Estive recentemente em Porto Alegre, de onde trouxe muitas experiências boas, e um tesouro em especial: minha primeira relíquia de santo, presente de alguém que não suportava passar um só dia sem me prestar algum serviço valioso. Quando recebe um dom desses, um católico decente não tem o direito de considerá-lo mera coincidência: tem de procurar o motivo de ter recebido a graça em questão. E esse motivo, no meu caso, ficou muito claro quando li sobre a vida do santo cuja relíquia eu recebera. Estou seguro de que a generosidade portoalegrense foi apenas o canal usado por Santo Antônio para chegar até mim; um canal, ademais, muito coerente com o proceder daquele homem que, embora famoso pelo discurso, verdadeiramente incendiou a Europa com a espada da bravura e o escudo da humildade. Minha intenção é, portanto, dividir com alguns companheiros de viagem uns poucos pensamentos e sentimentos dentre os que me foram suscitados pela vida do santo.
A 15 de agosto de 1.195, no período de maior esplendor da Idade Média, nascia o nobre Fernando Martins de Bulhões, futuro Santo Antônio de Pádua. Do meu ponto de vista -- é o único que tenho, e é a partir dele que costumo falar -- não foi o acaso que fez de Fernando o descendente de uma antiga dinastia de cavaleiros, remetendo, pelo pai, ao comandante da primeira Cruzada, Godfrey de Bouillon, e pela mãe, ao Rei das Astúrias. Sua linhagem pura sugeria um grande cavaleiro cristão, um Cruzado, um príncipe. A de S. Francisco de Assis, por outro lado, pedia em primeiro lugar um rico comerciante. Deste, a Providência fez um mendigo sem nada de seu, a encarnação mesma da virtude da pobreza; daquele... veremos.
Fernando de Bulhões era um jovem inteligente, artificioso, vislumbrador de segredos e coisas ocultas. O chamado divino à entrega total poderia tê-lo conduzido à Ordem Dominicana -- chamada por antonomásia "Ordem dos Pregadores" -- que teria atendido aos anseios do cavaleiro dentro de si; os dominicanos, afinal, eram os mais "militantes" dos frades, os que mais apareciam, moviam, comandavam. Suponho, porém, que Fernando não quisesse converter seus impulsos naturais em serviço divino, isto é, que não desejasse tornar-se um "soldado do Senhor", por receio de que o santo nome de Deus acabasse por tornar-se uma mera desculpa para satisfazer suas aspirações humanas.
Seu primeiro impulso foi, portanto, esconder-se; lutar contra a ambição de seus ancestrais, contra a glória, contra o desejo de estar à frente. Tendo passado, na infância, por uma escola de catedral (onde recebera a educação de elite da época, isto é, a instrução nas chamadas artes liberais), a vida de isolamento talvez lhe parecesse envolver, por sua própria natureza, o estudo e a meditação. Um mosteiro agostiniano, então, deve ter parecido ideal para contrariar os desejos mundanos de Fernando -- pois (talvez pensasse em seu íntimo) quem quiser seguir a Cristo, negue a si mesmo, tome sua cruz e vá atrás d'Ele.
Aos quinze anos de idade, pois, aquele jovem nobre toma o hábito de Santo Agostinho e adentra uma vida de profundos estudos bíblicos e de oração contemplativa que duraria oito anos. No fim do segundo ano, diz o biógrafo mais antigo, o santo pediu transferência para o Convento de Santa Cruz, em Coimbra, de modo a livrar-se das visitas de parentes e amigos.
Este dado biográfico pode parecer pouco importante ou até antipático; a mim, soa iluminador. Fernando fugia do mundo. Por quê? Para um rapaz de alma tão santa, como hoje sabemos que ele era, não pode ser porque só pensasse em si mesmo, detestando saber das preocupações alheias. Podemos imaginar que fosse bem o oposto: sentia dentro de si a inclinação pelos problemas do povo, pela liderança política, pelo combate em defesa da família e da pátria. O mundo, no sentido mais elevado, o seduzia, e por isso ele o abominava: porque via nisto a ação do demônio, que desejava usar da nobreza dos bens humanos para impedi-lo de entregar-se aos superiores bens divinos. Desde muito cedo, dizia o mesmo biógrafo, Fernando descobrira o tédio das coisas do mundo. As risadas dos amigos desaparecem nos túneis do passado; os beijos e juras da mulher amada não possuem o mesmo efeito na pele ressequida e no coração endurecido de um homem maduro; as vitórias na guerra, por muitas que sejam, não garantem a paz. No fundo, nenhuma das preocupações humanas vale realmente a pena, e ele o percebia.
Contudo, mesmo longe do mundo e das suas ilusões, Fernando não encontrara o caminho para a perfeição que desejava. Um dia, vendo passar os corpos de cinco mártires franciscanos -- condenados por pregar o cristianismo no Marrocos -- sentiu arder o peito. Talvez o que tenha ficado claro para si é que restava uma imperfeição a pesar-lhe as costas: mesmo sem o peso da glória mundana, restava a vanglória acadêmica. Fernando era o orgulho dos professores e colegas, um jovem brilhante e estudioso que dava a todos esperanças de tornar-se um grande doutor agostiniano. Um tal encontro com o lumezinho humilde de S. Francisco foi sentido por ele, com razão, como forte sinal da Providência. Aqueles oito anos o haviam preparado para reconhecer que mesmo os estudos eram um obstáculo à sua aproximação com Deus. Abandonou-os incontinenti. Pediu aos irmãozinhos franciscanos que o aceitassem em sua Ordem, e o enviassem também ao Marrocos para morrer por Cristo. O desejo do martírio o incendiava. Esperava, talvez, pagar logo por todos os seus pecados e fugir deste mundo que o constrangia, que não fazia sentido algum para ele.
Ou porventura havia ali algo de um nobre príncipe, descendente de reis e Cruzados, desejando glorificar, numa morte honrosa, seu nome e o do seu Senhor. Seja como for, Fernando, tendo recebido o hábito de Francisco e o nome de Antônio, não alcançou porém o seu intento. Caiu doente no meio do caminho e, sendo impossível para um doente pregar tanto no Marrocos como em qualquer outra parte, mandaram-no de volta para que se curasse.
Foi só então, sob o nome de Antônio e a aparência de um frade mendicante, que se operou o que poderíamos chamar de vocação definitiva do nosso Fernando. Estando a acompanhar o Provincial de Coimbra na cidade de Forli, ocorreu que alguns franciscanos e dominicanos fossem ali recebidos para serem ordenados sacerdotes. Quando o superior pediu que alguém pregasse o sermão, todos os sacerdotes se recusaram, porque uns haviam pensado que os outros estariam preparados, e vice-versa; de modo que ninguém preparara coisa alguma para falar. Como a necessidade o pedia, o superior escolheu um frade franciscano ao acaso e, tendo em vista sua aparência humilde e sua atitude silenciosa, ordenou-lhe falar o que quer que lhe sugerisse o Espírito Santo. Esse frade era Santo Antônio de Pádua, e logo se viu que seu silêncio não era uma ausência como a da secura do deserto, mas a contenção rigorosa de uma enorme represa.
Naquele momento começava a carreira de orador de Santo Antônio, que lhe renderia, pela profundidade da compreensão, o epíteto de "Arca do Testamento"; pela precisão dos golpes e pelo ardor guerreiro, o de "Martelo dos Hereges". Pregou por toda parte, convertendo leigos e heresiarcas; como um mutirão vivo, por onde passava ia confessando pecadores e sacramentando uniões extra-eclesiais (pelo que se tornou o santo casamenteiro), deixando um rastro de salvação e bênçãos. Quando abria os lábios, tudo o que falava vinha acompanhado de milagres. Ficou famoso o caso em que, pregando próximo ao mar, como o povo zombasse dele e não quisesse ouvi-lo, voltou-se aos peixes; principiou a elogiar as virtudes desses bichos, e como contrastavam com a ignorância e insensibilidade dos homens; e para provar que não falava com sua própria autoridade, mas com a do Pai, eis que um enorme cardume levanta suas cabeças do oceano, à frente de Antônio, para ouvir sua santa voz. E o humilde franciscano, depois de uma vida fugindo da publicidade e da glória à qual o dirigiam o nascimento e a educação, encontra seu propósito em ser exatamente quem era: um cavaleiro, um Cruzado, um representante glorioso do Senhor dos Senhores.
Haveria muitos casos semelhantes, e muitas venturas para contar a seu respeito, em vida como em morte, cheias de sentido espiritual, propósito e valor pedagógico; mas este texto vai ficando longo. Se ele e seu Senhor me derem forças, no próximo treze de junho eu me proponho dar continuidade a este esforço, tosco mas sincero, de retribuir-lhe humildemente qualquer coisa que me seja possível por sua preciosa intercessão e pela inestimável vida que nos deixou, com o fim de a imitarmos, o que desejo que façamos agora e sempre. Santo Antônio de Pádua, rogai por nós.