por Emmanuel Santiago
Tendo escrito um texto sobre o que, a meu ver, é um erro de avaliação de Bruno Tolentino quanto à obra de Drummond, não queria parecer implicante com a autor de A balada do cárcere, mas, quase toda vez que acompanho uma discussão que procure definir se letra de música é ou não uma forma de poesia, deparo com formulações do tipo: “Como já provou Bruno Tolentino, letra de música e poema não são a mesma
coisa; pertencem a gêneros distintos”. Não sei ao certo em que ocasião
Tolentino teria demonstrado por A + B que canção ≠ poema; o que conheço é uma
entrevista dada por ele à Veja, na qual se toca no assunto. Como ignoro o
caminho pelo qual o poeta chegou a suas conclusões, concentrar-me-ei nos
argumentos genéricos daqueles que, vez por outra, evocam sua autoridade para
evitar entrar no mérito da questão.
“Canção e poema são gêneros distintos”. O primeiro problema
desta afirmação é uma filigrana teórica, digna de um sábio bizantino, ocupado a
discutir o sexo dos anjos enquanto o exército inimigo assoma às muralhas da
cidade. A rigor, poesia não é um gênero. Antes que o uso de “literatura” se
disseminasse no século XIX, “poesia” era o termo geralmente empregado para se referir às
obras estéticas de natureza verbal, fossem elas escritas ou não (a bem da
verdade, aquilo o que os gregos antigos chamavam de poíēsis engloba um espectro muito amplo
de atividades artísticas e artesanais). Com a popularização das formas
literárias em prosa, já nos limiares da era burguesa, “poesia” passou a designar exclusivamente as obras
escritas em versos. Gradativamente, os gêneros dramático e diegético (ou épico,
ou narrativo, conforme a corrente teórica que se escolha) migraram para a
prosa, deixando a poesia entregue ao gênero lírico e, desde então, lírica e poesia costumam ser, no senso-comum, tomadas como sinônimos, mas não
são.
Se nos ativermos à definição “poesia é uma composição verbal de natureza
estética concebida em versos”, então sim, toda canção é poética, toda letra de
música é um poema. Mas parece que não é apenas isso que vai pela cabeça das
pessoas quando se põem a discutir se letra de música é ou não poesia. Assim
sendo, outra possibilidade de abordar a questão seria: “a canção faz parte do
gênero lírico ou constitui um gênero diverso?”.
Como é
amplamente conhecido, poesia e canção possuem uma mesma origem; mais do que
isso: historicamente, aquela parece derivar desta. Isto pode ser constatado não
apenas passando em revista os primórdios da arte poética naquelas culturas que
deitaram as raízes da civilização ocidental, como também observando aquelas comunidades
que, ainda hoje, permanecem à margem do universo da escrita. Originariamente,
poesia é palavra cantada; é na canção que se manifesta, pela primeira vez, o
gênio poético humano. Pelo menos é o que afirma Segismundo Spina, em Na madrugada das formas poéticas,
amparado por uma consistente tradição de estudos antropológicos: “A poesia primitiva, entretanto, não é
exclusivamente a poesia dos povos pré-letrados, mas a poesia que está ligada ao
canto, indiferenciada, anônima e coletiva. É a poesia no seu estágio ancilar,
isto é, subordinada à música e à coreografia, mais especialmente àquela. (...)
A função ancilar da poesia está representada pela associação em que viveu com a
música, de certo modo com a dança, antes que surgisse a pessoa do poeta, a
poesia individual” (SPINA, 2002, p. 15). Segundo o lingusta Roman Jakobson, mesmo em
comunidades que desconhecem a música instrumental, a poesia surge integrada a
uma modalidade vocal de música.
Sabe-se bem que o próprio nome do gênero
lírico foi retirado do instrumento — a lira — que fazia o acompanhamento das
composições poéticas que formavam seu repertório entre os gregos. Além disso,
todos os demais gêneros ditos poéticos também recebiam alguma forma de
acompanhamento musical, seja com instrumentos de cordas, de sopro ou percussivos, tanto
que, em alguns textos de Platão, música e poesia são tratadas como sinônimos. Vale lembrar, conforme Albin Lesky apontou, que os enredos da tragédia
ática têm sua origem nos corais que transmitiam a história dos heróis da pólis, constituindo um material que, depois, encontrar-se-ia
com o cerimonial do culto a Dionísio, configurando o drama grego clássico. Não
apenas o coro permaneceu como parte do teatro dos gregos antigos, como ele
ainda evoluía coreograficamente em torno do altar principal ao som de uma música, e a função de treinar e reger o coro das apresentações teatrais
era considerada uma honra pública, disputada por algumas das figuras políticas mais
proeminentes de Atenas.
Consta que tenham sido os sábios alexandrinos
os primeiros a dissociar poesia e música. Não podemos esquecer, porém, a
contribuição que os trovadores medievais representaram para o surgimento da
poesia moderna europeia, como no caso da influência direta dos provençais sobre a obra lírica de Dante e Petrarca. Tais trovadores escreviam
poemas exclusivamente para suas composições musicais (procurando o
equilíbrio perfeito entre motz e•l son — palavra e som), sem dizer que muitas das
formas poéticas tradicionais se originaram das formas do cancioneiro popular,
trazendo ainda características estruturais relacionadas com as necessidades
específicas do canto, como a própria métrica. O soneto, por exemplo, deriva de
uma forma de canção. Não por acaso, a poesia medieval portuguesa está
organizada em cancioneiros e suas formas são todas relacionadas ao canto:
cantigas de amigo, de amor, de escárnio e de maldizer.
Por todos esses fatos que acabo de elencar,
se a canção constitui um gênero próprio, à parte do lírico, faz-se necessário
considerar que tal separação se deu por meio de um processo historicamente
construído e não está dada na origem, portanto nem na “essência”, dos fenômenos
aqui considerados. No máximo, pode-se dizer que a canção não corresponde a uma
concepção moderna do que seja a poesia. Mas então o que é, afinal de contas, isso
o que estamos chamando de “poesia”? Muitas foram as tentativas de definir o que
ela é, mas nenhuma mostrou-se definitiva. De agora em diante,
tratarei de algumas definições amplamente difundidas, procurando observar até
que ponto elas permitem ou não o enquadramento da canção no domínio do poético.