do ser”. Essa ideia, defendida por Milan Kundera, agrada-me, pois é um aprofundamento do que costumamos chamar de leitura por prazer: na verdade, essa relação prazerosa com a literatura é apenas o sintoma de algo mais profundo: nossa reintegração no Ser.

A visão de mundo do crítico (sua religião ou ausência dela, bem como convicções morais e políticas) influi na atividade crítica de maneira geral? E no seu caso específico; se você visse a realidade de maneira diferente, sua opinião sobre obras literárias seria afetada?

Essa é uma pergunta que não pode ser respondida com um “sim” ou um “não”. O fato de eu ser católico impregna toda a minha vida, todo o meu ser. O crítico literário francês Patrick Kéchichian, convertido, creio, em 2009, afirma com sabedoria: “Católico não é um adjetivo, mas um substantivo. Não sou um crítico ou um escritor católico; sou crítico, escritor e católico”. Então, é evidente que a fé católica está comigo não só quando leio uma obra. No entanto, penso como Robert Louis Stevenson. Em um de seus ensaios, “The Morality of the Profession of Letters”, ele diz que, na verdade, quando se trata de literatura, todos, escritores e críticos, dispõem de uma só ferramenta: a empatia. Ele afirma que (traduzo sem ser literal) “quando um livro é concebido sob grande tensão, com um espírito que, graças a essa tensão, multiplicou seu poder, aqueceu e eletrificou, por meio do esforço, a sua obra, as condições do nosso ser se veem presas de uma iluminação tão vasta que, ainda que o conceito básico da história seja trivial ou vulgar, não pode deixar de surgir do livro algo belo e verdadeiro”. E concluía: “Da força nasce a doçura; mas algo ruim pobremente executado é algo ruim do princípio ao fim”. Esses trechos resumem a maneira como me aproximo de uma obra literária: disposto à empatia, ainda que o tema seja, digamos, anticristão; certo de que a beleza e a verdade vencem tudo, inclusive um tema eticamente duvidoso.


Você considera que a literatura brasileira tenha valor verdadeiramente universal, e que nossos escritores – os maiores, especialmente: Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Osman Lins – possam ser colocados, lado a lado, com os maiores ficcionistas do cânone literário?



Temos ótimos escritores, mas nenhum pode ficar, lado a lado, com Dante Alighieri, Tolstói, Dostoiévski, Henry James ou Joseph Conrad. Somos um país que ainda está engatinhando. Temos um Manuel Bandeira, cuja obra caminha, ombro a ombro, com a maioria dos poetas do século XX. E Machado de Assis, claro. Mas nenhum deles é um desses gênios cuja leitura é obrigatória a toda a humanidade. Um russo, por exemplo, pode passar a vida sem ler Machado, mas não sem ler Shakespeare. 


Hoje, muitos jovens no Brasil têm saltado a formação literária para ir direto ao estudo de outras áreas, como filosofia, ciência política e economia. A ignorância da literatura brasileira, em específico, excetuado um Machado ou um Bandeira, é até bem maior. O que você pensa a respeito?

Nosso sistema escolar é medíocre. Basta ver as listas de compra de livros de ficção para escolas públicas. Ali há autores contemporâneos brasileiros que, dentro de duas décadas, já estarão na lata de lixo da história literária. Outros demorarão um pouco mais... Na verdade, a escola se encarrega, hoje, de transformar os alunos em presas fáceis de quaisquer discursos, de qualquer besteira ou mentira lida ou ouvida na Internet, nos jornais, na tevê. O país está se desintegrando sob um populismo rasteiro. Os jovens não são treinados para serem mestres do seu próprio intelecto. Essa expressão, aliás, não é minha, mas da escritora Dorothy Sayers, que no ensaio “The Lost Tools of Learning” resumiu bem, creio que na década de 1940, o problema que só se agravou até hoje. A solução defendida por Sayers, ainda que radical, é a que recomendo a quem me pergunta como romper essa ordem na qual o cinismo marxista tornou-se hegemônico: devemos retornar ao Trivium. Qualquer outra saída será apenas um paliativo. 

O seu livro – assim como o que lhe seguirá – trata apenas de prosadores brasileiros. De um modo geral, o que você tem a dizer sobre a poesia brasileira?

Como leitor, digamos, profissional, dedico-me exclusivamente à prosa. Leio poesia, mas minha relação com esse gênero é essencialmente amorosa. Tenho alguns poetas que aprecio – e sempre retorno a eles. E, em suas obras, gosto às vezes de alguns poucos poemas. É o caso de Carlos Drummond de Andrade, por exemplo. Dos brasileiros, só Bandeira tem meu amor irrestrito. 

Certa vez Olavo de Carvalho afirmou que Bruno Tolentino era o maior poeta em língua portuguesa desde Camões. Na sua opinião, qual o papel de Tolentino para essa nova geração de poetas brasileiros?

Sempre que penso no Tolentino lembro-me de meu professor de latim na PUC-SP, o brilhante padre Matheus Nogueira Garcez. Tínhamos duas aulas por semana com ele – e sempre éramos premiados com um dito irônico sobre os concretistas. Só percebi muitos anos depois como aqueles comentários tinham o efeito de um conforto moral, pois ali, no templo semioticista paulistano, em que pontificava, na pós-graduação, o próprio Haroldo de Campos, alguém tinha coragem de ir contra o pensamento hegemônico. Tolentino foi um dos que ousou apontar as deficiências do movimento e os males que sua hegemonia causou. Ao mesmo tempo, a poesia de Tolentino tem o mérito de recuperar à nossa imaginação a força, a energia das formas fixas. Temos, em língua portuguesa, uma versificação riquíssima – basta ler o Tratado de versificação, do Olavo Bilac –, mas que permanece, apesar dos esforços do Tolentino, esquecida. Como disse Manuel Bandeira, “precisamos urgentemente voltar à métrica, à rima, à sintaxe lusíada [...]. O modernismo era suportável quando extravagância de alguns. Agora é a normalidade de toda a gente. Então depois que reinventaram a brasilidade, a coisa tornou-se uma praga. [...] Confesso que acho um certo sabor nos poemas dos iniciadores. Os meninos que vieram depois é que estão caceteando”. E continuam caceteando até hoje. 

A presente geração é marcada pelo advento da Internet. Uma das consequências dessa nova realidade é que as pessoas podem produzir literatura e publicá-la imediatamente, em sites e blogs, sem a mediação de editores e casas de publicação. Você vê esse cenário com bons olhos?

O cenário é irreversível. E permite, como a própria realidade, coisas boas e ruins. A “estranha pretensão” de que falava Ortega y Gasset, a pretensão “de ser mais que qualquer outro tempo passado; mais ainda: por se desligar de todo o passado, não reconhecer épocas clássicas e normativas, e ver-se a si mesmo como uma vida nova superior a todas as antigas e irredutível a elas”, veio para ficar. O homem-massa é indestrutível. Vivemos e viveremos sob o império dos filisteus. É o que previu Jacob Burckhardt em suas cartas: “Um dia o mundo irá sufocar e cair sobre o estrume de seu próprio filisteísmo”. Por isso mesmo não podemos ficar em silêncio ou agir como vaquinhas de presépio. 

Desde o ponto de vista privilegiado de jurado de um grande prêmio literário, você diria que há boa literatura em nossa produção recente, ou tem razão de ser a não rara impressão de que o momento é de estagnação e mesmice?

Ontem, hoje e sempre, não só no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo, precisamos analisar a produção literária dos nossos contemporâneos usando uma pinça. Posso dizer, utilizando-a de modo cirúrgico, que, na última década, começamos a sair do beco escuro controlado pelo eterno vanguardismo. Sim, é verdade que estamos impregnados da cultura contemporânea, relativista, materialista, de um niilismo que chega a ser atroz. Mas nossos escritores estão começando a criar coragem para desobedecer os departamentos de Letras das universidades e os críticos que só valorizam acrobacias linguísticas. Abandonar o vício de recriar constantemente um dialeto exclusivo, que só pode ser entendido pelo escritor e meia dúzia de amigos, é apenas o primeiro passo. Será um longo caminho até sermos curados da doença à qual dei o nome de narratofobia. Há, no entanto, bons escritores, dispostos a contar boas histórias, corajosos a ponto de escrever com bom humor, sem se preocupar com discursos politicamente corretos. E há outros, em menor número, que já percebem que boa literatura não é, necessariamente, literatura niilista; que um bom livro não precisa falar apenas de fracasso, vileza e perversidade.


Recentemente vieram à mídia dois casos ímpares para a cultura brasileira atual: o seu voto polêmico no prêmio Jabuti e o projeto da Vara Criminal de Joaçaba-SC, idealizado pelo juiz Márcio Bragaglia, que propõe a diminuição da pena dos detentos que lerem grandes obras da literatura universal. Ambos os casos nos proporcionaram ver expostas na grande mídia ideias até então confinadas ao “gueto conservador”. Tanto você quanto o juiz Márcio são admiradores confessos do pensamento de Olavo de Carvalho. Será que já podemos dizer que a “contrarrevolução cultural”, cujas bases o filósofo preparou, está começando a dar frutos?



As ideias de Olavo de Carvalho estão fadadas a produzir frutos – e bons frutos. Ninguém faz tudo que o Olavo já fez – e ainda vai fazer –, com a sinceridade de coração, com as intenções retas que o impulsionam, para ser tratado como a figueira estéril. Ao contrário. Estamos, assim, só no começo, nos primeiros gemidos de uma contrarrevolução cultural. É a primeira batida de coração de um feto que não será abortado.

Está chegando o Natal. Deixe-nos de presente a indicação de um bom livro que nos ajude a viver o espírito natalino.

“Sangue sábio”, de Flannery O’Connor, pode nos ajudar a compreender não apenas o mistério da Encarnação, mas, principalmente, o da Redenção. Ou seja, compreender o sentido da existência humana e o mistério da Graça, pois, para Flannery, e ela estava certa, “a Graça é o acontecimento perante o qual o homem entende o seu destino, o seu verdadeiro destino”.
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