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quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Ad Hominem Entrevista: Olavo de Carvalho

HÁ QUASE vinte anos, a indigência intelectual brasileira, sempre tão orgulhosa de suas nobres realizações, ganhava nome e sobrenome: O Imbecil Coletivo – Atualidades Inculturais Brasileiras. O sucesso clamoroso do livro, que em pouquíssimos meses esgotou várias edições, era, a um só tempo, acontecimento preocupante e auspicioso: se de um lado ficava evidente que a inteligência nacional – ou sua falta – seria suficiente para preencher dezenas de volumes, em contrapartida o interesse pelo diagnóstico e possível tratamento sugeria que talvez não estivéssemos condenados a desaparecer do mundo civilizado de forma definitiva.

Muita coisa piorou de lá pra cá. A ascensão do PT ao poder, a hegemonia do pensamento de esquerda – predominantemente em sua versão gramsciana – e a quase absoluta sonegação de todo pensamento filosófico e político que não seja, de modo mais ou menos explícito, afeito às comodidades e cumplicidades daquilo que um dia já ousaram chamar de “jornalismo”, parecem denunciar o fracasso do empreendimento intelectual e pedagógico de Olavo de Carvalho. Se tudo piorou e a “longa marcha da vaca para o brejo” é mesmo o inescapável roteiro do pensamento guarani-kaiowá, que é que se ganhou com tudo isso?

Pois a ironia é precisamente esta: quase vinte anos depois, Olavo de Carvalho publica O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota e inicia novo ciclo com novo sucesso. Milhares de exemplares vendidos e a mesma certeza: se a intelligentsia brasileira continua a dar o exemplo do que não se deve fazer, o filósofo reafirma seu propósito de mostrar que nem todo mundo está dormindo enquanto a vaca marcha, lentamente, para o infausto destino. E – Deus nos leia! – talvez o prognóstico seja outro, e menos acabrunhante, depois que os imbecis passaram a ser chamados, sem respeitos humanos, pelos respectivos e apropriados nomes.

Ad Hominem entrevista Olavo de Carvalho: para os imbecis de sempre, para os idiotas de costume, e para todos os outros que não se contentam em ser nem uma coisa nem outra.

***

O sucesso instantâneo do seu novo livro nos leva a crer que o “olavismo” já não cabe nos limites de um gueto virtual – como querem alguns –, mas se alastra com velocidade entre as mais diversas camadas da sociedade brasileira. Se isto é muito bom, ao mesmo tempo há quem aponte um efeito colateral da dita “orkutização do olavismo”, a saber, o surgimento de um exército de entusiastas das suas ideias os quais aparentam não ter preparo intelectual para compreender o que justifica seu próprio entusiasmo. O senhor concorda com essa análise? Como avalia essa recepção “quase cega” das suas ideias por parte de seus leitores?

Tenho uns trinta e seis mil “seguidores” no Facebook (que só são seguidores num sentido ótico da palavra), uns cem mil leitores espalhados pelo Brasil e talvez uns duzentos mil ouvintes e espectadores no Youtube. Mas, de todos esses, só uns dois mil – menos de um por cento – são meus alunos no Seminário de Filosofia, e estes, a pedido meu, evitam participar de discussões na internet, só o fazendo quando é no quadro de alguma atividade profissional ou intelectual mais sistemática, como é o caso do Felipe Moura Brasil, o do Ronald Robson, o do Gustavo Nogy e o de mais alguns poucos. Por isso, o que acaba aparecendo superficialmente como “discussão” das minhas idéias é justamente o que vem do público mais geral, que não tem comigo nenhuma relação de aprendizado e que me chama de “professor” apenas por gentileza. Não tem sentido esperar que esse público tenha uma compreensão das minhas idéias no nível que a têm os meus alunos. Deles vêm, com freqüência, perguntas mal formuladas e opiniões toscas, que refletem um esforço de aprendizado sincero mas ainda muito incipiente. Alguns observadores maliciosos ou burros, no entanto, nada sabendo nem querendo saber dos meus cursos ou dos meus alunos, fazem questão de tomar justamente esse público geral como amostra típica dos resultados do meu ensinamento. É uma deformação caricatural monstruosa. Todo escritor ou filósofo tem um público geral que o aprecia sem compreendê-lo muito, mas tem também o direito de ser julgado pelos seus escritos e pelo seu ensinamento direto e não pela resposta incontrolável que obtém de um público difuso. Já pensou o que seria de Sócrates se não fosse julgado pelo que Platão e Aristóteles aprenderam dele, mas pelo que se lê a seu respeito no trabalho escolar de um estudante brasileiro do segundo grau? Que seria de Karl Marx se toda a imagem que temos dele não fosse baseada no que ele legou a um Georg Lukács ou um Karl Korsch, mas tão-somente no que o Punheteu sabe a respeito? Todo escritor, todo filósofo é “orkutizado”, mas somente um – este entrevistado – é aferido preferencialmente pela sua imagem orkutiana, que não o reflete de maneira alguma. Alguns fazem essa caricatura de análise por malícia, outros por ignorância genuína, mas nos dois casos o que está verdadeiramente orkutizado é o cérebro dessas criaturas. A confusão entre os dois níveis de recepção é um erro tão grosseiro, que o fato mesmo de que tantos o cometam é um índice sociológico da crise nacional de QI. Pior ainda é que aqueles que criticam a adesão simplória de certa parte do público às minhas idéias têm uma visão ainda mais simplória dessas idéias, baseada inteiramente em frases que ouviram nos meus programa de rádio sem nunca ter lido os meus livros nem freqüentado os meus cursos. Esses detratores do meu trabalho criticam nas outras pessoas o erro que eles próprios estão cometendo, em maior escala, nesse mesmo instante. Por que a simpatia “quase cega” deveria ser mais desprezível do que a hostilidade igualmente cega? Aplaudir sem compreender muito é por certo mais decente do que condenar sem compreender nada.

Apesar das frequentes advertências que o senhor, baseado no esquema aristotélico dos quatro discursos, fez e continua fazendo quanto à necessidade de dominar os registros poéticos e retóricos antes de passar ao estudo da filosofia, boa parte de seus admiradores e até alunos parece interessar-se sobretudo nos estudos teóricos (tendentes à lógica, segundo a classificação aristotélica). Isso produz fenômenos curiosos, como algumas interpretações bastante rudimentares de conceitos densos da teologia. Como o senhor explica isso? O que o senhor julga que pode ser feito para despertar as pessoas para a importância filosófica do estudo das letras?

O problema é muito mais sério do que eu mesmo imaginava no início. A presente geração foi toda alfabetizada pelo método socioconstrutivista, que a incapacitou não só para o domínio das regras da gramática, mas para a percepção das nuances, dos tons, da harmonia. É como uma surdez tonal adquirida. Para corrigir isso, a simples leitura de boas obras de literatura não basta. O pessoal, com isso, adquire cultura e às vezes progride um pouco na percepção das formas verbais, mas continua incapaz de “entrar” pessoalmente na tradição literária, de participar dela ativamente. Não sei como resolver esse problema, mas entendo que é ele que leva tantas pessoas a se sentirem mais à vontade em terrenos mais impessoais, onde a simples apreensão do sentido explícito dos conceitos parece bastar. É claro que nisso se enganam. Sem um bom “ouvido” literário não se pode ler com proveito nem o Tractatus de Wittgenstein, para não falar de livros de teologia.

Por falar em literatura, o senhor certa vez disse que Bruno Tolentino foi o melhor poeta em língua portuguesa desde Camões – e seus críticos adoram repetir essa frase em tom de chacota. O que faz de Tolentino um poeta tão grande, em sua opinião? Em que sentido ele seria comparável a Camões?

Acho que quem não percebe isso à primeira vista tem um cérebro lesado. A temática do Bruno abarca o universo quase inteiro da experiência humana e intelectual do século XX, da qual seus concorrentes brasileiros mal chegam a apreender uns pedacinhos, e ele a expressa com um domínio técnico alucinante. Nenhum outro poeta brasileiro fez isso. Nem Drummond, nem Manuel Bandeira. Em carne e osso, o Bruno foi notoriamente um semilouco, um mitômano, mas quantos poetas não o foram? Nunca ouviram falar de Guillaume Apollinaire, de Christopher Marlowe, de Fernando Pessoa?

A tese exposta em sua obra Aristóteles em Nova Perspectiva – Introdução à Teoria dos Quatro Discursos – o discurso humano é uma potência que se atualiza de quatro formas diferentes, não necessariamente contraditórias entre si, mas complementares e com diferentes níveis de credibilidade – foi, desde seu lançamento, ou ignorada ou completamente incompreendida pelos estudiosos. Menção honrosa deve ser feita aos portugueses (professor Mendo Castro Henriques entre eles). O senhor sabe de algum professor brasileiro que tenha lido a obra, ou chegou a se corresponder com alguém, acerca desse estudo?

Quando esse livro saiu, fazia trinta anos exatos que nada se publicava de autor brasileiro sobre Aristóteles. Isso dá uma idéia do terreno miserável onde plantei aquela semente. Para não admitir que tinha ficado para trás, o pessoal da USP desencavou uma tese do Oswaldo Porchat Pereira, já velha de três décadas, e a publicou às pressas, mas era apenas um bom trabalho escolar, sem nada de original. Só obtive audiência inteligente no círculo de estudiosos de lógica, discípulos de Newton da Costa, especialmente Alexandre Costa Leite. No exterior, o meu livro foi muito bem recebido. O primeiro a lê-lo e aplaudi-lo foi o biólogo Antoine Danchin. Depois veio o círculo inteiro dos discípulos de Eric Voegelin – Frederick Wagner, Tudor Munteanu, Jody Bruhn, David Walsh. Roger Kimball recomendou o livro à Encounter Books, que prometeu publicá-lo se eu lhe acrescentar mais textos sobre o mesmo assunto para formar um volume mais grosso. Em Portugal, Mendo Castro Henriques, João Seabra Botelho, Carlos Aurélio e todo o pessoal da revista Leonardo. Na Romênia, Andrei Pleshu, Horia Patapievici, Gabriel Liiceanu e muitos outros.

O senhor tem dito que alguns de seus alunos já estão mais bem preparados para atuar na vida intelectual do que muitos professores universitários. E também alerta com frequência sobre a importância de passar anos estudando antes de se manifestar publicamente. Levando isso em conta, para quando podemos esperar a aparição pública de seus melhores alunos? Eles tenderão a ingressar nos meios já existentes (como universidades e jornais) ou criar postos de autoridade paralelos ao cenário cultural atual? O que o senhor julga ser mais adequado?

Estou recolhendo e analisando centenas de projetos de trabalhos de conclusão de curso que, mais dia menos dia, serão publicados em forma de livros. Quando digo que meus alunos têm mais preparo do que o típico professor universitário brasileiro de hoje, falo com base nessa documentação e não em impressões gerais. Nem menciono o meu filho Luiz Gonzaga, que, sem nunca ter freqüentado universidade alguma, não tem concorrentes à sua altura no meio universitário nos campos da sua escolha, as religiões comparadas e a filosofia medieval. Alguns dos meus alunos já têm livros publicados e dão uma amostra do que estou dizendo. Virgilio Dalla Rosa e Rodrigo Gurgel são exemplos. Eles superam de longe qualquer concorrente nos seus campos respectivos. Quando a produção dos demais começar a aparecer, ela injetará vida nova na atividade intelectual deste país. Talvez eu crie uma revista de cultura e promova cursos dados pelos meus alunos, mas, fora disso, não tenho planos. Cada um conduzirá sua vida como bem entenda.

Atualmente, que filósofos vivos o senhor considera dignos de atenção? E por quê?

Jean-Luc Marion, John Deely, Harry Redner, Glenn Hughes, Horia Patapievici, muitos outros. A inteligência não morreu no mundo. Só no Brasil.

Em um artigo de 2006 (A fossa de Babel, constante em O mínimo..., p. 287), o senhor escreve: “É verdade que nem todo mundo reclama do que escrevo. Há quem goste. Mas uma boa parte gosta naquela mesma clave lúdica em que o conhecimento adquirido é uma forma de diversão, sem alcance sobre a vida prática e as decisões reais. Quando dou conselhos a essa gente, quase sempre me sinto como um médico que, tendo receitado uma medicação de emergência, depois a encontra esquecida num canto da sala onde a família presta sua última homenagem ao cadáver do paciente. Não me sinto um gênio incompreendido, não tenho nem um pouco de dó de mim mesmo: tenho dó daqueles a quem estendi o socorro dos meus conhecimentos e que só os aproveitaram como deslumbre passageiro. Não entenderam que eu não queria os seus aplausos, mas a sua salvação.” Sete anos após ter escrito essas linhas, o que mudou?

Muita coisa. Hoje tenho milhares de alunos que estudam a sério e tiram até mais proveito das minhas aulas do que eu teria esperado. Tudo melhorou muito, mas muito mesmo.

A maior e mais importante parte da sua obra permanece em estado bruto: em gravações de vídeo e em transcrições, por exemplo. Várias obras esperadas por seus alunos, como O Olho do Sol e A Mente Revolucionária, ao que parece não terão mais uma forma unitária, restando dispersas em registros de diferente natureza (apostilas, transcrições de aulas, palestras, artigos etc.). O que de concreto em termos de publicação, no entanto, seus leitores podem esperar para breve, seja em inéditos, seja em reedições, como se fez recentemente com Aristóteles em Nova Perspectiva?

Estou preparando para publicação o curso Sociologia da Filosofia e o Rodrigo Gurgel está dando retoques em Raízes da Modernidade, que sairá com outro título porque descobri que o Pe. Lima Vaz publicou um livro com esse título faz muitos anos. Esses dois sairão no ano que vem, sem falta. E Visões de Descartes tem lançamento marcado para 22 de novembro. Mas a massa de papéis arquivados à espera de correção é uma monstruosidade. Mesmo que eu chegue à mais extrema velhice não creio que conseguirei preparar todo esse material para edição. Legarei o abacaxi às boas almas que o desejem.

O senhor já afirmou algumas vezes que a multiplicidade de focos de atenção e intervenção da sua obra lhe impossibilita de dar a ela uma forma bem ordenada e editorialmente de fácil apresentação. O senhor poderia falar um pouco mais sobre que relação há entre sua postura intelectual e os modos de registro da mesma?

Na filosofia é tradicional o contraste entre as mentes sistemáticas, que vão construindo uma obra ordenadamente, como Kant ou Husserl, e as mentes reativas, que precisam de algum estímulo momentâneo para registrar suas idéias por escrito, como Leibniz ou Pascal. Guardadas as devidas proporções, pertenço decididamente ao segundo tipo. Às vezes fico meditando um assunto por anos a fio, sem escrever uma palavra. Mas basta que alguém diga uma bobagem a respeito, e instantaneamente começo a preencher páginas e páginas. A questão do Império sempre andava na minha cabeça, mas foi só a conferência desastrada do José Américo Mota Pessanha que me fez escrever O Jardim das Aflições. O problema, hoje, é que os estímulos são em número excessivo, ultrapassam a minha capacidade de reagir por escrito. Então registro minhas idéias oralmente, nas aulas.

No Brasil, nenhum filósofo conseguiu até hoje criar discípulos na acepção eminente da palavra: intelectuais de alto nível que prossigam com pesquisas que, de algum modo, são respostas à orientação que receberam dos seus mestres. Isso, que é coisa comum em outros países (inclusive em alguns da América Latina), no Brasil inexiste e é até visto com certo desprezo. O senhor, contudo, em alguma medida já criou condições para que nas próximas décadas se desenvolva um discipulado a partir de sua obra. Ao avaliar o seu pensamento e sua atuação pública, o que o senhor imagina serem as contribuições e problemas mais importantes com que no futuro seus alunos acabarão se preocupando mais?

O problema essencial é restaurar o senso da filosofia como uma disciplina integral da inteligência, superando, de um lado, a mutilação burocrático-profissional e, de outro, o empastelamento ideológico-partidário. Creio que alguns dos meus alunos já estão bem afiados para entrar nessa luta. Em segundo lugar, é preciso despertar da “longa noite” em que a cultura brasileira mergulhou nas últimas décadas. Temos de voltar a ser os contemporâneos de Manuel Bandeira, de Gilberto Freyre, de Otto Maria Carpeaux, de Mário Ferreira dos Santos, de Álvaro Lins e de tantos outros. Temos de fazer a ponte entre as gerações e produzir obras que não desmereçam o legado desses nossos ancestrais. Com isso o campo de batalha já se estende para muito além da área da filosofia em sentido estrito. Em terceiro lugar, é preciso escrever a história cultural e psicológica das últimas décadas, que os profissionais universitários abandonaram ou falsificaram quase que por completo. Em quarto, é preciso abrir um rombo no mercado editorial e inundá-lo com livros fundamentais do século XX que permanecem desgraçadamente ignorados no nosso meio. Neste ponto, muita coisa já se fez nos últimos anos, partindo de sugestões que dei nos meus livros e artigos, mas ainda há muito por fazer. Em quinto, é preciso atualizar o público brasileiro com a nova situação político-militar do mundo, que a nossa mídia ensina a ignorar. Esse é o programa.

sábado, 24 de agosto de 2013

Elementos da filosofia de Olavo de Carvalho



Notas para uma leitura de “O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota” (Record, 2013)

I. A obra de Olavo de Carvalho possui uma intuição fundamental: a de que só a consciência individual é capaz de conhecimento (1). O que a afirmação possa ter de banal, em aparência, se esvai se notarmos que aí se fala de “consciência individual”, não se tratando tão somente de “sujeito”, o vocábulo descarnado de uso corrente na metafísica dos últimos séculos. Uma coisa é sujeito enquanto meramente contraposto a objeto em teoria do conhecimento; outra coisa é a modalidade de existência histórica de um ser dotado de consciência, que por definição só pode ser individual. E nisso importa prestar atenção à sutileza vocabular porque aí se afirma uma substância e se afirma uma sua propriedade: “consciência individual”, a primeira, e “capacidade de conhecimento”, a segunda. De um ponto de vista biográfico, a substância atualiza essa sua propriedade em um trauma de emergência da razão (2), que consiste no descompasso entre o crescente acúmulo de experiências do indivíduo, no decorrer do tempo, e a sua capacidade mais limitada de coerenciar e dar expressão a essa massa de fatos que, a princípio amorfa, pode se ordenar – à medida que o indivíduo a expressar a si mesmo – a ponto de nela se tornar discernível uma forma. A cada estágio traumático corresponde um padrão de autoconsciência, um eixo central de estruturação do indivíduo, ao menos a nível psicológico, que se pode melhor compreender mediante uma teoria das doze camadas da personalidade (3): pois, caracterologicamente, o desenvolvimento da psique pode ser apreciado em doze camadas distintas, umas integrativas (formam um quadro integrado estável), outras divisivas (estabelecem uma ruptura da ordem anterior que, assim, propicia uma nova ordem). A terceira camada, por exemplo, a qual em geral é objeto de escolas como a behaviorista e a Gestalt – que equivocadamente, como fazem outras escolas, tomam uma camada da psique por sua própria substância (4) –, compreende aquele período de esforço cognitivo concentrado para aquisição de saberes que permitam à pessoa (criança, aqui) se orientar no mundo com algum grau de independência, ao menos física; a quarta camada, divisiva e decisiva ao seu modo, que afinal foi o verdadeiro objeto de estudo de Freud e Klein, abarca a história pulsional do indivíduo preocupado sobretudo com sua afetividade, com o querer e sentir-se querido; e com a quinta camada, integrativa e de individuação (Jung), já começa a surgir o problema objetivo de quais são os propósitos reais do indivíduo e como alcançá-los – a questão deixa de ser de afetividade, passa a ser de poder. E assim por diante, a passar por camadas que apenas podem ser alcançadas, mas não necessariamente, como a da síntese individual (oitava), a da personalidade intelectual (nona) ou mesmo a do destino final (décima segunda).

II. A identificação de em que camada se está, o indivíduo só pode fazê-la por meio de um gesto de assentimento aos seus próprios atos e pensamentos. Essa aceitação, se vista antropologicamente, tem seu fundamento no princípio de autoria (5): cada indivíduo é responsável pelos seus atos, e essa asserção é universal; não existe registro de nenhuma cultura na qual o ato de um indivíduo devesse ser atribuído a outrem (o que, para além da constatação de fato, demonstra existir a constante antropológica de que um homem é um todo, ele é seus atos, e estes não lhe podem ser alheados). Mas essa aceitação tem no princípio de autoria apenas seu fundamento, não o seu meio ou método, mesmo porque tal princípio só abarca os atos individuais que são testemunhados socialmente. Para além destes, existem outros de outra ordem e de maior importância – os atos sem testemunha (6). Estes são os atos de que o indivíduo só se reconhece autor por uma obrigação interior, não externa; à medida que neles se reconhece, integra a sua personalidade e, assim, fica menos à mercê de quaisquer automatismos de pensamento ou comportamento. Esta outra ordem de objeto de consciência é incorporada ao indivíduo especificamente através do método da confissão (7): uma vez que toda expressão social depende de uma expressão individual e interior, e uma vez que esta só se torna possível após uma condensação de significado sob a forma do juízo, este, antes de se tornar proposição – em sentido lógico – dotada de compreensibilidade pública, deve ser afirmado pelo indivíduo de si para si mesmo – o indivíduo deve, em suma, confessar para si aquilo que ele já sabia, mas de que não estava ciente até então. A esse recenseamento socrático do que se sabe e não se sabe segue-se o processo de extrusão, pelo qual o indivíduo dá forma lingüística e simbolicamente articulável à própria experiência.

III. O trauma de emergência da razão reproduz na escala privada um problema central de qualquer filosofia da cultura: as mediações entre indivíduo e sociedade; ou, se se quiser dizer de outro modo, entre expressão particular e símbolos disseminados socialmente. A esse desenvolvimento psicológico do indivíduo corresponde, é evidente, um desenvolvimento epistemológico, que pode ser apreendido não apenas nessa escala, a individual, mas também na escala social. A teoria dos quatro discursos (8), assim, tenta descrever em amplitude histórica e pessoal – uma filosofia da cultura e uma pedagogia, portanto – a unidade entre os quatro tipos de discurso estudados por Aristóteles (o poético, o retórico, o dialético, o analítico), ao mesmo tempo intentando rever a interpretação do corpus lógico deste: o discurso humano, diz a teoria, é uma potência única que se atualiza de quatro formas – expressando estruturas gerais de possibilidade (poética), estruturas gerais de verossimilhança (retórica), estruturas gerais de probabilidade (dialética) e estruturas gerais de certeza (lógica ou analítica). As mediações entre o indivíduo e o conhecimento, sobretudo o difundido socialmente, podem, então, dar-se através desses quatro níveis – de um pólo estritamente mais simbólico, o primeiro, até um pólo, por oposição, mais analiticamente discernível. Estão em jogo aí diferentes níveis de credibilidade do discurso humano; mas estão, também, as diferentes formas de reivindicação indevida de credibilidade, o que requer estudo tanto da erística (9) quanto das condições epistemológicas do saber científico, ou seja, uma filosofia da ciência (10). Há que se considerar ainda, todavia, as formas próprias que o discurso adquire, umas sendo mais adequadas ou menos a discursos neste ou naquele nível – e então há de se atentar aos fundamentos metafísicos dos gêneros literários (11), cuja teoria, grosso modo, ao levar em conta a modalidade de existência espaço-temporal da linguagem e do ser humano que se serve dela, aplica ao discurso distinções espaciais, temporais e numéricas (de número em acepção antiga: discreto ou contínuo), delas extraindo os princípios da “narração” (tempo), “exposição” (espaço) e da “prosa” e do “verso” (número). As articulações específicas e em diferentes graus desses princípios em uma obra lhe dão a sua feição substantiva – o seu gênero.

IV. Se o discurso é o meio eminente pelo qual o indivíduo se apossa do saber, a finalidade deste, enquanto ser dotado de consciência, não é se limitar ao mero domínio discursivo do saber. É chegar ao próprio saber, o que é ademais verificar suas próprias condições de existência. É, numa palavra, chegar à base metafísica primeira, à investigação daquela faixa da realidade que Platão visava em sua “segunda navegação”, para além das “idéias” e rumo ao mundo dos princípios (12) que as regem, entre os quais o de identidade tem primazia. Tudo o que existe é na medida em que tem possibilidade de sê-lo, de modo que as atualizações das notas de cada ente têm seu esteio em uma estrutura de possibilidades preexistente – por exemplo, a própria possibilidade ontológica (da qual a lógica é só expressão discursiva) de que algo seja a atualização de uma potência. A possibilidade da possibilidade conduz a inteligência à investigação do que de mais substantivo e duradouro possa ter um ente. Mas, nesse caso, a palavra investigação não é a mais apropriada. Trata-se mais, via confissão, da aceitação desse corpo de possibilidades em tudo embutido; trata-se de um conhecimento por presença (13), de treinar a consciência para que, ao invés de falar à realidade, deixar que esta lhe fale: como o conceito de um ente já está potencialmente em sua substância, como toda a mineralogia já está nos minerais, o indivíduo deve se esforçar para perceber que o problema da verdade está submetido ao problema da presença substantiva da realidade. Mesmo a mais refinada técnica lógico-analítica é apenas um meio de retornar ao que sempre aí já esteve. É tomar consciência de uma presença que abarca a nós e a tudo o mais. Eis o nexo remoto entre conhecimento e existência.

V. Eventualmente é necessário, para romper o véu das limitações cognitivas de uma determinada civilização e retornar a essa aceitação da presença, proceder à crítica cultural (14), que poderia ser definida provisoriamente como o ato pelo qual uma consciência individual investe contra as estruturas simbólicas ou políticas que lhe embotam a sensibilidade. Tais estruturas podem, por um lado, ser tão só simbólicas e discursivas – nas artes, nas ciências e na comunicação pública –, ou, por outro, podem mesmo chegar ao cerceamento físico da liberdade de consciência. Aqui, o objeto de crítica cultural mais extensa é a metamorfose da idéia de império ao longo da história do ocidente e a idéia correlata de “religião civil”, com o que se investe no rastreio dos fundamentos remotos da ideologia coletivista e cientificista contemporânea. Cientificismo e nova pax romana, separados sob outros aspectos, dão as mãos no achatamento do horizonte total da experiência humana (longamente preparado, por exemplo, desde as idéias de volonté générale e de quantificação geral das ciências físicas). O drama da vida humana, antes concebido como de almas substantivas a viver sub specie aeternitatis, passa a ser o de papéis sociais limitados a um mundo espaço-temporal inteiramente fechado (vários exemplos poderiam ser colhidos na cultura geral: Dostoiévski seria um autor ainda ligado à primeira perspectiva; já os personagens de Balzac se conformariam quase que só à feição da segunda). Com a negação da via de acesso à universalidade da experiência, em grau metafísico, vem também a negação da própria possibilidade de conhecimento do indivíduo. Existiria um vínculo indissolúvel entre a objetividade do mundo e a individualidade da experiência, a qual é preterida em um meio cultural de politização geral (gramscismo) e disseminação de substitutivos das experiências realmente fundadoras do conhecimento (“Nova Era”) – ou seja: coletivismo, no fim das contas, é subjetivismo. E é contra este que se afirma o conhecimento como intuicionismo radical (15): ao contrário do que é comum pensar, o que há de mais objetivo e especificamente humano no conhecimento é o que os antigos lógicos chamavam de “simples apreensão”, ou seja, o ato pelo qual a consciência toma ciência da presença de um determinado dado da realidade. O “raciocínio”, a construção silogística e suas derivadas, é posterior e é uma aptidão de ordem construtiva e, portanto, mais dada a erros. O que é dizer: o homem erra mais na expressão interior do que apreende do que na apreensão em si; pois os métodos mais refinados da lógica apenas desencavam, analiticamente, algo que já estava dado na primeira intuição. E cada intuição, por sua vez, inaugura uma cadeia potencialmente ilimitada de outras intuições; disso trata a teoria da tripla intuição (16): o ato pelo qual o indivíduo intui (primeira intuição) é, ao mesmo tempo, intuição de algo (segunda intuição) e intuição das condições desse ato intuitivo (terceira intuição). Isso explicaria ainda, por exemplo, certos simbolismos naturais, como a identificação do “sol” ou da “luz” com o conhecimento em inúmeras culturas, porquanto em sociedades primitivas, sem o recurso do fogo, só se vê algo – e a visão é o sentido identificado mais diretamente ao conhecimento – quando há luz natural; então o indivíduo percebe que intui, percebe que intui algo e percebe a possibilidade que funda essa intuição paralelamente a uma situação natural. Isso, por fim, afirma a possibilidade de conhecimento objetivo contra todo o discurso contemporâneo de que só existem verdades convencionais, inexistindo as objetivas e, por assim dizer, naturais.

VI. Um capítulo adicional de crítica cultural volta-se para a paralaxe cognitiva (17), que teria se disseminado em larga escala na modernidade. Ela se definiria como o deslocamento entre o eixo da experiência individual e o eixo da formulação teorética. Ou, dito de outro modo: ela seria responsável pela formulação de idéias que são desmentidas pelas próprias condições concretas de que o indivíduo depende para formulá-las. A obra de Maquiavel seria exemplar nesse sentido, toda construída sobre dados intrinsecamente conflitantes, mas sobretudo conflitantes com aquilo que o próprio Maquiavel sabia – ou deveria saber – ser manifestamente falso, porque patente à sua experiência mais imediata. A manifestação aguda da paralaxe cognitiva se encontraria na mentalidade revolucionária (18), caracterizada basicamente por duas inversões: a inversão temporal, pela qual o revolucionário passa a levar em conta o futuro hipotético pelo qual trabalha como o parâmetro de julgamento de suas ações, não mais prestando contas ao passado (e, afinal, a ninguém, pois por definição sua sociedade utópica se afasta à medida que o processo revolucionário avança, nunca se concretizando e, portanto, nunca havendo tribunal no qual se possa julgar abertamente ações ou idéias); e a inversão de sujeito e objeto, pela qual o revolucionário, no ato mesmo de atacar os adversários de sua sociedade futura, os toma na verdade como os atacantes que lhe impedem a consecução de seus planos, de modo que a relação causal entre um e outro é invertida. A paralaxe cognitiva e, em especial, a mentalidade revolucionária inviabilizam um ambiente intelectual no qual o método confessional leve o indivíduo a se dar conta do conhecimento que lhe é imediatamente presente – a primeira, porque faz do sujeito do conhecimento um ser diverso do indivíduo autor de sua própria vida; a segunda, porque, além disso, ameaça destruir todas as bases sociais de convivência humana, já que revolução consiste em concentração de poder nas mãos de uma elite revolucionária com vistas à instauração de um projeto de sociedade, o que rouba aos indivíduos liberdade, senão mesmo, em última instância, a própria existência física, como o demonstram os totalitarismos revolucionários do século passado.

VII. A teoria política (19) deriva não tanto de alguma proposta contrária ao estado de coisas analisado nesses estudos de crítica cultural, mas de adaptação metodológica (20) ao tipo específico de objeto da ciência social. Sua premissa fundamental é a de que poder (21) é possibilidade de ação, em sentido geral, mas na política tem o sentido estrito de possibilidade de determinar a ação alheia. Em sentido universal o homem só tem três poderes, o de gerar, destruir e escolher, que correspondem respectivamente ao poder econômico, o poder militar e o poder intelectual ou espiritual, os quais podem ser exercidos ativa e passivamente e correspondem tipologicamente às castas dos produtores, dos nobres e dos sacerdotes. O primeiro se exerce pela promessa de um benefício, o segundo pela ameaça de um malefício e o terceiro pelo convencimento ou cooptação. Em cada civilização, os três tipos de poderes tendem a se cristalizar em grupos específicos (hoje em dia seriam, em ordem respectiva, o globalismo ocidental, a aliança russo-chinesa e o Islã), mas a especificação de quais são estes grupos é procedimento posterior à detecção de quem pode ser sujeito da história (22): não podendo ser um agente individual, porque perecível a curto prazo e limitado geograficamente em sua ação, só o podem ser as tradições, as organizações esotéricas (ou sociedades secretas), as dinastias reais e nobiliárquicas ou demais entidades de natureza similar. Assim, Igreja Católica e movimento revolucionário, nessa acepção específica, são sujeitos da história, mas não São Francisco nem Lênin. O poder realmente decisivo, a longo prazo, é o de ordem sacerdotal ou intelectual.

VIII. Essa multiplicidade de assuntos e disciplinas recoberta na produção de um único filósofo não é fortuita. Ele mesmo define filosofia (23) como a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência e vice-versa. Qualquer outra definição quedaria parcial, tornando difícil apontar no que se distinguem fundamentalmente um filósofo e um cientista, um filósofo e um poeta (24). O cientista pode produzir conhecimento sem que para tanto tenha de se empenhar no resgate confessional pelo qual cada novo dado conhecido se integra ao conjunto daquilo que ele, enquanto indivíduo, é naquele momento; o poeta pode produzir uma obra só com base em intuições manifestamente contrárias à sua índole e à própria verdade, pois o que lhe importa é a unidade daquele momento expressivo. O filósofo não se limita a nada disso, pois seu esforço é direcionado por uma técnica filosófica específica, que consiste em sete pontos:

“1. A anamnese pela qual o filósofo rastreia a origem das suas idéias e assume a responsabilidade por elas.

2. A meditação pela qual ele busca transcender o círculo das suas idéias e permitir que a própria realidade lhe fale, numa experiência cognitiva originária.

3. O exame dialético pelo qual ele integra a sua experiência cognitiva na tradição filosófica, e esta naquela.

4. A pesquisa histórico-filológica pela qual ele se apossa da tradição.

5. A hermenêutica pela qual ele torna transparentes para o exame dialético as sentenças dos filósofos do passado e todos os demais elementos da herança cultural que sejam necessários para a sua atividade filosófica.

6. O exame de consciência pelo qual ele integra na sua personalidade total as aquisições da sua investigação filosófica.

7. A técnica expressiva pela qual ele torna a sua experiência cognitiva reprodutível por outras pessoas.” (25)
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REFERÊNCIAS

(1) “Esboço de um Sistema de Filosofia”, apostila do Seminário de Filosofia [doravante referido como SdF]. (2) “O trauma de emergência da razão”, Curso de Astrocaracterologia (1990-1992). (3) “As doze camadas da personalidade humana e as formas próprias de sofrimento”, apostila do SdF; Curso “Conceitos Fundamentais da Psicologia” (4 a 19 de setembro de 2009, Virginia). (4) “O que é psique”, apostila do SdF. (5) Aula 32 do Curso On-Line de Filosofia [doravante referido como COF] (14/11/2009). (6) Aula 2 do COF (21/03/2009). (7) A Filosofia e seu Inverso & Outros Estudos (Vide, 2012); Aulas 9 (06/06/2009) e 13 (04/07/2009) do COF. (8) Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos (Vide, 2013). (9) Como vencer um debate sem precisar ter razão: Comentários à “dialética erística” de Arthur Schopenhauer (Topbooks, 1997). (10) Edmund Husserl Contra o Psicologismo (IAL, 1996; apostila); Curso “Filosofia da Ciência I” (10 a 15 de maio de 2010, Virginia). (11) Os Gêneros Literários: Seus Fundamentos Metafísicos (in A Dialética Simbólica: estudos reunidos, É Realizações, 2007). (12) “Sobre o mundo dos princípios”, aula do SdF (20/04/2009). (13) “O problema da verdade e a verdade do problema”, apostila do SdF (20 de maio de 1999); “Conhecimento e presença”, apostila do SdF (27/09/99); Aula 10 do COF (13/07/2009). (14) A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci (IAL, Stella Caymmi, 1994); O Imbecil Coletivo I: Atualidades Inculturais Brasileiras (É Realizações, 2006); O Imbecil Coletivo II: A longa marcha da vaca para o brejo (É Realizações, 2008); O Jardim das Aflições: de Epicuro à ressurreição de César. Ensaio sobre o materialismo e a religião civil (É Realizações, 2000); O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota (Record, 2013). (15) “Esboço de um sistema de filosofia”, apostila do SdF; aula 32 do COF. (16) “A tripla intuição”, apostila do SdF. (17) “Introdução à paralaxe cognitiva”, transcrição de aula de 26/08/2006, São Paulo; Maquiavel, ou A Confusão Demoníaca (Vide, 2011). (18) “A Estrutura da Mentalidade Revolucionária”, conferência realizada em Bucareste, 16/06/2011; “Resumo de A Mente Revolucionária”, partes I e II, SdF (19/06/2009). (19) Curso “Teoria do Estado”, em 11 aulas, PUC-PR (2003-2004); Os EUA e a Nova Ordem Mundial (Vide, 2012) [debate com Alexander Dugin]. (20) “Problemas de método nas ciências humanas”, apostila do SdF. (21) “Teses sobre o Poder”, apostila do SdF. (22) “Quem é o sujeito da história?”, apostila do SdF. (23) A Filosofia e seu Inverso. (24) “Poesia e Filosofia”, in A Dialética Simbólica. (25) A Filosofia e seu Inverso, p. 133.

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Este é um esboço grosseiro, sumário e bastante pessoal do que se poderia chamar – e que tanto mais é assim chamada quanto mais se a desconhece – de a obra de Olavo de Carvalho. Não é uma síntese dela, mas é pelo menos um mapa preliminar, pelo qual só eu respondo (creio que ao próprio Olavo não agradaria). Tomei a iniciativa de desenhá-lo, com todas as falhas e omissões que aí se assinalarem (muita coisa ficou de fora), pensando no leitor que, lendo O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, o mais recente livro de Olavo de Carvalho (org. Felipe Moura Brasil), pudesse de certa forma perceber a unidade mais ampla que os 193 textos do livro testemunham e, dessa forma, se interessar em conhecer melhor a obra do homem. Tomando por paralelo as seções desses “elementos da filosofia de Olavo de Carvalho”, eu apontaria os seguintes textos do livro como os mais relevantes aos respectivos temas:

I – “O poder de conhecer”, p. 38; “A mensagem de Viktor Frankl”, p. 49; “Redescobrindo o sentido da vida”, p. 53; “Um capítulo de memórias”, p. 91.

II – “Sem testemunhas”, p. 41.

III – “Quem eram os ratos?”, p. 261; “Da fantasia deprimente à realidade temível”, p. 324; “O testemunho proibido”, p. 405; “Como ler a Bíblia”, p. 409; “Debatedores brasileiros”, p. 456; “Zenão e o paralítico”, p. 460.

IV – “Jesus e a pomba de Stalin”, p. 355; “Espírito e personalidade”, p. 610.

V – “Espírito e cultura: o Brasil ante o sentido da vida”, p. 59; “A origem da burrice nacional”, p. 67; “Cavalos mortos”, p. 94; “Os histéricos no poder”, p. 96.

VI – “Que é ser socialista?”, p. 119; “A mentalidade revolucionária”, p. 186; “Ainda a mentalidade revolucionária”, p. 191; “A mentira estrutural”, p. 196; “A revolução globalista”, p. 159; “A fossa de Babel”, p. 287; “A ciência contra a razão”, p. 393.

VII – “Os donos do mundo”, p. 541; “O que está acontecendo”, p. 543; “Quem manda no mundo?”, p. 545; “Salvando o triunvirato global”, p. 570; “História de quinze séculos”, p. 168; “Onipresente e invisível”, p. 162; “Lula, réu confesso”, p. 472.

VIII – “A tragédia do estudante sério no Brasil”, p. 595; “Se você ainda quer ser um estudante sério...”, p. 599; “Pela restauração intelectual do Brasil”, p. 604.

Dito isso, de resto afirmo que O mínimo..., se bem lido, pode ser uma boa introdução ao estudo sério do pensamento de Olavo de Carvalho (embora seja bastante óbvio que a maior parte dos textos se integre só a uma terça parte da obra do filósofo – a de crítica cultural; as duas outras, a de história da filosofia e de produção filosófica propriamente dita, têm de ser buscadas em outros livros e cursos). A organização que Felipe Moura Brasil deu aos textos é primorosa, em seções e subseções, apondo-lhes ainda notas muito elucidativas (às quais se somam, também boas, as do editor). Um único defeito tenho a notar: a ausência de um índice remissivo. Um bom índice tornaria o livro uma ferramenta de consulta – e até de estudo, limitado que seja – bastante eficiente, com entradas onomásticas e temáticas, o que seria ao fim bom complemento ao sumário já formidavelmente bem estruturado que encontramos ao começo. Seria uma felicidade ver essa ausência sanada em uma edição futura do livro.

Finalmente, e agradecendo-lhes a paciência: desejo a todos uma boa leitura.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

De como Dostoiévski foi o primeiro olavete; e o desaparecimento iminente dos moderninhos com cara de nojo

I

Escrevi recentemente um artigo sobre Dostoiévski onde avalio a relação deste com a noção de Ocidente e a cultura ocidental. O artigo foi lido por Joel Pinheiro e Julio Lemos e desagradou a ambos pelo que seria um excessivo tom “olavista-voegelinista”. (Nota: Não conversei com Julio Lemos sobre o assunto; sua apreciação me foi brevemente transmitida por Joel Pinheiro. Já com este último venho discutindo abundantemente todas as questões em torno do malfadado artigo, de modo que boa parte do que direi nesse texto não lhe será novidade. No entanto, creio que a grande maioria das pessoas tem sobre Dostoiévski a mesma impressão truncada que verifiquei ser a do Joel. Este texto é uma tentativa de desfazer parte desses nós e de quebra pegar o gancho da discussão mais interessante que a internet viu nos últimos tempos: aquela em que Olavo de Carvalho respondeu às indiretas de Julio Lemos.)

No que pese a crítica razoável de que meu artigo deveria citar menos comentadores (notadamente, Ellis Sandoz, discípulo de Eric Voegelin) e mais o próprio Dostoiévski, é notório que o problema de Joel Pinheiro é principalmente com a linha interpretativa que eu sigo no artigo, tomada, sim, a Sandoz-Voegelin, uma vez que desconheço fonte teórica mais acertada para interpretar o Dostoiévski político (e acrescento que Dostoiévski é o objeto da minha pesquisa de mestrado; há pelo menos três anos não faço outra coisa senão ler interpretações de sua obra). Mas faço o mea culpa que me cabe: o leitor não-especializado, que não leu as mil e quinhentas páginas de textos jornalísticos de Dostoiévski, tampouco suas cartas e cadernos de notas, além, evidentemente, de sua obra literária, não tem obrigação de saber que o ideólogo por trás de obras enigmáticas como Os Irmãos Karamázov e Crime e Castigo identificou pioneiramente o fenômeno a que Eric Voegelin chamou “gnose moderna”. Eu deveria, portanto, ter escrito algo como um preâmbulo justificando a pertinência de minhas fontes teóricas. Concedido isto, sigamos adiante.

Joel Pinheiro declara que, ao invés do meu artigo, gostaria de ler

um ensaio sobre Dostoiévski, e não apenas sobre o "processo político/espiritual gnóstico da modernidade que foi profundamente percebido por Dostoiévski quando ele se defrontou, despido de todas as ideologias, com o problema do nada na alma russa, e como sua crítica vislumbrou os males do séc. XX e de nossa sociedade à beira do apocalipse".

E diz ainda que Ellis Sandoz, ao interpretar a Lenda do Grande Inquisidor à luz da teoria histórica voegeliniana, não está falando de Dostoiévski, mas usando o russo para “fazer política”. O que me faz inevitavelmente exclamar de mim para mim: que raios o Joel pensa ser o conteúdo e o sentido último da obra dostoievskiana?! Subtraia-se a Dostoiévski o sentido do “processo político/espiritual gnóstico da modernidade” e tem-se perfeitamente um corpo sem forma, um significante sem significado. O que não falta são leituras de Dostoiévski politicamente neutras como a desejada pelo Joel, mas eu continuo achando muito mais válido ler um autor pela chave que ele, com todas as letras, declarou ser a sua, e desse modo desdobrar os conteúdos ali implícitos, dando continuidade àquilo que o próprio autor se comprometeu com dizer.[1] No caso de um escritor prolixo como Dostoiévski, esse tipo de crítica é mais do que bem-vindo; mostrar quem é o Dostoiévski de carne e osso sob a parafernália polifônica alardeada pela leitura formalista de Mikhail Bakhtin é o melhor que se pode fazer, nos dias de hoje, pela memória de um autor com os pés tão fincados no real e muito pouco interessado em formalismos e abstrações.

Mas, com efeito, é bastante compreensível que um leitor não-especializado não dê pela importância disso, pois desconhece o projeto literário-político-filosófico do mentor de Os Demônios. Eis algo de que só me dei conta quando da discussão em torno do meu artigo: a grande maioria das pessoas não faz a mínima ideia de quem tenha sido o ideólogo Dostoiévski. Isto se deve, é claro, à dicção literária do romancista russo, que, tendo intenções filosóficas e não raro políticas muito bem definidas para cada uma de suas obras (e isto se verifica de modo muito claro em seus textos não-literários), não consegue senão retratar a realidade de forma polissêmica, dando um equivalente literário ao caos das coisas elas-mesmas. Donde resulta seu recrutamento pelos grupos ideológicos mais díspares, de socialistas a aristocratas wannabe.

É um fato atualíssimo: todos amam Dostoiévski. O autor russo que viveu administrando pedradas e cusparadas e aplausos os mais efusivos chegou, enfim, a ser plenamente adorado. Mas isto tem seu custo: diferentemente dos leitores de hoje, seus contemporâneos o conheciam, liam-no tanto em seus romances como – e talvez até mais – nos textos jornalísticos em torno dos quais ele construiu sua persona intelectual. E, assim, na Rússia do século XIX não era possível macaquear Dostoiévski: quem fosse partidário do velho Fiódor Mikháilovitch trazia necessariamente a si o estigma de suas opiniões tão controversas. Já seus leitores de hoje não o levam às últimas consequências e elogiam-no cada qual na medida de suas conveniências e interesses – seja pelo simples fato de ser um autor canônico, e assim não lê-lo é de uma deselegância inaceitável, seja por ele retratar o caos da alma humana, pelo que serve à causa-mor da contemporaneidade desnorteada – a implosão das ordens tradicionais.

Mas quem era, em verdade, esse Fiódor Dostoiévski? Pudesse ele avaliar seus leitores de hoje e o mundo de hoje, o que diria? Mais interessante ainda: se alguns de seus entusiastas atuais vivessem na época que o viu nascer, seriam ainda entusiastas, ou quem sabe engrossariam o time de seus detratores? Ainda uma última elucubração: se tivéssemos nos dias de hoje um intelectual com ideias semelhantes às de Dostoiévski e eloquência parelha à do autor russo, como seria sua recepção pelos nossos críticos e tão bem penteados homens de letras?


II

"Há uma grande tristeza em não se ver o bem no bem."
- Atribuído a Gógol por Lúcio Cardoso


Um paralelo entre Dostoiévski e Olavo de Carvalho é inevitável quando se leem os escritos jornalísticos de um e de outro. Não apenas suas preocupações político-culturais vão no mesmo sentido, como seus papéis sociais, na Rússia do século XIX e no Brasil do século XXI, respectivamente, são curiosamente semelhantes. Ambos partem de uma experiência pessoal, de um corpo a corpo com o movimento revolucionário de esquerda: Dostoiévski passou quatro anos em uma prisão na Sibéria por ter feito parte de um grupo simpatizante das ideias socialistas (o chamado círculo de Petrachévski); Olavo foi militante do Partido Comunista Brasileiro. Se a vida madura de ambos é marcada pelo combate à mentalidade revolucionária (termo olavético que – salvo engano meu – se aplica perfeitamente à realidade psicossocial de que tratava Dostoiévski, assim como a gnose de Voegelin), isto certamente deve remeter-se a terem visto de perto o olho do furacão. Diz Dostoiévski:

Todas essas convicções quanto à imoralidade das próprias fundações (cristãs) da sociedade contemporânea e à imoralidade da religião, da família, do direito à propriedade privada, e assim por diante – tudo isso eram influências a que éramos incapazes de resistir e as quais, de fato, capturaram nossos corações e mentes em nome de algo muito nobre. (...) Aqueles entre nós – isto é, não só os do círculo de Petrachévski, mas em geral todos os infectados e que no entanto mais tarde rejeitaram completamente toda essa escuridão e terror que se preparava para a humanidade supostamente para regenerá-la e restaurar-lhe a vida – nós àquela época ainda não conhecíamos as causas de nossa doença e portanto ainda éramos incapazes de lutar contra ela. E por que, então, os senhores supõem que mesmo um assassinato à la Nietcháiev nos teria parado – não todos nós, é claro, mas ao menos alguns de nós – naqueles tempos frenéticos, tomados por doutrinas que nos haviam capturado as almas, em meio aos devastadores eventos na Europa de então – eventos que nós, negligenciando nosso próprio país, seguíamos com angústia febril?

(In: Diário de Um Escritor, “Uma das falsidades de hoje”, 1873. Nietcháiev foi o mentor do evento que inspirou o romance “Os Demônios”, em que um jovem foi morto ao tentar desligar-se de uma célula revolucionária.)

O relato de Olavo sobre sua experiência comunista complementa muito naturalmente o de Dostoiévski:

Levei décadas para compreender que a sedução esquerdista não me conquistou – nem a mim nem a meus companheiros de geração – pelo conteúdo ativo da sua proposta ideológica, que só conhecíamos muito superficialmente, mas sim pela oferta implícita de um novo código de moralidade, que chegava a nós sem palavras, pela impregnação difusa na convivência diária. (...) Libertávamo-nos da “moral burguesa” escravizando-nos à autoridade irracional de um círculo de “companheiros”, cuja afeição se tornava o único fiador da salvação da nossa alma ante o tribunal da História. O apego ao grupo era fortalecido pelo ódio a inimigos que não conhecíamos, dos quais nada sabíamos, mas de quem imaginávamos com facilidade as piores coisas, deleitando-nos então de pertencer à comunidade dos bons. (...) Considerando-se a extensão e a gravidade dos crimes praticados pelo comunismo contra a espécie humana, o dever mais óbvio daqueles que se desiludem com ele é aprofundar a ruptura, investigando dentro de si até extirpar as últimas raízes do erro monstruoso em que se acumpliciaram. (In: http://www.olavodecarvalho.org/semana/080731jb.html)

Dostoiévski, como Olavo, saiu da experiência socialista disposto a dedicar sua vida a combater o movimento revolucionário. Isto se verifica com clareza em seus romances, mas é também um dos principais motivos de seus artigos jornalísticos. Tal combate, no entanto, toma a forma de uma crítica social ampla, buscando nos fatos correntes do cotidiano de seu país os indícios de que a mentalidade revolucionária se alastrava, o que o obrigava a insistir terminantemente – os moderninhos enojados diriam “histericamente” – nas terríveis consequências que adviriam da tomada do poder pelos autoproclamados “novos homens”. Eu me sinto segura o bastante para afirmar que Dostoiévski de bom grado teria aberto mão de toda sua obra literária por um único artigo que tivesse sido eficaz no combate às ideias revolucionárias em seu país. Essa era sua “tarefa cívica”, sua justificada obsessão. E não poderia ser de outro modo.

Não poderia ser de outro modo porque não há nada mais importante na história da cultura russa do século XIX do que o advento do pensamento socialista. Qualquer homem minimamente inteligente, interessado por cultura e que vivesse naquele tempo percebê-lo-ia. Em se tratando não apenas de um homem minimamente inteligente, mas de uma potência criativa como Dostoiévski, era inevitável que ele se voltasse à maior das questões de seu tempo, uma vez que tinha diante de si a gestação de uma ideia com o potencial destrutivo de uma bomba atômica – de efeitos materiais mas sobretudo morais. Repito: vivendo quando e onde viveu, e tendo o alcance intelectual que tinha, Dostoiévski não poderia senão ocupar-se da maior questão de seu tempo: é o que fazem os grandes homens.

Mas o Brasil do início do século XXI não é nenhuma Rússia pré-revolucionária, dirão. Não, não é; o Brasil contemporâneo é, sim, um país em plena revolução, e nós, que aqui vivemos hoje, presenciamos a cada dia o avanço da onda que há aproximadamente duas gerações vem desfigurando nossa sociedade civil e esterilizando nossa cultura. É muito difícil perceber isso, e seria praticamente impossível sem os esforços de Olavo de Carvalho. Ele é nosso Dostoiévski, e não lhe faltam no Brasil atual detratores como os teve Dostoiévski. Também o russo teve de viver sob acusações de loucura e conspiracionismo; também ele não se amedrontou e manteve até o fim sua convicção de que alguma coisa gigantesca estava sendo gestada na Rússia oitocentista e que em breve o mundo o testemunharia.[2]

E é assim que, sempre que leio um Julio Lemos fazer pouco de Olavo de Carvalho porque este suja demais as mãos no excremento dos fatos do dia, respiro fundo e penso em Dostoiévski, e me consola a certeza de que a injustiça do momento será paga com a justiça da História. Não tenho dúvidas de que, estivesse Dostoiévski vivo e tivesse a peculiar sorte de nascer brasileiro, ele estaria precisamente denunciando o Foro de São Paulo e as falcatruas do PT – ele estaria, de modo geral, chafurdando naquilo que reconhecesse como o mal no mundo. Se tem coisa que eu não entendo é esse nariz empinado de quem diz “vocês são uns suburbanos denunciando o mal no mundo!”. Ora, eu me pergunto, se um sujeito com veleidades de ser um “homem de ideias” não ocupa seu pensamento com a busca pelas metamorfoses do mal em seu tempo (e identificar o mal é inerente a delinear a verdade), faz o quê? Julio Lemos aparentemente já fez de tudo, já passou por todos os processos em que agora se debatem os olavetes suburbanos, que, ingênuos, creem ter descoberto a pólvora quando ele próprio, o Buda da internet, agora estuda as ciências naturais porque já colheu todos os frutos da metafísica.

Mas realmente não me cabe ficar aqui divagando sobre a psicologia dos detratores de Olavo de Carvalho, pelo simples fato de que Ronald Robson já o fez num texto definitivo. De 2008 a 2012 o cenário parece ter-se agravado, tornado-se mais copioso, mas sem uma mudança substancial na dinâmica de forças. E é ao mesmo Ronald Robson que eu tomo a citação que dá de modo irretocável a razão da superioridade de figuras como Dostoiévski e Olavo de Carvalho sobre seus críticos nojentinhos: “só está apto a produzir algo que fale a todos os homens de todas as épocas o indivíduo que olhou com clareza atroz o que se passa ao seu redor e amou ou odiou, com todo o empenho do seu ser, a sua particularíssima situação concreta.” O que por sua vez remete a uma carta escrita por Dostoiévski a seu amigo Nikolai Strákhov, em que critica um artigo de Turguêniev onde este descreve sua incapacidade de olhar de frente uma execução pública:
 [O]s filhos dos homens não têm o direito de dar as costas a nada que aconteça sobre a terra; não, segundo os princípios morais mais elevados, eles não têm. Peculiarmente cômico é quando ele [Turguêniev] de fato as costas, assim evitando assistir à execução. “Vejam, senhores, que refinada educação é a minha! Eu não pude suportar uma tal cena!” O tempo todo, ele se trai. A impressão mais definitiva que se tem do artigo de modo geral é que ele está desesperadamente preocupado consigo próprio e sua paz de espírito, mesmo quando se trata de cabeças sendo decepadas.

Does it ring a bell, leitor? Temos ou não temos entre nós vários filhotes de Turguêniev? Mais engraçado ainda é ver como Dostoiévski, antecipando os sofrimentos de Olavo de Carvalho, tinha de justificar o tempo todo sua escolha pelos temas do dia, os mais provincianos possíveis (no sentido que “província” tem no supracitado texto de Robson). A partir de 1873 ele passa a publicar o Diário de Um Escritor, periódico em que comentava os principais assuntos do momento e respondia a cartas – espécie, digamos assim, de True Outspeak por escrito –, sobre o qual escreve a uma conhecida:

A senhora escreve que eu estou desperdiçando meus talentos com bagatelas no Diário. Não é a primeira pessoa de quem escuto isto. Portanto quero agora dizer à senhora e aos outros: eu cheguei à conclusão de que um artista deve estar a par, até o mais mínimo detalhe, não apenas da técnica da escrita, mas de tudo – tanto eventos atuais quanto históricos – relativo à realidade a qual ele deseja retratar. (...) Eu devo dedicar-me especialmente a certas peculiaridades do momento presente. E neste presente momento a geração mais jovem me interessa particularmente e, relativa a ela, a questão da vida em família russa, a qual, em meu entendimento, é bastante diversa hoje do que era vinte anos atrás. Também várias outras questões do momento interessam-me.

Veja bem, leitor: nada disto quer dizer que é obrigatório ao intelectual tomar para si o trabalho de escrutínio do presente de que se ocupam Dostoiévski e Olavo de Carvalho. Quer dizer, as pessoas têm vocações e desígnios diferentes. Felizes seremos todos se Julio Lemos se tornar um grande lógico ou matemático; eu mesma não quero fazer outra coisa senão escrever poesia, assim como alguns serão críticos literários e outros engenheiros, e desse modo nem todos combaterão de frente o projeto diabólico da mentalidade revolucionária – mas daí a desdenhar de quem o faz é necessário um grande salto de desonestidade. Não se trata de ignorância, pois Julio Lemos sabe que Olavo de Carvalho se ocupa de coisas importantes, assim como sabe que o olavete de Facebook não representa os verdadeiros discípulos do Olavo – entre os quais não me incluo, pois diante de Ronald Robson e Rafael Falcón sou meramente uma pessoa que gosta de poesia.

Quem julgar que este texto é de um nauseante baixo nível, por tratar “de pessoas e não de ideias”, vá lamber sabão. Devíamos estar todos fartos de viver de aparências. Os debates no Brasil são essa coisa inócua porque instituiu-se que não se pode proferir palavra sem antes embrulhá-la com o papel de seda do bom mocismo.

Agora, voltando a Dostoiévski, faço uma última pergunta: alguém aí, que não seja especialista em cultura russa do século XIX, já ouviu falar em Dobroliúbov, Granóvski, Píssariev, Vladímir Zotóv? Dou um dente a cada pessoa que disser que sim. E então façam as contas e descubram quem chegará à posteridade, se Olavo de Carvalho ou as miniaturas de aristocratas que, na falta de coisa melhor, lhe fazem as vezes de críticos.



***

P.S.: Por falta de espaço, não pude comentar, como planejara, outros trechos de cartas de Dostoiévski muito interessantes ao paralelo do russo com Olavo de Carvalho. Mas postarei esses trechos em apêndice no primeiro comentário desse post, apenas para curiosidade e deleite do leitor.







[1] A título de breve exemplo, vejam-se os seguintes trechos de cartas escritas por Dostoiévski à época da criação de Os Irmãos Karamávov, em que discorre sobre suas intenções para esta obra:

“Its idea is the presentation of extreme blasphemy and of the seeds of the idea of destruction at present in Russia among the young generation that has torn itself away from reality. Ivan’s convictions form what I consider the synthesis of contemporary Russian anarchism. The denial not of God, but of his creation. The whole of socialism sprang up and started with the denial of the meaning of historical actuality, it arrived at the program of destruction and anarchism. The principal anarchists were, in many cases, sincerely convinced men.” (…)  
“The modern denier, the most vehement one, straightway supports the advice of the devil and asserts that that is a surer way of bringing happiness to mankind than Christ is. For our Russian socialism, stupid, but terrible (for the young are with it) – there is a warning [in the Legend], and I think a forcible one. Greed, the Tower of Babel (i.e. the future kingdom of socialism), and the completest overthrow of conscience – that is what the desperate denier and atheist arrives at. The difference only being that our socialists (and they are not only the underground nihilists) are conscious Jesuits and liars, who will not confess that their idea is the idea of the violation of man’s conscience and of the reduction of mankind to the level of a herd of cattle.”  (…) 
“The West has become blinded and has lost Christ. The course of the whole misfortune in Europe, everything, everything, everything without exception, has been that she gained the Church of Rome and lost Christ, and then decided that they could do without Christ.”

[2] Se é verdade que a crença positiva de Dostoiévski era sobretudo no potencial russo de produzir uma mensagem capaz de salvar o mundo do ateísmo revolucionário, essa era uma crença complementar à sua convicção de que, se os socialistas tomassem o poder, seria o fim; donde vencê-los seria um acontecimento tão significativo que deveria implicar necessariamente a posse da chave para os problemas não só da Rússia como de todo o Ocidente.
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