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segunda-feira, 10 de junho de 2013

Na lata da canção cabe a poesia? Resposta de um crítico vira-lata a Bruno Tolentino

por Emmanuel Santiago

Tendo escrito um texto sobre o que, a meu ver, é um erro de avaliação de Bruno Tolentino quanto à obra de Drummond, não queria parecer implicante com a autor de A balada do cárcere, mas, quase toda vez que acompanho uma discussão que procure definir se letra de música é ou não uma forma de poesia, deparo com formulações do tipo: “Como já   provou Bruno Tolentino, letra de música e poema não são a mesma coisa; pertencem a gêneros distintos”. Não sei ao certo em que ocasião Tolentino teria demonstrado por A + B que canção ≠ poema; o que conheço é uma entrevista dada por ele à Veja, na qual se toca no assunto. Como ignoro o caminho pelo qual o poeta chegou a suas conclusões, concentrar-me-ei nos argumentos genéricos daqueles que, vez por outra, evocam sua autoridade para evitar entrar no mérito da questão.

“Canção e poema são gêneros distintos”. O primeiro problema desta afirmação é uma filigrana teórica, digna de um sábio bizantino, ocupado a discutir o sexo dos anjos enquanto o exército inimigo assoma às muralhas da cidade. A rigor, poesia não é um gênero. Antes que o uso de “literatura” se disseminasse no século XIX, “poesia” era o termo geralmente empregado para se referir às obras estéticas de natureza verbal, fossem elas escritas ou não (a bem da verdade, aquilo o que os gregos antigos chamavam de poíēsis engloba um espectro muito amplo de atividades artísticas e artesanais). Com a popularização das formas literárias em prosa, já nos limiares da era burguesa, “poesia” passou a designar exclusivamente as obras escritas em versos. Gradativamente, os gêneros dramático e diegético (ou épico, ou narrativo, conforme a corrente teórica que se escolha) migraram para a prosa, deixando a poesia entregue ao gênero lírico e, desde então, lírica e poesia costumam ser, no senso-comum, tomadas como sinônimos, mas não são.

Se nos ativermos à definição “poesia é uma composição verbal de natureza estética concebida em versos”, então sim, toda canção é poética, toda letra de música é um poema. Mas parece que não é apenas isso que vai pela cabeça das pessoas quando se põem a discutir se letra de música é ou não poesia. Assim sendo, outra possibilidade de abordar a questão seria: “a canção faz parte do gênero lírico ou constitui um gênero diverso?”.

Como é amplamente conhecido, poesia e canção possuem uma mesma origem; mais do que isso: historicamente, aquela parece derivar desta. Isto pode ser constatado não apenas passando em revista os primórdios da arte poética naquelas culturas que deitaram as raízes da civilização ocidental, como também observando aquelas comunidades que, ainda hoje, permanecem à margem do universo da escrita. Originariamente, poesia é palavra cantada; é na canção que se manifesta, pela primeira vez, o gênio poético humano. Pelo menos é o que afirma Segismundo Spina, em Na madrugada das formas poéticas, amparado por uma consistente tradição de estudos antropológicos: “A poesia primitiva, entretanto, não é exclusivamente a poesia dos povos pré-letrados, mas a poesia que está ligada ao canto, indiferenciada, anônima e coletiva. É a poesia no seu estágio ancilar, isto é, subordinada à música e à coreografia, mais especialmente àquela. (...) A função ancilar da poesia está representada pela associação em que viveu com a música, de certo modo com a dança, antes que surgisse a pessoa do poeta, a poesia individual” (SPINA, 2002, p. 15). Segundo o lingusta Roman Jakobson, mesmo em comunidades que desconhecem a música instrumental, a poesia surge integrada a uma modalidade vocal de música.

Sabe-se bem que o próprio nome do gênero lírico foi retirado do instrumento — a lira — que fazia o acompanhamento das composições poéticas que formavam seu repertório entre os gregos. Além disso, todos os demais gêneros ditos poéticos também recebiam alguma forma de acompanhamento musical, seja com instrumentos de cordas, de sopro ou percussivos, tanto que, em alguns textos de Platão, música e poesia são tratadas como sinônimos. Vale lembrar, conforme Albin Lesky apontou, que os enredos da tragédia ática têm sua origem nos corais que transmitiam a história dos heróis da pólis, constituindo um material que, depois, encontrar-se-ia com o cerimonial do culto a Dionísio, configurando o drama grego clássico. Não apenas o coro permaneceu como parte do teatro dos gregos antigos, como ele ainda evoluía coreograficamente em torno do altar principal ao som de uma música, e a função de treinar e reger o coro das apresentações teatrais era considerada uma honra pública, disputada por algumas das figuras políticas mais proeminentes de Atenas.

Consta que tenham sido os sábios alexandrinos os primeiros a dissociar poesia e música. Não podemos esquecer, porém, a contribuição que os trovadores medievais representaram para o surgimento da poesia moderna europeia, como no caso da influência direta dos provençais sobre a obra lírica de Dante e Petrarca. Tais trovadores escreviam poemas exclusivamente para suas composições musicais (procurando o equilíbrio perfeito entre motz el son — palavra e som), sem dizer que muitas das formas poéticas tradicionais se originaram das formas do cancioneiro popular, trazendo ainda características estruturais relacionadas com as necessidades específicas do canto, como a própria métrica. O soneto, por exemplo, deriva de uma forma de canção. Não por acaso, a poesia medieval portuguesa está organizada em cancioneiros e suas formas são todas relacionadas ao canto: cantigas de amigo, de amor, de escárnio e de maldizer.

Por todos esses fatos que acabo de elencar, se a canção constitui um gênero próprio, à parte do lírico, faz-se necessário considerar que tal separação se deu por meio de um processo historicamente construído e não está dada na origem, portanto nem na “essência”, dos fenômenos aqui considerados. No máximo, pode-se dizer que a canção não corresponde a uma concepção moderna do que seja a poesia. Mas então o que é, afinal de contas, isso o que estamos chamando de “poesia”? Muitas foram as tentativas de definir o que ela é, mas nenhuma mostrou-se definitiva. De agora em diante, tratarei de algumas definições amplamente difundidas, procurando observar até que ponto elas permitem ou não o enquadramento da canção no domínio do poético.

domingo, 17 de março de 2013

O sequestro do parnasianismo na literatura brasileira

por Emmanuel Santiago

Da esquerda à direita: Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac

Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia, Francisca Júlia, Vicente de Carvalho, Luís Guimarães. Apenas a menção destes nomes é capaz de fazer a esmagadora maioria daqueles que os reconheçam torcer o nariz. O parnasianismo é, de longe, o movimento literário mais menosprezado de nossas letras, pois a imagem que dele persiste foi a que Mário de Andrade nos legou em Mestres do Passado, série de sete artigos publicados em 1921, no Jornal do Comércio. No primeiro, o que temos é o necrológio da poesia parnasiana:

Ó Mestres do Passado, eu vos saúdo! Venho depor a minha coroa de gratidões votivas de entusiasmo varonil sobre a tumba onde dormis o sono merecido! Sim: sobre a vossa tumba, porque vós todos estais mortos! E se, infelizmente para a evolução da poesia, a sombra fantasmal dalguns de vós, trêmula, se levanta ainda sobre a terra, em noites foscas de sabat, é que esses não souberam cumprir com magnificência e bizarria todo o calvário do seu dever! Deveriam morrer! Assim conclama, na marcha fúnebre das minhas lágrimas, a severa Justiça que não vacila e com a qual vos honro e dignifico! Deveriam morrer! A vida vegetal a que se agarraram, [sic] não se coaduna com o destino dos muezins de uma arte do tempo incessante, dos troveiros alados, dos cortesãos da Beleza fugitiva!...
Vivos alguns, embora! despejo sobre vós, ó Mestres do Passado, os aludes instrumentais de meu réquiem; e acendo junto à cruz dos vossos monumentos, sobre os vossos crânios vazios, a fogueira da consagração contemporânea! (ANDRADE in BRITO, 1974, p. 257)

Em tempo: Alberto de Oliveira só morreria em 1937, dezesseis anos depois, portanto, de Mário de Andrade ter decretado sua morte literária. Embora as críticas do autor de Pauliceia desvairada não sejam de todo destituídas de justiça — a despeito de seu tom provocativo e beligerante —, elas acabaram projetando sobre o parnasianismo pesadas sombras que até hoje não se dissiparam. Se Mário falava a respeito da persistência anacrônica do parnasianismo entre nós, do esgotamento e do esclerosamento de suas fórmulas, a crítica que lhe seguiu os passos foi além: sentenciou, retroativamente, a morte do parnasianismo desde o berço; desde então, ele figura em nossas antologias como um espectro natimorto e os poemas de seus representantes guardam um quê de relíquia macabra que convém não comentar, para não atrair maus augúrios.

Instituiu-se assim um erro de perspectiva que, para dizer o mínimo, distorce nossa compreensão da história da literatura brasileira. Via de regra, o parnasianismo é considerado como um desvio de rota entre os estertores do romantismo e os prenúncios do modernismo; um lapso no processo de formação de nossa literatura; um corpo exógeno que teria acometido um meio cultural débil, ainda sem os antígenos necessários para combater a constipação. Entretanto, à medida que analisamos a questão mais detidamente, percebemos que o parnasianismo foi um fenômeno quase que exclusivamente nosso, excluindo-se, é claro, o caso francês.

De acordo com J. Aderaldo Castello e Antonio Candido, em nenhum outro lugar do mundo o parnasianismo francês criou escola (CANDIDO & CASTELLO, 1974, p. 101). Em Portugal, por exemplo, teria havido, nas palavras do crítico português Duarte de Montalegre, apenas um escritor “estruturalmente parnasiano”: Gonçalves Crespo, que, coincidentemente ou não, era natural do Brasil. Segundo Montalegre, o parnasianismo português não teria passado de “uma tendência ou um conjunto de tendências (...): uma espécie de pendor mais ou menos geral, que, a despeito de pronunciado, não chegou a se definir”; uma tendência entre outras a compor o “ecletismo literário multíplice” dos poetas portugueses da época (MONTALEGRE, 1945, pp. 12-3). Situação semelhante à que se verificou nos países hispânicos da América Latina, nos quais elementos parnasianos se misturaram ao simbolismo e à influência da poesia norte-americana para compor uma corrente literária que ficou conhecida como modernismo.

Além disso, nem mesmo na França o parnasianismo conheceu duração tão prolongada, espraiando-se numa segunda geração de epígonos (os chamados neoparnasianos) e prevalecendo sobre o simbolismo. Nas palavras de Otto Maria Carpeaux: “(...) o Neoparnasianismo é fenômeno particular da literatura brasileira. Aqui e só aqui fracassou o Simbolismo; e por isso o movimento poético precedente sobreviveu, quando já estava extinto em toda parte do mundo” (CARPEAUX, 1951, p. 197). Se tomarmos a Semana de Arte Moderna de 1922 como marco simbólico para o fim do parnasianismo, e admitindo, como Péricles Eugênio da Silva Ramos, a publicação de Sonetos e Rimas (1880), de Luís Guimarães, como a primeira expressão significativa de nossa poesia parnasiana (RAMOS in COUTINHO, 2004, p. 115), chegamos a nada menos do que 42 anos. Para efeito de comparação, lembremos que o romantismo brasileiro inicia-se em 1836, com o lançamento de Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, e só seria contestado de maneira consistente em meados de 1870 — culminando no episódio da Batalha do Parnaso, em 1878 —, num total idêntico de 42 anos. Todavia, enquanto o romantismo brasileiro apresentou uma maior diversidade de tendências, dividindo-se em três gerações discerníveis, o parnasianismo manteve maior coesão, mesmo entre os poetas de sua segunda geração e a despeito da incorporação de elementos simbolistas.

Portanto, ao contrário do que diz a opinião corrente, o parnasianismo foi um produto orgânico de nosso sistema literário e, apesar de sua origem francesa, conseguiu satisfazer a necessidade de exprimir conteúdos latentes da mentalidade do homem brasileiro. Apenas isso explicaria o enorme êxito que a escola logrou encontrar no Brasil das últimas décadas do século XIX e início do XX. Segundo o crítico português José Osório de Oliveira, o parnasianismo, “mesmo com todos os recursos à velha Grécia, como toda a inspiração mediterrânea, traduziu qualquer coisa da maneira de ser dos brasileiros. Digamos que certa feição da psique brasileira encontrou na poesia parnasiana o seu meio de expressão, e que, por isso, ao adotar o modelo estranho, nacionalizou-o” (OLIVEIRA, 1939, p. 112).

O “sequestro do parnasianismo” na história da literatura brasileira, pelo menos naquilo o que tem sido considerado seu desenvolvimento natural, gerou uma série de equívocos que precisam ser debelados caso se queira formar uma imagem mais real da constituição de nosso campo literário, que começa a se organizar, de fato, no período que assistiu à ascensão do parnasianismo à posição hegemônica em nossas letras.

Uma das principais críticas que se faz ao parnasianismo brasileiro é a qualidade, em geral baixa, de sua produção poética. É verdade que a média da poesia parnasiana seja, na verdade, medíocre. Entretanto, não se pode ignorar que a escritura de poemas era, à época, uma espécie de rito de passagem entre a juventude e a vida adulta. Tributários que éramos de um modelo educacional ainda fortemente calcado no estudo das então chamadas letras clássicas (enquanto na Europa começava a se dar prioridade a um ensino mais técnico e científico), era natural que nossos jovens encontrassem na produção literária, e na poesia em específico, um meio eficaz de participação na cultura de seu tempo, de modo que praticamente todo rebento de nossas classes letradas “cometesse” seus versos, embora poucos deles chegassem a investir numa carreira de escritor. A poesia servia então para conceder certo lustro intelectual ao futuro advogado, médico, funcionário público etc. A essa poesia de caráter diletante, somava-se a imaturidade dos poetas de ocasião (mal integrados ainda à vida adulta), criando uma avalanche de versos de qualidade duvidosa, na qual os lugares-comuns do parnasianismo, do simbolismo e de um romantismo tardio eram repetidos à exaustão. Uma situação bastante semelhante à que ocorria durante o romantismo, com a diferença que, embora a educação formal ainda fosse um privilégio, a ascensão dos estratos médios da população urbana representou um incremento significativo de nossas classes letradas.

É preciso fazer justiça à obra daqueles poetas que conseguiram elevar-se além da mediocridade que grassava em meio a tal coqueluche literária. Não sei ainda até que ponto Olavo Bilac, por exemplo, pode ser classificado como um grande poeta, mas devemos reconhecer que os sonetos reunidos em Via Láctea podem ser colocados tranquilamente ao lado de Marília de Dirceu como um dos grandes  exemplares de nosso lirismo amoroso, assim como o poema “O caçador de esmeraldas” não faz feio diante de O Uraguai, de Basílio da Gama, ou de I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias. No mínimo, podemos dizer que Bilac era um grande poeta em relação ao nível que a poesia brasileira havia alcançado até aquele momento.

Não se trata aqui de propor uma reabilitação da estética parnasiana, nem de ignorar suas evidentes deficiências e limitações. Trata-se, na verdade, de tentar apreender o parnasianismo em sua real dimensão, como forma de compreender melhor um importante momento de nossa história político-social — relacionado à implementação do regime republicano no Brasil — e também literária, pois, afinal, poucos movimentos alcançaram tamanha popularidade entre seus contemporâneos, mesmo levando-se em conta a restrição que os baixos níveis de escolaridade impunham a sua repercussão social.


Referências bibliográficas:

ANDRADE, Mário de. “Mestres do Passado”. In: BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974, pp. 254-309.

CARPEAUX, Otto Maria. Pequena bibliografia crítica da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1951.

CASTELLO, J. Aderaldo & CANDIDO, Antonio. Presença da literatura brasileira: do romantismo ao simbolismo. 5ª ed. São Paulo: DIFEL, 1974.

MONTALEGRE, Duarte de. Ensaio sobre o Parnasianismo brasileiro. Coimbra: Coimbra Ed. Lda, 1945.

OLIVEIRA, José Osório de. História breve da literatura brasileira. Edição revista e aumentada. São Paulo: Martins Fontes, 1939.

RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. “A renovação da poesia parnasiana”. In: COUTINHO Afrânio (org.). A literatura no Brasil: era realista/era de transição. 7ª ed. São Paulo: Global, 2004, p. 91-149.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Tempo de fezes, maus poemas, alucinações e espera


por Emmanuel Santiago

Depois de me desdobrar na caixa de comentários do blog, tentando apontar o que, diante meus olhos, é um erro de avaliação de Bruno Tolentino em relação à obra de Drummond, resolvi escrever esta postagem para pôr os pingos nos i’s. Mas não me manifesto aqui como especialista na obra do poeta mineiro, ou como profundo conhecedor de sua fortuna crítica, o que não sou. Manifesto-me, na verdade, como leitor de Drummond desde sempre. De fato, meu primeiro contato com o universo da poesia, ainda em minha pré-adolescência, deu-se por meio dos livros de Drummond, Neruda e Lorca que habitavam a singela, porém eficaz, estante de livros de minha mãe.

Em Janelas sobre o caos, publicado originalmente na Revista Bravo, no ano de 2000, Tolentino queixava-se da dificuldade em reunir poetas contemporâneos para uma coletânea que lhe fora encomendada por uma editora europeia. Tal dificuldade se daria, segundo sua percepção, por se estar colhendo em terra desolada, desertificada. Na ausência de rumos da poesia pós-cabralina (após João Cabral), a poesia brasileira supostamente se perdera. O mais curioso, no entanto, foi a razão aventada por Tolentino para explicar tal estado de coisas: Drummond, na condição de nosso “poeta maior”, teria causado um estreitamento do horizonte, como as montanhas de sua terra natal, sempre a barrar a paisagem. Para usar termos mais técnicos: Drummond teria restringido o campo das possibilidades poéticas para nós, brasileiros.

Não quero ma ater à discussão do que, para mim, é uma enorme simplificação: atribuir a um único autor toda a responsabilidade pelo estado atual da poesia contemporânea, ignorando, por exemplo, que a tradição literária se desenvolve a partir de condições concretas de recepção, organizadas socialmente. O que faz, por exemplo, de Drummond nosso poeta maior é menos a percepção imediata da qualidade estética de sua obra (pois, no final das contas, todo juízo de valor possui algo de discutível e depende, em alguma medida, de disposições puramente individuais — meu xará Kant que me desculpe), do que uma série de escolhas feitas no interior dos campos literário e acadêmico, ou seja: houve um investimento social para elevar a poesia drummondiana à posição que ela ocupa. Muitas vezes, os critérios dessas escolhas nada têm de puramente estéticos. É bem comum que a disputa acerca da obra de algum artista corresponda, na verdade, a uma luta por legitimação das posições existentes no campo.

Não é por acaso que o concretismo, ao pretender se fixar como a posição hegemônica em nossas letras, procurou reescrever o cânone da literatura brasileira. Pense-se bem em qual foi a contribuição direta (em termos de influência) que um poeta romântico obscuro como Sousândrade teria dado ao desenvolvimento do concretismo. Nenhuma. O que ocorreu foi que os concretistas encontraram, na obra do poeta maranhense, a confirmação das posições defendidas por eles no campo literário. É claro que o paralelismo com o caso de Drummond, poeta dos mais populares entre nós, é limitado, mas usei-o aqui para demonstrar que há um caminho de mão dupla: não é somente a obra que cria as condições de sua recepção; constantemente, tais condições funcionam segundo uma dinâmica própria, exercendo um poder determinante sobre o arranjo das obras que compõem a série literária.

Estou dizendo isso sem ignorar o trabalho de críticos avalizados como Harold Bloom — que atribui a Shakespeare um papel fulcral na literatura do ocidente — ou de Eduardo Lourenço — para quem toda a literatura portuguesa é um diálogo ininterrupto com a obra de Camões —, ou mesmo as considerações de T.S. Eliot a respeito da tradição literária. Tampouco ignoro os pressupostos das correntes teóricas que, a partir dos conceitos de dialogismo e de grande temporalidade de Bakhtin, fizeram da intertextualidade a chave para a compreensão do desenvolvimento da literatura. Ocorre que, no entanto, tratar a literatura como um diálogo de autores que se dá no vazio, acima ou além de um público organizado de acordo com uma estrutura que se modifica respondendo a condições específicas, é fazer tabula rasa do problema do estabelecimento do cânone literário.

Mas, como eu dizia, não é este o ponto ao qual quero me ater. O fato é que, além da enorme simplificação do problema, Tolentino ainda oferece uma visão completamente distorcida do que seria a obra de Drummond, o que se concentra na seguinte passagem:

É nesse sentido que a intelectualidade dos nossos dias passou a mover-se dentro da moldura drummondiana do mundo. Os impulsos de transcendência, a inquirição metafísica, a busca de uma dimensão sacro-mítica, o mesmo intuito religioso que a poderiam erguer acima do “mundinho poetizado”, ainda que poderosamente, pelo grande vate, ao fim e ao cabo satisfazem-se e esgotam-se com a luta política inflada em meta suprema da existência. O social “per se”, a história idealizada como locus de um suposto progresso ad infinitum, atingiram entre nós o nível de uma absurda paródia do sagrado, uma verdadeira (?) metafísica historicista, obviamente uma contradição em termos. Mas é justamente esta espécie de mal du siècle local que desbota e sufoca a vida do espírito no Brasil de hoje. Um impasse de suma gravidade, pois, como se há de moldar e afirmar o novo poeta maior dentro de uma moldura tão estreita e estrangulante?

Nada disso está, de fato, em Drummond. Não que a poesia de Drummond não tenha uma fase “engajada”, em que a adesão ao socialismo tenha ficado explícita. Se eu dissesse isso, muitos versos poderiam me desmentir, como por exemplo: “O poeta/ declina de toda a responsabilidade/ na marcha do mundo capitalista/ e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas/ promete ajudar/ a destruí-lo/ como uma pedreira, uma floresta,/ um verme” (“Nosso tempo”. In: A rosa do povo). Tais versos demonstram um momento em que qualquer preocupação estética submergiu frente ao comprometimento ideológico. Contudo, em primeiro lugar, é preciso considerar que tal poesia participante é apenas um momento da obra de Drummond, localizado entre 1940 e 1948 (de Sentimento do mundo a Novos poemas), no contexto da 2° Guerra Mundial, quando o socialismo soviético parecia se contrapor ao totalitarismo fascista (cf. “Com o russo em Berlim”. In: A rosa do povo) e ainda não se conheciam os horrores do regime stalinista; época de compreensível radicalismo. No livro de 1951, Claro enigma, há uma retração total dessa estética participante e a rosa do povo se fecha num hermetismo abafado, marcado, inclusive, pelo retorno a algumas formas tradicionais, como o soneto: “Eu quero compor um soneto duro/ como poeta algum ousara escrever./ Eu quero pintar um soneto escuro,/ seco, abafado, difícil de ler.” (“Oficina irritada”. In: Claro enigma).

Em segundo lugar, não é que a descrição de Tolentino se adéque apenas a uma fase limitada do autor. Não. Ela não se adéqua, a rigor, nem mesmo à fase participante do poeta itabirano. Em nenhum lugar da poesia drummondiana a luta política é “inflada em meta suprema da existência”. A luta política, mesmo quando defendida abertamente, é sempre um meio para se atingir uma finalidade maior, que é a plena realização do homem; a meta suprema é a liberdade e a felicidade, transformadas em patrimônio universal, para todas as classes e grupos sociais. Além disso, desponta, aqui e ali, uma solidariedade com o ser humano que se vê violentado em sua integridade pela violência e pela guerra, e o próprio poeta frequentemente desconfia da possibilidade revolucionária: “A rosa do povo despetala-se,/ ou ainda conserva o pudor da alva?/ É um anúncio, um chamado, uma esperança embora frágil, pranto infantil no berço?// Talvez apenas um ai de seresta, quem sabe.” (“Mário de Andrade desce aos infernos”. In: A rosa do povo).

A ideia de uma “história idealizada como locus de um suposto progresso ad infinitum” é onde Tolentino erra mais feio. A relação do homem com o tempo e com a história (que é o modo do homem “estar no tempo”) é, de todos os temas da poesia drummondiana, talvez o mais ambíguo. Há quase sempre uma ponta de pessimismo, de ironia, mesmo naqueles poemas de proselitismo mais resoluto. De uma maneira geral, o que a passagem do tempo desperta no eu lírico drummondiano é a consciência da finitude das coisas, assim como do descompasso do ser com suas formas:


Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas o amanhecer. (“Passagem do ano”. In: A rosa do povo)

Ou ainda, no poema Ontem:

Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas. 
De como este banco
não reteve forma,
cor ou lembrança. 
Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado 
não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo. (In: A rosa do povo)

Outro mal-entendido que Tolentino difunde sobre a poesia participante de Drummond é a restrição ao “social ‘per se’”. Em Drummond, todavia, o que vemos é o homem considerado em sua dimensão essencialmente humana. No poema que serve de introdução a A rosa do povo (“Consideração do poema”) encontramos: “Estes poemas são meus. É minha terra/ e é ainda mais do que ela. É qualquer homem/ ao meio-dia em qualquer praça. (...)”; em “O medo”: “Em verdade temos medo./ Nascemos escuro./ As existências são poucas:/ Carteiro, ditador, soldado./ Nosso destino, incompleto.” (In: A rosa do povo); voltando a Sentimento do mundo, deparamos, em “Ode no cinquentenário do poeta brasileiro” — poema em homenagem a Manuel Bandeira —, com: “Que o poeta nos encaminhe e nos proteja/ e que o seu canto confidencial ressoe para consolo de muitos e esperança de todos,/ os delicados e os oprimidos, acima das profissões e dos vãos disfarces do homem.” (grifo meu).

Enfim, para que o leitor, por si mesmo, tenha a oportunidade de verificar o que Tolentino desconsidera da fase participante de Drummond, sugiro que leia “Caso do vestido”, “Morte no avião”, “O mito”, “Consolo na praia”, “Retrato de família”, “Onde há pouco falávamos”, todos de A rosa do povo, apenas para ficar entre os mais conhecidos.

Outro ponto que Tolentino parece estar completamente equivocado é quando afirma que a poesia de Drummond não consegue se erguer acima do “mundinho poetizado”, querendo dizer que tal poesia encontra-se circunscrita ao cotidiano mais tacanho. Como espero já ter demonstrado, atravessa toda a obra drummondiana uma reflexão constante acerca do homem em sua relação com o tempo, com a história e com o mundo, isto é, da relação do ser humano — considerado em sua essência, em sua humanidade — com as condições de sua existência, sejam elas práticas (sociais, econômicas etc.) ou ontológicas. Assim, o cotidiano aparece como pretexto, como o trampolim para a especulação filosófica, não como sua âncora. Parece que Tolentino, neste ponto, só consegue ter em vista o Drummond do “Eta vida besta, meu Deus” dos dois primeiros livros (Alguma poesia e Brejo das almas), que realmente fez do cotidiano a matéria fundamental de sua poesia. Porém, deixo para que meu leitor reflita sobre a justiça de se depreender todo um achatamento filosófico da visão de mundo configurada na poesia drummondiana a partir de dois livros que cobrem dez anos (os primeiros!) de uma obra literária que se estendeu por quase sessenta anos.

Para mim, está claro que do que Tolentino se ressente é da ausência de uma dimensão metafísica na cosmovisão drummondiana. Na ausência de tal dimensão, a poesia de Drummond seria filosoficamente estreita. Isso só comprova as ideias que apresentei no começo deste artigo. Bruno Tolentino não está apenas discutindo a relação de Drummond com a poesia brasileira contemporânea. Ele está, na verdade, procurando afirmar sua posição no campo literário, como poeta afeito à metafísica, por meio da disputa em torno do nome de Drummond; está procurando redefinir o campo literário, reconfigurando as posições existentes no interior deste. Tolentino, que enxerga em Drummond a grande referência para nossa poesia, trava combate contra um autor que, em sua situação de poeta hegemônico, não legitima, não subscreve a posição do próprio Tolentino no campo literário. Para que a poesia tolentiana pudesse ser devidamente apreciada, era preciso que a configuração do campo fosse outra. O que Tolentino coloca em jogo por meio da figura de Drummond é a projeção, em negativo, de sua própria poesia, de modo que atacar esse espantalho retórico seria defender uma poesia nos termos em que ele, Tolentino, propõe. Não há nada de errado com isso, pois é exatamente esse o modus operandi no interior do campo. O problema está no fato de Tolentino desvirtuar completamente a obra de Drummond para que ela atenda a seus interesses e a suas necessidades de argumentação, transformando-a em nada mais do que um pálido espectro de seus ressentimentos pessoais.

Cabe ainda a objeção de que Bruno Tolentino se refere menos à obra de Drummond (do que discordaria) do que do modo como esta foi lida e apreendida no desdobramento ulterior da poesia brasileira. Ora, se a disputa em torno do nome de Drummond faz com que os diversos grupos em concorrência operem uma redução da obra do autor, dilacerando-a como um bando de bacantes ensandecidas ao corpo de Orfeu, isso faz de Drummond mais uma vítima do que um culpado. Isto é, se aqueles que se consideram os legítimos herdeiros do legado da Semana de Arte Moderna, militantes de esquerda, tradicionalistas e críticos ligados ao formalismo-estruturalismo reduzam, cada um a sua maneira, a poesia drummondiana àquelas características ou possibilidades de sentido que melhor convêm à posição defendida por eles no campo (que é o que o próprio Tolentino faz no texto em questão), então o problema está antes nas posições concorrentes do que em tal poesia. Como já disse, as condições de recepção de uma obra muitas vezes têm pouco a ver com a obra em si, mas muito mais com a dinâmica interna do campo literário ou acadêmico.

Creio que uma discussão em torno de como encontrar os nomes significativos da poesia contemporânea, ou de por que não conseguimos encontrá-los, deve começar partindo de uma análise das posições em jogo e da configuração atual de nosso campo literário. Acho que talvez seja este o melhor caminho para saber se “o tempo ainda é de fezes, maus poemas, alucinações e espera”.

terça-feira, 6 de março de 2012

A irmã bastarda

Le bât -   Pierre Subleyras (1732)

A pornografia é uma das mais persistentes manifestações do espírito humano. Os homens pré-históricos já deixaram, gravados ou pintados sobre a pedra, inúmeros exemplos da representação de atos sexuais e de órgãos genitais, enquanto algumas civilizações antigas  como a hindu, a grega e a romana  atingiram um elevado nível de requinte em sua arte pornográfica. Em tempos mais recentes, tão logo a imprensa, a fotografia e o cinema se desenvolveram, foram utilizados na produção de material pornográfico, constituindo uma indústria que, hoje em dia, por meio da internet, coloca um volume crescente de conteúdo à disposição de um público cada vez maior. Da pintura rupestre à banda larga, a pornografia sempre esteve presente na história humana, provavelmente em todas as culturas e nos mais diversos meios de expressão. Mas de onde vem esse interesse aparentemente inesgotável da humanidade pela pornografia?

Como se sabe, a pornografia funciona de modo bem simples: ela oferece uma excitação dos sentidos ou da imaginação que, a partir do estímulo correto, possibilita um descarregamento de energia sexual. Cientistas acreditam ter desvendando a engenharia neurológica por trás desse processo. Em 1994, na cidade de Parma, na Itália, alguns pesquisadores monitoravam o funcionamento do cérebro de um macaco ao manipular objetos. Sempre que o macaco agarrava alguma coisa e a movimentava, um determinado padrão de atividade cerebral se produzia. Certa vez, por acaso, o animal viu um dos pesquisadores levando um sorvete à boca, o que produziu em seu cérebro um padrão de atividade semelhante àquele verificado enquanto desempenhava algum tipo de ação  era como se o macaco vivenciasse mentalmente a situação presenciada. Atribuiu-se o fato ao que então passaria a ser chamado de “neurônios-espelho”, ou “células-espelho”. Em 2001, também em Parma, outra pesquisa foi levada a cabo com o objetivo de verificar se as mesmas células poderiam ser verificadas no cérebro humano. Foram mostradas imagens de mãos, pés e bocas em movimento para um grupo de pessoas; em resposta, a região do cérebro responsável pelo controle daquela parte do corpo se ativava.

A descoberta dos neurônios-espelho ajudou a compreender melhor diversos aspectos da atividade mental humana. É por conta deles, por exemplo, que bocejamos ao ver alguém bocejar, ou que salivamos ao ver, numa propaganda de televisão, uma pessoa mordendo um suculento sanduíche. Tais células cerebrais atuam ainda na aquisição da linguagem, auxiliam na compreensão das intenções de outras pessoas e possibilitam nosso envolvimento emocional com situações das quais não fazemos parte ou até mesmo com obras de ficção. E, é claro, estão relacionados a nosso interesse pela pornografia, como mostrou um estudo realizado em 2008, na Universidade Picardie Jules Verne, na França, cujo objetivo era estabelecer a ligação entre a visualização de imagens pornográficas e a ereção masculina. Nesse estudo, voluntários eram submetidos a um exame de ressonância magnética enquanto assistiam a vídeos pornográficos. Registrou-se uma intensa atividade na região cerebral conhecida como pars opercularis, especialmente abundante em neurônios-espelho. A excitação ocorreria porque, mesmo não estando cientes disso, os voluntários se projetavam na situação representada, experimentando-a mentalmente, como se fizessem parte dela. Eis o mecanismo por trás do voyeurismo e da pornografia. Contudo, os neurônios-espelho são também o fundamento neurológico de outros aspectos considerados mais nobres da mente humana, como a moralidade.

Duas mulheres - Egon Schiele (1915)

Esquematicamente, podemos dizer que a moralidade se estabelece sobre dois eixos: o cuidado consigo mesmo e o cuidado com o outro. Tais princípios são invariáveis, sedimentados na natureza humana, mas podem receber diversas configurações, de acordo com as circunstâncias históricas e sociais. O cuidado consigo possui motivações fáceis de discernir. Como se sabe, o aparelho psíquico humano (assim como sua versão rudimentar nos animais) está projetado para buscar a satisfação das necessidades do indivíduo e evitar seu sofrimento. Com o desenvolvimento da cultura, aprendemos a negociar com esses dois âmbitos da experiência humana, mas ainda assim, como consequência de um processo de seleção natural, continuamos geneticamente programados para preservar nossa integridade física e perpetuar nosso repertório genético. Indivíduos mais propensos a se preservar (poderíamos dizer, com um princípio de moralidade mais pronunciado) têm maior probabilidade de sobreviver às adversidades e passar seus genes adiante, o que, num certo número de gerações, resultaria numa população mais cautelosa (e, provavelmente, mais moral).

As motivações evolutivas para o cuidado com o outro são igualmente evidentes, mas o modo como tal princípio de moralidade se estabelece em nossa constituição psíquica é menos óbvio. Como espécie, somos vulneráveis aos perigos naturais. Andar em bando e agir cooperativamente aumentaram em muito nossas chances de sobrevivência, de maneira que indivíduos mais sociáveis começaram a prevalecer na população, o que também propiciou o surgimento da cultura a partir de um potencial intelectual inerente à espécie, já neurologicamente estruturado. Porém, tal processo seletivo ainda não explica como é possível, num nível individual, passar do instinto de sobrevivência, que é o fundamento do cuidado consigo, para a preocupação com a integridade do outro.

Na natureza, encontramos, em diferentes níveis, abundantes exemplos de cuidado com o outro, principalmente na relação entre progenitores e suas crias; além disso, em algumas espécies, machos e fêmeas podem defender seus potenciais parceiros sexuais. Quando não se trata de animais intelectualmente mais desenvolvidos, tais arranjos de cooperação tendem a não ser duradouros, ficando ao sabor dos ciclos reprodutivos e sua química hormonal. Sabemos que feromônios regulam o interesse sexual e que há um hormônio responsável pelo “amor materno”, a ocitocina, que estabelece um vínculo emocional primário entre mãe e filho. Muito provavelmente, tais hormônios estão na origem da construção de nossos vínculos familiares,  organizados posteriormente em estruturas sociais, mas o que explica, na espécie humana, nossa capacidade de nos compadecer de indivíduos que, muitas vezes, sequer conhecemos? A organização de uma sociedade em grupos de reprodução não consegue explicar a existência de sentimentos como a amizade e a solidariedade.

É justamente o cuidado desinteressado com o outro que oferece a real medida da moralidade humana, o que só pode ser alcançado quando um “eu” se identifica com um "outro", considerando-o digno dos mesmos cuidados que reservaria a si mesmo. É preciso que esse eu, ao ver uma pessoa sofrendo, entenda a dimensão de tal sofrimento, compartilhando dele, ainda que virtualmente. Ou seja: é necessário que eu me coloque na situação da outra pessoa, “vestindo sua pele”, projetando nela minha própria experiência como ser humano, para então descobrir um ser estruturalmente análogo a mim, potencialmente igual a mim, distinto apenas pelas circunstâncias; descubro que partilho com ele uma mesma natureza — a natureza humana. Para chegar neste ponto, há toda uma elaboração moral que não necessariamente se dá, mas o princípio de nosso sentimento moral está na capacidade de nos identificar imediata e inconscientemente com os outros, de reproduzir mentalmente a situação experimentada por eles, e vivenciá-la subjetivamente. “Amar ao próximo como a si mesmo” e “não fazer aos outros o que não gostaria que fizessem a você” são princípios que expressam tal fundamento natural da moralidade humana. Em outras palavras, a raiz de nossa moralidade, naquilo o que ela nos diferencia dos animais, está na capacidade de criar empatia, uma operação mental realizada pelos neurônios-espelho.

Mas se é possível constatar a existência de neurônios-espelho em outras espécies de animais, por que não encontramos entre elas o mesmo tipo de cuidado desinteressado com o outro? Em primeiro lugar, é possível observar manifestações desse tipo em algumas espécies mais inteligentes de mamíferos, como em cachorros, macacos, elefantes etc. Para outras espécies, possivelmente também aparelhadas com neurônios-espelho, talvez o que falte seja algum grau de apreensão da própria subjetividade, o que aqueles outros animais, mais sofisticados, teriam num nível menos desenvolvido do que os humanos. O circuito da empatia só se fecha integralmente, produzindo as formas mais desinteressadas do cuidado com o outro, quando aquele que experimenta a empatia possui plena consciência de sua individualidade; para ser capaz de sentir as implicações de se colocar na situação do outro, é preciso antes reconhecer-se como uma pessoa concreta. O autoconhecimento, portanto, é condição para uma consciência moral plenamente desenvolvida, pois apenas ele pode nos dar uma real compreensão daquilo o que é melhor para nós e, dessa maneira, o que pode ser melhor também para as outras pessoas.

The sculptor - John Koch (1964)
A moralidade humana e a satisfação voyeurística encontrada na pornografia estão ancoradas numa mesma estrutura cerebral, responsável pela empatia. A pornografia, portanto, não representa um rebaixamento aos instintos mais animalescos do homem, nem fornece um índice confiável para o nível de imoralidade de uma cultura. Na verdade, ela, como uma irmã bastarda da moral, é o produto cultural de uma espécie excepcionalmente sensível ao prazer e ao sofrimento alheios. É por isso que o crescimento da oferta de material pornográfico, ocasionado pelo desenvolvimento tecnológico dos meios de difusão, não é incompatível com o progresso moral de nossa civilização que, embora não seja retilíneo nem uniforme, é contínuo. Talvez até haja, arrisco dizer, uma relação de causalidade entre os dois, para além do avanço dos meios técnicos. Creio que uma reflexão nesse sentido ajudaria a distinguir moral de moralismo, distinguir o que de fato contribui para o melhor proveito humano daquilo o que se deve a contingências e interesses de âmbito restrito.

Deixo agora uma questão para discussão ulterior, que talvez se torne um próximo artigo. Acredito que a pornografia não é em si imoral, mas que ela pode ser o meio de representação de algo imoral, o que, na minha perspectiva, acontece quando se representa algo degradante à condição humana. Deixo bem claro que, para mim, que não sou cristão, a castidade não é um valor moral, mas um moralismo, uma virtude que tem sua validade dentro de um sistema de valores particulares, isto é, não universais. 

domingo, 9 de outubro de 2011

Horóscopo do dia

Para cada cigarro que você acende, eu acendo uma estrela, sabia? Depois eu as aspiro, profundamente, e dentro de mim toma forma uma nebulosa, uma nebulosa espessa e incrustada de constelações, signos zodiacais. Para algumas dessas estrelas, astrólogos e cientistas encontraram nome, outras são desconhecidas, outras, inomináveis (ao pronunciarem seu nome, o significado delas se dissipa no vazio e elas se tornam um buraco negro, engolindo tudo com o abismo de seu absurdo).

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Só hoje

Olha só, eram duas da tarde e eu estava atento com a movimentação da rua; eram duas da tarde, e eu não estava dormindo não. Estava acordado, de olho na rua, vendo o que acontecia. Lá pelas tantas, vi um carro estacionar do outro lado, um carro cinza, da cor do asfalto, como um bicho camuflado (um bicho?). Do carro, saíram duas mulheres, uma vesga, as duas de óculos escuros... Como sei que uma era vesga? Sabendo, ué. É o tipo da coisa que a gente logo vê, sente de longe. Uma mulher vesga é sempre uma mulher vesga, mesmo de óculos escuros. Pois então. Saíram duas mulheres de óculos escuros do carro, uma delas vesga, atravessaram a rua e tocaram a campainha de casa. Não sei se me viram espiando da janela, mas certamente a vesga, se me viu, fingiu que não — às vezes, depois do almoço, fico invisível. A mulher que não era vesga (era loura) tocou mais uma vez a campainha, a campainha aqui de casa, e eu, ali, espiando, escondido. “Não tem ninguém”, disse a loura, “Espera mais um pouco”, disse a vesga, “ainda sinto o cheiro dele”. Eram umas duas da tarde. Lembrei que tinha deixado a tv ligada lá embaixo e que elas poderiam escutar se fechassem bem os olhos e fizessem força assim. A tv ligada conversava com o silêncio do sofá vazio. Dessa vez, ao invés de tocar a campainha, uma das mulheres socou a porta, socou a porta e disse: “Abra, sabemos que você está aí, só viemos buscar o que é nosso!”, foi assim que ela disse assim, arranhando a porta. “Vão embora daqui!”, eu gritei daqui de cima, “Vão embora daqui e me deixem em paz!”, e elas se entreolharam, deram de ombros, combinaram que não me ouviam. “Vão embora daqui!”, eu gritei de novo, até que meu peito quase estourasse, e elas, nada — ficaram paradas, mastigando a brisa. “Abra; só queremos falar com você”, a vesga disse num tom sentimental, quase piedoso. Eu não vou abrir essa porta, pensei. Elas, se quiserem, que arrombem a porta; eu vou ficar aqui na cama, dormindo. Não que eu tivesse medo delas! Eu tinha sono, só isso, sono e um bocado de preguiça, afinal, tinha acabado de almoçar e costumo ficar com os nervos moles depois do almoço, os nervos moles escorrendo pelo corpo, me puxando para baixo, me pregando ao chão, onde eu me arrastava pesando uma tonelada, que é quanto pesam meus nervos do lado de fora do corpo. Então fechei os olhos e pensei: “Só hoje”.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Sem Deus

Fui convidado a participar deste espaço com a finalidade de oferecer um contraponto a alguns princípios partilhados pelos meus colegas. Não que eles apresentem uma visão homogênea e uniforme. Trata-se antes de uma divergência fundamental, referente a nossas convicções pessoais: eles são cristãos e eu me considero ateu. Portanto, antes de mais nada, gostaria de especificar melhor meu ponto de vista, pois dizer que alguém não acredita em Deus pouco esclarece sobre os princípios filosóficos que norteiam a visão de mundo dessa pessoa. A argumentação a seguir ainda não tem o objetivo de iniciar um debate, o que acontecerá em ocasiões futuras, mas apenas enumerar os motivos que fazem com que eu me declare ateu e não agnóstico.

De saída, devo dizer que não imagino que a ciência possui ou um dia possuíra todas as respostas, atendendo a todas as inquietações existenciais que, desde os primórdios da humanidade, têm feito com que as pessoas se voltem à religião. Acho que há uma limitação para o entendimento humano que nem milênios de desenvolvimento científico, ou mesmo filosófico, serão capazes de transpor. Isso para mim está relacionado ao funcionamento de nosso aparelho cognitivo, que trabalha a partir de categorias fundadas no espaço e no tempo. Dessa maneira, é impossível que consigamos de fato compreender algo além daquele ponto no qual tempo e espaço se configuraram, pois a partir daí nossas categorias de apreensão da realidade falhariam absolutamente. No meu modo de ver, a pergunta sobre a origem das coisas deve permanecer eternamente sem resposta.

Os argumentos filosóficos tradicionais que tentam demonstrar a necessidade de um Criador baseiam-se em sua maioria na noção de causalidade — noção sobre a qual se estrutura a lógica humana —, que deixa de fazer sentido se abolirmos a ideia de tempo. Para além do tempo, para além daquele momento em que as coisas começaram a existir, não há qualquer pertinência em se falar de criador ou criação. Adotando o ponto de vista da eternidade, talvez pudéssemos supor, aceitando hipoteticamente a existência divina, que é impossível determinar se Deus antecede a realidade ou o contrário; impossível porque a pergunta simplesmente não cabe. O pressuposto de que tudo precisa ter uma causa vale somente até recuarmos a um instante 0, que abarca toda a eternidade e a partir do qual a realidade se configura (digamos, num instante 1, o primeiro instante da existência, a primeira fagulha do tempo). Entre 0 e 1 haveria um abismo que ultrapassa a compreensão humana — é o mistério por excelência. Atribuir tal passagem a um ato de vontade parece-me ainda questão de fé.

Levando em conta somente o aspecto ontológico da discussão, eu poderia ser facilmente classificado como agnóstico, afinal, não defendo que é impossível que Deus tenha criado a realidade, mas que é impossível determinar uma causa qualquer, pois a própria ideia de causa me parece problemática nesse caso. Mas se eu reduzisse a discussão sobre a existência divina apenas à questão da necessidade lógica e mecânica de um agente criador, estaria agindo como muitos deístas que enxergam Deus como uma força impessoal que se limita a colocar as engrenagens do universo em funcionamento e as manter funcionando. Está claro que culturalmente a ideia de Deus transcende em muito essa imagem mecanicista. Deus não seria meramente uma força, ou uma “energia” como dizem alguns, mas também uma consciência moral, dotada de vontade e entendimento (na verdade, de vontade e entendimento absolutos). É justamente nesse ponto que minha dúvida começa ceder lugar à descrença.

Não vejo necessidade de uma inteligência superior por trás da ordem que rege o universo. Em primeiro lugar, porque essa ordem nada mais é do que um precário momento de equilíbrio das forças que compõem o tecido da realidade. E, como seres dotados de uma perspectiva limitadíssima que somos, tal momento nos parece a realidade inteira. Isso que nos habituamos a chamar de natureza, por exemplo, corresponde a uma série de arranjos bastante instáveis e provisórios, sempre à beira do colapso. Não há nada no universo que me faça supor a obra perfeita de um artista infalível. A mim, a realidade transmite a ideia de um rascunho interminável, traçado em torno de um número limitado de temas (ou formas).

Em segundo lugar, acredito que os princípios sobre os quais a realidade está estabelecida — e que determinam os temas e formas aos quais me referi — não pressupõem necessariamente uma inteligência arquitetônica. Num próximo texto, pretendo defender a ideia de que, da realização aleatória de um número finito de possibilidades infinitas, a realidade teria o poder de se auto-estruturar por meio da determinação recíproca dos elementos que a integram. Defenderei a hipótese de uma ordenação progressiva da realidade, contrária assim à hipótese de uma ordenação prévia, à qual a realidade se conformaria.

Por último, o aspecto que envolve a crença na existência de Deus do qual discordo mais incisivamente é a suposição de uma ordem moral por trás do universo. Para os que creem, tal aspecto, revestido com algum nível de angústia, apresenta-se no que se costuma evocar como “problema do mal”. Se Deus é infinitamente bom e ama a humanidade, por que existe o mal, para além da capacidade de ação humana? Não estou falando apenas do mal que se abate sobre uma pessoa como consequência da ação de outra, ao que sempre se poderia responder com a ideia de livre-arbítrio. Estou falando de coisas como maremotos que, em poucos minutos, varrem do mapa centenas de milhares de vidas humanas, ou de doenças congênitas, que independem de fatores ambientais.

Não abordarei por ora as soluções que o pensamento teológico tem proposto para o problema do mal por um motivo bem simples: tal problema só existe para os que supõem uma ordem moral incrustada nas estruturas do real, o que não é meu caso. Para mim, nossos códigos morais são culturalmente construídos, do que não excluo um componente biológico, fixado por meio da seleção natural e que teria representado um ganho evolutivo para nossa espécie. Portanto, a moral nada mais seria do que um conjunto de circunstâncias biológicas moldadas por conjunturas históricas e sociais, e a ordem moral que supostamente organiza a existência, uma projeção de valores humanos sobre a natureza.

Por último, gostaria de pontuar uma questão de foro íntimo. Muitos crentes, embora não saibam expressar em termos inteligíveis os fundamentos de sua fé, dizem simplesmente “sentir” que Deus é uma presença concreta e bastante palpável em suas vidas. Às vezes é apenas um sentimento dessa natureza que separa um crente de um agnóstico — intimamente, alguma coisa dá ao crente a certeza de uma força superior. Pois bem, não sinto nada semelhante. Sequer possuo uma convicção obstinada quanto à inexistência de Deus, um sentimento qualquer que me dê a nítida impressão de que o céu está desabitado, para usar uma imagem batida. Deixei de acreditar porque a ideia de Deus foi gradativamente perdendo espaço em minha visão de mundo, parando de fazer sentido, talvez porque nunca tenha experimentado aquele sentimento que dá ao crente a certeza da existência de seu objeto de culto.

Pretendo, futuramente, dedicar ao menos um texto a cada um desses tópicos. Como já disse, este texto ainda não tem como objetivo lançar o debate, mas apenas explicitar para meus colegas e leitores os princípios que norteiam meu ponto de vista em relação ao problema da existência (ou não) de Deus.
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