terça-feira, 22 de abril de 2014

Superestrutura

Rapaz de classe média alta, que dois anos antes sonhava – sonhava! – com baladas no exterior e roupa de marca, e que decide fazer Geografia e pega por conta própria resumos de Marx; que passa a nutrir sonhos de luta armada - sim, pode rir. Esse jovem traz uma bagagem que ele próprio odiaria conhecer.

Vou te contar algo que ocorreu no fim daquela malfadada primeira graduação. Acho que o melhor termo é “crime de pensamento”, já que não passou disso. E mesmo assim senti vergonha. Não que hoje eu me orgulhe. Também não é nada demais, só que como nunca contei para ninguém, deve ser importante.

Estava no último semestre, o bacharelado parecia próximo. Época de muito tempo livre, muita solidão e muita leitura. Tinha meus amigos, óbvio, mas sentia uma desconexão. Eles não levavam as ideias a sério; não como eu levava. Mesmo os mais engajados me davam a nítida impressão de que não queriam entender o mundo e muito menos transformá-lo; queriam participar dele de uma maneira específica. Reproduziam estruturas básicas das relações humanas que me traziam de volta à parte mais cruel do colegial e a tudo que eu rejeitava no mundo dos meus pais.

Isolei-me, o que me deu uma boa reputação. Eu lia o que os outros fingiam ter lido. Um benefício da Geografia é que o conhecimento – ou a aparência de conhecimento – é um valor. Estava sempre envolvido em discussões, debates, escrevia pra jornais no campus. Tinha naquele campo de ideias algo que realmente me engajava.

Minha percepção básica era a de que havia uma ordem no mundo social, criada pelo homem, mas ao mesmo tempo difícil de ser desvendada. E essa ordem era sórdida - essa fora minha certeza original. Ela perpassava tudo: nossas relações econômicas em primeiro lugar, e nossas relações sociais, culturais, sexuais; até o uso do espaço era deturpado. Era preciso, portanto, botá-la abaixo e criar uma nova. Mas para transformar o mundo alguns teriam que entendê-lo; aí que eu entrava.

A questão da justiça era a que mais me incomodava; pois em todas as relações ela se encontrava violada. Era essa preocupação que justificava minhas longas estadias na sala de leitura da biblioteca fora do horário de aula. Só não me pergunte quanto desse tempo era de estudo de fato e quanto eu gastava pensando na vida ou observando os outros. Criava futuros, longos devaneios, olhava as pessoas em volta. A biblioteca desenvolve uma vida social silenciosa. Tinha meus amigos, meus inimigos; gente com quem eu nunca falaria. Cada um projetava o que queria nos outros, e nos conhecíamos assim. É sobre uma dessas relações imaginárias que eu quero falar. Óbvio que era com uma mulher.

Dava-me um certo orgulho sentir atração por uma negra. Feio, né? Tipo de coisa que não dá pra se gabar, mas que eu adoraria pingar numa conversa. Acontece que ela não era só gostosa. O conjunto transcendia o físico e penetrava o campo dos significados. Black power irretocável, brincos de argola enormes, olhos semiabertos que escondiam uma inteligência cortante, um leve sorrisinho – ou isso era eu que imaginava? O caminhar geométrico, determinado, que atropelaria qualquer homem em seu caminho. Os ângulos retos dos ombros da jaqueta; na parte superior era tudo ângulos retos. E no meio daquela geometria reta, o arredondado dos quadris e do rebolado. Um toque de Brasil naquela beleza african-american. Esse conjunto expressava um conceito: o caminhar inexorável da justiça. O peso do mundo como se não fosse nada. Tão diferente de mim.

Gastei um tempo com a dialética da minha musa secreta; ainda tenho as anotações. Era brincadeira pra passar o tempo, mas não totalmente, sabe? A forma do cabelo, esfera negra perfeita, que devia resultar de um cuidado meticuloso, parecia a projeção natural daquela personalidade, como se todos os detalhes irradiassem necessários de um princípio gerador. O corpo acendia em mim o desejo próprio das relações de poder injustas. Contra isso, e no mesmo corpo, a práxis e a estética de ideias que negavam aquelas relações. A síntese final superava a contradição numa possibilidade de união deste e daquele mundo; gozo e justiça. Deixei uma nota curiosa na margem: a leitura estava mais pra Hegel que pra Marx. Não julgue.

Nossa relação se resumia a isso; vê-la passar diante de mim em direção a uma mesa livre, observá-la enquanto lia e fazia anotações, e finalmente observá-la ir embora. Com certeza ela devia notar o franzino babão a segui-la com a cabeça, mas nunca o fez abertamente. Na minha imaginação ela me mandava um sorrisinho quase imperceptível, como que aprovando a adoração e consciente de que eu jamais teria a coragem de ir além. O rosto era um tiquinho mais cheio do que o ideal. Não importava. Também não importava o fato de ela dormir com frequência na biblioteca, o que em outros me desagradava e que eu tomava como sinal de burrice.

No dia em questão, ela cochilava, cabeça meio de lado apoiada nos braços - não sei se escorria um fiozinho de baba ou se criei isso depois. Bom, enquanto ela dormia, um sujeito se aproximou. Era um cara banal, que eu já vira nos corredores, nunca na biblioteca; desses que gostam de parecer culto. Óculos de aro grosso, barba por fazer; mas também alto, atlético, roupas largas, desenvolto. Chegou do lado dela, encostou a mão no braço, cochichou baixinho em seu ouvido, carinhoso.

Ela abriu os olhos e deu um sorriso preguiçoso, como se ele fosse um namorado trazendo café na cama. O cabelo estava amassado, não era mais a esfera perfeita - o artifício revelado. E foi aí que a percebi de modo diferente. O mesmo rosto, os mesmos traços; me ocorreu que já tinha visto aquele mesmo tipo de cara, muitas vezes. Era comum no Brasil: uma cara que não transmitia inteligência nenhuma; apenas uma alegria sonsa de estar viva e ser jovem. Também não era bonita; por trás da produção havia um rosto sem atrativos. Olhando para aquela menina que me encantara por meses, senti quase uma repulsa, e junto dessa repulsa uma palavra brotou de algum porão esquecido.

"Empregadinha".

Repeti num cochicho: "empregadinha". Aquela que eu admirara por meses, a acadêmica segura de si, minha representante ideal da mulher negra, a personificação apolínea da justiça social; empregadinha.

O sistema de defesa disparou. Cortei o pensamento. Quis me distanciar dele. Fora só algum refluxo de tempos anteriores; um coágulo da experiência da minha classe. Uma bolha de gás, de alguma matéria em decomposição no solo oceânico, que chegava à superfície tendo viajado milhares de quilômetros. Era também prova de que eu tinha muito a progredir. Pega bem dizer-se racista ou sexista, sem bem sê-lo, mostrando que luta para melhorar - eu era ingênuo, mas esse tanto eu já sabia. O que eu não sabia é que mesmo o discurso mais sincero pode mentir.

O que mais me estranha hoje em dia é o quanto aquele “empregadinha” me abalou. Passei a tarde indignado comigo mesmo. Só me acalmei quando concluí que a verbalização fora o eflúvio final de uma impressão que já escoava para o esgoto, e era portanto uma vitória. A adoração incondicional estava intacta. Ou melhor, até mais forte. No fim daquele mesmo dia meus olhos acompanharam espontaneamente o andar daquela deusa quando ela foi embora: aquele rosto determinado, aquela beleza superior, aquela bunda.

Daí uns dias depois ela sumiu, e deve ter ficado quase um mês fora. Uma semana antes das provas - eu continuava na velha rotina, sem já saber para quê -, reapareceu. Minha alegria foi imediata, talvez eu tenha até sorrido, e, enquanto eu acompanhava a trajetória, me veio naturalmente e com um dose de ironia: "a empregadinha voltou". Dessa vez já não me importei.

Hoje eu acredito numa mecânica newtoniana da mente. Cada pensamento dispara outro com igual intensidade e direção contrária. Cada elogio faz pensar numa crítica. Cada ato de devoção exige um sacrilégio. Ou será que o disfarça? Veja, os povos mais religiosos inventam as piores blasfêmias. O homofóbico exagerado é homossexual enrustido. A mesma mulher percebida de duas maneiras; deusa e empregadinha. Quem mudou aquele dia fui eu. Mudei? A espuma branca nada é a água escura do mar.

Ideias não importam. Ironicamente, nisso eu já acreditava, ainda que por outros motivos. Ideias decorriam da posição econômica e aquela coisa toda; exceto para nós, os intelectuais. Só que a irrelevância das ideias valia sobretudo para nós. Poderia ser que as melhores intenções produzissem o inverso do que almejavam? Ou ainda, e se estiverem sempre a serviço de outras, as piores?

Mais de um ano depois, no outro curso - quando entrei nas nossas amadas engrenagens - fiquei sabendo o nome dela por um ex-colega e joguei no Google. Eu jamais me dera ao trabalho de descobrir o nome... Joguei no Google e não deu nada além do mínimo: chamadas de vestibulares antigos, lista de iniciação científica. Desde então, quando a curiosidade bate, procuro de novo. Tem o currículo do Lattes, comunicados de concurso. Era da Letras, doutoranda em literatura feminista. Mais clichê impossível. Seu grande feito foi ter passado em concurso de uma federal no interior, e isso já faz tempo.

Será que abandonou o tipo? Nunca fez nada de relevante; nenhum livro. Teve um blog e logo o abandonou. Banalíssimo, alguma coisa sobre aborto, uns poemas; de doer, sabe? Anos depois do último post eu ainda o acessava esporadicamente. Nem sei se continua professora – talvez tenha desistido. Espero que esteja num trabalho que a realize. Aquela menina – assim como eu – não estava no lugar dela e por isso não deu em nada.

Nunca falei com ela; primeiro por falta de coragem; depois por desinteresse. Agora é tarde demais, sem falar que nenhuma pessoa real possível satisfará a necessidade de significado que ela, fictícia, me satisfaz. Quem esteve ali na minha frente todos aqueles dias? Uma feminista que queria acabar com a opressão patriarcal e com o racismo? Uma acadêmica que lutava e vencia num sistema que, apesar de tudo, podia ser usados para uma vida dedicada ao saber? Uma mulata baixinha presa nas engrenagens do ensino superior, capitalizando uma beleza efêmera e sem saber para onde ir?

Só tenho a certeza de que, onde estava, não estava bem. Prefiro, por isso, imaginá-la plena de vida, radiante, em algum mundo paralelo. Uma vida de desafios, aventuras, com a alegria física que ela evidentemente precisava. Imagino-a saudável, sob o sol a pino, de lenço na cabeça, em êxtase faxinando algum assoalho. Pagode tocando no radinho. Ei, não me censure - com você eu posso falar o que der na telha. E se a gente não puder rir disso: dela, de mim e de todo mundo que jura que leva alguma coisa a sério, o que estamos fazendo aqui?

quinta-feira, 3 de abril de 2014

O extremo fundamentalismo dos irresponsáveis


Por um lado, as mulheres com um refinado senso de progresso consideram a prática abortiva uma mera questão de escolha. Nesse caso, o aborto deve ser liberado, pois "corpo" caracteriza-se simplesmente como propriedade da mulher: nem o embrião e nem ninguém têm autoridade sobre a propriedade alheia. “Meu útero não é de ninguém!”. Como se fosse a coisa mais óbvia do mundo “mulher” e “corpo” serem concebidos como duas entidades ontologicamente distintas cuja apropriação se dá por meio de um decreto. Como se fosse mais óbvio ainda o embrião ser uma parte do corpo da mulher, ao invés de caracterizar-se como uma entidade ontologicamente distinta.

Por outro lado, presume-se que o estatuto biológico do embrião coincide, in toto, com o estatuto de sua humanidade desde o momento da concepção: o embrião é um ser vivo e humano desde o momento da concepção. Afinal, por que não seria? Ora, se não somos uma pessoa desde o momento da concepção até a derradeira hora da morte, então não há o que nos faça uma pessoa. Ninguém exerce essa autoridade sobre nós: “É humano quando me convém”.

A dignidade não é um título concedido por uma autoridade externa, por um pacto ou um ato voluntário declarando: "isto é pessoa, isto não é"; a dignidade está lá, desde sempre. Ou não estará, para sempre. A nenhum homem foi dado o direito de decidir quem tem ou não essa propriedade essencial que nos torna humanos. A pessoa humana – este ser particular cujo nome é João, Maria, José, Ana etc – é ser cujo valor coincide com o fato: para o homem, o fato de ser já é um valor. Superamos a linha da animalidade do primeiro instante ao último. O animal no homem é uma ilusão criada por aquele insuportável excesso de certeza. Deixemos de lado a questão.

A quaestio disputata sobre o aborto não implica exatamente quando a vida começa – todos sabemos quando a vida de uma pessoa começa e é preciso de muita má-fé para pensar o contrário –, mas se a proprietária do útero tem o direito de interromper a gestação quando bem entender.

Devido à fragilidade de sua natureza, o embrião necessita habitar o corpo de uma mulher para viver. É uma espécie de “inquilino”, embora não tenha escolhido “morar” naquele útero. Caso venha a ser um inquilino indesejável, a mulher teria o direito em despejá-lo – garantido pelo direito de liberdade e de propriedade privada, enquanto o direito à vida do embrião é mero detalhe.
   
Como o embrião foi parar em um útero? Ele ocupa um lugar que não lhe pertence e está ali por uma espécie de "favor". A gestante resolve despejá-lo e isso tem um preço elevado: custa a vida do pequeno (tão amontoado de células quanto qualquer um de nós). Assim, a questão é ainda mais profunda: o embrião não escolheu habitar aquele útero, não foi um contrato voluntário entre as partes, ocupa aquele lugar por acaso (cá entra nós: escolhas irresponsáveis).

No caso de a gestante ter engravidado por “acaso”, ela e seu parceiro são os responsáveis e nada mais razoável do que arcarem com as consequências indesejáveis. Com exceção dos inocentes, todos nós sabemos da impossibilidade de uma mulher ficar grávida do “vento”, como dizia minha avó. E a cegonha já se aposentou do imaginário popular faz tempo. Sabe-se das escolhas profundas que precedem uma gestação e, por isso, deveriam preceder o ato sexual. 

Planejamento familiar não significa instrumentalização do sexo, mas a sua humanização. Nesse sentido, o ato sexual diz respeito à moralidade (capacidade de amontoados células refletir antes de agir: conhecer os fins e os meios da ação). O prazer pode trazer consequências indesejáveis e é sinal de maturidade saber lidar com elas. Não tem nada de fundamentalismo religioso em desenvolver maturidade sobre a vida sexual. A consciência dos fins é uma característica típica dos amontoados de células pensantes; e estes pequenos seres que representam o extremo da inocência não são lixo – ou mero capricho? – do extremo fundamentalismo dos irresponsáveis.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Dostoiévski e Herzen na Encruzilhada da História

Juro que é a última vez que publico trechos do meu mestrado; é que o momento é realmente propício ao tema. O que vai abaixo são as páginas finais da minha dissertação. O texto não está adaptado e por isso o leitor vá perdoando a monotonia do discurso acadêmico, bem como referências incompreensíveis fora de contexto. Creio, porém, que o fundamental está acessível.

O mais provável é que depois disto eu passe um bom tempo sem falar de Dostoiévski.

Para quem ainda não teve coragem de encarar: leia "O Grande Inquisidor" neste link.


***


(...) É preciso levar em consideração ainda outro aspecto importante do pensamento dos dois autores aqui comparados: sua eficácia enquanto leitores do processo histórico no que diz respeito às ideias e revoluções políticas. O fato de ambos vaticinarem o declínio irreversível da civilização ocidental e seu iminente assalto por instituições (segundo Herzen) ou valores (segundo Dostoiévski) russos já os afasta em igual medida do quadro verídico desenhado pela história do século passado até o momento presente. Ainda assim, em suas previsões imprecisas – e delirantes, em certos pontos –, cada qual teve sua margem de erro e acerto. Mais do que checar o “dom de profecia” de ambos, cotejar suas expectativas com a realidade (na medida em que a ciência histórica tem sido eficaz em descrevê-la) pode oferecer-nos algumas importantes lições.

            Dostoiévski, no Diário de um escritor, quase trinta anos após Herzen profetizar o cataclismo europeu, pinta um quadro muito semelhante para o futuro da Europa:

A conta final e o acerto da balança podem acontecer muito antes do que as mais delirantes fantasias predizem. Os sintomas não são bons. A situação política antinatural dos Estados europeus pode servir de estopim para tudo. Uma pequena parte da humanidade não pode possuir todo o resto como escravos, e no entanto foi exclusivamente com este objetivo que, até hoje, todas as instituições cívicas (as quais há muito deixaram de ser cristãs e são hoje inteiramente pagãs) da Europa foram criadas. Esta antinaturalidade e estas questões políticas “insolúveis” devem infalivelmente levar a uma enorme e derradeira guerra de partição na qual todos estarão envolvidos e a qual estourará neste século, talvez mesmo na próxima década. (...)
            E eis que os proletários saem às ruas. O que vocês acham: eles agora esperarão pacientemente como antes, morrendo de fome? Isto será possível, uma vez que temos o socialismo político, depois da Internacional, dos congressos sociais e da Comuna de Paris? Não, agora as coisas não mais serão como antes: os proletários varrerão a Europa e toda a velha ordem colapsará de uma vez por todas.[1]

            Os fatos previstos por Dostoiévski são essencialmente os mesmos da projeção de Herzen: a situação político-econômica da Europa, insustentável a longo prazo, culminará primeiro em uma grande guerra internacional que desorganizará os Estados europeus; então, em meio à balbúrdia geral, guerras domésticas eclodirão, com os proletários das grandes potências industriais tomando as ruas e concluindo a destruição do “velho mundo”.

            Nem Herzen nem Dostoiévski viam inteiramente com bons olhos este panorama. A diferença é que Dostoiévski opunha-se a ele em princípio, desde suas premissas teóricas até suas consequências práticas, ao passo em que a discordância de Herzen diz mais respeito à metodologia de uma revolução “descontrolada” do que ao fato em si de se destruir a velha ordem por meio de um levante popular. Isto é, a onda proletária desfigurando a face do continente europeu era quase a revolução idealizada por Herzen; para Dostoiévski, era em todos os sentidos uma ameaça nefasta e um pesadelo.

            E é sobre a perspectiva desta ameaça que Dostoiévski constrói seu edifício utópico. O papel da Rússia enquanto retificadora dos erros do Ocidente viria à tona, segundo o romancista, na esteira da desordem revolucionária europeia:

As ondas [da revolução proletária] quebrarão inofensivas apenas contra as nossas margens [russas], pois apenas então, claramente e para todos verem, virá a total revelação de quão distinto é o nosso organismo do organismo europeu. Então, mesmo vocês, pensadores doutrinários, talvez recobrem os sentidos e comecem a buscar em nossa pátria “os princípios do Povo”, dos quais vocês até agora apenas riem. E ainda assim, hoje, os senhores apontam para a Europa e nos instam a transplantar para cá aquelas mesmas instituições as quais entrarão em colapso por lá amanhã. (...) “Eles há muito resolveram seus problemas”, o senhor diz – e isto após vinte constituições em menos de um século e quase dez revoluções! Oh, talvez apenas então, livres da Europa por um momento, nós nos aproximaremos de nossos próprios ideais sociais, aqueles inequivocamente derivados de Cristo e do aprimoramento pessoal, Sr. Gradóvski.[2]

            Entre as previsões de Herzen e Dostoiévski há, portanto, uma semelhança particularmente significativa: ambos visualizavam a revolução proletária acontecendo na Europa. Dostoiévski via na Rússia o “antídoto” à onda revolucionária; Herzen limitava-se a inspirar-se em sua terra natal para propor uma revolução socialista mais limpa e gradualista, com os avanços tecnológicos ocidentais aliados ao modelo social da comuna camponesa russa. Ambos consideravam que a difusão das ideias socialistas, originalmente europeias, já estava adiantada na Rússia, porém não lhes ocorria a possibilidade de as condições imediatas de sua terra natal serem mais propícias à revolução do que no Ocidente.

            Enfim, eis que a grande guerra internacional de fato eclodiu, e os anos de 1914-18 realmente mudaram o mapa da Europa, desfigurando nacionalidades e fronteiras; e, o que é mais importante, a guerra criou, com efeito, a ocasião para a revolução socialista – na Rússia. Neste ponto o século XX foi uma resposta um tanto cruel e irônica às esperanças eslavófilas de Dostoiévski. O paradigma do poema Vlas, de Niekrássov, do pecador que na hora H se converte e passa a viver para expiar suas faltas, não descrevia, afinal, o eterno movimento da alma russa, como o romancista queria crer. O miserável e religioso povo russo não conteve a revolução; pelo contrário, serviu-lhe de substrato material. À altura da guerra civil, ambos os exércitos branco e vermelho eram compostos por camponeses[3].

            Se não deixa de ser legítimo, em certo sentido, dizer que a revolução socialista na Rússia expressou a vontade de seu povo, da mesma forma, diante dos relatos históricos sobre os variados destinos de famílias e grupos camponeses durante os anos revolucionários, é difícil atribuir a uma entidade abstrata chamada “povo” uma única vontade e um único destino. Ao que tudo indica, o principal traço comum entre as classes populares russas na virada do século XIX para o XX não era nem seu Cristianismo “puro”, nem seu tino político naturalmente aguçado, mas o alheamento com relação aos afazeres da nobreza e da intelligentsia. Assim, deflagrada a revolução, houve grupos populares que voluntariamente a abraçaram, como houve os que a rejeitaram, mas a grande maioria quedou indefesa e atônita sob as engrenagens do momento crítico.

            Olhando retrospectivamente, Dostoiévski e os pótchvienniki estavam no caminho certo ao aliar a exaltação dos valores populares tradicionais à necessidade da educação do narod; afinal, são raríssimos os casos de indivíduos que conseguem aprimorar-se – em sentido dostoievskiano – apenas com base em intuições morais rudimentares. Já vimos que Dostoiévski gostava de idealizar alguns camponeses que tomava por exemplares da “pureza interior” da alma russa, como o mujique Marei e a babá de Púchkin; para ele, estes indivíduos tinham pouca consciência de seu próprio valor e do valor daquilo que representavam – o sentimento fraterno de inspiração cristã –, mas somente o fato de viverem colocando em prática suas intuições rudimentares já bastaria para se construir, na Rússia, uma muralha contra os “erros do Ocidente”.

            Nada poderia ser mais falso. Não se contém uma revolução tendo como arma apenas as verdades inconscientes de um povo. Nesse sentido, a argumentação pótchviennik, partindo da noção de autoconsciência como base do conhecimento em geral, era razoável com relação ao problema do campesinato russo ao concluir pela urgência de sua educação. Com efeito, na hora H da história russa, o narod achou-se incapaz de avaliar seu próprio lugar histórico – e acabou servindo largamente como massa de manobra a causas cujo sentido último lhe escapava.

O Pótchviennitchestvo, porém, também continha algumas das ideias que, ao longo do desenvolvimento intelectual de Dostoiévski, degenerariam no aspecto mais equivocado de seu pensamento – seu nacionalismo xenófobo. A ênfase pótchviennik na importância da autoconsciência era análoga e complementar à importância dada à imersão do indivíduo em seu universo nacional. Até certo ponto, isto é muito razoável: um homem é feito também à imagem de suas circunstâncias. Mas Dostoiévski parece ter levado este preceito longe demais e, em seu processo de autoconhecimento por meio da incorporação da nacionalidade, fundiu-se a sua terra natal, cegando-se a todo o resto e bloqueando, assim, a própria possibilidade de compreender algo além de suas projeções da Rússia sobre os objetos que analisava.

Deste modo, seu talento para perceber movimentos psicossociais antes mesmo de estes tomarem formas concretas, tendo como base apenas a psicologia humana, acabou frustrado pelas armadilhas de sua própria psicologia. Mais do que nenhum outro autor, Dostoiévski entendeu a natureza da revolução russa, e se chamá-lo “profeta” já se tornou um cliché, mais difícil é encontrar termo mais apropriado ao seu papel enquanto pensador de seu tempo. E, no entanto, era ele mesmo um produto da mentalidade revolucionária russa.

O mencionado talento perceptivo de Dostoiévski poderia tê-lo feito um antípoda de Herzen, sendo este o mais perfeito expoente da desfiguração de um espírito nobre à força de sua exposição a estímulos contraditórios, à crença de que entre “bem” e “mal” há uma diferença meramente opinativa e de que os desejos humanos existem exclusivamente para obter a saciedade. Dostoiévski estava anos luz à frente de Herzen no que diz respeito à compreensão da natureza humana e de sua relação com tudo o que existe. Mas tem Dostoiévski precisamente a mesma altura que seu oponente revolucionário quando veste a carapuça de ideólogo. Ao fim e ao cabo, tendo chegado muito perto de verdadeiramente prever a essência da história política do século XX, sua ideologia eslavófila o obrigou a enxergar apenas aquilo que todos os socialistas já afirmavam: que a urbanização industrial e a política externa colonialista levariam a Europa ao caos, com guerras impulsionando os proletários às ruas, liquidando o Terceiro Estado e assim por diante. Dostoiévski precisava deste quadro para construir sua utopia eslavófila, e não fez questão de enxergar nada mais além dele. Se tivesse olhado a Rússia com um pouco mais de isenção, ele, que com tanta precisão descreveu os efeitos da cosmovisão utilitário-materialista na alma de seus conterrâneos, teria possivelmente atentado à iminência da eclosão revolucionária em seu país.

Quanto a Herzen, ele foi, nas palavras do próprio Dostoiévski, um gentilhomme russe et citoyen du monde. Seu sentimento pátrio era demasiado imiscuído às demandas de seu cosmopolitismo para que lhe coubesse enxergar o real papel da Rússia na história posterior do Ocidente. Ainda assim, suas expectativas políticas acabaram revelando-se mais próximas do que veio de fato a acontecer do que o pan-eslavismo de Dostoiévski. Isto é verdadeiro, ao menos, quanto ao século XX. Já na história mais recente da Rússia, temos presenciado o ressurgimento de ideologias muito próximas à professada pelo autor do Diário de um escritor. São, porém, as ideias pan-eslavistas de Dostoiévski transformadas pela experiência soviética, dando origem a doutrinas como Nacional-bolchevismo e o Eurasianismo, nas quais a ideia de um império encabeçado pela Rússia, destinado a corrigir os erros do Ocidente, alia-se ao militarismo autoritário tipicamente soviético, recorrendo ao mesmo tempo à religião ortodoxa como fator de identidade e união do povo russo.

Tudo isto nos remete, por fim, a “O Grande Inquisidor”, o verdadeiro coração da obra dostoievskiana. Uma das leituras mais comuns deste capítulo de Os Irmãos Karamázov o interpreta como uma antevisão do socialismo posto em prática – o que de fato ele é. Porém, fazendo uma leitura mais cerrada do texto, vemos que se trata disto e de mais um pouco.

Diz o Grande Inquisidor a Cristo:

Sabes tu que passarão os séculos e a humanidade proclamará através da sua sabedoria e da sua ciência que o crime não existe, logo, também não existe pecado, existem apenas os famintos? ‘Alimenta-os e então cobra virtudes deles!’ – eis o que escreverão na bandeira que levantarão contra ti e com a qual teu templo será destruído. No lugar do teu templo será erigido um novo edifício, será erigida uma nova e terrível torre de Babel, e ainda que esta não se conclua, como a anterior, mesmo assim poderias evitar essa torre e reduzir em mil anos os sofrimentos dos homens, pois é a nós que eles virão depois de sofrerem mil anos com sua torre! Eles nos reencontrarão debaixo da terra, nas catacumbas em que nos esconderemos (porque novamente seremos objeto de perseguição e suplício), nos encontrarão e nos clamarão: ‘Alimentai-nos, pois aqueles que nos prometeram o fogo dos céus não cumpriram a promessa’. E então nós concluiremos a construção de sua torre, pois a concluirá aquele que os alimentar, e só nós os alimentaremos em teu nome e mentiremos que é em teu nome que o fazemos.

            Este trecho e outros deixam bastante claro que o futuro referido pelo Grande Inquisidor já se passa em um momento posterior à revolução socialista. Segundo a profecia dostoievskiana, haverá, primeiro, o socialismo (“‘Alimenta-os e então cobra virtudes deles!’ – eis o que escreverão na bandeira que levantarão contra ti e com a qual teu templo será destruído.”); porém, esta “Torre de Babel” não será concluída e sucumbirá após trazer muito sofrimento à humanidade. Neste momento de desespero, pois “quem prometeu o fogo dos céus não cumpriu a promessa”, é que o Grande Inquisidor e os seus virão “concluir a construção da torre”, e o farão em nome de Cristo, sob a hipócrita aparência de uma igreja cristã.

Assim, o mais correto não é dizer que sob uma aparente crítica ao catolicismo Dostoiévski descreve o socialismo; esta leitura não é equivocada, porém não é a mais precisa. O que o romancista faz é lançar mão do livro bíblico do Apocalipse, segundo o qual o advento do Anticristo instaurará uma falsa igreja sobre a terra, para construir uma parábola carregada de significado, na qual o Grande Inquisidor não exatamente encarna – como quer uma leitura mais plana do texto – Stálin ou um ditador declaradamente socialista, mas, mais precisamente, o antipapa que se apossará da Igreja no fim dos tempos, após o fracasso socialista e após expulsar de Roma o verdadeiro pontífice, segundo previsto na escatologia cristã. Ou seja, é impreciso dizer que em “O Grande Inquisidor” Dostoiévski previu a realidade soviética, pois a profecia aí implícita, se alguma há, diz respeito a um futuro ainda por vir.

Vale enfatizar que o mencionado antipapa seria um continuador do socialismo disfarçado de líder cristão, e por isso é correto ler “O Grande Inquisidor” como uma parábola antissocialista. Contudo, se bem ler literatura é uma tentativa contínua de reinterpretação textual à luz de novos dados da realidade, não podemos deixar escapar esta nuance da obra máxima de Dostoiévski, tão significativa face ao rumo que vem tomando a história mais recente do confronto entre o Ocidente e a Rússia. Dostoiévski não tinha dúvidas de que o chefe impostor da Igreja viria de dentro da própria Roma; talvez haja aí um erro análogo ao que o fez negligenciar a iminência da revolução socialista em seu próprio país.





[1] A Writer’s Diary, vol. 2, pp. 1320-1321. “Four Lectures On Various Topics”.
[2] Idem, p. 1321.
[3] “Dada a composição social da Rússia naquele momento, não é de surpreender que a maior parte dos soldados em ambos os lados fossem camponeses. Enquanto a maioria dos trabalhadores das fábricas apoiavam os Bolcheviques, os camponeses tinham uma atitude profundamente ambígua com relação à guerra civil. Aqueles que podiam ficar de fora, ficavam. (...) O campesinato às vezes apoiava o Exército Vermelho, às vezes o Branco, mas a crueldade em ambos os lados rapidamente os alienava.” In: BROWN, Archie. The Rise and Fall of Communism. Vintage Books: 2010, p. 53.
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