terça-feira, 25 de setembro de 2012

Mentindo pela Causa - o caso feminista (e sua caricatura espelhada e ainda pior: o masculinismo)

As mulheres foram vítimas de diversas injustiças ao longo da história. Na Idade Média em diversas nações, por exemplo, não tinham o direito de herdar propriedades. Salvo raras exceções, não cursavam ensino superior e nem tinham qualquer abertura para a vida intelectual. Bem sabemos, também, que práticas absurdas como a punição física à esposa foram toleradas no Ocidente até pouco tempo atrás.

[Isso não quer dizer, contudo, que a vida das mulheres tenha sido, acima de tudo, marcada por sofrimentos e injustiças. Apesar desses, coisas más que os tempos modernos fizeram bem em corrigir, as mulheres, assim como os homens, sempre foram capazes de viver, ser felizes e até mesmo vencer as barreiras institucionais a seus anseios, como diversas mulheres notáveis ao longo da história mostram. Já que dei um exemplo negativo inicial da Idade Média, um período que conheço melhor do que os outros, é dela também que tiro exemplos positivos de intelectuais polímatas (Hildergad von Bingen), autoras literárias de sucesso (Christine de Pizan - inclusive uma protofeminista no sentido de se preocupar com a situação da mulher, Margery Kempe - autora da, se não me engano, primeira autobiografia em inglês), poetisas trovadoras (Clara d'Anduza, Almucs de Castelnau, a Condessa de Dia, Maria de Ventadorn), rainhas (Eleonora de Aquitânia) e ainda teólogas e místicas (Juliana de Norwich, Catarina de Siena, Brígida da Suécia).]

A luta contra injustiças reais, contudo, não justifica o uso da mentira e da distorção dos fatos. E quanto mais leio ou discuto com pessoas que se dizem feministas (que significa não apenas defender a igualdade entre homem e mulher, mas aderir a toda uma visão de mundo que relê nossa sociedade como uma luta de classes entre homens opressores e mulheres oprimidas), mais me parece que o que distingue o feminismo de uma mera reivindicação de justiça, e o que permite sua existência, são exageros, manipulações e até mesmo mentiras.

Uma dessas mentiras, patente e inegável, apareceu na discussão do meu artigo "O que Querem as Mulheres?". Disse uma comentadora, que no mais revelou, pelos termos escolhidos, sua filiação ao feminismo "ortodoxo", que não-sei-quantas mulheres são assassinadas pelo mero fato de serem mulheres. Segundo ela, quando um homem agride ou mata sua esposa ou namorada por sentir ciúmes dela, ele o fez porque ela é mulher. A prova da afirmação? Ora, se ela não fosse mulher, não teria sido morta. Assim, parece que o ódio à mulher explica uma série de crimes violentos cometidos contra mulheres.

Mas analisemos isso mais de perto: se fosse verdade que é o ódio à mulher que guia a ação do namorado ciumento, ele não limitaria sua violência à sua própria namorada. Qualquer mulher cumpre perfeitamente o requisito de seu ódio: ser mulher. Ele poderia tanto matar sua namorada quanto uma transeunte qualquer na rua; e por que não ambas? Fica claro que o que explica o crime não é o ódio à mulher; é o ciúme que o sujeito sente ao descobrir ou imaginar a infidelidade de sua namorada. Se ela não fosse mulher, ela seria morta? Bom, em se tratando de um heterossexual, é claro que não, pois se ela fosse homem, não seria namorada dele e portanto não poderia ser vítima de seu ciúme doentio.

Estaria uma feminista disposta a afirmar do caso de um homem morto pela namorada ciumenta, que esse homem foi assassinado "apenas por ser homem"? Não cola, né? Então a inversa também não pode ser verdadeira, por mais que as feministas desejem que seja (e elas o desejam porque, se admitirmos essa forma de falar, estamos dando crédito à suposta opressão masculina onipresente que rege a história humana e as relações pessoais). Se a explicação de tantos crimes contra as mulheres for apenas o ciúme universal somado aos efeitos comportamentais da testosterona e à confiança que a preeminência física dá no trato a dois, então o castelo feminista rui.

Na verdade, não é preciso nem recorrer à suposta maior violência do homem para explicar os casos de abuso físico e sexual nos relacionamentos. Já é bem sabido que entre homossexuais, inclusive entre lésbicas, vigoram taxas semelhantes de abuso (vejam também este estudo inglês). Infelizmente, não é incomum que uma parte mais forte exerça um poder indevido sobre uma parte mais fraca, seja de que sexo forem. Se uma mulher agride sua parceira, a culpa é do patriarcado?

Outra distorção muito comum é a do número de estupros, da qual é muito difícil conseguir dados sólidos. Há números para todos os gostos. Segundo artigo recente de Paula Abreu, uma mulher é estuprada a cada 12 segundos no Brasil; o que daria por volta de 2,6 milhões de estupros por ano. Para isso bater com os dados das secretarias de segurança estaduais (ex: RJ teve 4589 casos registrados em 2010), a taxa de denúncia oficial de estupro teria que ser bem inferior a 10%. A RAINN, uma ONG não-ideológica de combate ao estupro, abuso sexual e incesto, trabalha com uma taxa de 46% de notificação de estupros e abusos sexuais à polícia. Os dados dela vêm de um estudo do Departamento de Justiça do governo americano.

E olha que nesses casos registrados pode haver muitos abusos sexuais que nem de longe caracterizam estupro numa consideração objetiva dos atos (como esta do CDC americano, que, na violência sexual, distingue entre ato sexual completado - basicamente, qualquer tipo de penetração -, ato sexual incompleto mas com intenção de se completar, contato sexual abusivo e abuso sexual sem contato). A legislação brasileira, desde 2009, considera qualquer tipo de abuso sexual como estupro: da "mão boba" à penetração violenta. Nas palavras de um delegado-geral da Polícia Civil Paulista, Marcos Carneiro (citado em um dos links acima): “Antigamente, o estupro era algo muito específico: o homem atacando a mulher e tendo relação. Hoje, um beijo lascivo forçado pode ser entendido como estupro. [...] Ampliou muito o leque. Uma passada de mão no Metrô, dependendo do entendimento do delegado no momento e de todo o contexto, pode ser interpretado como estupro.” É bom e louvável que se procure registrar e punir mesmo agressões sexuais como uma passada de mão por fora da roupa. Agora, igualar isso à penetração sexual forçada é pura manobra demagógica para agradar grupos de pressão. É o equivalente a tipificar soco na cara como homicídio. O principal dano dessa decisão é a perda de informação que isso traz. Agora a informação oficial de estupros no país é pouco confiável; nunca saberemos a realidade e gravidade dos crimes sexuais no Brasil. Para variar, a jogada demagógica (de dizer que é tudo igualmente grave e que sequer propor que não seja já é um insulto) enlameia as águas da discussão. A boa intenção erigida em moralismo - do qual discordar gera indignação automática - perverte a busca da verdade.

Esse tipo de demagogia tem consequências nocivas. Por exemplo: é bem sabido que sociedades e culturas diferentes têm patamares muito diferentes de respeito à mulher. Já li, e já ouvi pessoalmente, relatos de mulheres que viveram na Alemanha contando que a agressão sexual e verbal lá vem principalmente, se não exclusivamente, dos turcos, e não dos alemães. No caso brasileiro, não é bonito dizê-lo, mas todo mundo deve ter uma ideia mais ou menos confiável de que nos estados do Sul a violência contra a mulher deve ser bem menor do que no Nordeste. Onde mais os benefícios da civilização ocidental chegaram, mais a mulher (e, na verdade, o indivíduo de maneira geral, independentemente do sexo) é respeitada. Mas se aceitamos a demagogia feminista, de que toda a sociedade é permeada de opressão patriarcal, igualamos coisas muito diferentes: São Paulo é tão machista e patriarcal quanto o Maranhão.

O feminismo vive de pintar o mundo como o mais puro horror para as mulheres. Sair na rua é uma experiência traumática, e cada segundo de vida é passado sob o medo intenso do estupro. Isso é algo que me interessa muito e que só fui tomar consciência lendo algo de sites feministas: de fato, para um homem que saia sozinho à noite, há o medo do roubo, mas não do estupro. Se estou com um grupo de semi-conhecidos, entro de carona num carro deles sem receio algum. Para uma mulher não é tão simples. Quando pergunto sobre isso, contudo, a amigas minhas, o que elas dizem difere muito da narrativa feminista padrão: sim, o receio do estupro é uma preocupação em determinados contextos, o que exige algumas precauções padrão (sempre levar dinheiro para um táxi, por exemplo); mas não é de maneira nenhuma um medo dominador de um perigo visto como sempre à espreita. Toda elas saem sem medo de casa sozinhas, têm vida social, não se importam se um desconhecido vier puxar conversa no bar, etc.

Vejam essa tirinha:

A vida da pobre mulher é uma sequência de insultos e baixarias que a deixam humilhada, com a autoestima no chão. Apenas uma verdadeira heroína aguentaria esse tipo de abuso interminável a cada momento do dia em que sai a público. E, quando volta ao "santuário" do lar, o que ela encontra? O pior agressor de todos - o marido! (A barbinha de cafajeste e a barriga de cerveja dizem tudo). Insensível ao sofrimento da esposa que ele diz amar, o safadão, assim como todos os anônimos da rua, a vê como um pedaço de carne. Depois de tantas agressões verbais no espaço público, ela agora se prepara, aterrorizada, para a agressão física dentro do lar (notem a mãozinha dele, chamando-a para a cama; e pela expressão facial e corporal dela vocês podem inferir o que ela sente pelo contato físico que está prestes a ocorrer).

Aqui no Ad Hominem, por outro lado, das minhas três amigas que comentaram o post "O que Querem as Mulheres?", duas disseram não gostar de comentários como esses, mas também não deram mostras de se sentirem assediadas o tempo todo e de viverem uma situação infernal toda vez que saem à rua; e outra disse que, dependendo da situação, até gosta deles. Ou seja: a tirinha é de um exagero patente; a cara da mulher no último quadrinho, como uma vítima, uma coitada oprimida e infeliz nas mãos dos homens, é, objetivamente falando, uma mentira. O que não quer dizer que não haja mulheres que se sintam assim.

Parece-me, portanto, que é na cabeça das feministas que o problema e as agressões tomam as proporções aterradoras e basicamente dominam a vida da mulher (quem duvidar do que estou falando, leia os comentários no site da Lola; há mulheres que dizem viver no mais profundo e constante pavor).

E se, arrisco agora, a real essência do feminismo estiver justamente nesse medo dominador? A doutrina feminista depende de fortalecer e arraigar o medo em suas adeptas, caso contrário ela seria vista como obviamente exagerada, para não dizer falsa. Mas e se a causalidade for inversa: é o medo inicial e irracional que cria e sustenta a doutrina que o justifica?

O mesmo vale para o primo pobre e louco do feminismo, o masculinismo, ideologia muito mais bizarra e ressentida que sua prima. Se fôssemos escolher um dos dois sexos como o que mais sofreu e ainda sofre injustiças no mundo, certamente seria o feminino. De onde então esses caras tiram que são os homens que sofrem, sistematicamente, humilhações e opressão nas mãos das mulheres? É certo que uma outra tentativa de correção legal ou de imposição da cartilha feminista por meio da lei possa ter ido longe demais, ou ter sido baseada em exageros e mentiras demagógicas. Mas disso a imaginar uma conspiração feminina contra os pobres homens é ir da sensatez à loucura, não é?

No meu post, um masculinista - não o estou criticando pessoalmente, apenas usando-o de exemplo - trouxe um vídeo que ele considerava absurdo: um homem é espancado por outros por ter estapeado uma mulher que o estapeara. É para rir?

O princípio de que a mulher é diferente do homem, em geral mais delicada e frágil fisicamente, está enraizado em nossa cultura - talvez porque as mulheres de fato o sejam. Não tem nada de conspiração feminina nisso. Pelo contrário, para as feministas esse princípio é machista, pois diz que a mulher é incapaz de se defender autonomamente como o homem. Seja como for, é por causa desse princípio que se considera que usar da violência contra uma mulher é uma desonra para o homem e visto como um crime muito mais sério e covarde do que usar violência contra um outro homem.

Tem gente, em geral feministas, que quer abolir esse princípio, mas não sei se elas próprias querem as consequências que isso implicaria. Recentemente uma aluna da ECA (faculdade de comunicação e artes da USP) recebeu uma rasteira sem noção de um colega retardado. Um amigo dela, em defesa da moça, escreveu: "O ato se agrava por ser a agredida uma mulher, mas independentemente de gênero, usar da força por motivo fútil é, em si, vergonhoso." É um julgamento quase inescapável: o fato de ela ser mulher agrava a agressão. E se não agravasse? Então a agressão seria encarada da mesma maneira que entre dois homens: isto é, não geraria escândalo ou indignação e seria quase inconcebível chamar a polícia (quem chama é visto - dependendo do caso, justificadamente - como covarde). O esperado socialmente dessa menina seria que ela se levantasse e revidasse a agressão, iniciando assim uma luta. Tem certeza de que isso seria melhor?

Noto entre os masculinistas alguns lugares comuns: como o de que as mulheres só fazem sexo com "homens alfa", e não com perdedores. Ora, se eles acreditam nisso, ao menos uma coisa se segue: eles, que se autoidentificam como não sendo "alfas", não encontram parceiras (ou não encontravam antes de sua conversão) - se encontrassem, teriam em suas próprias vidas a refutação dessa tese absurda. E talvez esse fato, mais do que qualquer outra coisa, esteja por trás de sua visão de mundo anti-mulheres.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Diversas discussões recentes, bem como a minha própria atividade atual de mestrando, têm me suscitado uma dúvida sobre a qual, quanto mais penso, menos consigo vislumbrar uma resposta. E a dúvida é simples: por que queremos saber o que um filósofo do passado realmente pensou ou disse?

Quero limar da consideração o interesse puramente histórico, atendo-me ao interesse filosófico de se ler, reler, estudar e esquadrinhar, digamos, os textos de Aristóteles à procura do sentido preciso de suas palavras. O interesse histórico basta por si mesmo: interessa ler e esquadrinhar Aristóteles porque ele deixou textos e quero entender o que eles diziam. Poderia igualmente me dedicar ao estudo minucioso das inscrições nos banheiros públicos de Pompeia (área que, com efeito, tem seus especialistas).

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Crescei e multiplicai-vos

Por Day Teixeira
All children, except one, grow up. They soon know that they will grow up, and the way Wendy knew was this. One day when she was two years old she was playing in a garden, and she plucked another flower and ran with it to her mother. I suppose she must have looked rather delightful, for Mrs. Darling put her hand to her heart and cried, "Oh, why can't you remain like this for ever!" This was all that passed between them on the subject, but henceforth Wendy knew that she must grow up. You always know after you are two. Two is the beginning of the end.
(Peter Pan)
Dia desses, no mercado, batemos com uma senhorinha avó de aluno do Rafael que ao olhar minha filhinha soltou um espantado “Meu Deus! Vocês não têm juízo!”. Isso de ter filhos nos coloca em contato com muito falatório, todo mundo tem um palpite, uma história, um conselho... E eu quero dividir com vocês como ando atônita com o que tenho ouvido dizer por aí. O problema é sério, vale até um texto.

Quando decidi ter filho (sim, eu decidi) eu não tinha casa própria, renda fixa, médico confiável, vinte cursos diferentes de como-ser-a-mãe-perfeita e nem 35 anos ou mais. Aliás, ainda não tenho; tinha, sim, o que precisava: um esposo, um teto, força e saúde para correr atrás do pão nosso de cada dia e um útero pronto para ser fecundado. A reação primeira de todos aqueles da geração dos meus pais foi “É loucura! É loucura. Você não tem casa própria, renda fixa, médico confiável. Não fez cursos, ainda nem tem mais de 30. É loucura!”. Eu respirei fundo e pensei “que bom que existe a loucura; caso contrário eu mesma não estaria aqui.” Mas as coisas não ficaram nisso aí. Visto que a “loucura” não acertava muito bem o alvo, surgiu uma nova acusação, a de “estar prejudicando a vida do bebê”. Porque se não se preenchem todos os requisitos para engravidar, o bebê pode passar necessidade, precisar de algum tratamento urgente, um leite especial, mil cuidados impossíveis que não poderiam ser sanados a não ser que eu tivesse um emprego público – se tivesse emprego público tudo bem, tinha segurança. Mas nem isso!

Nem isso.

Porém, o que me deixou realmente preocupada não foi o protesto da geração passada, e sim o deslumbre misturado com medo da geração presente. Aquele olhar de estranhamento que denunciava um “como assim um casal de vinte e cinco anos, nessas condições, pode ter filhos? Isso não era para ser impossível? Quer dizer... não é loucura?” Pois é, não era nem uma coisa nem outra; estávamos nós lá, contando com a força da realidade para mostrar que o nosso bebezinho era possível – e era até muito fofo.

Logo a coceira da possibilidade começou a incomodar, e meus companheiros de geração começaram a tentar achar alguma explicação, alguma alternativa, algum argumento que justificasse aquele medo que lhes fora implantado desde a primeira adolescência. Ouvi, principalmente de primos e parentes próximos, que filhos roubariam deles tempo, e que assim não poderiam aproveitar a vida, a juventude. Diziam que filhos davam muitas despesas e muito trabalho – um trabalho enorme, impossível. Mas o principal: ainda não tinham experiência. Sentiam-se jovens demais, imaturos demais para assumir a responsabilidade. Afinal, ter filhos é coisa para gente grande.

E o que é ser gente grande? É conseguir cumprir todos aqueles requisitos. Poucos de 25 anos se consideram adultos pra valer; são meninos ainda, pobres de riquezas e experiência, dependentes da opinião e aprovação dos pais e amigos, sem saber direito o que querem da vida. Sim, são pessoas de 25 anos, assim como eu, assim como todos dessa idade. O fato é que, ao se comprar o discurso da juventude sem responsabilidades, se leva junto um grande problema: a paralisia. Sem responsabilidades, sem transtornos, sem dificuldades, não existe evolução.

Não se adquire a experiência para ser pai a não ser que você seja pai. Não existe caminho de fuga nesse caso: o pai nasce junto com o filho. E se o filho for postergado até seus 35 anos, lá – e somente lá – você terá começado a ter a experiência necessária para ser pai. Até lá, o que terá sido feito da sua vida? Na maior parte dos casos (e conheço alguns, poderia até citar), não foi feito nada, nada de relevante. Ao tentar escapar das coisas difíceis, o jovem acaba caindo e recaindo num círculo vicioso, que o prende no estado mental dos vinte anos, ainda que já tenha seus trinta e cinco.

Mas não espanta que hoje a adolescência prolongada venha ganhando mais e mais adeptos. No fim das contas os filhos, por mais que se esforcem em sentido contrário, acabam por assimilar boa parte do que lhes foi ensinado durante a vida; e nós fomos criados para temer a responsabilidade, a incerteza, e a insegurança. Somos chamados de irresponsáveis sempre que nos colocamos em risco na busca de uma nova responsabilidade. Mas nada de grande pode ser feito – muito menos um filho – sem levar em conta esses três fatores.

Se erramos, talvez seja por acreditar que somos assim tão fracos e imaturos que não podemos nem mesmo fazer o que vem sendo feito desde que o mundo é mundo: gerar filhos tão logo casados. E casar, tão logo possível!

Minha Alice, com seis meses de vida, já me ensinou muito mais sobre a vida do que meus seis anos de faculdade e vida independente em São Paulo. Mas não só isso: ensinou-me também sobre mim mesma, sobre a natureza humana, sobre a caridade, a felicidade... E falando em felicidade, ela também me mostrou com clareza o que Frankl queria dizer ao repetir em quase todos os seus livros que aquele que, ao responder “Qual o sentido de sua vida?” com a tão batida máxima “Ser feliz!”, estava gravemente no caminho errado. Porque aquele que busca a felicidade jamais poderá realizar seu propósito, uma vez que a busca pela satisfação de si é inglória e frustrante. E a felicidade vem, e só pode vir, como consequência de alguma outra coisa. Frankl também diz que o sentido da sua vida deve ser algo que você, e somente você, pode realizar. E alguém duvida que só você poderá ser pai dos seus filhos?

Nossa cultura nos tem aterrorizado enchendo de monstros disformes aquilo que deveria ser uma das principais causas de felicidade e realização para um jovem adulto. A constituição de uma família coroada com filhos – para aqueles com vocação familiar – deve ser vista como a premissa para uma vida frutífera e madura, e não como consequência disso.

Não foi à toa que a primeira ordem dada por Deus ao homem foi exatamente essa: crescei e multiplicai-vos.

sábado, 15 de setembro de 2012

Sociedade dos Molengas


Desde que me entendo por gente, sei que funciono melhor à noite. Se obrigada a acordar e a atender a compromissos de manhã, sinto-me um zumbi. O horário mais confortável para o meu funcionamento seria acordar às duas da tarde e dormir às quatro, cinco da madrugada. Gosto de estudar, escrever e pensar enquanto todos dormem e não há barulho ou movimento lá fora. O que há de errado nisso?

Não sei se há algo de intrinsecamente errado nisso, quer dizer, se ignorar todo o resto para viver no “ritmo da noite” de algum modo, a curto ou longo prazo, faz mal. Mas, pensando bem, paralelamente ao instinto notívago sempre tive algo como um contra-instinto que me fez buscar atividades diurnas; escolhi cursar a graduação de manhã e agora, na pós, que só tenho aulas à tarde, me matriculei num curso de língua russa optativo pela manhã. Se acordar cedo me é tão penoso, por que busquei essas aulas matinais? Juro que nunca tinha pensado a fundo sobre isso, caro leitor. Até que li essa matéria na Folha Online.

A Suécia começa neste mês uma nova revolução social, com a introdução da chamada "Sociedade B" -- uma sociedade que leva em conta os diferentes ritmos biológicos dos indivíduos para introduzir horários alternativos de funcionamento para escolas, locais de trabalho, universidades e organizações. (...) A Sociedade B se baseia em pesquisas científicas que indicam que cada indivíduo tem seu próprio ritmo biológico, uma espécie de "relógio interno" que é geneticamente determinado. (...) esses diferentes ritmos biológicos também são uma realidade nas escolas, onde um grande número de crianças e adolescentes tem dificuldades de concentração pela manhã. Ou seja, esses alunos não têm exatamente preguiça de levantar para ir à escola -- eles são apenas "pessoas B".

Dois conhecidos me enviaram a matéria dizendo: “Olha aí a solução dos seus problemas”. Eu li e minha reação instantânea foi pensar: “Esse mundo está cada dia mais louco!”

Acontece, leitor, que uma iniciativa como a tal Sociedade B tem sua origem nas mesmas ideologias e é suportada pelos mesmos grupos que defendem coisas como a extinção da diferenciação de gêneros nas escolas e a “liberdade” para interromper gravidezes psicologicamente estressantes, tudo em nome de uma dita “qualidade de vida” que é maior ou menor segundo confirmam “as pesquisas científicas”. Não quero dizer que rejeito a ideia da Sociedade B por causa das conexões ideológicas de seus defensores – às vezes ideias boas surgem de locais insuspeitados, sobretudo quando lidam com questões de ordem prática (nada impede um abortista de ser o inventor de um excelente descascador de bananas). O que quero dizer é que todas essas iniciativas – a liberdade para se viver de dia ou de noite, não ser chamado nem de menino nem de menina e se livrar do estresse de gerar um filho – têm a mesma raiz perniciosa, são afinal de contas a atualização de um mesmo princípio cultural.

Parece que a palavra de ordem da cultura contemporânea é não sentir dor, desviar de todos os obstáculos possíveis, principalmente daqueles que transformariam você em gente grande, não deixar que a ditadura da dificuldade oprima seus instintos mais viscerais, e nunca, jamais, em hipótese alguma, passar vontade. No reino do relativismo o barato é “ser o que se é”, e isto é nada menos do que se entregar ao acaso, abrir mão do próprio destino, ir sendo ao bel prazer dos acidentes que cruzarem o seu caminho. Pois é isso que acontece quando você se põe à disposição dos seus “instintos viscerais”. Há tanta contradição dentro de um ser humano, tantas pulsões conflitantes, que a cultura do “siga o seu coração, não oprima seus instintos” só poderia resultar nisso que estamos vendo cada vez mais: pessoas totalmente desnorteadas, incapazes de firmar compromissos, chafurdando até o último fio de cabelo no aqui-e-agora, pois já não são donas do próprio futuro. Isso se reflete de modo mais catastrófico (por atacar um âmbito tão básico da existência humana) nos relacionamentos amorosos feitos de algodão-doce: desfazem-se ao menor sopro. Eu estou com você hoje, mas amanhã posso sentir vontade de estar com outra pessoa, e eu sou livre demais para não seguir as borboletas no meu estômago, por isso chegarei aos trinta anos tomando ecstasy nas baladas.

Voltando ao ponto específico das “criaturas da noite”. Eu creio que em parte essa tendência notívaga (seja ela inata ou adquirida, não faz tanta diferença) deva ser explorada por seus portadores. Trabalhar à noite tem suas vantagens. Mas daí a institucionalizar a coisa, apagando o conflito noite-dia, já é demais. Para mim o ponto-chave é que esse é um conflito necessário: sair do conforto da noite para as obrigações ensolaradas, forçar-se a funcionar segundo a normalidade, eis algo de que as pessoas de hoje em dia necessitam. Eu, inclusive. Obrigo-me, duas vezes por semana, a acordar às seis da manhã e frequentar o mundo dos diurnos, senão por outro motivo, apenas por este não ser o meu mundo, e porque é difícil, porque exige disciplina, abnegação, resignação. As pessoas de hoje em dia precisamos demais de tudo isso. Nos demais dias da semana não acordo tão cedo, mas tento também não acordar muito tarde, com exceção de, talvez, dois dias, nos quais exerço plenamente minha potência noturna. Creio encontrar assim certo equilíbrio. Tornar a noite em regra apenas reforçará em todos esses molengas da Sociedade B sua imobilidade em relação a seus próprios acidentes.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

"Curaram meu câncer: a quem agradeço?"

"Esqueci qual delas era a aorta; então fiz uma oração só para ter certeza."
Salvo de um câncer, depois de uma longa e complicada cirurgia, o sujeito comenta no mural: "Graças a Deus!". Indignado, um amigo ateu dá uma estocada indireta, com um post em sua própria página: "É uma ofensa ao profissional da saúde quando agradecem a Deus ao invés dele. E todo seu estudo, e todo seu trabalho; não servem de nada? É Deus quem cura? Então da próxima vez que ficar doente, vá ao padre ou ao pastor!" Segue-se um debate não tão frutífero.

Acho que podemos, desde já, estabelecer uma solução inaceitável: agradecer somente a Deus, esquecendo-se do homem. Imagine um caso ainda mais gritante que o do médico: você está passeando com seu cachorrinho quando ele se solta da guia e corre em direção a uma avenida movimentada. Um homem que vê a cena corre até o cachorro e, com grande esforço e com algum risco para sua integridade física, salva-o e o traz de volta para você. Ao receber de volta o cachorro, você, sem se conter de gratidão, olha para o céu, estende as mãos e exclama: "Muito obrigado, Deus, por me devolver meu querido MJ!" e então segue em frente com o passeio, ignorando o homem ofegante ali na sua frente. A imagem no início do texto também pode, dependendo de como a interpretemos, ilustrar essa visão: "no fundo, é Jesus que está te operando; é ele quem guia a mão do médico."

O médico é responsável pelo salvamento? É. E Deus? Bem, Deus é o autor da realidade, inclusive desse salvador abnegado de cães; ou seja, é a causa primeira de tudo o que acontece. E portanto todas as coisas boas que ocorrem (assim como todas as más) são sim atribuíveis a Ele. Estamos aqui vivendo, gostamos muito de viver; tudo isso se deve, em última instância, exclusivamente à vontade de Deus.

Seria um erro, contudo, ver Deus e o homem "partilhando entre si" a responsabilidade do fato, como se atribuir mérito a um tirasse, nessa exata medida, o mérito do outro. "Um pouco de graças para você, e um pouco para Deus." Deus e o sujeito são integralmente responsáveis pelo salvamento de maneiras diferentes e não-excludentes. Deus, o mais óbvio, por ser a causa de tudo. Só que como Deus é a causa de tudo? Ele não pegou diretamente o cachorrinho e o colocou de volta em seu colo. Tudo o que Deus faz no universo Ele o faz por causas secundárias, isto é, pelo próprio processo da natureza. As coisas se comportam de acordo com suas naturezas, produzindo seus efeitos, e gerando novos seres e situações. É Deus que age por eles pois Ele as criou e, ademais, criou-os para especificamente este processo que de fato ocorre no mundo, até seus mínimos detalhes. Em casos mais raros, Deus age diretamente, sem causas intermediárias: chamamos a esses eventos de milagres (e deixo também um espaço aberto para o funcionamento da mente humana, que pode ser um âmbito no qual uma influência direta de Deus se dê ordinariamente; embora possa também não sê-lo).

O homem, agindo livremente como é de sua natureza, faz parte da criação divina. Ele é instrumento de Deus assim como todos os outros seres. Mas, diferentemente dos demais seres, ele age por decisão própria. Ou seja, sua participação na obra criadora de Deus não é apenas passiva, mas ativa, o que não muda o fato de que é Deus quem está por trás de tudo, mesmo da ação livre humana (o que me remete à superstição das pessoas que julgam que um evento aleatório - como um jogo de dados ou uma escolha "às cegas" de uma passagem bíblica - revele melhor a vontade de Deus do que a decisão consciente de um homem).

Assim, agradeça tanto a Deus quanto a seu médico (ou ao cara que salvar seu precioso cachorrinho): um não exclui, e nem se opõe de qualquer maneira, ao outro.
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