Todo conservador
Conserva a dor.
A dor do pobre.
A dor do negro.
A dor do índio.
A dor da mulher.
A dor do palestino.
Chega de conservar dor!
Agora eu quero ver
Todo mundo ser
Conservamor
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segunda-feira, 29 de julho de 2013
terça-feira, 26 de fevereiro de 2013
Um momento de lucidez
Postado por
Joel Pinheiro
Cheguei a isto. Depois das promessas e garantias que tudo ia
bem – a quem eu estava enganando? Não ia bem. Não vou bem. Passei a noite em
claro; a anterior também. Não lembro do último sono bom que tive. Isto é, sem a
ajuda desses remédios para dormir e para acordar e para sorrir e para olhar nos
olhos de quem me odeia. Joguei-os todos fora. Escrevo com a cabeça limpa e
os olhos claros. Não, não estou escolhendo a morte. Escolho não mais usar o que
me deixava desse jeito, viva (viva?) mas sem a única coisa que importa na vida.
De que vale um sorriso sem a chama interior? De que vale dormir sem o sonho?
Passei anos sem conseguir juntar um verso. Agora, finalmente, posso criar.
Juro que pensei que seria diferente. Acreditei no sonho da poesia, que é na verdade a negação da poesia. Não conhecia a hipocrisia, os cochichos,
os convites que não chegavam a mim. Tudo por quê? Porque não sou como eles?
Como vocês? Não escrevo movida pelo ódio. Digo sem medo que não vos odeio;
quero apenas alertá-los. Julgávamos ser a nata de uma nova elite cultural e
intelectual do mundo, quando na verdade reciclávamos vaidades. O que descobri nos
últimos meses é o quanto mesmo nossos supostos momentos de honestidade eram vaidade. Não sou a primeira a dizê-lo: vanitas vanitatum, et omnia vanitas.
De que me valeram as láureas? Dos mesmos pares
que hoje fingem que não me veem e se afastam de mim nos jantares nos quais eu
ainda apareço? Hic transit gloria mundi. Sendo sincera, mesmo naqueles dias em que tudo parecia ir bem, em que eu me sentia
no topo do mundo; não, em que eu queria
me sentir no topo do mundo. Em que eu me sentia
na obrigação de me sentir no topo do mundo. Mesmo naqueles dias, um vazio
crescia dentro de mim. Talvez por causa daqueles dias. Um vazio que ainda
cresce e que esta noite terá sua chance de dizer a que veio.
Tudo o que importa é o que não conseguimos dizer. Minha vida
não vale nada se eu não expressar a verdade que há em mim; e só me interessa o
inexpressível. Aquilo que podemos apontar sem nunca se apossar. A coisa, e não
o conceito. Se há esperança de se chegar a ela, não é pela tagarelice
dos intelectuais e filósofos; o que vale a pena ser dito é aquilo que só a
poesia – e possivelmente nem a poesia – possa dizer. Ansiei, em vida, em dar voz
a essa verdade, que está além das citações e das referências e da erudição; roupagens que escondem um rei nu.
Deixo minha afeição nestes últimos momentos a todos os meus
amigos e ex-amigos; vou sem mágoas, ciente de que escolho a única redenção que me
é possível. Queria poder prometer-lhes a afeição eterna, mas não acredito nela.
Não digo, vejam, não digo nem mesmo que a vida eterna seja uma quimera, uma
impossibilidade. Digo que ela pode existir. Digo que ela tem que existir e indubitavelmente existe para certas pessoas. Mas a
mim cabe a finitude – a eternidade me é impossível, pois é só perante o vazio
que me vêm os poucos momentos de lucidez. Não os trocaria pela sopa de lentilhas de uma vida eterna. Ainda que me lançassem ao inferno, valeria a pena: tudo que me interessa
está neste instante de passagem do ser ao nada.
Há verdades – nisso eu acredito – que só se expressam in extremis. Que só se podem colocar em
palavras nas experiências limítrofes entre ser e não-ser. No arrebatamento do amor quando carne se funde em
carne. Bem sei o quanto eu o desperdicei, e também como essa possibilidade me é
negada, agora, em definitivo. Jean, se você ler isto, e sei que lerá, saiba que
o buraco negro que me suga por dentro começou com a ferida por você deixada.
Tampouco o culpo; o vácuo interior já estava lá, e você só fez um pequeno rasgo na membrana
que o separava do vácuo exterior. Em verdade, agradeço-te. O vento que me entala a garganta sussurra o seu nome.
Sem mais delongas. É hora da decisão da qual não pode haver
arrependimento e nem perdão. Meus pés já sentem o vento gelado do abismo. Há coisas que só se revelam no limiar da morte. Repito que não estou escolhendo a morte; escolho o momento de clareza que ela proporciona. Que em minha queda final, o
último grito revele o sopro de vida que a vida sufocou. A Deus (sive Natura)
entrego minha alma; aos homens, meu último - meu único - lampejo de luz em meio à noite que a tudo engolirá.
K.
***
[nota do editor: K. foi encontrada morta em sua escrivaninha,
com ambos os pulsos cortados. Em uma página separada, ao lado da carta copiada acima, estava seu último poema, escrito a pena com o sangue do pulso
esquerdo, que segue reproduzido abaixo.]
***
Chorando se foi quem um dia só me fez chorar;
Chorando se foi quem um dia só me fez chorar.
Chorando estará, ao lembrar de um amor
Que um dia não soube cuidar.
A recordação vai estar com ele aonde for;
A recordação vai estar pra sempre aonde eu for.
Dança, sol e mar, guardarei no olhar
O amor faz perder encontrar
Lambando estarei ao lembrar que este amor
Por um dia um instante foi rei.
Canção, riso e dor, melodia de amor,
Um momento que fica no ar.
Ai, ai, ai
Dançando lambada
sábado, 1 de outubro de 2011
Acepipes de Amor
Postado por
Joel Pinheiro
Para entender este post, é essencial, é fundamental, que vocês leiam, ou melhor, sorvam e deleitem-se com este texto sobre as pequenas gentilezas do amor. Leiam mesmo, do início ao fim, sem pular nenhuma palavra. Aproveitem para dar uma passada de olho pelos comentários. Recomendo ainda que naveguem um pouco pelo resto do blog. Só então, quando estiverem 100% imbuídos desse espírito doce e delicado qual sorbet de mamão (a pedra de toque é ser capaz de dizer, como o autor, com toda a sinceridade: "Ontem à noite fui buscar água e a geladeira vazia me lembrou que hoje é dia de mercado. Desde pequeno adoro dia de mercado.[fim do post]"), aí sim voltem para cá; estarão aptos a compreender meu gesto.
Pois vejam, hoje, sábado de manhã, eu também levantei mais cedo que minha esposa, e tinha vontade de comer mamão. Digo, mamão papaia, o gostosinho, e não aquele grandão que se serve cortado em lanche de criança. Intuí que minha alma gêmea, ao acordar, também ia querer se deliciar com essa dádiva. Resolvi então preparar-lhe uma surpresa. Fui à cozinha a passos cuidadosos, na ponta dos pés, para que nenhum barulho a despertasse de seu descanso merecido depois de uma semana intensa de trabalho. Na geladeira havia duas metades de dois papaias diferentes, o que não é incomum em casa: às vezes eu corto um papaia novo sem checar se há uma metade mais velha guardada. Caberia a mim, portanto, surpreender minha esposinha com uma dessas duas. Eu poderia, é verdade, dar-lhe ambas, e era o que eu faria, até que pensei: "Mas se eu der tudo para ela, ela vai ficar triste, pois eu terei ficado sem, e ela fará questão que partilhemos juntos dessa alegria". Decidi que uma das metades tinha que ser minha.
Só então reparei a enorme disparidade entre elas.
A primeira era perfeita. A casca amarela na medida certa, imaculada; a carne vermelho claro, nem muito dura nem muito mole, e no meio sementinhas pretas reluzentes, saudáveis. Prometia a doçura acolhedora que só um bom papaia oferece. Inigualável.
A segunda estava em avançada podridão. A casca preta e carcomida, a carne mole, sem consistência, cheia de veios fibrosos; manchas escuras e até brancas poluíam a borda. Umas partes estavam ressecadas; outras, pastosas. Sementes esbranquiçadas boiavam na gosma; essa fruta claramente tinha apodrecido antes mesmo de amadurecer.
Com todo cuidado tirei as duas metades da geladeira e coloquei cada uma em um pratinho com uma colherzinha de prata do enxoval do casamento. A primeira dava água na boca e me fazia sonhar com um mundo mais doce. A segunda, se a olhasse fixamente, pequenas ânsias de vômito. Fiquei ali alguns segundos, fitando-as. O que fazer?
Não tive dúvidas: tasquei a colher na metade boa e a devorei! De papaia podre quero distância! Joguei a casca no lixo, não sem antes abrir espaço no fundo do saco e depois recobri-la com umas latinhas e uma caixa de leite velha, para não acontecer que minha mulher, ao jogar algo fora, visse a casca e concluísse que a melhor parte ficara pra mim.
Escondidas as evidências, voltei cuidadosamente para o quarto com o outro pratinho, e me posicionei ao lado daquele anjo a dormir pacificamente. Sem que ela acordasse, revolvi um pouco o papaia com a colher, soltando da casca aquela carne já pastosa e aquelas sementinhas subdesenvolvidas. Soltinho assim é que é bom.
Estiquei, então, o prato por cima da cabeça dela e o virei aos poucos, derramando a papa em seus lindos e longos cabelos louros enquanto espalhava tudo com a colher para que nenhum fio saísse ileso. Sabem aquele cheirinho meio acre do fundo do papaia? Estava bem forte; lembrava xurume.
Conforme eu mexia, o rosto angelical esboçou alguns movimentos. Saltei prontamente para o outro lado do quarto e fiquei do lado do armário, de um jeito que ela não me visse, espiando sorrateiramente; me senti um verdadeiro menino do primário no meio de uma travessura! Ainda de olhos fechados, meio-acordada, ela levou a mão à cabeça, mas ao passar os dedos pela minha surpresa levantou de sopetão. Enquanto corria as mãos pela gosma, sentiu o cheiro penetrar-lhe as narinas, e um fio de aguinha rosa escorreu-lhe pelo rosto. Do fundo das cordas vocais soltou um berro que me assustou. Mais gotas escorriam testa abaixo e ela viu um pouco do papaia grudado em seus dedos; o rosto e se contraiu numa feição nada atraente. "O QUE É ISSO??", berrou mais uma vez e desatou num choro solto. Não havia raiva, apenas o mais puro desconsolo, em sua voz. Ela se virava para os lados, olhava para o travesseiro, chegou até a puxar os cabelos. O total abandono daquele pranto, sem receio e sem vergonha, era em parte causado, tenho certeza, por ela não poder lavar o cabelo, pois ira ao cabelereiro na noite de sexta fazer um corte e um penteado especial, todo emperiquitado. É que hoje à noite teríamos o casamento da melhor amiga dela, no qual ela seria madrinha. Veio-lhe uma falta de ar, e ficou ali, um anjinho de cabeça suja soluçando no mais absoluto desamparo, e agora já uns pedacinhos do papaia caíam de seus cabelos na camisola e no edredom.
Vendo aquela cena patética, em que várias circunstâncias inesperadas tinham se encaixado para produzir uma tragédia singular, tentei me segurar ao máximo, mas não resisti: denunciei meu esconderijo. Existe jeito melhor de começar o fim-de-semana do que com uma longa e deliciosa gargalhada?
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