Ocorre que, de tempos em tempos, aparece alguma
figura rigorosamente sensata que, de tão deslocada no cenário nacional
acostumado a pantomimas e salamaleques, passa a impressão de quixotesca ou,
como se costuma dizer nesses casos, polemista.
É o caso de Rodrigo Gurgel, o famigerado Jurado C, na última edição do nunca assaz celebrado Prêmio Jabuti.
Desde o desaparecimento do curitibano Wilson Martins, não se tinha notícia de
crítico que julgasse obras literárias com os dois únicos ou principais
critérios com que se espera um crítico julgue uma obra e, por conseguinte, seu
criador: inteligência e honestidade inegociável.
Gurgel acaba de se tornar figura non
grata entre os escritores e respectivos editores que preferem a adulação ao
julgamento; o compadrio ao destemor; a imitação à literatura.
E é com tal figura a nós gratíssima que achamos por bem começar o Ad Hominem Entrevista.
***
Você
provocou um pequeno rebuliço nos meios editorial e literário brasileiros apenas
por julgar um livro a partir do que considerou seus deméritos intrínsecos, e
não pelo nome do autor. Qual a sua avaliação final do incidente? O que lhe diz
sobre as condições da crítica literária hoje no Brasil?
Como já disse em meu blog, a avaliação do
incidente pode ser resumida no pensamento de Samuel Johnson: “É difícil
contentar aqueles que desconhecem o que exigem ou aqueles que exigem
propositalmente o que julgam impossível obter”. No que se refere à crítica
literária, em 2010, numa entrevista ao jornal O Globo, o professor de
literatura da PUC-RJ, Karl Erik Schøllhammer, questionado pelo jornalista
Miguel Conde sobre os críticos que receavam fazer julgamentos de valor,
respondeu claramente: “As pessoas não têm coragem. A dura verdade é essa.
Existe no Brasil uma cordialidade exagerada entre crítica e escritor, que é
ambígua, mas que é mantida assim: o crítico diz para o autor ‘Isso é muito
bom’, mas vira a cabeça e diz ‘Isso é uma droga’. Essa cordialidade, essa falsa
afinidade, essa conivência bloqueiam a franqueza na discussão. Com poucas
exceções. Existem algumas exceções na crítica brasileira”. Quando li essas
palavras, fiquei em estado de júbilo: alguém pensava como eu. Essa é, portanto,
minha avaliação. Grande parte dos nossos críticos esconde sua opinião nos
jargões acadêmicos exatamente para não julgar. Quando não utilizam o discurso
hermético, ficam naquilo que minha avó chamava de “conversa para boi dormir”.
Nos dois casos, trata-se do que eu chamo de síndrome do bom-mocismo. No fundo,
uma forma de hipocrisia.
Por falar em julgar uma obra pelo que lhe é intrínseco... O seu livro, Muita Retórica Pouca Literatura (Vide, 2012), adota um procedimento similar aos do new criticism: comentar os textos lidando com passagens específicas, sem se afastar da materialidade da obra para incorrer em afirmações muito genéricas. É de se supor que considere esse um procedimento útil aos nossos meios jornalístico e acadêmico. Ou não? E por quê?
Por falar em julgar uma obra pelo que lhe é intrínseco... O seu livro, Muita Retórica Pouca Literatura (Vide, 2012), adota um procedimento similar aos do new criticism: comentar os textos lidando com passagens específicas, sem se afastar da materialidade da obra para incorrer em afirmações muito genéricas. É de se supor que considere esse um procedimento útil aos nossos meios jornalístico e acadêmico. Ou não? E por quê?
Utilizo essa forma de analisar o texto por um
motivo didático e não por ser filiado ao new criticism. Não entendo a crítica
literária como um exercício acadêmico e narcisista, que busca apenas sua
autossatisfação. Não. A crítica literária é um instrumento a serviço do homem.
Serviço, aliás, extremamente honroso, pois elabora o diálogo que sempre deve
haver entre a obra literária e o leitor. O discurso da crítica é imprescindível
e deve ser feito com destemor e autoridade. Sem ele, sem a crítica, teríamos o
depauperamento da cultura, da própria civilização.
Qual é,
na sua opinião, o papel da literatura na vida humana?
A literatura pode servir como bom passatempo.
Pode também desempenhar o papel de força inspiradora – são inúmeros os casos de
escritores que, antes de começar o exercício diário de escrita, leem uma ou
duas páginas de autores geniais. Mas ela tem duas funções primordiais. A
primeira é permitir ao leitor que ele se abra à variedade da experiência
humana; ou seja, reconstituir, na imaginação, os conflitos humanos, como Olavo
de Carvalho sempre repete. Poucas pessoas têm a oportunidade, em suas vidas, de
experimentar, por exemplo, situações em que uma extrema coragem é exigida.
Refiro-me àquele momento em que você se torna herói ou covarde. Em termos
morais, em termos de aperfeiçoamento da personalidade, trata-se de uma situação
fundamental, que testa os limites do ser humano. Pois bem, a literatura coloca
nas mãos do leitor a chance de experimentar tal realidade, ainda que de forma,
digamos, oblíqua ou indireta: basta ler “Lorde Jim”, de Joseph Conrad. A
segunda função primordial é “ajudar o indivíduo a se confundir, em paz e na
alegria, com a uniformidade do ser”. Essa ideia, defendida por Milan Kundera,
agrada-me, pois é um aprofundamento do que costumamos chamar de leitura por
prazer: na verdade, essa relação prazerosa com a literatura é apenas o sintoma
de algo mais profundo: nossa reintegração no Ser.
A visão de mundo do
crítico (sua religião ou ausência dela, bem como convicções morais e políticas)
influi na atividade crítica de maneira geral? E no seu caso específico; se você
visse a realidade de maneira diferente, sua opinião sobre obras literárias
seria afetada?
Essa é uma pergunta que não pode ser respondida com
um “sim” ou um “não”. O fato de eu ser católico impregna toda a minha vida,
todo o meu ser. O crítico literário francês Patrick Kéchichian, convertido,
creio, em 2009, afirma com sabedoria: “Católico não é um adjetivo, mas um
substantivo. Não sou um crítico ou um escritor católico; sou crítico, escritor
e católico”. Então, é evidente que a fé católica está comigo não só quando leio
uma obra. No entanto, penso como Robert Louis Stevenson. Em um de seus ensaios, “The Morality of the Profession
of Letters”, ele diz que, na verdade, quando se trata de literatura, todos,
escritores e críticos, dispõem de uma só ferramenta: a empatia. Ele afirma que
(traduzo sem ser literal) “quando um livro é concebido sob grande tensão, com
um espírito que, graças a essa tensão, multiplicou seu poder, aqueceu e
eletrificou, por meio do esforço, a sua obra, as condições do nosso ser se veem
presas de uma iluminação tão vasta que, ainda que o conceito básico da história
seja trivial ou vulgar, não pode deixar de surgir do livro algo belo e
verdadeiro”. E concluía: “Da força nasce a doçura; mas algo ruim pobremente
executado é algo ruim do princípio ao fim”. Esses trechos resumem a maneira
como me aproximo de uma obra literária: disposto à empatia, ainda que o tema
seja, digamos, anticristão; certo de que a beleza e a verdade vencem tudo,
inclusive um tema eticamente duvidoso.
Você
considera que a literatura brasileira tenha valor verdadeiramente universal, e
que nossos escritores – os maiores, especialmente: Machado de Assis, Graciliano
Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Osman Lins – possam ser colocados,
lado a lado, com os maiores ficcionistas do cânone literário?
Temos ótimos escritores, mas nenhum pode ficar,
lado a lado, com Dante Alighieri, Tolstói, Dostoiévski, Henry James ou Joseph
Conrad. Somos um país que ainda está engatinhando. Temos um Manuel Bandeira,
cuja obra caminha, ombro a ombro, com a maioria dos poetas do século XX. E
Machado de Assis, claro. Mas nenhum deles é um desses gênios cuja leitura é
obrigatória a toda a humanidade. Um russo, por exemplo, pode passar a vida sem
ler Machado, mas não sem ler Shakespeare.
Hoje,
muitos jovens no Brasil têm saltado a formação literária para ir direto ao
estudo de outras áreas, como filosofia, ciência política e economia. A
ignorância da literatura brasileira, em específico, excetuado um Machado ou um
Bandeira, é até bem maior. O que você pensa a respeito?
Nosso sistema escolar é medíocre. Basta ver as
listas de compra de livros de ficção para escolas públicas. Ali há autores
contemporâneos brasileiros que, dentro de duas décadas, já estarão na lata de
lixo da história literária. Outros demorarão um pouco mais... Na verdade, a
escola se encarrega, hoje, de transformar os alunos em presas fáceis de
quaisquer discursos, de qualquer besteira ou mentira lida ou ouvida na
Internet, nos jornais, na tevê. O país está se desintegrando sob um populismo
rasteiro. Os jovens não são treinados para serem mestres do seu próprio
intelecto. Essa expressão, aliás, não é minha, mas da escritora Dorothy Sayers,
que no ensaio “The Lost Tools of Learning” resumiu bem, creio que na década de
1940, o problema que só se agravou até hoje. A solução defendida por Sayers,
ainda que radical, é a que recomendo a quem me pergunta como romper essa ordem
na qual o cinismo marxista tornou-se hegemônico: devemos retornar ao Trivium.
Qualquer outra saída será apenas um paliativo.
O seu
livro – assim como o que lhe seguirá – trata apenas de prosadores brasileiros.
De um modo geral, o que você tem a dizer sobre a poesia brasileira?
Como leitor, digamos, profissional, dedico-me
exclusivamente à prosa. Leio poesia, mas minha relação com esse gênero é
essencialmente amorosa. Tenho alguns poetas que aprecio – e sempre retorno a
eles. E, em suas obras, gosto às vezes de alguns poucos poemas. É o caso de
Carlos Drummond de Andrade, por exemplo. Dos brasileiros, só Bandeira tem meu
amor irrestrito.
Certa vez
Olavo de Carvalho afirmou que Bruno Tolentino era o maior poeta em língua
portuguesa desde Camões. Na sua opinião, qual o papel de Tolentino para essa
nova geração de poetas brasileiros?
Sempre que penso no Tolentino lembro-me de meu
professor de latim na PUC-SP, o brilhante padre Matheus Nogueira Garcez.
Tínhamos duas aulas por semana com ele – e sempre éramos premiados com um dito
irônico sobre os concretistas. Só percebi muitos anos depois como aqueles
comentários tinham o efeito de um conforto moral, pois ali, no templo
semioticista paulistano, em que pontificava, na pós-graduação, o próprio
Haroldo de Campos, alguém tinha coragem de ir contra o pensamento hegemônico.
Tolentino foi um dos que ousou apontar as deficiências do movimento e os males
que sua hegemonia causou. Ao mesmo tempo, a poesia de Tolentino tem o mérito de
recuperar à nossa imaginação a força, a energia das formas fixas. Temos, em
língua portuguesa, uma versificação riquíssima – basta ler o Tratado de
versificação, do Olavo Bilac –, mas que permanece, apesar dos esforços do
Tolentino, esquecida. Como disse Manuel Bandeira, “precisamos urgentemente
voltar à métrica, à rima, à sintaxe lusíada [...]. O modernismo era suportável
quando extravagância de alguns. Agora é a normalidade de toda a gente. Então
depois que reinventaram a brasilidade, a coisa tornou-se uma praga. [...]
Confesso que acho um certo sabor nos poemas dos iniciadores. Os meninos que
vieram depois é que estão caceteando”. E continuam caceteando até hoje.
A
presente geração é marcada pelo advento da Internet. Uma das consequências
dessa nova realidade é que as pessoas podem produzir literatura e publicá-la
imediatamente, em sites e blogs, sem a mediação de editores e casas de
publicação. Você vê esse cenário com bons olhos?
O cenário é irreversível. E permite, como a
própria realidade, coisas boas e ruins. A “estranha pretensão” de que falava
Ortega y Gasset, a pretensão “de ser mais que qualquer outro tempo passado;
mais ainda: por se desligar de todo o passado, não reconhecer épocas clássicas
e normativas, e ver-se a si mesmo como uma vida nova superior a todas as antigas
e irredutível a elas”, veio para ficar. O homem-massa é indestrutível. Vivemos
e viveremos sob o império dos filisteus. É o que previu Jacob Burckhardt em
suas cartas: “Um dia o mundo irá sufocar e cair sobre o estrume de seu próprio
filisteísmo”. Por isso mesmo não podemos ficar em silêncio ou agir como
vaquinhas de presépio.
Desde o ponto de vista privilegiado de jurado de um
grande prêmio literário, você diria que há boa literatura em nossa produção
recente, ou tem razão de ser a não rara impressão de que o momento é de
estagnação e mesmice?
Ontem, hoje e sempre, não só no Brasil, mas em
qualquer lugar do mundo, precisamos analisar a produção literária dos nossos
contemporâneos usando uma pinça. Posso dizer, utilizando-a de modo cirúrgico,
que, na última década, começamos a sair do beco escuro controlado pelo eterno
vanguardismo. Sim, é verdade que estamos impregnados da cultura contemporânea,
relativista, materialista, de um niilismo que chega a ser atroz. Mas
nossos escritores estão começando a criar coragem para desobedecer os
departamentos de Letras das universidades e os críticos que só valorizam
acrobacias linguísticas. Abandonar o vício de recriar constantemente um dialeto
exclusivo, que só pode ser entendido pelo escritor e meia dúzia de amigos, é
apenas o primeiro passo. Será um longo caminho até sermos curados da doença à
qual dei o nome de narratofobia. Há, no entanto, bons escritores, dispostos a
contar boas histórias, corajosos a ponto de escrever com bom humor, sem se
preocupar com discursos politicamente corretos. E há outros, em menor número,
que já percebem que boa literatura não é, necessariamente, literatura niilista;
que um bom livro não precisa falar apenas de fracasso, vileza e perversidade.
Recentemente
vieram à mídia dois casos ímpares para a cultura brasileira atual: o seu voto
polêmico no prêmio Jabuti e o projeto da Vara Criminal de Joaçaba-SC,
idealizado pelo juiz Márcio Bragaglia, que propõe a diminuição da pena dos
detentos que lerem grandes obras da literatura universal. Ambos os casos nos
proporcionaram ver expostas na grande mídia ideias até então confinadas ao
“gueto conservador”. Tanto você quanto o juiz Márcio são admiradores confessos
do pensamento de Olavo de Carvalho. Será que já podemos dizer que a
“contrarrevolução cultural”, cujas bases o filósofo preparou, está começando a
dar frutos?
As ideias de Olavo de Carvalho estão fadadas a
produzir frutos – e bons frutos. Ninguém faz tudo que o Olavo já fez – e ainda
vai fazer –, com a sinceridade de coração, com as intenções retas que o
impulsionam, para ser tratado como a figueira estéril. Ao contrário. Estamos,
assim, só no começo, nos primeiros gemidos de uma contrarrevolução cultural. É
a primeira batida de coração de um feto que não será abortado.
Está chegando o
Natal. Deixe-nos de presente a indicação de um bom livro que nos ajude a viver
o espírito natalino.
“Sangue sábio”, de Flannery O’Connor, pode nos
ajudar a compreender não apenas o mistério da Encarnação, mas, principalmente,
o da Redenção. Ou seja, compreender o sentido da existência humana e o mistério
da Graça, pois, para Flannery, e ela estava certa, “a Graça é o acontecimento
perante o qual o homem entende o seu destino, o seu verdadeiro destino”.