terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Os Três Espíritos do Natal

É lugar-comum conservador criticar a época do Natal como desprovida de seu sentido espiritual original, tendo sido reduzida a mera festividade egoísta e materialista, celebração vazia do comércio e do consumismo exacerbado.

Sou o primeiro a deplorar o exército de Papais Noéis que dominam a cidade em novembro, impondo em terras brasileiras o império da cafonice americana (não que careçamos de muitas e abundantes cafonices nacionais!), e que hoje começaram a bater em retirada. Mas não é verdade a afirmação de que, se o Natal não é religioso, ele é egoísta, materialista, ou o que o valha.

O Natal continua a ser uma celebração, ao menos em intenção, do amor entre os homens; de um amor benevolente, generoso, que quer espalhar esperança e alegria a todos. Os dois rituais do Natal laico o ilustram bem: a troca de presentes e a ceia.

Tomem a troca de presentes. Ela não é, de forma alguma, uma mostra de egoísmo e ganância. O que egoístas fariam? Comprariam presentes para si, e não para os outros. Do ponto de vista material, o Natal é uma grande perda econômica. Faça o cálculo com você mesmo: calcule o montante que você gastou com presentes este ano. Suponha que este montante de dinheiro equivalha precisamente ao valor monetário dos presentes que você recebeu. Agora pegue todos esses presentes recebidos (os calções de banho, as meias, etc.), olhe-os com calma e reflita honestamente: valem o que custaram? Não valem. Se o dinheiro tivesse sido dado em sua mão, você poderia fazer um uso muito melhor dele. Quem melhor sabe o que você quer é você mesmo; não seu tio-avô.

O valor da troca de presentes está em ser troca; em pensarmos nos nossos familiares e amigos e dar-lhes algo de que gostem. Fora um ou outro presente ideal - categoria mítica que designa o presente tão bom que supera o que a própria pessoa poderia comprar para si - o benefício dos presentes está nos laços de amor que unem os participantes da troca, que são com ela fortalecidos. A ceia também não vale pelo peru e pela farofa, mas pela união familiar que celebra e efetua. Para muitas famílias, é a grande reunião do ano; e, em geral, uma reunião alegre. Assim, a festa de Natal laica, a festa de Dickens, de Frank Capra e do Papai Noel, não é a festa do egoísmo, mas do amor entre os homens.

Não foi Dickens, contudo, quem inventou o Natal. Ele sempre foi uma ocasião festiva no Ocidente, com banquetes, cantigas, peças dramáticas religiosas, trocas de presentes (dados seja pelas muitas versões locais do Papai Noel, oriundos de S. Nicolau, ou pelo Menino Jesus em pessoa) e celebrações várias. A árvore de Natal existe desde pelo menos o século XVI na Europa central. A cantiga "Noite Feliz", criada por um padre austríaco e até hoje uma expressão clara da ternura e alegria do espírito natalino, data de 1818, ou seja, é anterior ao conto de Dickens. O Natal antes dele nem passava batido e nem era uma bacanália camponesa.

Enfim, se Dickens não criou a festa, podemos dizer que seu conto manifesta, com maior força, o espírito do Natal laico; espírito cuja gênese histórica está no Natal religioso mas que busca se afirmar como realidade autônoma, aberta e atrativa a todos, não apenas aos cristãos. É esse o Natal público de nossos dias, naquilo que ele tem de melhor, e seu representante é o Papai Noel, figura que só alguém inacreditavelmente ranzinza quereria destruir.

Essa festa laica, contudo, corre o risco de se esvaziar. Quando a compra dos presentes vira uma obrigação custosa e estressante e a escrita dos cartões um processo burocrático; quando a ceia familiar é um ritual tedioso e do qual se quer escapar; quando as decorações de Natal, cujo objetivo é transmitir alegria, tornam-se objetos de competição e vaidade. Então, a "good will to all men" sai gradativamente de cena, deixando em seu lugar enfeites e embalagens coloridos que escondem um espírito cinza, um espírito que com o tempo convencerá a todos que a festa custa mais do que vale. Esse terceiro espírito, o do puro egoísmo materialista, terá vencido quando, e se, o mundo não mais celebrar o Natal e não mais trocar presentes.

Pode ser que o espírito laico do Natal, universalmente acessível e valorizado, se descolado do espírito religioso que o originou, degenere irremediavelmente no espírito materialista que o nega. E se esse for o caso, não se ofendam os ateus com presépios e manjedouras. Permitam, tolerem; ou melhor, abracem, encorajem e até participem das cantigas, Missas e rezas, pois o império do Papai Noel pode levar à morte do Papai Noel. Sem esperança de ressurreição.

Um feliz Natal a todos!

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Lei da Palmada, ou Xuxa vai ao Congresso

Os ilustres da Câmara dos Deputados conseguiram mais uma: aprovaram a Lei da Palmada, que agora segue para o Senado. Sim, a palmadinha será proibida e passível de punição; basta que alguém delate o agressor. O benefício é 2 em 1: não só coíbe uma prática violenta e perigosíssima como estimula a virtude cívica da delação. O projeto de lei é da ex-deputada, hoje ministra, Maria do Rosário; a mesma que considera o aborto questão de saúde de pública. Ou seja: palmada no bumbum, ato criminoso; esquartejar feto e jogá-lo no lixo, medida profilática. Detalhes. Vamos à discussão da palmada em si.

O que mais chama atenção é a ausência de qualquer dado objetivo para embasar a afirmação principal: palmadas esporádicas na criança pequena têm consequências danosas no longo prazo? Há pesquisas que mostram que maus tratos e violência doméstica têm; mas essas práticas já eram proibidas. Por que ir além da lei existente e punir também a palmada leve?

A argumentação da Maria do Rosário (veja-a aqui) visa negar a distinção antiga da lei brasileira, muito razoável, entre violência moderada e imoderada. Para isso ela se vale de dois recursos argumentativos. O primeiro é dizer que não dá para traçar uma linha clara e válida para todos os casos entre os dois. Isso é óbvio e vale para qualquer ação humana: há algum critério claro e objetivo para diferenciar entre um tapinha amigável nas costas e um golpe desleal? Entre um beijo roubado e um assédio sexual? É para, entre outras coisas, fazer esse tipo de distinção, que temos tribunais e juízes. Que às vezes abusos ocorram não desmerece a distinção.

O segundo expediente da ex-deputada é, sempre que se refere à violência moderada, escrever "moderada" entre aspas; e quando se refere aos fins pedagógicos da palmada, dizer "fins pretensamente pedagógicos". Dizem que a internet baixou o nível da discussão; por acaso quem diz isso lê ou já leu o que passa por argumento nos projetos de lei e discussões do Congresso? E esses arremedos vergonhosos, que não passariam no crivo dos blogs mais tolerantes, julgados por salafrários cuja única qualificação foi terem sido eleitos por massas que nem lembram em quem votaram um mês depois, têm o poder de determinar a vida de todos os habitantes do país.

"Castigo físico é ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em sofrimento e/ou lesão à criança ou adolescente". Por essa definição, deixar de castigo no quarto ou no "cantinho da disciplina" também deveria ser proibido. Afinal, é com o uso da força física que o pai ou mãe leva o filho esperneante até o local do castigo; e o castigo, mesmo que seja dois minutos sentado no primeiro degrau da escada, causa sofrimento, como evidenciado pelo choro. Na verdade, toda forma de impor obediência ao filho pequeno envolve ou força física ou a ameaça do uso da força. Assim como a palmada e o castigo, o mero falar firme e sério funciona exatamente porque a criança sente que haverá consequências caso ela não pare. Trata-se, afinal, de alguém que ainda não consegue entender e se relacionar racionalmente com o mundo; alguém que, não importa quantos argumentos sobre a saúde futura de seus dentes sejam dados, continuará a fugir para não ter de escová-los. A única solução, se quisermos limpar aqueles dentinhos, é pegá-la e levar na marra para o banheiro, usando, sim, a tenebrosa força física.

Conforme a criança cresce e se desenvolve, o uso da força física vai ficando menos necessário e mais inadequado, dando lugar à persuasão. E daí, imagino, há diferentes perfis de criança: algumas mais fáceis, outras mais teimosas e dadas a chiliques, que talvez precisem da punição física ou do castigo por mais tempo. Para outras, bastará o castigo moral, a ameaça de ficar sem TV, sem sobremesa, etc. Ou vamos proibir esses também, já que trazem sofrimento? Toda punição faz sofrer. E já que a criança ainda não é um adulto bem formado, não responde a motivos racionais e não pensa no longo prazo, a punição continua sendo necessária.

O que estou dizendo? Mesmo muitos adultos precisam de ameaça de punição física (cadeia) para coibi-los de cometer algum crime. Punição física, e ameaça de dor (como é a palmada, que em si não dói) são partes da vida. É uma pena; seria ótimo se os homens já nascessem com perfeita boa vontade, convivendo sem conflitos e brigas. "Filho, vamos parar de brincar de monstro e vamos para o berço?" "Oba, berço!!" - E lá iria o nenê. Mas a vida não é assim; a associação de certos comportamentos ao sofrimento imposto por alguma autoridade (pai, governo, Deus) é o primeiro passo da educação moral, e infelizmente se faz necessário quando a persuasão racional ou emocional não dá conta do recado.

O tipo de uso da força que deve ser proibido, e que já é proibido, é aquele que causa danos à criança. Não é o caso da palmada: ela não causa nem dor. É o tipo de coisa que, se aplicada com muita frequência, perde seu poder; pois ela é, em si, inócua, mais fraca do que impactos que a criança sofre em brincadeiras físicas; sua eficácia vem do que ela representa. A palmada funciona porque é rara; daí sim, o filho sente que invadiu território novo e perigoso. Já o soco na cara - esse sim, agressão - machuca de verdade, e se se tornar comum trará cada vez mais danos.

Por que se aplica a palmada? É com vistas ao desenvolvimento de longo prazo? Em geral não. Aliás, a esse respeito, estudos estatísticos têm mostrado que diferentes métodos de educação e disciplina têm pouco ou nenhum efeito sobre as características do adulto que deles resulta. Construtivista, tradicional, rígido, liberal; no final das contas, nada disso tem muito efeito (claro, considerando uma infância dentro de parâmetros normais. Subnutrição, surras diárias, ficar fechado o dia todo num quarto escuro, não ser alfabetizado; esses tipos de nurture fora da curva têm efeitos duradouros). O objetivo do pai que aplica a palmada é fazer o filho obedecer ou parar de ser mal-criado. Ela visa melhorar o presente; não necessariamente o futuro.

E funciona muito bem; posso atestar por experiência. Em momentos de teimosia muito agudos, em que meu filho (agora entendo o porquê do nome terrible twos) não obedece de jeito nenhum e faz questão de fazer o que ele sabe que não queremos que ele faça, às vezes o único modo de dissuadi-lo é com a ameaça da palmada, dita em tom sereno mas sério. Nossos métodos de último recurso - quando conversas, pedidos e negociações não funcionam - são o castigo (ficar uns minutos no berço) e a palmada, e essa é de longe a mais eficaz para dar um basta instantâneo em birras e manhas.

Outros métodos funcionam também, dependendo da ocasião. Mas por que usá-los ao invés da palmada, se nenhum deles tem efeitos negativos? Que vigore a multiplicidade dos métodos, e que as pessoas escolham os que julgarem mais eficazes, sem se impor sobre elas, com o braço armado do Estado (olha aí a força física de novo), a palpitaria de psicólogos da moda.

Ou das estrelas da Globo. Eis o detalhe mais sórdido de toda campanha da lei da palmada: que sua porta-voz midiática seja ninguém menos do que a Xuxa, apresentadora que, vestida de prostituta, despejou por décadas seu esgoto televisivo diariamente nas mentes de milhões de baixinhos, e cuja única filha, de 13 anos, transformada pela mãe em espetáculo midiático desde o nascimento, é semi-analfabeta, como exposto no breve mas hilário twitter da apresentadora ("fui vcs não merecem falar comigo nem com meu anjo" é como a rainha dos baixinhos encerrou seu microblog; vitória do baixo astral?). Essa mulher, que vive num mundo de fantasias Disney e Revista Caras, se coloca como autoridade para dizer o que os pais podem ou não fazer na educação dos filhos; o depoimento dela é ouvido pela Câmara como subsídio para a decisão dos deputados. Daqui a pouco será o quê? ET e Rodolfo discursando sobre geopolítica no Senado? Palhaço Tiririca eleito deputado? Opa!

Todo pai tem defeitos. Detesto essa neurose de paternidade e maternidade perfeitas que tem se imposto como modelo obrigatório. (Aliás, a lei da palmada se encaixa nisso: todas as soluções que fujam do ideal imaginado por psicólogos e sociólogos são proscritas, por mais que sejam boas em vários contextos. Se não é perfeito, é péssimo; só isso explica associarem palmada à "cultura da violência".) Deixem lá, portanto, a Xuxa dar apartamento e carro particular pra Sasha, ensinar que duendes existem e abolir a palmada de seu lar. Mas é pedir demais que suas opiniões não sejam erigidas em lei federal?

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

A Complicada Relação entre Educação e Religiosidade: uma resposta

Fiquei intrigado com este último texto do Joel sobre as religiões. Já conhecia essas estatísticas e sempre pensei que elas expressavam uma tendência verdadeira ligando riqueza com declínio da religião, não que existisse uma correlação perfeita. Mas o texto foi suficientemente convincente para me fazer abandonar essa ideia. Realmente o a mentalidade coletivista seria uma variável mais adequada para explicar esses dados.

Porém, Eu acredito que existam problemas em duas coisas: os resultados da pesquisa e a ideia de que o Cristianismo carrega os valores que fazem as sociedades serem mais individualistas.

O problema com a pesquisa é que ela não avalia adequadamente se o entrevistado realmente não tem religião. Ele simplesmente pensar isso e responder não significa que ele realmente não tenha religião. Tenho no meu círculo social muitas pessoas que se reconhecem como espíritas, e elas tem enorme dificuldade em aceitar a ideia de que espiritismo é uma religião. Outros grupos com que tenho contato, como os teosofistas, também negam de todas as formas possíveis que o que eles defendem é religião. Talvez isso seja explicado por um conceito diferente de religião que eles utilizam, identificando religião somente como um grupo organizado, com dogmas, etc. Uma boa explicação pra isso é que apesar da maior parte da população ser religiosa, a visão sobre as religiões não é das melhores, principalmente porque no ocidente falar mal de religião é falar mal da igreja católica, e existe muita publicidade negativa sobre acontecimentos históricos ou casos recentes de pedofilia, sejam eles verdade ou não.

Sendo assim, acredito que a pesquisa deveria tentar entender a parcela da população que acredita em alguma forma de misticismo e separa-la da que rejeita isso. Não acredito que os europeus sejam os não religiosos que aparecem na pesquisa, porque quando são confrontados com a ideia de vida após a morte, divindade, destino e outras coisas parecidas, eles podem acabar respondendo positivamente, tornando-os automaticamente em religiosos.

Seguindo essa mesma linha, apesar de os asiáticos em geral não terem religiões organizadas, eles são altamente supersticiosos, e não vejo porque não enquadrar isso como uma religião. Então no caso da Coréia, o que pode estar acontecendo é simplesmente a migração de um conjunto de crenças místicas desorganizadas para um conjunto de crenças interligadas que faça mais sentido.

E então vem o segundo problema, que não descaracteriza o que o Joel disse no texto, mas que talvez deixe mais claro: não existe um único cristianismo. Isso pode explicar porque um país cristão como os Estados Unidos pode ser menos coletivista que países mais religiosos como os africanos. Isso aconteceria por uma questão que de forma vulgar vou chamar de raízes do cristianismo. Acredito que a raiz da religiosidade americana venha diretamente da reforma protestante, e no passar dos anos, não houve um sincretismo como o observado no Brasil e na África, apesar dos Estados Unidos também terem tido contato com indígenas e com africanos. O mesmo não aconteceu em partes da América espanhola. Com essa raiz que remonta a reforma protestante, que entendo como um rompimento com as tradições católicas, o cristianismo anglo-saxão acabou se misturando com a tradição inglesa de direitos individuais, liberdade e individualismo.

Ao contrário do cristianismo protestante, a raiz do cristianismo brasileiro vem de uma junção da doutrina católica pré-reforma protestante e recebeu muitas influências do pensamento religioso africano e indígena, que devido a seu tribalismo era altamente coletivista. Com isso, o catolicismo no Brasil e na África não significa que os valores anglo-saxões acompanhem a religião. Isso pode de alguma forma ser a explicação das diferenças nos resultados da pesquisa.

E nem mesmo o protestantismo brasileiro (que está se difundindo rapidamente pela África) segue uma tradição diferente, já que acredito que ele seja somente uma radicalização do catolicismo, como uma tentativa de resgate do fundamentalismo presente na idade média, e como ele não tem ligação com a reforma protestante, ele também acaba não influenciando as sociedades onde está presente a irem de encontro com uma sociedade com valores individualistas.

Com isso, acredito que possa realmente existir uma relação (pequena) entre falta de religião e coletivismo e individualismo com religião, apesar de acreditar que a tendência dessas sociedades individualistas é migrarem para sociedades verdadeiramente sem religião, longe do misticismo europeu; como a venda do livro “O Segredo” demonstra.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

A Complicada Relação entre Educação e Religiosidade

A Gallup fez, uns anos atrás, um mapa da “densidade religiosa” dos países, mostrando a proporção de pessoas de cada nação que considera a religião algo “muito importante” em sua vida. Alguém tinha alguma dúvida do resultado? Em linhas gerais: quanto mais pobre o povo, mais religioso. A África é o centro mundial da fé; a Europa, do secularismo. O objetivo do mapa, ou o fim ao qual ele mais se presta, é afirmar a causalidade entre mais riqueza e educação (que sintetizarei com o termo “desenvolvimento”, dando mais ênfase à educação), e o enfraquecimento da religião.

A reação religiosa mais previsível seria negar essa relação causal, apontando problemas com a inferência. E, de fato, os problemas são muitos. Primeiro, note-se que baixa religiosidade não é marca apenas das nações ocidentais ricas: também são pouco religiosos os países do extremo oriente e os ex-comunistas do Leste europeu. Nações irreligiosas como Mongólia e Azerbaijão não primam pela excelência educacional. Ou seja, há mais em jogo.

Do lado religioso, há duas exceções notórias: a primeira é a Coréia do Sul, mais religiosa que seus vizinhos asiáticos e um país que tem aderido em números crescentes ao Cristianismo (30% de cristãos and counting; mais ou menos 2/3 protestante e 1/3 católico). A outra e maior exceção são os EUA. O país mais rico e mais produtivo do mundo é também marcadamente religioso. A distribuição da religiosidade pelos EUA é desigual, e como o artigo mostra, respeita a correlação negativa entre desenvolvimento e religiosidade. Mas mesmo os estados menos religiosos dos EUA são muito mais religiosos que os países menos religiosos da Europa; compare os 48% de Massachussetts com os 17% da Suécia.

Enxergo uma outra possível causalidade nesses dados: quanto mais coletivista a nação, menos importante a religião. Os três grupos mais irreligiosos encaixam-se nela: o extremo oriente é coletivista por cultura e tradição – quem se importa com o indivíduo na China? E a mudança para um Oriente mais individualista tem caminhado junto da expansão do Cristianismo (ok, o Japão claramente não se encaixa nesse esquema; mas Coréia e China sim). Os welfare states europeus também se justificam e se mantêm graças ao pensamento coletivista; o mesmo pensamento que era imposto à força pelas nações comunistas (oriundo de um profundo coletivismo tribal/étnico e místico anterior). Pode haver um crowding-out em jogo: conforme o pertencimento social e o bem “da sociedade” ganha importância na mente do indivíduo, perde importância a relação daquela alma individual com Deus. Não sei se isso ocorre de fato; é mera hipótese.

Um crítico de pendor mais reacionário ou tradicionalista vê na correlação negativa entre desenvolvimento e religião a prova da decadência moral e intelectual do Ocidente. Sim, sim, sabem um pouquinho a mais sobre como o mundo natural funciona e dormem numa cama confortável, mas são verdadeiros analfabetos no que diz respeito às coisas do espírito, tendo trocado o cuidado com a alma pelo mero conforto material. Resta saber se as populações de Bangladesh, da Arábia e do Congo são espiritual e moralmente superiores a suecos, franceses e japoneses.

Apesar de todas as críticas possíveis, algumas delas a meu ver válidas, ainda não consigo me livrar da impressão de que existe sim uma relação entre desenvolvimento e queda da religiosidade. Parece que, em geral (não em todos os casos) conforme aumenta o nível intelectual, decresce a religião; compare-se, por exemplo, os níveis de religiosidade entre PhDs e pessoas que pararam no ensino médio. Isso indica que a religião é ou tem sido, para muita gente, algo irracional. Nem por isso, no entanto, julgo que ela tenha que sê-lo. (Ao menos não o Cristianismo. Sempre que se fala de religião tende-se a agrupar todas num mesmo grupo. Eu mesmo o tenho feito neste texto; mas tenhamos consciência de que diferentes religiões afirmam coisas muito diferentes a respeito de Deus/deuses, do homem e do universo, e propõem ideais muito diferentes para a vida humana).

Um pouco desse efeito da educação na religiosidade talvez se deva ao caráter secularista e nada imparcial da educação formal dada em escolas e faculdades, especialmente nas humanidades. Muitas falsificações históricas já completamente refutadas ainda são repetidas como se fossem verdades óbvias (Igreja contra terra esférica, contra uso de cadáveres na medicina, contra anestesia – só alguns exemplos de afirmações simples e frontalmente falsas, repetidas sem nenhuma evidência). Só que me parece que essas falsidades só são facilmente aceitas pelos alunos porque elas de alguma maneira encontram respaldo na experiência pessoal deles com a religião.

Para além do claro viés secularista na educação formal, é inegável que ela também dá ferramentas para o indivíduo conhecer melhor o mundo à sua volta e não se deixar levar tão facilmente pela primeira autoridade ou tradição que se lhe apareça e demande obediência; enfim, o torna um pouco mais racional e autônomo. E a maioria religiões, incluso aí, infelizmente, também o Cristianismo, costuma basear a adesão dos fiéis em motivos pouco racionais. Superstições, uma visão extremamente simplista e dualista da realidade humana, crenças mágicas sobre o mundo natural, uso da fé como substituto da razão para conhecer a realidade, apego cego à tradição pela tradição, aceitação do comando divino como origem da moral, a confiança em sentimentos e sensações subjetivas como guias divinamente inspirados.

Não digo que devamos começar uma cruzada anti-supersticiosa para “limpar” o Cristianismo dessas coisas; mas sim que devemos receber de braços abertos o movimento da educação moderna que é o de elevar os indivíduos para cima disso, permitindo-os pensar por si mesmos. Infelizmente, desde meados do século XVIII até o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica teve uma relação muito ambivalente, para não dizer contrária, às conquistas “iluministas”, que nada mais foram do que propagar a autonomia individual e o valor da razão. Incidentalmente, é desse período de reação religiosa que datam todos as mitologias conservadoras e tradicionalistas que hoje se pintam como o “verdadeiro catolicismo”, sempre a chorar e lamentar tudo o que ocorre na Igreja e no mundo desenvolvido há um século e a cultuar fetichismos por formas culturais antigas.

Não era essa a atitude dos primeiros cristãos, e nem a dos grandes pensadores cristãos ao longo da história, como S. Agostinho, S. Alberto, S. Tomás (infelizmente cooptado pelo que há de mais obscurantista no pensamento católico atual) e outros de mesmo espírito. Não era esse o espírito cristão que deu origem e/ou continuidade à ciência, à tecnologia, às artes, ao capitalismo, à filosofia e aos direitos humanos individuais. E esse espírito cristão, embora tolere e até veja com bons olhos a devoção sincera que cresce em meio à superstição e à infância intelectual e cultural (assim como a devoção mais “esclarecida” também cresce em meio a, e apesar de, vícios próprios a ela), vê com bons olhos o amadurecimento cultural, que traz consigo, sem dúvida, muitos desafios (como manter a fé sem as muletas da pobreza e da ignorância?), mas também a possibilidade de uma religião mais madura.

Francis Bacon sintetiza meu pensamento:  “A little philosophy inclineth man's mind to atheism, but depth in philosophy bringeth men's minds about to religion”. O mundo moderno tem conseguido trazer a little philosophy para todos. Cabe aos cristãos não combater esse processo e fechar-se num gueto no qual as mentes se diluam em meio a tradições e línguas mortas para não ter que pensar por si próprias, e sim oferecer a depth in philosophy, como já fez em outras eras.

sábado, 10 de dezembro de 2011

A dinâmica populacional e o Estado de Bem Estar Social

Quando alguma iniciativa ou estudo é feito sobre a população mundial, geralmente ele acaba caindo em dois extremos: a ideia de superpopulação e a de diminuição dramática da população. Pelo lado da superpopulação temos geralmente grupos de eugenistas, progressivistas e ambientalistas; e já do outro lado temos grupos religiosos ou defensores de valores tradicionais e planejadores que ficam alarmados com as projeções usando como base a evolução e contexto atual.

De certa forma os dois grupos pecam por desenhar um cenário catastrófico, quando a coisa em geral tende a se estabilizar sozinha com o tempo; mas isso com certeza não dá dinheiro para pesquisas e muito menos agrada os planejadores governamentais, que acreditam que algo deve ser feito, geralmente se esquecendo que sempre algo é feito, mas sem a ajuda de burocratas.

Mas o que me motivou a lembrar dessas discussões sobre população foi o documentário “DemographicWinter” (disponível na íntegra). É um bom documentário, e apesar de ser algo sério – com presença de renomados cientistas -, ele peca fazer uma montagem que passa um tom alarmante. Mas isso acaba não comprometendo muito o documentário, já que eles conseguem levantar as causas do declínio populacional que vem se desenhando, principalmente nos países da OCDE.

As causas principais segundo eles são a invenção dos métodos contraceptivos, a entrada da mulher no mercado de trabalho, aumento do número de separações, casamentos tardios e o custo de ter que criar vários filhos. Todos esses pontos realmente podem estar ajudando a desenhar o fenômeno de declínio no número absoluto da população mundial, mas acredito que eles tenham ignorado talvez a maior causa desse declínio: o Estado de Bem Estar Social (EBES).

Apesar de num primeiro momento parecer que o EBES estimula o crescimento populacional, existes alguns detalhes que fazem o efeito ser inverso. O que fica aparente é que como o estado garante saúde, educação e toda uma série de benefícios, as pessoas não precisam se preocupar com o perigo de terem vários filhos, porque o restante da sociedade vai pagar por grande parte dos gastos que eles vão gerar. Esse ponto pode até ser verdadeiro em países como o Brasil, como ocorreu na época dos auxílios do Getúlio Vargas que fez as famílias terem mais filhos, assim como o atual Bolsa Família. Mas em países com o EBES mais amplo e funcional, como o Japão e a Europa, a população vem declinando cada vez mais rápido, mesmo com uma rede maior de proteção.

E como Eu disse acima, existe uma consequência não intencional do EBES, que é minar valores como a família e a comunidade. Devido às pessoas terem em mente que em alguma necessidade o estado vai socorrê-las, elas não precisam mais se esforçar tanto para fortalecer os laços com a família. A família e a comunidade ficam mais fracas porque os membros não dependem mais entre si em alguma situação negativa.

Então ao mesmo tempo que o EBES gera incentivos para ter filhos (acredito que esse incentivo seja pequeno em países desenvolvidos), ele gera um incentivo muito maior ao comportamento contrário a família e a comunidade. Pode-se usar como exemplo a diferença entre a sociedade chinesa e a europeia. Na China, como não existe um sistema para garantir requisitos mínimos para os idosos e doentes, as pessoas dependem da família para recorrer nesses momentos. Por isso os chineses desejam ter mais filhos, porque assim eles vão poder contar com um maior número de pessoas. Já os europeus estão tendo cada vez menos filhos, e em mais de 60% dos lares não há mais crianças, combinado que uma parte crescente da população não mora mais aonde nasceu.

Identificado o problema, devemos considerar essa situação ruim? Devemos intervir para alterar essa situação? Devemos usar o estado para intervir em um problema causado por uma intervenção estatal? Bem, em geral mais pessoas significa que há mais espaço para ganhos de escala, mas Eu não sei até que ponto uma variação pequena pra baixo na população mundial possa influenciar isso. O documentário tenta também passar a ideia de que o capitalismo depende de aumento de população para continuar criando riqueza, o que não é verdade; o que importa mesmo são os ganhos de produtividade.

Mas já que as pessoas acabam pensando em intervir de qualquer maneira utilizando o estado, acredito que a melhor forma de resolver isso seja através da abertura completa desses países para a imigração. Com isso, pessoas com baixa produtividade poderão anular o efeito do custo de criar um filho decorrente da mulher focar no mercado de trabalho, já que o custo de ter uma babá vai reduzir drasticamente, além de esses novos entrantes virem de uma situação que os leva a valorizar a família, aumentando as taxas de natalidade. Mas sem a redução da amplitude do EBES, no longo prazo esse problema vai voltar a acontecer. E Eu não poderia deixar de comentar a medida mais comum utilizada para aumentar as taxas de natalidade, que é dar dinheiro diretamente ou incentivos monetários para casais que queiram ter mais filhos. Como esperado, isso funciona (mas não tanto quanto esperavam), mas a um custo muito alto e fica muito claro que as pessoas que não tem filhos estão sendo obrigadas a criar os filhos de outras pessoas.

Sobre não estar funcionando como os planejadores esperavam, isso pode ser o efeito da desintegração da instituição da família e da comunidade. Eu particularmente não tenho admiração por esses valores, mas creio que seja evidente que eles são a chave para entender a dinâmica das populações; pois esses declínios ocorreram pelo mesmo motivo nas civilizações romana e grega. Além disso, a diminuição da influência da religião pode estar contribuindo pra isso diretamente ou contribuindo por meio da desintegração da família que costuma acompanhar a falta dela.

Por fim, sendo um pouco não ortodoxo, tenho um motivo relevante para ver com bons olhos essa redução da população. Se a evolução da tecnologia ocorrer como os Transhumanistas planejam, o que conhecemos como morte terá acabado por volta de 2050. Com isso, se a colonização do espaço não se tornar uma realidade até esse momento, uma população estável será algo desejável, porque apesar dos ganhos de produtividade terem conseguido até o momento sustentar com alimentos e energia uma população crescente, isso tem um limite (que acredito que esteja longe).

Bônus: Talvez alguém ainda não tenha visto o filme Idiocracia que fala sobre o tema em uma comédia nada inteligente, mas muito divertida.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Bolsa-Estupro - Boas Intenções, Proposta Equivocada

Por algum motivo obscuro circulou nas redes sociais esses dias uma notícia de 2007 sobre o projeto da "Bolsa-estupro", que dará dinheiro para que mulheres estupradas que tenham engravidado decidam ficar com o filho ao invés de abortá-lo. O projeto ainda tramita pelo legislativo; quem sabe um dia passe.

O que mais chama a atenção é como todos os que o linkaram davam mostras de estar profundamente chocados e indignados com a proposta. Mas indignavam-se com o quê, exatamente? O projeto não tiraria o sacrossanto direito da mulher de matar o feto. Apenas seria um incentivo do Estado para que ela pensasse duas vezes e tomasse uma decisão em prol da vida. Será que seriam igualmente contrários à proposta de que o Estado financiasse a decisão de abortar?

Na verdade, todo mundo que considera o aborto algo genericamente mau, dramático, que traz sofrimentos à mulher, ainda que defenda o direito da mulher de escolher, deveria ver a lei com olhos benévolos. Afinal, não são os próprios defensores do direito do aborto que dizem que "ninguém é a favor do aborto; defendemos a escolha", que ele é um mau infelizmente necessário às vezes e que causa grandes sofrimentos à mulher, etc.? Então por que todo esse ódio, rapaziada? A reação virulenta só traz à tona um aspecto muito sombrio do movimento pró-aborto: para seus partidários, não interessa só garantir a escolha, mas insistir que a opção concreta pelo aborto é preferível. Sim, eles deixam às pobres religiosas ludibriadas o direito de carregar e criar o nenê/parasita, mas não têm a menor dúvida de que, para uma mulher bem-resolvida, a opção correta fora dos casos de gravidez planejada é sempre o aborto, e portanto influenciá-la na direção contrária é errado. E por isso se escandalizam tanto com um projeto de lei como esse.

Eu, no entanto, embora seja contra permitir aborto em caso de estupro, sou contra a lei. Primeiro porque será o negócio mais fácil do mundo de ser fraudado. E segundo porque sou contra transferências estáveis de renda por meio do Estado. Quem quiser ajudar as vítimas de estupro a não abortar, ajude-as; ou então ajude um milhão de outras causas igualmente nobres que existem por aí; a escolha é sua.

Sim, sou contra o aborto mesmo em caso de estupro. Afinal, o feto é um indivíduo vivo da espécie humana e distinto da mãe. É um ser humano, e tem todas as características que um ser humano tem nesse estágio de seu desenvolvimento. O direito ao aborto deveria ser decidido caso a caso para os casos de risco de vida da mãe. Se uma pessoa coloca em risco sua vida diretamente, é direito seu se defender, com força letal se necessário. Aceitar a morte para que o filho nasça é um ato que pode ser heróico, mas não é moralmente obrigatório.

No mais, proibamos todos. O feto que resultou do estupro é tão inocente quanto a mãe. O sofrimento psicológico dela, por pior que seja, não justifica que se tire uma vida inocente. Na verdade, não justifica nem que se tire uma vida culpada. Pensemos no caso da vítima de estupro que, futuramente, mate seu estuprador. A situação dela é perfeitamente compreensível, e saber que aquele homem que a estuprou continuava vivo e impune vivendo feliz pela Terra deve sem dúvida causar-lhe grande sofrimento; mas não justifica o assassinato, que continuará sendo um ato criminoso. Para além disso, cabe questionar a premissa de que o filho gerado no estupro seja mesmo o horror que afirmam os militantes. Desafio alguém a encontrar uma mãe que se arrependa de ter dado à luz o filho; conheço, ao contrário, muitos depoimentos de mães que amam seus filhos provenientes de estupro, e agradecem todos os dias por ter tomado a decisão de levar a gravidez adiante. O filho é antes um auxílio na superação do trauma do que um prolongamento torturante dele.

Enfim, não ao bolsa-estupro; mas podemos concordar que a intenção por trás dele é boa?
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