quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Estupro no BBB?

Rapaz, caso complicado! Duas considerações iniciais: 1) O que o sujeito (Daniel) fez foi errado; não se deve agir libidinosamente com alguém inconsciente, com ou sem penetração, usando-a como um brinquedo sexual. 2) Levantar a questão do racismo é uma tática vergonhosa - e, felizmente, ineficaz - para desviar a discussão para uma completa irrelevância; ainda mais por ele ser do tipo negro (ou mulato) bonitão, boa pinta, que gera antes simpatia do que ódio racial.

Dito isso, pensemos na situação em que o casal se encontrava: ambos bêbados (ela mais do que ele), ficaram, ela o levou para a cama, e adormeceu. Ele, que certamente já devia estar bem ouriçado, só levou o ato até o fim, da parte dele. Acho que linha seria muito clara se houvesse penetração (estou supondo que não houve, que é o mais provável), pois fazer isso com uma mulher dormindo, por mais interessada no sujeito que ela possa estar, é claramente uma violação séria, mesmo porque o corpo tem que se preparar para uma relação sexual. Mas a bolinação pode aparecer como uma área cinzenta. "Afinal, ela não tem que fazer nada, é só comigo, e ela queria mesmo, e eu estou aqui todo pilhado" - lembrem-se que quem pensa isso também já está alterado pelo álcool. Some-se a tudo isso o fato dos homens em geral não terem muita noção de como um ato desses será encarado pela mulher no dia seguinte.

E se a própria vítima dissesse: "Pois é, eu estava desacordada, mas não ligo não. Levei ele pra cama mesmo, acabei dormindo, entendo que ele tenha ido até o fim; não me importa."? Isso mudaria algo? Para alguns, o fato dela não se lembrar do ocorrido já configura estupro. Não me parece ser o mais relevante. Afinal, muita gente que fica bêbado não se lembra do que fez no dia seguinte; mas isso não quer dizer que o que tenha feito não tenha sido, em alguma medida, voluntário (voluntário o bastante para tornar uma relação "consensual"). Pois e aqueles casos em que ambos, o homem e a mulher, estão trêbados, vão para a cama, têm a relação e no dia seguinte não se lembram do que ocorreu? Se falta de memória é prova de estupro, então seria esse um caso de estupro duplo? E se a mulher se lembrar, mas o homem não, terá sido a mulher que estuprou o homem? O fato da inconsciência é que me parece ser o mais relevante. Mas é possível dar consentimento prévio, ou tácito, nesses casos? Se a própria mulher não liga, pode-se dizer que foi contra a vontade dela?

Pelo critério de certa moral feminista, qualquer passo na interação sexual tem que ser precedido de um consentimento explícito da mulher. Sem isso, presume-se estupro. Esse critério tem consequências sérias para a relação entre os sexos. Pois tradicionalmente essa relação sempre se dá SEM consentimentos explícitos; e é da essência dela que seja assim. O homem que pergunta à mulher pela qual ele se interessa "Posso te beijar?" antes de agir, ou ainda "posso botar a mão na sua cintura?" quase com certeza receberá um "Não". Pois se ele é do tipo que precisa da certeza antes de agir, se não sabe tomar riscos, não interessará à maioria das mulheres. Ou seja, a transgressão de barreiras faz parte do jogo entre os sexos. A mulher quer que ele aja sem que ele saiba se ela quer ou não. E vou mais longe: a própria decisão dela sobre se ela o quer ou não está em aberto até que o ato se consuma. Assim, um homem pode vencer as barreiras que uma mulher coloca em seu caminho, mudando a reação inicial dela que seria de rejeitá-lo; é por isso que se diz que ele a conquistou. E essa conquista se dá pelos atos, às vezes levemente contrários à vontade inicial da mulher queira impor. No fundo, ela paradoxalmente quer que ele a conquiste, isto é, que transgrida com sucesso sua vontade inicial; e só assim se renderá.

(O mesmo, aliás, vale para um casal já estabelecido. Propor o ato sexual, ali, no duro, pode destruir o clima necessário para que ele ocorra.)

Esse tipo de dinâmica abre espaço para abusos e violações? Abre. Tudo depende do contexto. Há nãos que são sim, e há nãos que são, verdadeiramente, não. É preciso saber distinguir os dois. A transgressão tem que se dar sempre num nível em que, se se perceber que a resposta da mulher é totalmente negativa, nenhum dano tenha sido feito; e isso varia a cada contexto. O jogo trabalha com feedbacks constantes de respostas não unívocas, como são na verdade a maioria dos sentimentos humanos.

Adotar o critério feminista é acabar com o jogo do romance; substituir a troca ambígua pelo contrato. Na moral não-feminista, o álcool aparece como um facilitador das relações, dando mais coragem a eles e baixando as inibições delas. Para o critério moral feminista, o álcool é apenas como uma fonte de problemas, pois dificulta ou impossibilita o consentimento pleno e claro, chegando ao limite de afirmar que qualquer mulher que tenha relações sexuais um pouco embrigada já pode se considerar vítima de estupro.

O sexo no feminismo se reduz à animalidade; por isso mesmo, arrisco, a defesa simultânea de toda bizarria sexual imaginável. O grupo se encontra, todos de comum acordo, firmam o contrato, se arregaçam, e volta cada um para seu canto. O sexo nem é precedido, e nem dá origem, a qualquer vínculo ou interação romântica tácita. Aliás, esse tipo de vínculo romântico é ele próprio visto com maus olhos, pois nele homens e mulheres desempenham papéis diferentes.

Curiosamente, certas visões de mundo altamente retrógradas, que vêm no romance nada além de pecado (nada além de bestialidade disfarçada), até se coadunam à moral feminista. Sinais trocados, mas a mesma consequência prática. Para o puro corpo e para o puro espírito, o romance não faz sentido; é uma instituição que cabe apenas a seres formados de corpo e alma.

O que disso se pode concluir do caso do BBB? Nada. Só que o debate e o inquérito todo se beneficiariam de mais bom senso e nuance. Pintar o ocorrido como uma mulher que foi, contra a sua vontade, usada sexualmente por um homem é, no mínimo, forçado. Dado o contexto, ela deu diversos sinais de consentimento; e, no mundo real, fora das salas de departamento de estudos do gênero, o que temos para nos guiar são sinais. Na hora H o cara atravessou um pouco a faixa; mas isso é muito diferente de um estupro.

PS: Tendo dito tudo isso, ainda levanto o ponto de que essa discussão nem tocou no principal problema moral da coisa toda, que engloba muito mais do que esse caso como todo o BBB e toda a cultura da qual ele faz parte: será que essa relação com o sexo e o prazer sexual como os valores superiores é a melhor para o ser humano?

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

The Errors of Ron Paul

(Written in English in the hope that foreigners might come and read)

Ron Paul, my favorite presidential candidate ever (including Brazilian elections), is making a good show on the caucuses so far. I doubt he'll get the nomination, but I'm confident he'll get enough votes to make everyone take libertarianism (understood here merely as defending a radically smaller State) seriously.

I would be lying, though, if I said I completely agree with all he says. In this article I set out what I consider to be wrong with Ron Paul. It comes down to three items.

1) Immigration: this topic has become so polarized in the US that the only opinion a Republican will get away with is a draconian plan to expatriate every single individual who entered the country illegally, even if they are settled, employed and have ties to the community for decades. Paul defends this too; but isn't that a bit too much? I won't go to the extremes of  someCatholic bishops who propose open borders or universal amnesty; this can't be done in a rich Welfare State, as it would quickly drain the system (a lot of new entrants who consume services but do not contribute taxes) and reduce everyone to poverty. Paul is right to oppose free immigration (in a free market society open borders do not pose a problem). The borders must be controlled and illegals sent back, provided they just came in, have no job, committed a crime or something on those lines. On the other hand, if a person is working and settled, if he or she has lived in the country for decades and has family and friends there, it is inhuman to expatriate them; the system must have this flexibility. Gingrich proposed this in a debate, but took so much heat that he dropped the subject. Sanity should never allow itself to be silenced like this.

2) "End the Fed". Sure, I agree, the Fed must end, provided that in its place we get a stable gold standard or completely free-market currencies. The problem is that many leftists, including politicians, love Paul's message about how the Fed is an evil conspiracy of bankers to control the economy, and agree that it should be abolished. In its place they would go back to direct government control of currency, which is much, much worse. Sure, the Fed should be transparent (which, by the way, would increase economic stability) and pursue a more conservative policy so as to avoid or at least decrease boom and bust cycles like the ones we are living through. If we can move beyond monetary policy altogether (that is, taking money out of the government's hands: either gold standard or free-market currencies), great. But if not, it is better to stay with an independent Central Bank than to give politicians direct control over monetary policy. Paul proposes the right thing; but many who endorse him have different plans in mind; and the rhetoric he uses in his public appearances (which casts the bankers in the Fed as evil conspirators) lends itself very easily to this wrong leftist anti-business and pro-government agenda.

3) His justification for bringing the troops home. Again, I agree with his policy here: much less military activity outside the US. The war in Iraq was a huge mistake; attacking Iran will be even worse. Cut back on military spending (by the way, wars are the single most effective means to government growth and fiscal deficit), let those barbarians bomb each other as much as they want; invest more on a defensive program with direct and brutal retaliation (or preemptive action if needed) in case anyone attempts an attack. Cease financial support of Israel (or at least decrease it) and Israel's enemies. I'm for the whole package, as it would hugely benefit and enrich the US, allowing it to better defend itself; militarized States always lose in the end as more and more of their production goes to this unproductive end.

My problem is again with Paul's rhetoric, which comes dangerously close to blaming the US for terrorism and Muslim antagonism. I'm sure he doesn't mean it, but it sounds almost as if he justifies America's enemies based on supposed American atrocities. Sure, the fact that kids lost brothers and fathers who were bombed or gunned by the American army probably makes them hate America, and is a good pretext for radical Muslim groups to exploit. But it can never justify their atrocious acts and it is not the root cause of their poisonous anti-Western ideology. The terrorists are evil; the responsibility for their crimes is only theirs; and these crimes are perfectly accounted for by their beliefs and (anti)values. The American military helps them indirectly by providing an easy excuse (which it should stop providing at once), but it's not the cause of their actions.

On the same note, the reason why the USA shouldn't invade Iran is not because its government is good and can be trusted; it is not and cannot. It's just that no good can come to Americans from pursuing this aggressive policy, as no good came from invading Iraq (help in dismantling Al Qaeda? Well, as Bin Laden's death showed, that can be achieved in discreeter ways), only more trouble, more Islamists, more factions, more deaths and a whole lot of monetary cost sending the government in a fiscal deficit it has never recovered from (Obama inherited it from Bush Jr. and made it even worse). Leave them as they are. These failed States are incompetent and stupid enough never to be a serious threat to American society; get out of their and the terrorists' sight and they'll quietly revert to bombing each other as they have done (and still do - most of Al Qaeda's attacks are against Muslims) for ages.

If Ron Paul could get his wording and rhetoric in shape, he would avoid giving easy shots for his opponents, especially on foreign policy.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A leitura caoticista das obras de Lúcio Cardoso e Dostoiévski

Texto anexado em forma de apêndice à monografia final escrita para uma matéria do Mestrado sobre a recepção da literatura russa no Ocidente.
______________

Nenhum russo está mais presente no Diário Completo de Lúcio Cardoso do que Dostoiévski, tanto na forma de menções explícitas quanto em, por assim dizer, espírito. Ainda que se ignore a predileção de Lúcio pelo autor de Crime e Castigo, a relação entre ambos, para quem conhece as ideias e atmosferas dostoievskianas, salta aos olhos.

            Em entrevista a Fausto Cunha, o próprio Lúcio discute a apropriação de Dostoiévski pelos escritores de sua geração, incluindo, naturalmente, ele mesmo:

“Esse homem subterrâneo, esse atormentado e de alma nua que tanto nos
horripila às vezes, é exatamente o continuador dos romances clássicos que o
século passado nos transmitiu: a época nova, inaugurada com os intermináveis
monólogos de Dostoiévski, prosseguiu através da voz precursora de alguns
filósofos até arrebentar nessa figura de hoje, que tantos escritores de
talento procuram observar e conduzir às suas peças de teatro, aos seus
romances e novelas.” (Cardoso, 1997: 761)[1]

            Se há semelhanças entre as visões de mundo desses dois autores – ambos são cristãos, ambos tendem a enfatizar o aspecto trágico da existência, ambos atribuem significativa importância ao mal no processo de depuração espiritual das almas –, é possível observar, como contrapartida natural, certa semelhança entre a recepção de suas obras.

O método literário que Dostoiévski consagrou consiste em dar voz a seus antagonistas e levar seus discursos a extremos que, por si, demonstrem onde são equivocados ou perniciosos (o exemplo mais bruto desta técnica se realiza em Notas do Subsolo). Isto, porém, nem sempre é compreendido pelo leitor, e muitas vezes se entende literalmente, como se fosse a própria voz do escritor, aquilo que ele está tentando refutar. Não é à toa a gigantesca popularidade alcançada por um autor como Dostoiévski, cujas ideias pessoais, aquelas expostas em alguns de seus propositalmente ignorados textos jornalísticos, pouco apelo teriam junto ao grande público, sobretudo contemporaneamente. Mas a força das vozes por ele criadas, tão entre si diversas quanto sedutoras, tornam Dostoiévski em autor de cabeceira dos mais contraditórios grupos, de espiritualistas a niilistas. E aquilo que teria sido sua própria opinião (peço licença para utilizar palavra tão hostilizada pela crítica literária adepta da “morte do autor”), sua aversão às mentalidades revolucionárias, seu viés tradicionalista, sua ortodoxia inexorável – dão lugar, na apreciação de alguns públicos, ao mero “caos” que está longe de ser a substância de sua obra. E este “caos” pode ser valorado positiva ou negativamente; o que aqui se chama de “leitura caoticista” é mera a incapacidade de se reconhecerem tanto intenções artísticas quanto ideológicas por trás de obras como a de Dostoiévski, marcadas pelo turbilhão e pela histeria.

            Lúcio Cardoso, dono de um “talento cruel” como o do russo, costuma sofrer a mesma incompreensão. São, de fato, dois autores cuja tragicidade literária confunde o leitor simplista, para quem o título da novela de Lúcio, A Luz no Subsolo, só pode soar paradoxal. Autores incapazes de criar seres humanos ficcionais menos reais – isto é, menos complexos, menos enviesados – do que si mesmos e do que percebem ao seu redor, são ambos excluídos do rol de homens sóbrios e bem resolvidos, como se o puro e simples caoticismo fosse sua grande bandeira; porque projetam sua luz num plano frisado pela experiência do trágico, são acusados de homens sem luz. O que é, não apenas impreciso, mas de fato equivocado.

            Sabendo que não há um só modo de empreender essa leitura (em minha compreensão) equivocada, vejamos, a breve título de exemplo, o que diz Nelson Ricardo dos Reis em sua análise comparativa das obras dos dois escritores:

Nas literaturas de Dostoiévski e Lúcio Cardoso, o pecado, o mal, o inferno e o demônio têm uma conotação positiva. Esses elementos representam a transgressão, que, na concepção religiosa desses dois autores, é uma forma de se chegar ao sagrado.[2]

            Deixando de lado o absurdo – meio teológico, meio psicológico – de, para um cristão, o pecado, o mal, o inferno e o demônio terem conotação positiva, tem-se o erro de interpretação literária: dizer que a redenção é possível mesmo para o mais decaído dos homens, como fazem Lúcio Cardoso e Dostoiévski, não implica elogio da decadência moral. Se nas obras desses autores vemos homens em profunda relação com o mal serem salvos (Timóteo, em Crônica da Casa Assassinada; Raskólnikov, em Crime e Castigo – para ficar apenas nos grandes exemplos), é que eles (os autores) acreditavam na salvação e em Deus sobre todas as coisas, principalmente em face do que é mau; já segundo a leitura invertida que críticos como Nelson Reis fazem, tais situações ocorreriam nestas obras porque seus autores criam no mal sobretudo, valorizando-o positivamente. Mas, para um cristão, o mal jamais será condição desejável, tampouco “a transgressão é uma forma de se chegar ao sagrado”. No cristianismo, a única forma de se “chegar ao sagrado”, ou, em melhores termos, de uma alma salvar-se, é arrependendo-se e negando as transgressões cometidas, em nome de Jesus Cristo. A transgressão não é necessária à salvação, ela é aquilo apesar do qual a salvação ocorre.  O mal é inerente à condição humana, e crer no bem (em Deus) mesmo em meio às maiores adversidades (na expressão de Lúcio, ver a luz no subsolo; ou ainda Dostoiévski e sua experiência na Casa dos Mortos) é o caminho da salvação. Que o mal faça parte desse processo, como elemento catalisador, como obstáculo fortificante, não o torna em protagonista nem em algo, por si, desejável. No fundo o desejo de todo cristão é ser como as crianças pastorinhas para quem a Virgem Maria fez suas aparições em Fátima: santificadas na infância, sem necessidade de qualquer queda para aprenderem sua ascensão.

            Crime e Castigo e Crônica da Casa Assassinada têm em comum o fato de neles a luz (enquanto metáfora para redenção espiritual) só aparecer nos trechos finais, sendo que todo o conteúdo precedendo esse lampejar derradeiro se compõe das mais negras tragédias e dos mais dilacerantes sofrimentos – de modo que, por vezes, a mensagem condensada no epílogo (e que seria, pode-se argumentar, o motivo maior da trama, o que realmente interessara ao autor dizer) passa despercebida. É desse modo que Raskólnikov está longe de ser, no imaginário do leitor médio, “um paciente de redenção espiritual”; ele é, antes, o frio assassino da usurária, o mentor do crime lógico, o pai do super-homem nietzschiano. Do mesmo modo, Crônica da Casa Assassinada, que nos presenteia com cenas de incesto, adultério, suicídio e toda sorte de pensamentos desfigurados antes de apontar para qualquer possibilidade de redenção, muito naturalmente é precedido, em sua edição comemorativa pela editora Civilização Brasileira, por resenha crítica em que se afirma a genialidade da obra, “exceto o capítulo final, que empobrece a trama”.

            De fato, para uma vertente dessa leitura que se pode chamar de caoticista, a riqueza de autores como Dostoiévski e Lúcio Cardoso existe em função da abertura de ambos às pulsões destrutivas da natureza humana; donde superá-las, encontrando qualquer ideal que se justifique acima de tais forças desintegradoras, resulta empobrecedor, de pouco interesse mesmo. O próprio título da resenha de Crônica da Casa Assassinada mencionada acima, “Uma gigantesca espiral colorida”, evidencia que aspecto do romance se quer enfatizar. Trata-se de um perfeito exemplo de interpretação que exalta o “caos”, não só não dando atenção, como hostilizando abertamente a tentativa do autor de arrebatar o todo do romance com uma nota agregadora, ao sugerir que se ignore o trecho final do livro.

Podemos destacar ainda, a título de exemplo de leitura caoticista, porém agora determinada por uma interpretação insuficiente mais do que por pendores ideológicos, a apreciação de Melchior de Vogüé acerca da obra de Dostoiévski. Diferente da grande maioria dos críticos caoticistas, Vogüé não se recusa a encontrar unidade em Dostoiévski; ele de fato não consegue encontrar tal unidade senão em algumas poucas obras do russo, e julga que a tendência geral deste é para a dispersão.[3]

Eis o preço pago por dois autores difíceis e no entanto muito conscientes de seus processos, os quais ao longo da vida precisaram acostumar-se à incompreensão alheia, quando não à difamação. Ambos tiveram suas vidas, bem como suas personalidades, moldadas pelos inúmeros ‘nãos’ que receberam e os quais, ao que tudo indica, só fizeram reforçar aquelas características mais peculiares e de mais difícil assimilação por seus interlocutores. Suas obras resultaram então mais complexas, o que não pode ser senão positivo: para dar o que fazer aos críticos ociosos e o que pensar aos meros leitores (entre os quais há de haver ainda os que prefiram ler as obras por inteiro, sem adaptá-las ao que se quer que signifiquem).



[1] Apud Reis (2003). "O pecado como forma de redenção: uma análise da influência da literatura de Dostoiévski sobre a obra de Lúcio Cardoso"
[2] Idem, p. 4.
[3] Para uma refutação consistente do tipo de crítica feita por Vogüé a Dostoiévski, bem como outros exemplos de críticas enfatizando o suposto caráter dispersivo ou caótico das obras do russo, cf. Victor Terras, “Dostoevsky’s detractors”: http://www.utoronto.ca/tsq/DS/06/165.shtml

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

On Being Drunk

I've never been drunk. I mean: really drunk; drunk enough to lose control over one's actions and, I imagine, not remember them next morning. But I sure got close to it these vacations.

The setting couldn't be more prosaic. Sitting next to my wife on the back porch of her father's country house, browsing the web, looking at the beautiful garden and swimming pool, sipping from a caipirinha. But I drank too fast. When I had just finished mine, I noticed my wife's was almost full. The alcohol hadn't set in yet, so I ordered a second one. And then, before it arrived, my wife left me for some minutes to talk to her step-mother, and I felt the kick.

I'm not unused to drinking, and I can hold my own pretty well. I habitually drink a lot of beer, to little or no effect. I'm used to downing two or three tequila shots at one time. And I also regularly drink cachaça pure, especially when on vacation here. Perhaps it was my empty stomach; perhaps the maid masked the unusually high alcohol content with extra sugar; whatever it was, that single caipirinha took me where heavier doses, even on my bachelor's party, never had.

My distinct feeling was of being inside a submarine in my own body; a disconnection, a lag, between my mental states and my voluntary bodily movements plus sensory input. Every external action took a bit longer, and required a greater degree of conscious mental exertion, than usual. Now, I've been a little high in the past; actually, whenever I drink even a little wine I get to state in which I need a little more attention and concentration to do physical tasks. If I have to drive, I drive more slowly, conscious of the handicap. With that caipirinha, that experience was taken to a deeper level. A level in which simple things such as walking or talking required slow deliberation; in which the mind, though functioning quickly as usual, is also less rigorous, entertaining thoughts and finding renewed interest in things my conscious self would never indulge.

Why hadn't I ever got myself drunk in the past? In a nutshell: when I was old enough to feel comfortable doing it, I also believed it would be wrong. Yes, getting oneself drunk on purpose is, according to Catholic moral theology, a mortal sin. It is exchanging reason, man's higher faculty and what distinguishes him from animals, for a bestial dissipation in the pleasure of the senses. I always understood that, and even agreed with it, but I had never actually experienced it, or got so near to experiencing it, as with that innocent caipirinha.

I did not go the whole way. My conscious mind, even though requiring extreme concentration and exerting itself to the height of its power, was still in control. As proof of it, I decided to write a post for Dicta&Contradicta, and had the prudence to save it for later instead of having it published immediately; reason was still in charge. I got myself a bag of Ruffles to counter the ethylic effect with a dose of carbohydrates; and when the second caipirinha came, I decided to test my limits and see how far I could go.

I'm there now. Speaking comes difficultly. I would be very ashamed of trampling over my voice, so I speak with extra care. When my hands touch, I feel one at a time, as if each is, by its turn, touching a strange object.  Typing is unexpectedly easy, though with a higher degree of typos, which I'm still able to correct; I've even bothered to put the word caipirinha in itallics.

The line of complete unreason has not been crossed. And what have I learned? It's like peeping into the abyss. I feel what it would be like to let go of reason entirely, to lose myself in a mix of irrational passion and loose instinct; and I don't like it. Catholic orthodoxy has been vindicated by my near drunkeness. Who could forsake their humanity for the mindless abyss on whose edge I stand right now?

Perhaps someone who's trying to run away from something or himself. It's not a good place to be. Being near to the pit has had its effects. Why would I write in English rather than Portuguese? Alcohol is having its say and its pull too; and its speech has been shaped by Hollywood. I'm quite sure there'll be plenty to regret when I read this in a more sober state of mind; little corrections will be made - have been made - here and there. It will still, however, be a testimony of how, in this lazy vacation afternoon, when I could let myself go at almost no cost, I didn't. Reason won, however impaired it might be.

It's lunch time. My wife and mother-in-law await me. They probably won't suspect anything (well, I did tell my wife about my present condition and this blog post, but she doesn't know all the details yet). But you and I know the war just waged. The submarine rises and off I go. Let this drunken post be a monument to the power of human reason.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Feliz Ano Novo

No texto passado falei do Natal, festa cheia de significados, tanto religioso como laico, que corre o risco de se esvaziar. Já o Ano Novo é uma festa, a primeira vista, sem significado; a celebração pela celebração, com uma data arbitrária pra servir de pretexto. Cumpre que encontremos seu significado, se é que ele existe.

O que comemoramos duas noites atrás? A passagem do ano. O tempo que continua passando como sempre passa. Ou seja: a volta da Terra a um ponto arbitrariamente escolhido em sua órbita do Sol. O Ano Novo, aliás, nem sempre foi em 1 de janeiro. Na Inglaterra e colônias era celebrado, até meados do século XVIII, em 25 de março.

Talvez o melhor símbolo da festa sejam os fogos de artifício: uma beleza exuberante, brilhante, que dura poucos segundos e se apaga, como a alegria fugaz das pessoas a festejar a passagem de um dia e a determinação igualmente ilusória de grande mudanças para o ano que se inicia.

Ou estarei talvez sendo cínico demais? Pois imaginemos um mundo sem Ano Novo. Um mundo em que fosse mês após mês após mês, sem nunca fechar um ciclo maior. Ou ainda semana após semana, ou dia após dia. Estamos no dia 734017 d.C. (valor aproximado), amanhã será o dia 734018 d.C., e continuamos assim, sem respiro, sem nenhum horizonte de prazo mais longo para descansar a vista. Um pouquinho opressivo, não é?

O tempo é linear, mas o homem precisa que essa linha seja composta de ciclos que dêem à sua vida rotinas, prazos e metas, como cenouras à frente dos cavalos para que eles sigam sempre em frente. Felizmente, calhou de que o ciclo de translação da Terra ocorra num período bem adequado à vida humana: longo o bastante para que nos permita fazer planos e não se banalize, mas não longo demais, que nos levaria ao desespero. Providência? Evolução? Ambos, talvez. O fato é que o homem, que é o que há de mais valioso no universo, demanda marcos de passagem, e que o ano constitui, por sua natureza, uma unidade muito importante na vida humana, devido aos ciclos sazonais. Sim, o ponto que escolhemos é arbitrário, mas o ciclo que ele celebra não é. Sendo assim, o Ano Novo é uma celebração da humanidade, ou melhor, do que a humanidade poderia ser; e daí os propósitos de fim-de-ano.

Comemoremos, então o Ano Novo, e que nossos desejos de melhora para esse novo ciclo não tenham duração tão curta quanto os fogos de artifício e o gás da champanhe.

Feliz 2012 a todos! E que nosso blog não morra de overdose de champanhe!


PS: Paulinho, aguardamos ansiosos! ;)
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