Fui convidado a participar deste espaço com a finalidade de oferecer um contraponto a alguns princípios partilhados pelos meus colegas. Não que eles apresentem uma visão homogênea e uniforme. Trata-se antes de uma divergência fundamental, referente a nossas convicções pessoais: eles são cristãos e eu me considero ateu. Portanto, antes de mais nada, gostaria de especificar melhor meu ponto de vista, pois dizer que alguém não acredita em Deus pouco esclarece sobre os princípios filosóficos que norteiam a visão de mundo dessa pessoa. A argumentação a seguir ainda não tem o objetivo de iniciar um debate, o que acontecerá em ocasiões futuras, mas apenas enumerar os motivos que fazem com que eu me declare ateu e não agnóstico.
De saída, devo dizer que não imagino que a ciência possui ou um dia possuíra todas as respostas, atendendo a todas as inquietações existenciais que, desde os primórdios da humanidade, têm feito com que as pessoas se voltem à religião. Acho que há uma limitação para o entendimento humano que nem milênios de desenvolvimento científico, ou mesmo filosófico, serão capazes de transpor. Isso para mim está relacionado ao funcionamento de nosso aparelho cognitivo, que trabalha a partir de categorias fundadas no espaço e no tempo. Dessa maneira, é impossível que consigamos de fato compreender algo além daquele ponto no qual tempo e espaço se configuraram, pois a partir daí nossas categorias de apreensão da realidade falhariam absolutamente. No meu modo de ver, a pergunta sobre a origem das coisas deve permanecer eternamente sem resposta.
Os argumentos filosóficos tradicionais que tentam demonstrar a necessidade de um Criador baseiam-se em sua maioria na noção de causalidade — noção sobre a qual se estrutura a lógica humana —, que deixa de fazer sentido se abolirmos a ideia de tempo. Para além do tempo, para além daquele momento em que as coisas começaram a existir, não há qualquer pertinência em se falar de criador ou criação. Adotando o ponto de vista da eternidade, talvez pudéssemos supor, aceitando hipoteticamente a existência divina, que é impossível determinar se Deus antecede a realidade ou o contrário; impossível porque a pergunta simplesmente não cabe. O pressuposto de que tudo precisa ter uma causa vale somente até recuarmos a um instante 0, que abarca toda a eternidade e a partir do qual a realidade se configura (digamos, num instante 1, o primeiro instante da existência, a primeira fagulha do tempo). Entre 0 e 1 haveria um abismo que ultrapassa a compreensão humana — é o mistério por excelência. Atribuir tal passagem a um ato de vontade parece-me ainda questão de fé.
Levando em conta somente o aspecto ontológico da discussão, eu poderia ser facilmente classificado como agnóstico, afinal, não defendo que é impossível que Deus tenha criado a realidade, mas que é impossível determinar uma causa qualquer, pois a própria ideia de causa me parece problemática nesse caso. Mas se eu reduzisse a discussão sobre a existência divina apenas à questão da necessidade lógica e mecânica de um agente criador, estaria agindo como muitos deístas que enxergam Deus como uma força impessoal que se limita a colocar as engrenagens do universo em funcionamento e as manter funcionando. Está claro que culturalmente a ideia de Deus transcende em muito essa imagem mecanicista. Deus não seria meramente uma força, ou uma “energia” como dizem alguns, mas também uma consciência moral, dotada de vontade e entendimento (na verdade, de vontade e entendimento absolutos). É justamente nesse ponto que minha dúvida começa ceder lugar à descrença.
Não vejo necessidade de uma inteligência superior por trás da ordem que rege o universo. Em primeiro lugar, porque essa ordem nada mais é do que um precário momento de equilíbrio das forças que compõem o tecido da realidade. E, como seres dotados de uma perspectiva limitadíssima que somos, tal momento nos parece a realidade inteira. Isso que nos habituamos a chamar de natureza, por exemplo, corresponde a uma série de arranjos bastante instáveis e provisórios, sempre à beira do colapso. Não há nada no universo que me faça supor a obra perfeita de um artista infalível. A mim, a realidade transmite a ideia de um rascunho interminável, traçado em torno de um número limitado de temas (ou formas).
Em segundo lugar, acredito que os princípios sobre os quais a realidade está estabelecida — e que determinam os temas e formas aos quais me referi — não pressupõem necessariamente uma inteligência arquitetônica. Num próximo texto, pretendo defender a ideia de que, da realização aleatória de um número finito de possibilidades infinitas, a realidade teria o poder de se auto-estruturar por meio da determinação recíproca dos elementos que a integram. Defenderei a hipótese de uma ordenação progressiva da realidade, contrária assim à hipótese de uma ordenação prévia, à qual a realidade se conformaria.
Por último, o aspecto que envolve a crença na existência de Deus do qual discordo mais incisivamente é a suposição de uma ordem moral por trás do universo. Para os que creem, tal aspecto, revestido com algum nível de angústia, apresenta-se no que se costuma evocar como “problema do mal”. Se Deus é infinitamente bom e ama a humanidade, por que existe o mal, para além da capacidade de ação humana? Não estou falando apenas do mal que se abate sobre uma pessoa como consequência da ação de outra, ao que sempre se poderia responder com a ideia de livre-arbítrio. Estou falando de coisas como maremotos que, em poucos minutos, varrem do mapa centenas de milhares de vidas humanas, ou de doenças congênitas, que independem de fatores ambientais.
Não abordarei por ora as soluções que o pensamento teológico tem proposto para o problema do mal por um motivo bem simples: tal problema só existe para os que supõem uma ordem moral incrustada nas estruturas do real, o que não é meu caso. Para mim, nossos códigos morais são culturalmente construídos, do que não excluo um componente biológico, fixado por meio da seleção natural e que teria representado um ganho evolutivo para nossa espécie. Portanto, a moral nada mais seria do que um conjunto de circunstâncias biológicas moldadas por conjunturas históricas e sociais, e a ordem moral que supostamente organiza a existência, uma projeção de valores humanos sobre a natureza.
Por último, gostaria de pontuar uma questão de foro íntimo. Muitos crentes, embora não saibam expressar em termos inteligíveis os fundamentos de sua fé, dizem simplesmente “sentir” que Deus é uma presença concreta e bastante palpável em suas vidas. Às vezes é apenas um sentimento dessa natureza que separa um crente de um agnóstico — intimamente, alguma coisa dá ao crente a certeza de uma força superior. Pois bem, não sinto nada semelhante. Sequer possuo uma convicção obstinada quanto à inexistência de Deus, um sentimento qualquer que me dê a nítida impressão de que o céu está desabitado, para usar uma imagem batida. Deixei de acreditar porque a ideia de Deus foi gradativamente perdendo espaço em minha visão de mundo, parando de fazer sentido, talvez porque nunca tenha experimentado aquele sentimento que dá ao crente a certeza da existência de seu objeto de culto.
Pretendo, futuramente, dedicar ao menos um texto a cada um desses tópicos. Como já disse, este texto ainda não tem como objetivo lançar o debate, mas apenas explicitar para meus colegas e leitores os princípios que norteiam meu ponto de vista em relação ao problema da existência (ou não) de Deus.