Período de vacas
gordas na poesia brasileira! Enquanto Emmanuel Santiago lança seu Pavão Bizarro em São Paulo, o poeta João
Filho, em Salvador, dá à luz A Dimensão
Necessária. Assino embaixo de cada palavra de Érico Nogueira sobre este último,
e gostaria de acrescentar algumas outras:
Ao meu primeiro
contato com a poesia de João Filho, tive a impressão de estar diante de uma
locomotiva irrefreável de imagens – o que é o mesmo que dizer que João tem uma
evidente imaginação de poeta; que lhe é natural (de)cifrar o mundo
poeticamente.
Mas, como
sabemos, um artista é antes as margens do rio do que a torrente que estas comprimem
(adaptando um repisado refrão socialistóide). E aí, justamente, está a grandeza
desse A Dimensão Necessária com que
João Filho acaba de nos presentear: ele é abundância imagética, é experimentação
sensorial, é coro de sons e de ritmos – tudo isto cuidadosamente dirigido pela
atenção do poeta, que é capaz de nos conduzir pelas mais espiraladas especulações
existencial-metafísicas sem perder o fôlego ou o tino.
Há quem se
compraza nos mais agudos graus do surrealismo na arte; não é o meu caso. Não consigo ver
graça no que se diz “esteticamente estimulante” sem comunicar coisa alguma para
além de vagas sensações, mesmo quando não tão vagas. Consigo pensar em alguns
casos da recente poesia brasileira (não cito nomes para evitar a fadiga) que
são bem assim: é bom, mas não interessa; legal, mas demasiadamente cool. Enquanto isso, João Filho mete o
dedo nas mais variadas feridas com a naturalidade de quem não saberia fazer
diferente; como um baiano bocejando sob o sol, ao som do Requiem de Mozart.
Talvez seja
mesmo essa a qualidade primeira dos poemas de A Dimensão Necessária: sendo produtos de muita labuta artística (e
aí cabe trocar uma ideia com o poeta), soam
naturais, sem esforço. E não se perdem num lirismo inconsequente: não há verso
que não continue a busca de sentido do anterior, ao mesmo tempo sem cair no tom
professoral que embarga muita poesia dita conservadora (a minha inclusa, ó
inferno!). Não, não, João Filho sabe ao melhor de um Murilo Mendes em diálogo
com o melhor Drummond; torno a afirmar que o adjetivo primordial de sua escrita é
imagética. Ele, ao dizer, sugere, e
suas sugestões, de tão nítidas, desenham na mente do leitor com perfeita eloquência a ideia ou
sentimento que despertou o poema. Isso
é poesia.
De vez em quando
me cai nas mãos um livro do qual sei instantaneamente que o lerei por muito
tempo. É o caso de A Dimensão Necessária.
O último havia sido O Outro Lado, de
Ivan Junqueira, no qual encontrei um estudo exaustivo do tipo de rima que gosto
de chamar de “invisível”: ela está lá, mas não salta aos olhos; faz-se sentir,
mas quase como uma mensagem subliminar. Esse esquema rímico atendeu
perfeitamente às demandas de minha sensibilidade pós-moderna, pós-tradicional,
pós-camoniana, como se queira dizer. Ora, e não é que, aparentemente, tocou
também os ouvidos desse poeta sangue-puro que é João Filho (embora eu não saiba dizer se via Ivan Junqueira)? A primeira seção do livro de João, intitulada “Luz Alheia”, é um belo catálogo de rimas invejavelmente invisíveis
e, como se não bastasse, em metro octossilábico! O octossílabo, de que João
Cabral (se não me falha a memória, foi ele) bem disse que “raramente tem oito
sílabas”, esse metro que foge à retidão das redondilhas, à previsibilidade dos
decassílabos e ao serpentear prolixo dos alexandrinos – é o par perfeito da
rima invisível como a concebo ideal e como a encontramos em A Dimensão Necessária. Sem dúvida, é fonte
de uma esperançosa sensação de pertença perceber o mundo – especialmente o
mundo da poesia – em sintonia com pessoas que admiramos.
Por fim digo apenas,
João, valendo-me da felicidade que é poder falar com você diretamente, que
seu livro me servirá de alimento por meses sem fim, muito dignamente ao lado de
Tolentino, Cabral, Cunha Melo. São recíprocas as palavras que me
dirigiu em sua dedicatória: João Filho, poeta, raro diálogo.
Concluo com um
de meus poemas favoritos do livro, conquanto um dos mais simples:
Pós-fábula
No seu delírio
de durar,
buscou a forma
permanente,
que atravessasse
os mares findos
e desse em
praias do presente.
Não bronze ou
aço, algo mais dúctil,
que suportasse
as elegias
que as estações
ditam ao tempo
na sua má
caligrafia.
Envelheceu em
tal propósito,
a elaborar um
falso eterno:
em cada ruga um
desespero,
em cada perda um
novo inferno.
E não buscava só
memória,
nome num muro ou
numa mente,
mas extrair o
cerne vivo
do que ontem
fora e é presente.
Antes do fim
logrou, ó suma!,
a sua bilha de
aporia,
que lá chegou,
nas praias findas –
bela, intocável
e vazia.