A Gallup fez, uns anos atrás, um mapa da “densidade religiosa” dos países, mostrando a proporção de pessoas de cada nação que considera a religião algo “muito importante” em sua vida. Alguém tinha alguma dúvida do resultado? Em linhas gerais: quanto mais pobre o povo, mais religioso. A África é o centro mundial da fé; a Europa, do secularismo. O objetivo do mapa, ou o fim ao qual ele mais se presta, é afirmar a causalidade entre mais riqueza e educação (que sintetizarei com o termo “desenvolvimento”, dando mais ênfase à educação), e o enfraquecimento da religião.
A reação religiosa mais previsível seria negar essa relação causal, apontando problemas com a inferência. E, de fato, os problemas são muitos. Primeiro, note-se que baixa religiosidade não é marca apenas das nações ocidentais ricas: também são pouco religiosos os países do extremo oriente e os ex-comunistas do Leste europeu. Nações irreligiosas como Mongólia e Azerbaijão não primam pela excelência educacional. Ou seja, há mais em jogo.
Do lado religioso, há duas exceções notórias: a primeira é a Coréia do Sul, mais religiosa que seus vizinhos asiáticos e um país que tem aderido em números crescentes ao Cristianismo (30% de cristãos and counting; mais ou menos 2/3 protestante e 1/3 católico). A outra e maior exceção são os EUA. O país mais rico e mais produtivo do mundo é também marcadamente religioso. A distribuição da religiosidade pelos EUA é desigual, e como o artigo mostra, respeita a correlação negativa entre desenvolvimento e religiosidade. Mas mesmo os estados menos religiosos dos EUA são muito mais religiosos que os países menos religiosos da Europa; compare os 48% de Massachussetts com os 17% da Suécia.
Enxergo uma outra possível causalidade nesses dados: quanto mais coletivista a nação, menos importante a religião. Os três grupos mais irreligiosos encaixam-se nela: o extremo oriente é coletivista por cultura e tradição – quem se importa com o indivíduo na China? E a mudança para um Oriente mais individualista tem caminhado junto da expansão do Cristianismo (ok, o Japão claramente não se encaixa nesse esquema; mas Coréia e China sim). Os welfare states europeus também se justificam e se mantêm graças ao pensamento coletivista; o mesmo pensamento que era imposto à força pelas nações comunistas (oriundo de um profundo coletivismo tribal/étnico e místico anterior). Pode haver um crowding-out em jogo: conforme o pertencimento social e o bem “da sociedade” ganha importância na mente do indivíduo, perde importância a relação daquela alma individual com Deus. Não sei se isso ocorre de fato; é mera hipótese.
Um crítico de pendor mais reacionário ou tradicionalista vê na correlação negativa entre desenvolvimento e religião a prova da decadência moral e intelectual do Ocidente. Sim, sim, sabem um pouquinho a mais sobre como o mundo natural funciona e dormem numa cama confortável, mas são verdadeiros analfabetos no que diz respeito às coisas do espírito, tendo trocado o cuidado com a alma pelo mero conforto material. Resta saber se as populações de Bangladesh, da Arábia e do Congo são espiritual e moralmente superiores a suecos, franceses e japoneses.
Apesar de todas as críticas possíveis, algumas delas a meu ver válidas, ainda não consigo me livrar da impressão de que existe sim uma relação entre desenvolvimento e queda da religiosidade. Parece que, em geral (não em todos os casos) conforme aumenta o nível intelectual, decresce a religião; compare-se, por exemplo, os níveis de religiosidade entre PhDs e pessoas que pararam no ensino médio. Isso indica que a religião é ou tem sido, para muita gente, algo irracional. Nem por isso, no entanto, julgo que ela tenha que sê-lo. (Ao menos não o Cristianismo. Sempre que se fala de religião tende-se a agrupar todas num mesmo grupo. Eu mesmo o tenho feito neste texto; mas tenhamos consciência de que diferentes religiões afirmam coisas muito diferentes a respeito de Deus/deuses, do homem e do universo, e propõem ideais muito diferentes para a vida humana).
Um pouco desse efeito da educação na religiosidade talvez se deva ao caráter secularista e nada imparcial da educação formal dada em escolas e faculdades, especialmente nas humanidades. Muitas falsificações históricas já completamente refutadas ainda são repetidas como se fossem verdades óbvias (Igreja contra terra esférica, contra uso de cadáveres na medicina, contra anestesia – só alguns exemplos de afirmações simples e frontalmente falsas, repetidas sem nenhuma evidência). Só que me parece que essas falsidades só são facilmente aceitas pelos alunos porque elas de alguma maneira encontram respaldo na experiência pessoal deles com a religião.
Para além do claro viés secularista na educação formal, é inegável que ela também dá ferramentas para o indivíduo conhecer melhor o mundo à sua volta e não se deixar levar tão facilmente pela primeira autoridade ou tradição que se lhe apareça e demande obediência; enfim, o torna um pouco mais racional e autônomo. E a maioria religiões, incluso aí, infelizmente, também o Cristianismo, costuma basear a adesão dos fiéis em motivos pouco racionais. Superstições, uma visão extremamente simplista e dualista da realidade humana, crenças mágicas sobre o mundo natural, uso da fé como substituto da razão para conhecer a realidade, apego cego à tradição pela tradição, aceitação do comando divino como origem da moral, a confiança em sentimentos e sensações subjetivas como guias divinamente inspirados.
Não digo que devamos começar uma cruzada anti-supersticiosa para “limpar” o Cristianismo dessas coisas; mas sim que devemos receber de braços abertos o movimento da educação moderna que é o de elevar os indivíduos para cima disso, permitindo-os pensar por si mesmos. Infelizmente, desde meados do século XVIII até o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica teve uma relação muito ambivalente, para não dizer contrária, às conquistas “iluministas”, que nada mais foram do que propagar a autonomia individual e o valor da razão. Incidentalmente, é desse período de reação religiosa que datam todos as mitologias conservadoras e tradicionalistas que hoje se pintam como o “verdadeiro catolicismo”, sempre a chorar e lamentar tudo o que ocorre na Igreja e no mundo desenvolvido há um século e a cultuar fetichismos por formas culturais antigas.
Não era essa a atitude dos primeiros cristãos, e nem a dos grandes pensadores cristãos ao longo da história, como S. Agostinho, S. Alberto, S. Tomás (infelizmente cooptado pelo que há de mais obscurantista no pensamento católico atual) e outros de mesmo espírito. Não era esse o espírito cristão que deu origem e/ou continuidade à ciência, à tecnologia, às artes, ao capitalismo, à filosofia e aos direitos humanos individuais. E esse espírito cristão, embora tolere e até veja com bons olhos a devoção sincera que cresce em meio à superstição e à infância intelectual e cultural (assim como a devoção mais “esclarecida” também cresce em meio a, e apesar de, vícios próprios a ela), vê com bons olhos o amadurecimento cultural, que traz consigo, sem dúvida, muitos desafios (como manter a fé sem as muletas da pobreza e da ignorância?), mas também a possibilidade de uma religião mais madura.
Francis Bacon sintetiza meu pensamento: “A little philosophy inclineth man's mind to atheism, but depth in philosophy bringeth men's minds about to religion”. O mundo moderno tem conseguido trazer a little philosophy para todos. Cabe aos cristãos não combater esse processo e fechar-se num gueto no qual as mentes se diluam em meio a tradições e línguas mortas para não ter que pensar por si próprias, e sim oferecer a depth in philosophy, como já fez em outras eras.