Pois vejam, hoje, sábado de manhã, eu também levantei mais cedo que minha esposa, e tinha vontade de comer mamão. Digo, mamão papaia, o gostosinho, e não aquele grandão que se serve cortado em lanche de criança. Intuí que minha alma gêmea, ao acordar, também ia querer se deliciar com essa dádiva. Resolvi então preparar-lhe uma surpresa. Fui à cozinha a passos cuidadosos, na ponta dos pés, para que nenhum barulho a despertasse de seu descanso merecido depois de uma semana intensa de trabalho. Na geladeira havia duas metades de dois papaias diferentes, o que não é incomum em casa: às vezes eu corto um papaia novo sem checar se há uma metade mais velha guardada. Caberia a mim, portanto, surpreender minha esposinha com uma dessas duas. Eu poderia, é verdade, dar-lhe ambas, e era o que eu faria, até que pensei: "Mas se eu der tudo para ela, ela vai ficar triste, pois eu terei ficado sem, e ela fará questão que partilhemos juntos dessa alegria". Decidi que uma das metades tinha que ser minha.
Só então reparei a enorme disparidade entre elas.
A primeira era perfeita. A casca amarela na medida certa, imaculada; a carne vermelho claro, nem muito dura nem muito mole, e no meio sementinhas pretas reluzentes, saudáveis. Prometia a doçura acolhedora que só um bom papaia oferece. Inigualável.
A segunda estava em avançada podridão. A casca preta e carcomida, a carne mole, sem consistência, cheia de veios fibrosos; manchas escuras e até brancas poluíam a borda. Umas partes estavam ressecadas; outras, pastosas. Sementes esbranquiçadas boiavam na gosma; essa fruta claramente tinha apodrecido antes mesmo de amadurecer.
Com todo cuidado tirei as duas metades da geladeira e coloquei cada uma em um pratinho com uma colherzinha de prata do enxoval do casamento. A primeira dava água na boca e me fazia sonhar com um mundo mais doce. A segunda, se a olhasse fixamente, pequenas ânsias de vômito. Fiquei ali alguns segundos, fitando-as. O que fazer?
Não tive dúvidas: tasquei a colher na metade boa e a devorei! De papaia podre quero distância! Joguei a casca no lixo, não sem antes abrir espaço no fundo do saco e depois recobri-la com umas latinhas e uma caixa de leite velha, para não acontecer que minha mulher, ao jogar algo fora, visse a casca e concluísse que a melhor parte ficara pra mim.
Escondidas as evidências, voltei cuidadosamente para o quarto com o outro pratinho, e me posicionei ao lado daquele anjo a dormir pacificamente. Sem que ela acordasse, revolvi um pouco o papaia com a colher, soltando da casca aquela carne já pastosa e aquelas sementinhas subdesenvolvidas. Soltinho assim é que é bom.
Estiquei, então, o prato por cima da cabeça dela e o virei aos poucos, derramando a papa em seus lindos e longos cabelos louros enquanto espalhava tudo com a colher para que nenhum fio saísse ileso. Sabem aquele cheirinho meio acre do fundo do papaia? Estava bem forte; lembrava xurume.
Conforme eu mexia, o rosto angelical esboçou alguns movimentos. Saltei prontamente para o outro lado do quarto e fiquei do lado do armário, de um jeito que ela não me visse, espiando sorrateiramente; me senti um verdadeiro menino do primário no meio de uma travessura! Ainda de olhos fechados, meio-acordada, ela levou a mão à cabeça, mas ao passar os dedos pela minha surpresa levantou de sopetão. Enquanto corria as mãos pela gosma, sentiu o cheiro penetrar-lhe as narinas, e um fio de aguinha rosa escorreu-lhe pelo rosto. Do fundo das cordas vocais soltou um berro que me assustou. Mais gotas escorriam testa abaixo e ela viu um pouco do papaia grudado em seus dedos; o rosto e se contraiu numa feição nada atraente. "O QUE É ISSO??", berrou mais uma vez e desatou num choro solto. Não havia raiva, apenas o mais puro desconsolo, em sua voz. Ela se virava para os lados, olhava para o travesseiro, chegou até a puxar os cabelos. O total abandono daquele pranto, sem receio e sem vergonha, era em parte causado, tenho certeza, por ela não poder lavar o cabelo, pois ira ao cabelereiro na noite de sexta fazer um corte e um penteado especial, todo emperiquitado. É que hoje à noite teríamos o casamento da melhor amiga dela, no qual ela seria madrinha. Veio-lhe uma falta de ar, e ficou ali, um anjinho de cabeça suja soluçando no mais absoluto desamparo, e agora já uns pedacinhos do papaia caíam de seus cabelos na camisola e no edredom.
Vendo aquela cena patética, em que várias circunstâncias inesperadas tinham se encaixado para produzir uma tragédia singular, tentei me segurar ao máximo, mas não resisti: denunciei meu esconderijo. Existe jeito melhor de começar o fim-de-semana do que com uma longa e deliciosa gargalhada?