terça-feira, 28 de maio de 2013

Considerações sobre o veganismo

Por que não sou vegano?

A pergunta não é tão fácil de ser ignorada, ó leitores hedonistas. "Gosto mesmo é de um bom churrasco!" - Eu também gosto, mas você gosta tanto de um bom churrasco que está disposto a matar vários animais de forma excruciante, fazendo com que seus últimos momentos de vida sejam de dor e desespero? Se você, como eu, não é vegano, sua resposta já é sim.

Ao contrário do que alguns pensam, o veganismo não depende de se denunciar o "especismo". Não depende de considerarmos que homens e animais têm o mesmo valor. Imagine um bombeiro que, num prédio em chamas, prefira salvar dois ratos a salvar uma criança. Seria monstruoso; e um vegano pode afirmá-lo sem problemas. Ele pode reconhecer que o homem é, em alguma instância, superior aos outros animais e, mesmo assim, julgar que essa superioridade não é tal que justifique escravizar e matá-los apenas para proporcionar-lhe um prazer gustativo e um conforto maior na vida.

Hoje em dia, com a tecnologia que temos, matar animais - para comer, para se vestir e para quase qualquer outro fim - é uma escolha conveniente, e não uma necessidade. É possível viver sem escravizá-los e matá-los: com um pouco menos prazer e conforto, mas nada de outro mundo. Talvez seja impossível zerar completamente o dano direto causado a animais? Talvez. Mas dá para diminuí-lo muito, e isso não seria já um objetivo salutar?

Parece-me, contudo, que mesmo esse veganismo mais razoável leva, ele também, a conclusões práticas nada razoáveis. E portanto deve haver algo de errado com ele, ainda que não saibamos mostrar bem o quê. 

Se diminuir o sofrimento animal deva ser um fim relevante para nós, então não podemos ficar indiferentes ao sofrimento que não é causado por nós. Voltemos à comparação com seres humanos: o sofrimento de uma criança é algo que devemos tentar diminuir, sem considerar se ele é causado por homens ou se vem de alguma causa não-humana. Claro, devemos ter como princípio jamais causar voluntariamente sofrimento sério a uma criança. Mas se uma criança sofre por uma causa não-humana - digamos, malária - isso é também algo que devemos investir recursos para sanar. Com os animais vale a mesma coisa: se devemos nos preocupar com o sofrimento animal, então nos interessará diminuir não apenas o sofrimento que causamos a eles mas também, na medida do possível, o sofrimento oriundo de outras causas.

Sabemos que a vida "no meio natural" é marcada por sofrimentos imensos e recorrentes. A vida do leão na savana depende da morte do filhote de zebra. E se o sofrimento animal nos diz respeito, então o sofrimento desse filhote de zebra nos diz respeito. Cabe a nós impedi-lo, salvar o tal filhote da morte dolorosa.

Mas e a fome do leão? Deixar alguém morrer de fome também não é muito ético. Como conciliar essas duas necessidades incompatíveis? Uma ideia é permitir a morte da zebrinha, mas torná-la indolor por meio de anestésicos. Outra é alimentar os leões com carne sintética. "Pera aí cara, você já está indo longe demais!" Não estou não; existem utilitaristas não-especistas que defendem exatamente isso: intervenção no meio natural para minimizar o sofrimento que nele ocorre. E essa conclusão prática me parece absurda.

O fato de haver sofrimento humano ainda não sanado, e de, tudo mais constante, o homem ser mais importante do que os outros animais, não impede que essa mesma conclusão prática seja alcançada. Pelo simples motivo de que, havendo alguma comensurabilidade entre bem-estar humano e animal (e no início aceitamos basicamente isso ao dizer que um pequeno desprazer humano não justifica um enorme sofrimento animal), conclui-se que pode haver sofrimentos animais intensos o bastante para justificar que tomem nossa prioridade, mesmo com sofrimentos humanos ocorrendo paralelamente.

Até agora estive supondo que temos alguma obrigação de sanar o sofrimento alheio. Talvez se essa premissa cair, a conclusão absurda não se siga (continuará sendo meritório sanar o sofrimento alheio; mas não obrigatório - assim como é meritório ajudar uma abelha que perdeu o rumo dentro de casa, mas ninguém diria que é uma obrigação nossa zelar pelo bem-estar das abelhas). Mas me parece que abrir mão dessa premissa é adotar um egoísmo muito grande. Não temos obrigação nenhuma para com os sofredores do mundo? Acredito que devamos sim ajudá-los, e que negligenciar isso seria errado (o que não quer dizer que algum deles tenha direito sobre nossos recursos e nosso tempo). Já negligenciar o sofrimento animal natural não me parece errado (exceto talvez em casos muito específicos e de muita proximidade). Se for, segue-se a conclusão acima apontada.

Como mencionei antes, se nosso foco for o direito e não a minimização do sofrimento, a coisa muda um pouco de figura. Se o importante for preservar direitos dos animais, então que eles sofram por causas não-humanas é um problema mas não necessariamente exige solução nossa. Do nosso ponto de vista, o importante é não violar o direito deles. Se um homem é atacado por um leão, isso é uma tragédia, mas seu direito à vida não foi violado, como seria se ele fosse atacado por outro homem. 

O problema é que falar em direitos exige que se fale também na defesa do direito; inclusive no direito de se defender um direito com violência. No fundo, afirmar que alguém "tem direito a X" implica afirmar que essa pessoa tem direito de usar a violência para garantir seu X se alguém tente tirá-lo dela. Então se aceitamos que animais têm direito à vida, por exemplo, teremos que concluir que um homem que viole esse direito é um assassino e que, para evitar esse assassinato, é lícito usar violência contra ele; mesmo que a violência seja letal. Novamente, chegamos a uma conclusão que considero absurda: é lícito matar um homem que esteja prestes a agredir um animal (o funcionário de um abatedouro, ou alguém que veja e pise numa formiga?).

A ordem natural das coisas

Uma objeção às considerações acima seria a de que não dei devido peso ao valor da ordem natural, do equilíbrio dos ecossistemas que vigora em diferentes partes. O bem da natureza não é apenas o bem-estar de seus indivíduos constitutivos, mas também a saúde do todo, do sistema de interdependências que eles compõem. Assim, o veganismo não depende de tratar os bichos como indivíduos dotados de direitos, mas sim da percepção de que o mundo natural tem um valor intrínseco.

O problema dessa visão é que, desde Darwin, sabemos que a natureza não opera num equilíbrio. O que, para um observador casual, parece ser um ecossistema estático, é na verdade um curto período de um processo de mudanças ininterruptas. 99% das espécies de seres vivos que um dia existiram já se extinguiram, e apenas uma minúscula parcela dessas extinções se deu por mãos humanas. A natureza está sempre mudando.

Além disso, o homem é parte da natureza (um vegano aliás tenderá a afirmar isso com mais afinco do que um cristão). As alterações que ele causa no meio natural são também parte da natureza. A cidade humana é um ecossistema da mesma forma que a selva virgem. Por que a fauna de homens, ratos, baratas, formigas, pardais e pombas seria menos valiosa do que aquela de onças, antas e araras?

O único critério para se fazer um juízo de valor desses é o próprio homem. Para o homem, não é bom que as selvas sejam todas destruídas, ou que todo o planeta seja convertido em pastagens e parques industriais, e que o ar seja inundado de gás carbônico e fuligem. Já para os ratos, isso seria muito bom. E sendo o critério o bem do homem, a conclusão vegana não se segue. Pois para esse critério, toda vez que um bem humano puder advir de um mal para algum animal, não haverá problema em se perseguir esse bem e causar, portanto, o mal animal.

Por que não sou vegano mesmo?

Ah sim, voltando ao tópico. Pelas razões aludidas acima, ou seja, pelas conclusões práticas absurdas ou ao menos muito contraintuitivas do veganismo (ou melhor, dos possíveis embasamentos do veganismo), penso que há um problema de princípio nelas. E esse problema está exatamente em afirmar uma comensurabilidade entre sofrimentos animais e humanos; afirmação que parece razoável, mas que leva a consequências não razoáveis.

Afirmo sem problema a superioridade humana, pois somos capazes de alcançar bens inacessíveis aos animais. Aliás, enquanto agentes racionais, somos a origem dos juízos de valor no cosmos. Mesmo um pequeno bem nosso (ex: maior prazer gustativo) pode justificar um mau muito grande (ex: morte dolorosa) causado a muitos animais (parece horrível quando dito, não? Mas nossa vida, da alimentação às pesquisas científicas, depende dela; saiba o que você está defendendo). O sofrimento animal deve ser absolutamente evitado apenas quando ele não tem nenhuma contrapartida boa humana (por exemplo, no caso da crueldade: o prazer em fazer o animal sofrer - aqui, diferentemente do prazer de se comer, a satisfação vem da própria dor causada; é um desejo irracional).

Outro suporte do meu não-veganismo é a suspeita de que antropomorfizamos demais a psicologia animal. A bem da verdade, antropomorfizamos até mesmo objetos inanimados e plantas. Com os animais é ainda mais forte. Duvido da ideia de que existe na mente deles uma narrativa da própria vida, mais ou menos como a nossa, na qual sofrimentos e medo da morte apareçam como questões cruciais e terríveis. Eles não são pessoas nesse sentido. São uma sucessão de estados subjetivos - informados por uma memória, é verdade; não se trata de uma pura sucessão de sensações desconexas - sem grandes preocupações ou pensamentos sobre o que não é presente ou que é atualmente desejado ou temido.

Vejo meu gato. Ele me adora; dou carinho nele rotineiramente. Ele vem se esfregar em mim, ou mesmo deitar em mim, sempre. Mas quando ele está num lugar onde não deve (na cadeira onde quero sentar, por exemplo), enxoto-o com um empurrão e uma voz brava, e ele sai. Nem por isso nossa relação sai prejudicada, e nem há nele qualquer ressentimento ou ressabio com relação a mim. Sou sua autoridade; mando nele e posso machucá-lo, mas também posso fazer-lhe se sentir bem e dar-lhe uma ração úmida que ele pede toda noite. Não há expectativa alguma de "tratamento humano", e ele é feliz assim.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Eu sou o tolerante e você o preconceituoso




Pessoas fracas não gostam da sinceridade como virtude política. Os fracos preferem cultuar o que têm de melhor: sua fraqueza. Os fracos não são os famintos, os marginalizados, os economicamente miseráveis, os tantos que a roda da fortuna faz questão de castigar. Os fracos são, exclusivamente, aqueles cuja condição de vítima é adotada como procedimento normativo, como a única posição política aceitável e necessária – ou mesmo desejável – na construção de um igualitário mundo melhor; por esta razão, os fracos também são extremamente arrogantes e, acima de tudo, como veremos, expressam um tipo perigoso de egoísmo

Muito provavelmente este seja um princípio da natureza humana: ninguém gosta de conflitos. Diria um tal filósofo aí que o fim da história coincidirá com fim da guerra; não à toa que a expressão "viveremos felizes para sempre" marca o fim de todos os contos de fadas. Não há uma única alma que não almeje, em última instância, a felicidade. Tentar realizar plenamente aquilo que se é: eis uma constante da nossa condição no mundo. Com efeito, o problema consiste, justamente, no fato de que nós co-existimos, ou seja, no fato de que os nossos interesses são divergentes; na maioria das vezes, contraditórios e, ipso facto, os conflitos inevitáveis. No limite, essa é a insuperável definição de bellum omnium contra omnes. Portanto, as reflexões políticas são, em última instância, tentativas falíveis de mediar essa paradoxal realidade humana, enquanto que as reflexões éticas são tentativas, igualmente falíveis, de mediar essa realidade na paradoxal relação de um homem consigo mesmo. 

Contrariando as mais sofisticadas teorias sociológicas e antropológicas criadas na época em que a Terra ainda se apoiava no casco de uma tartaruga, recentemente um garoto de 16 anos confessou as razões pelas quais ele teria entrado para o mundo do crime: "um dia pedi um tênis de R$ 400 para minha mãe e ela disse que não podia comprar. Via muita gente com moto nova, roupa boa. Perguntei, por que eu não posso? Decidi traficar". A lógica do "pequeno" é reveladora: "ele tem o que eu não tenho! E por que eu não tenho? Ora, porque ele tem! Eu quero, então eu decido que eu posso". Embora os intelectuais, piamente deterministas, enfatizam que jovens entram para o mundo do crime porque "foram privados de políticas de atendimento de saúde, educação, moradia e até de reconhecimento pela sociedade" e acham "no tráfico, isto é, no crime essa oportunidade de se destacarem".

Contudo, o que sustenta esse tipo de justificativa é basicamente o seguinte argumento: "sou infeliz porque fulano é feliz"; "sou pobre por que fulano é rico"; "sou fracassado por que o outro é realizado", "minha desgraça é de responsabilidade deles" etc. E o problema emerge quando toda complexidade dos conflitos políticos é reduzida a esse teorema de regras simplórias, fruto imediato da crença na bondade natural do ser humano, afinal quem faz sempre o mal é a sociedade, o capitalismo, o sistema, a Igreja Católica etc. Não obstante a ordem política derivar, na verdade, do reconhecimento e da experiência do homem ao tomar consciência de seus próprios conflitos internos e limites. A maturidade tem um preço elevado.

Na medida em que a nossa experiência interior deduz de forma imediata e ingênua que a nossa própria interioridade caracteriza-se como o único parâmetro aceitável de uma espécie de representação natural e suprema da cidade ideal constantemente ameaçada por saqueadores (metáfora para tudo o que ameça a estabilidade do imaginário de alguém), a realidade da ordem política é assaltada pela desordem dessa infantil vida interior -- "espero que todos sejam tão bons para mim quanto eu sou autossuficientemente tão bom para mim mesmo!", mas já que sou "bom", então "por que eu não posso? Ora, eu posso sim! Porque eu decido que posso!". Essas sentenças são exemplos típicos da desordenada relação imediata e ingênua do homem consigo mesmo, cuja marca decisiva é a auto-determinação da trindade "Vontade, Liberdade e Poder" hipostasiada por meio da fórmula mágica "eu quero, eu decido, logo eu posso", ou seja, justamente aquele risco que o filósofo norte-americano Hilary Putnam chamou de o risco da "deificação do homem". 

Isso pode ser lido como o resultado deformado da má compreensão da noção de sujeito na modernidade, o que Philippe Lacouse-Labarthe e Jean-Luc Nancy chamaram de a ideologia do sujeito e que, segundo eles, identifica-se com o fascismo quando o homem coloca-se como "sujeito absoluto e autocriador" de si mesmo (LABARTHE & NANCY, Le mythe nazi, 1991, pp. 23-25), ou, como avalia Jean-François Mattéi, quando "a relação do eu consigo mesmo, experimentada pelo sujeito moderno, o conduz a identificar-se com qualquer instância material que possa dar-lhe um predicado, lastro virtual para sua vacuidade de origem", então este sujeito deformado "revela sua impotência para quebrar sua clausura e aceder, como existente, à experiência da exterioridade" (MATTÉI, 2002, Barbárie interior, p. 27).

A consequência inevitável dessa imediata auto-compreensão ingênua de si mesmo -- e, por isso, da vida em sociedade -- não é outra senão que a fraqueza transforma-se no único e aceitável parâmetro da virtude política; "ora, se a minha experiência interior revela imediatamente o quanto eu sou bom para mim mesmo, então, afinal, por qual razão a experiência exterior diz o contrário?" Essa é a expressão categórica do ressentimento aferindo o debate político. E como o ressentido não é capaz de suportar as sinceras verdades do seu interlocutor (os saqueadores da "cidade ideal" - a metáfora que usei para alteridade), logo apela-se exaustivamente para o derrotismo, para o sentimentalismo caduco e nocivo: "seja sincero, mas não seja tão duro comigo", "não precisava ser tão violento com as palavras", "isso é discriminação!", "pedi um tênis de R$ 400 para minha mãe e ela disse que não podia comprar etc", "na escola, ele tinha uma lancheira e eu não".

A estratégia dos fracos é dar um jeito de se valer da sua condição de fraco a fim de justificar os seus piores fantasmas. Em vista disso, o objetivo ideológico principal é mostrar que os fracos são os únicos efetivamente capazes de propor um mundo melhor; mundo que só não se realiza efetivamente por que os outros não permitem. Os totalitarismos emergem da imposição desse vício do imaginário interpretado segundo uma perspectiva coletiva, neste caso o sujeito já não é um indivíduo concreto, mas se dá no processo de abstração da comunidade ressentida que substancializa-se em uma espécie difusa de sujeito-coletivo. O sentimentalismo é tão somente um instrumento de propaganda dessa ideologia.

Enfim, o método do fraco pode ser resumido em quatro pontos básicos:

Primeiro, mostrar que sua fraqueza é diretamente determinada pela condição dos outros. Jamais é da responsabilidade das pessoas fracas a sua própria condição. "Minha fraqueza só existe por que o outro é violento; eu não faço mal a ninguém, no meu mundo tudo seria perfeito. E eu só quero ser feliz".  

Segundo, dissimular a sinceridade e se desviar da verdade. Como não são capazes de enfrentar a dureza da realidade, nega-se a sua possibilidade. "A verdade não existe, é uma invenção". É necessário calar a ousada pergunta pela verdade da realidade. Quem ousar tentar falar a respeito da verdade é tachado imediatamente de autoritário. Desviar a atenção do raciocínio sério para a retórica emotiva e carregada de sentimentalismo. A objetividade das discussões é colocada de lado em nome de um vago subjetivismo sentimental.

Terceiro, vender a todo custo o sentimento de que o mundo só não é melhor por que o outro não permite. Esse tipo de sentimentalismo precisa ser espalhado como norma fundamental da moralidade. Só é válido o que não ofende. Tolera-se tudo, menos a indelicadeza da sinceridade e da ostentação da realidade. Aliás, a ostentação, sobretudo financeira, é concebida como agressão e, por isso, como impendimento da auto-realização do mundo ideal*. 

Quarto, criar um vocabulário e uma gramática facilmente assimiláveis e comungadas sem a necessidade de qualquer esforço intelectual, uma espécie de intuição pura de um eu repleto de si e da certeza de que o seu mundo é o melhor: “eu sou o tolerante e você o preconceituoso”.
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Nota

Li recentemente em um texto de um "psicanalista-social" distribuído para professores de Filosofia da Rede Pública do Estado de São Paulo:  "A humilhação social consiste em uma modalidade de angústia disparada pelo impacto traumático da desigualdade de classe, isto é, a angústia que se sofre quando alguém se depara com um abismo chamado desigualdade", continua, "a desigualdade experimentada do lado de fora é internalizada como sofrimento, ao qual muitas pessoas já estão habituadas", pois "existe em nossa sociedade uma hierarquia constante que leva o humilhado a sentimentos que o agridem [...e] angústia que os pobres conhecem bem e que, entre eles, inscreve-se no núcleo de sua submissão [...] a humilhação é uma modalidade de angústia que se dispara a partir do enigma da desigualdade de classes. Os pobres sofrem freqüentemente o impacto dos maus-tratos. Psicologicamente, sofrem o impacto de uma mensagem estranha, misteriosa: ‘vocês são inferiores'". 

quarta-feira, 22 de maio de 2013

O que as saias ocultam

Libro I: em que se contam os feitos maravilhosos e outros
 actos de virtude e heroísmo dos Cruzados rumo a Al-Cazar 


Há algo que me incomoda no recente saiaço. E não é a tosca visão de graduandos de saia na biblioteca da FFLCH. Ok, tem algo que me incomoda no saiaço mais do que a visão de graduandos de saia. Algo ligado à motivação do evento, e a forma como ele foi interpretado.

Seguem algumas coisas que o saiaço não foi.

Ele não foi uma mostra de coragem dos participantes. Afinal, na USP, a posição majoritária e oficial é sempre pró-diversidade. Existe quem não goste da diversidade de gênero, mas esses se reconhecem na necessidade de ter de se esconder, de não vir a público, de nem tentar se justificar. Piadinhas no círculo de amigos pode; manifestações públicas da opinião contra transexuais, não. Na USP, é preciso mais coragem (e isso não é juízo do mérito das posições) para se posicionar publicamente contra a diversidade de gênero do que a favor dela. Os saiados estavam plenamente seguros de sua integridade física, e decerto sabiam que receberiam muito mais mostras de apoio do que agressões abertas. Além do que, tendo sido divulgado pela mídia, era de conhecimento público que os participantes estavam apenas fazendo um statement moral e político; que não eram transexuais de verdade.

Outra coisa que o saiaço não fez foi promover uma maior aceitação da diversidade sexual, de gênero, ou qualquer outra. Dos que eram a favor dela, a maioria a aprovou. Os que eram contra, devem apenas ter se sentido provocados. Ninguém foi levado a repensar seus preconceitos ou suas posições. Ninguém olhou um menino de saia e pensou "Puxa, aquele sujeito com quem não vou com a cara e que outro dia me chamou de homofóbico está usando saia; talvez eu devesse repensar minhas atitudes...". O mais provável é que, sentido-se provocados, os inimigos da diversidade estejam agora mais seguros de que, de fato, vivem sob uma terrível ditadura gay.

O saiaço foi uma vitória moral para os pró-diversidade, assim como a vitória do Corinthians o é para os corinthianos. Não foi a vitória de uma causa, mas a vitória imaginada de um grupo contra um grupo adversário. Era, enfim, um evento de autoafirmação e autopromoção.

Quem não gosta de ser admirado e elogiado? É natural do homem; está lá em Aristóteles (ele, ao contrário de seus herdeiros cristãos tardios, não via problema na glória mundana). Ao mesmo tempo, devido ao maldito resquício de moral cristã que insiste em não nos abandonar, não pega bem querer abertamente a glória e a ovação. Em nossas conquistas, nosso lucro e em nossos grandes feitos, não devemos buscar a admiração pública como fim explícito - pega mal. Mesmo do jogador de futebol ou do lutador de MMA que acaba de trucidar o adversário, espera-se humildade. Somos, nesse sentido, mais cristãos do que nossos antepassados europeus do século XVI e XVII, cujas mentes se ocupavam desavergonhadamente da busca pela admiração, seja por conquistas de territórios, de donzelas e esposas alheias ou pela destruição e humilhação dos inimigos. Ser orgulhoso hoje em dia, falar de si, dos próprios feitos, gabar-se das vitórias pessoais - está tudo proscrito.

Sendo assim, resta aos desejosos da glória mundana um caminho mais tortuoso. E mais hipócrita. O ego não pode ser glorificado diretamente; a glória tem que ser sempre para um outro. Mas se nossa identidade conseguir mesclar-se a esse outro, então está valendo; podemos colher os louros dele sem ferir a etiqueta. Em tempos de devoção religiosa, quantos egos não se satisfaziam ao se identificar à instituição confessional de sua preferência e exaltá-la ao máximo? Ao invés de ser condenados como orgulhosos, passavam por grandes altruístas. Não é para minha vaidade, mas para a glória da Igreja. Isso justificava muita santarronice. Alguns remanescentes desse velho vício igrejista ainda resistem nas redes sociais, mas o clima dos tempos é, de resto, bem contrário a eles e à religião em geral. Hoje o que pega bem é se identificar à causa correta, ao lado certo da história.

Entre libertação dos escravos, fim do preconceito racial e afirmação da diversidade sexual e de gênero há um contínuo: o mesmo movimento histórico de emancipação e quebra dos preconceitos. Ao menos essa é a leitura progressista, hoje onipresente, da história. Os saiados são descendentes espirituais diretos dos abolicionistas. E como não temos dúvida de que os abolicionistas estavam certos, a vitória moral de seus descendentes já está dada de antemão, mesmo anos antes de quaisquer vitórias políticas concretas (que se seguirão com a certeza matemática de uma lei histórica). Não há nada mais nobre e mais admirável do que se posicionar nessa vanguarda ética e política. Quem quer ser admirado, portanto, adote uma causa "minoritária" (mas cuja vitória inevitável já é concedida por todos de antemão) e seja espalhafatoso em sua defesa.

Novamente: o preconceito não diminuiu por conta do saiaço. Também não houve coragem nenhuma. Sair de saia, anonimamente, na estação da Sé no horário de pico exige coragem; nas faculdades de humanas da USP, como parte de um evento anunciado pela grande mídia, não. O que se viu ali foram jovens celebrando a própria superioridade moral e sendo ovacionados por uma sociedade que, querendo ou não, já lhes elevou ao panteão dos mártires, ainda que sem martírio algum. Essa forma de orgulho tem um benefício duplo: ganha-se não só a adoração alheia como a certeza deliciosa de se estar servindo ao Bem. Aproveita-se o prazer de esfregar o nariz dos inimigos no chão ao mesmo tempo em que se sente um servidor da fraternidade universal.

Estou fazendo um recorte, procurando a finalidade fundamental que dê sentido ao evento e o distinga de outros similares. Para o grosso (talvez todos?) dos manifestantes, devem ter pesado também outras motivações: o simples desejo de participar de uma farra e mudar um pouco o cotidiano maçante, por exemplo. Há, assim, uma afinidade entre o saiaço e um "dia do contrário" de formandos do colegial. Mas há também uma diferença clara: o tom de cruzada moral; de luta contra algum mal. Essa cruzada, contudo, não visa a extirpar o preconceito (antes, deve tê-lo aumentado), mas, assim como as Cruzadas originais tantas vezes o fizeram, a promover seus participantes ao status de heróis e garantir-lhes uma vaga no céu. 

sábado, 18 de maio de 2013

O indignado, o pecador e o hipócrita


I. Há modos bastante prosaicos de verificar a nossa – nós: brasileiros – progressiva incapacidade de perceber sutilezas. E digo-o assim mesmo, “sutilezas”, de um modo geral e abstrato; tudo aquilo, enfim, que não é oito nem oitenta, principalmente ao nível da língua; mas aqui penso em específico em tudo aquilo que de meio imponderável há nos valores das coisas (em acepção ontológica), os quais jamais coincidem com atualizações completas do “ótimo” ou do “péssimo”, e no modo como a consciência humana se relaciona com eles. (Evito escrever “bem” ou “mal”, em lugar de “ótimo” ou “péssimo”, para não dar conotação meramente axiológica a essas atualizações, por motivos que adiante ficarão mais claros.)

Veja-se, por exemplo, a confusão pueril que nós, os indignados, fazemos entre o hipócrita e o pecador.


II. Um dos sentimentos mais consagrados na imagem do brasileiro é a indignação. Da classe média para cima, é potencialmente pateta, entre seus pares, aquele que não se afirmar continuamente com um misto de revolta geral contra o Mundo (“governo”, “sociedade machista”, “gramcismo”, “direção do Flamengo”, “inflação” etc.) e um desengano radical contra tal revolta, o que serve de aborto preventivo de uma ação que mal se insinuou. Por isso tanto mais passivo será o brasileiro quanto mais ele se alegrar consigo próprio em sua indignação, que neste caso é uma perversão emocional: é uma concupiscência, a daquele que se compraz em um sentimento negativo que se articula não tendo em vista objetivamente o que nega, aquilo a que responde na realidade (o valor em causa), mas o conforto mesmo de negar. É um dos tipos de falseamento da “resposta afetiva” (o modo como a totalidade do indivíduo reage àquilo que conhece, ou seja, a emoção que inevitavelmente acompanha qualquer intelecção) que Dietrich von Hildebrand, em The Heart, vê como mais maléficos à visão distinta e clara do que são, afinal, as emoções: como quando, por exemplo, uma pessoa chora comovidamente não tanto por conta daquilo que a comove, mas por orgulhar-se de ser alguém capaz de se comover. O que é dizer: muita vez ficamos indignados por considerarmos bonito ser um indignado, e não tanto por ser a postura natural de quem nega um determinado fato que clama por indignação.

Não é à toa que bem pouca coisa é afirmação triunfal e entusiasmada em nossas artes. O brasileiro é capaz de negar o mundo, mas não é capaz de fazê-lo tragicamente; porque não se trata, afinal, de negação de algo exterior, mas apenas de afirmação mesquinha de si mesmo. Sob esse aspecto, um grego cabe na cabeça de um brasileiro tão pouco quanto o aoristo cabe na gramática portuguesa. A singularidade de uma personagem como o Mestre Severino de Cais da Sagração, de Josué Montello, está entre outras coisas em ser um dos raros momentos em que, na nossa literatura, um homem, dotado de um firme propósito, diz à morte: só morrerei quando eu disser que chegou a hora. E a imagem do velho pescador que não sucumbe aos mares, aí, é a imagem de quem doma a morte. De quem atravessa a barra do perigo, mas volta para casa. Fosse um jornalista (eu mesmo, talvez) em seu lugar, veríamos nele algo bem diverso: um sentimento difuso de indignação contra a própria existência do mar e sua turbulência, sem sequer resquício da resignação que poderia levá-lo a cruzar o mar. Pois o comum dos brasileiros hoje tem indignação o suficiente para odiar a Bastilha, mas não tem alegria o suficiente para fazer uma Queda da Bastilha.

Nada o indignado odeia com tanta intensidade quanto o hipócrita, e aqui voltamos ao início do texto. No entanto, para ele, não existe distinção alguma entre o hipócrita e o pecador: essa distinção já lhe é sutil demais e lhe escapa. Nós ouvimos os indignados vociferarem: – A Igreja é hipócrita! – A família é hipócrita! – José Dirceu é hipócrita! – Sou muito franco, odeio hipocrisia! – mas essas pessoas rigorosamente não sabem do que estão falando. Não só por muitas vezes não saberem o que é a Igreja, o que é a família, o que é o José Dirceu e, sobretudo, o que são eles próprios, mas principalmente por não saberem o que é hipocrisia. Ocorre-lhes que hipócrita seja a pessoa falsa, demagoga ou oportunista. Mas não lhes ocorre que um hipócrita jamais é alguém com um ideal claro e franco e que se esforça para atingi-lo, eventualmente fracassando em seu tento; não lhes ocorre que isso é precisamente o oposto da definição de hipócrita e algo muito próximo da definição de pecador fervoroso, em seu aspecto de sujeito consciente e insatisfeito com sua danação. O pecador diz, com sinceridade: Deus, afasta-me do pecado; e busca manter-se longe do pecado, considerando o pecado de fato algo pecaminoso, mas eventualmente caindo a sério nele. O hipócrita diz, talvez com sinceridade ainda mais temível: meus amigos, Deus me livre de parecer um pecador aos seus olhos; e em geral queda indiferente ao que há de pecaminoso no pecado, deste se afastando só na medida em que lhe traz vantagens públicas.


III. Vai na distinção entre o pecador fervoroso e o hipócrita – e na distinção que o indignado faz, ou antes não faz, entre um e outro – uma complexa questão de filosofia dos valores, a que apenas aludi parágrafos acima: o modo como a consciência se relaciona com o valor daquilo que lhe é objeto de experiência.

No pecador e no hipócrita encontramos modos muito diversos de tratar do valor das coisas, o qual nunca apreendemos com clareza se nos valemos de conceitos rudes ou amplos demais, do mesmo modo como nos é impossível apertar um pequeno parafuso nos valendo de uma britadeira – catalogar cada ato e coisa a partir de critérios ideais pré-estabelecidos, sem o devido confronto entre idéia e fato (como faz o indignado), é renunciar ao fato e ficar somente com a idéia. Mais ainda, esses são modos radicalmente diversos de lidar com a própria noção de que algo tenha valor. A universalidade obrigante do reconhecimento da existência de valores, pelo menos em seu fundamento, é-nos ainda mais ou menos o imperativo categórico de Kant; o próprio senso de unidade do discurso que nos leva fatalmente a certas conclusões, dadas certas premissas, impõe que aceitemos o fato de que nenhuma idéia de dever moral que tomemos para nós próprios pode ser tão só individual, uma vez que contradiria o próprio conceito de dever, do qual duas das notas são sua necessidade e o desejo de máxima perfeição (numa hipótese extrema e irreal, mesmo aquele que tem a “maldade” como meta não deixa de tê-la em conta como algo ideal, como grau máximo de perfeição a se atingir; mas não recordo se Kant diz algo nesse sentido nem tenho o livro à mão no momento para conferir). Nesse ponto, pois, e só nesse ponto, lógica e moral são uma e a mesma coisa.

(É provavelmente ignorância minha, mas só conheço dois autores que o afirmaram explicitamente: Olavo de Carvalho e Otto Weininger, sobre o qual se lê uma ou duas coisas neste texto.)

Com isso, percebemos ser possível até oferecer prova de que a noção de valor é estrutural e objetivamente inevitável à conduta humana, já que, havendo um elo fundamental entre lógica e moral, o homem, por meio desta última, necessariamente haverá de lidar com o sentido, o valor, a qualidade das situações. Isso, contudo, assim afirmado, diz respeito a um nível fundamental demais da consciência e corre o risco de ser apontado como algo procedente apenas quanto à estrutura subjetiva do indivíduo; não é suficiente para atinar aos valores específicos com que lidamos (“grotesco”, “sublime” etc.) e afirmar a existência objetiva deles na realidade. Restaria, dito de outro modo, a questão de se existem parâmetros objetivos para afirmar que algo seja grotesco em si mesmo, independente de qualquer projeção da mente do indivíduo sobre o objeto.

Por outro lado, pesa o fato de que ou se atenta aos diferentes níveis de perfectibilidade de um ser, dada a sua finalidade (aretê), e os sentimentos correspondentes com que a consciência (o “coração”) responde a eles, ou todo imperativo moral perde a escala concreta em que se atualiza. Da imagem de um ser humano crivado de balas à imagem de um ser humano praticando a caridade tem-se graus variados da realização do valor próprio à humanidade e, portanto, graus variados de resposta afetiva diante da maior ou menor realização da excelência de uma determinada coisa. Ou seja, a percepção dessa escala e a conformação da conduta emotiva e volitiva a ela – o sentir e o querer em acordo com o que o objeto de conhecimento pede que se sinta e se queira – só podem ser precisadas tendo em vista o valor individual de cada ente em cada situação, e não apenas uma estrutura deontológica geral, como a de Kant, a qual contudo, como disse, permanece válida e incontornável. Mas, caso se postule que a percepção daquela escala não possui objetividade alguma, sendo relegada à mera “subjetividade”, então não há nada que nos permita afirmar racionalmente que existe pelo menos uma ligeira diferença real entre um santo e um homicida – ou entre Bach e o funk. A negação da diferença entre uma coisa e outra, ademais, não é sequer racionalmente formulável, pois aí a própria linguagem, em sua comunicabilidade, seria impensável: negar a diferença entre o ótimo e o péssimo é, na esfera dos valores, negar implicitamente a diferença entre linguagem eficiente e linguagem ineficiente. É a forma afetiva e axiológica do paradoxo do relativista: é algo que não se pode afirmar sem que a própria afirmação seja um argumento suicida. Seria imprudência minha tentar expor aqui como penso ser possível estabelecer tal objetividade, mas posso afirmar que sem ela é impossível tornar congruentes vida e ciência.


IV. Outra dificuldade está em que o fator mais imponderável de uma antropologia filosófica é o “centro decisório da mente”, o que torna ainda mais sutil a questão da culpabilidade dos indivíduos quanto ao seu comportamento frente aos valores e, portanto, mais tênue a oposição hipócrita/pecador. É razoavelmente possível delimitar as três esferas em que, em geral, se divide a consciência humana: a intelecção, a volição e a afecção – embora eu desconheça quem o tenha feito de forma cabal, principalmente quanto à última; mas o centro decisório, ao qual se dá pouquíssima atenção, é uma articulação dos três fatores e, ainda, algo um tanto mais acima e um tanto mais profundo, o que se prova pelo fato de que um homem pode muito bem conhecer algo lhe percebendo seu valor próprio (intelecção), ter um sentimento que lhe é mais ou menos objetivamente correspondente (afecção) e se determinar a agir em conformidade com tal coisa (volição), mas, ainda assim, talvez pela premência de um vício continuado, agir de maneira de todo contrária. Mas já não se trata aqui apenas de sinceridade frente à consecução de uma meta ou ao próprio estabelecimento de uma meta, como na distinção entre o hipócrita e o pecador fervoroso. Trata-se de algo que, à falta de melhor nome, talvez pudéssemos chamar de “fortaleza”. Pouco sei o que pensar a respeito.

Do ponto de vista do valor – algo adjacente à “causa final” aristotélica – de cada coisa, a postura do hipócrita é a de uma preguiça espiritual, uma intransigência em não querer responder afetivamente àquilo que lhe é objeto de intelecção. É similar ao que a Igreja chama de acídia, e não consigo pensar em melhor nome para essa sofreguidão deprimida, esse deixe-estar do espírito. Vale aqui, aliás, fazer um pequeno reparo a uma obra.


V. Max Scheler, na segunda parte de Essência e Formas da Simpatia, dá por implícito, em sua argumentação, que os sentimentos vão de uma máxima afirmação a uma máxima negação da experiência; iriam, assim, do máximo amor – o desejo derradeiro de que algo seja – ao máximo ódio – o desejo derradeiro de que algo não seja. Com todos os seus méritos, ele se equivoca nesse ponto. Ora, o ódio é um empenho do indivíduo frente a algo, é uma postura proativa; o ódio pode inclusive ser uma santa ira, e assim a outra face de uma afirmação amorosa: como Jesus expulsando os vendilhões do templo*; e isso evidentemente é um princípio de deslocamento ao longo da escala afetiva, para mais próximo ou não do amor. Mas de forma alguma é o oposto radical deste. O oposto radical do amor, do desejo de eternidade do objeto amado, é a acídia à que me referi. É o simplesmente não atinar ao valor das coisas; é quase que se deslocar para fora da escala humana e normal de sentimentos, esta não lhe dizendo mais respeito. Não é o desejo de obliteração de algo, como pode ser o ódio; é a indiferença total do indivíduo diante de um determinado objeto de atenção. Logo, é uma psicopatia do espírito.

O hipócrita, em suma, tem algo disso – algo da acídia; o pecador fervoroso, não, ou o tem menos, com o que ambos são quase tipos caracterológicos – sim: lido aqui com tipos caricatos – a ilustrar as respostas afetivas o mais radicalmente opostas com que uma filosofia das emoções tem de lidar.

Mas, bem abaixo da questão filosófica, há confusões públicas quanto ao seu aspecto mais prático. Reações como a recente em torno do pastor Marcos Pereira acabam se constituindo num clamor contra o hipócrita (o que parece ser mesmo caso), o que é legítimo; o que não é legítimo é que, daí, passe-se à generalização de que líderes religiosos talvez sejam todos uns hipócritas e, numa extrapolação mais surpreendente ainda, à generalização de que toda e qualquer vida religiosa só pode ser uma intricada sistematização de hipocrisias. Isso é perder de vista a sutileza, aliás, nem tão sutil assim, em que diferem o hipócrita e o pecador fervoroso. O primeiro está mais, sob o aspecto da culpa, para a renitência final de Iago. O segundo, mais para a morte de Lady Macbeth, que termina louca, não se sabe se só desesperada ou também arrependida. O risco de perder toda a noção da diferença entre uma postura e outra; o risco de pensar que as palavras “ideal” e “ideologia” descrevem uma e mesma coisa só porque têm a mesma raiz; o risco de pensar que nada diferem em méritos o homem que falha em alcançar uma meta e o homem que desde o princípio apenas finge querer alcançá-la: esses são os riscos que o indignado de mesa de bar, essa espécie de ressentido tão tipicamente brasileira, nos põe a correr.

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* Mas justiça seja feita a Scheler. Em alguns momentos, ele chega a insinuar, mas não leva adiante, a inadequação da oposição amor-ódio, como ao escrever (cito de uma tradução francesa do livro, Nature et formes de la sympathie, trad. M. Lefebvre, Payot, 1971, p. 212-213; creio que a versão indireta livre, neste ponto, não fira muito o original; e, infelizmente, não cabe tratar aqui o que o autor entende por “valor superior”):

Em primeiro lugar, a diferença entre o amor e o ódio não é tão grande assim, pois se pode ver no ódio o amor pela não-existência de uma coisa. O ódio é antes um ato positivo no qual está dado um não-valor tanto quanto no amor está dado um valor positivo. Mas, ao passo que o amor é um movimento que se dirige dos valores inferiores aos valores superiores e a favor do qual o valor superior de um objeto ou de uma pessoa se nos impõe subitamente como inspiração, o ódio representa um movimento em sentido inverso. Isso implica, sem que haja necessidade de nisto insistirmos, que o ódio visa à existência possível de um valor inferior (sua existência mesma já sendo um valor moral negativo) e à supressão da existência possível de um valor superior (supressão que, por sua vez, é um valor negativo). O amor, ao contrário, visa a realizar um valor tão elevado quanto seja possível, o que por si só já é um valor positivo (como quando se trata, por exemplo, da conservação de um valor superior), e a suprimir um valor inferior (intenção que por si própria já é um valor moral positivo). Assim, o ódio não comporta uma negação absoluta dos valores em geral; antes, implica uma intenção positiva para com os valores inferiores.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Palestra: Os Fundamentos do Mercado

Esta minha fala foi dada no Círculo de Estudos Políticos. O tema original era o Estado numa concepção liberal. Mas mais do que isso, acabou sendo uma palestra sobre fundamentos básicos de economia para entender como funciona esse monstro que tanto amamos: o mercado.

terça-feira, 14 de maio de 2013

Empregada doméstica: herança da escravidão?

Toda a força da defesa da PEC das domésticas (que não será meu assunto aqui) vem de dois fatores. O primeiro é a inconsistência fatal da maior parte de seus opositores: dizem que a CLT, embora uma importante conquista trabalhista para diversas classes, é inaplicável às domésticas. A falha desses está em não ver que toda legislação trabalhista, seja em que caso for, é sempre nociva e ruim, e não foi a responsável pelo aumento da remuneração do trabalho (o que aumenta a remuneração do trabalho é o aumento da produtividade do trabalho, que decorre do aumento do capital físico e humano). A CLT pode ser ainda pior no caso das empregadas, pois o trabalho delas é muito mais fluido, flexível e baseado em confiança pessoal do que o industrial, mas é ruim e indefensável mesmo para os operários no chão da fábrica.

O segundo é uma simples frase: "resquício da escravidão". Debate encerrado.

Quem quer perpetuar algo que herdamos da escravidão é, no fundo, um escravocrata, não é? Se sonham, como apontou o prolixo jurista (desculpem o pleonasmo) Lenio Luiz Streck, com a velha ordem senhoril, da  casa de fazenda, das porcelanas e da toalha de renda, ordem que dependia da escravidão de milhões de negros, como levar a sério seus argumentos?

O problema desse raciocínio, ou melhor, dessa associação de ideias, é que ela é falsa. Não há relação necessária alguma entre serviço doméstico e escravidão. E portanto o opróbrio moral que com justiça paira sobre esta não pode ser estendido àquele. Deixem-me expor o porquê.

Escravidão diz respeito à estrutura formal da relação. É a relação em que um homem é propriedade de outro. Isto é, não pode escolher acerca de sua própria vida; deve obedecer e, se não o fizer, será punido fisicamente. Essa estrutura é compatível com incontáveis configurações acidentais, empíricas. O escravo pode ser o serviçal doméstico de seu senhor. Pode ser um trabalhador anônimo no canavial. Pode ser um professor particular de filosofia (como era Epiteto, um dos expoentes do estoicismo, e escravo). Pode ser uma amante que goza de muitas regalias. Pode ser um capataz cruel, um pau mandado para manter a ordem. Pode ser um operário numa linha de montagem.

Todas essas funções e tipos de relação psicológica podem ser desempenhadas por escravos. E também por pessoas livres, que lá estão por livre e espontânea vontade (dadas as circunstâncias em que se encontram; toda escolha humana se dá em um contexto) e que de lá podem sair. Aliás, o movimento das pernas é um bom indicador de se há ou não há escravidão. Na escravidão, o senhor tem que manter todo um sistema de segurança para impedir que os escravos fujam. No trabalho livre, mesmo em condições que consideramos pobres (uma fábrica na China, por exemplo), os trabalhadores farão de tudo para não perder o emprego.

A relação que os escravos domésticos tinham com seus senhores se assemelha à de empregadas com seus patrões? Sim. Assim como a relação do tutor escravo com seu senhor-pupilo da Antiguidade se assemelha à relação do tutor/professor particular livre com seu aluno pagante. Há diferenças, contudo. O escravo doméstico tinha que tolerar qualquer coisa; a empregada doméstica pode largar - e muitas vezes larga - o trabalho se encontrar condições melhores em outro lugar.

Há diversos contextos em que relações similares à das criadas com patrões emergiram sem escravidão. Na Inglaterra, por exemplo, uma cultura da criadagem surgiu sem que a nação jamais tivesse usado escravos em seu solo. O mesmo provavelmente ocorrerá em todas as sociedades com desigualdades econômicas muito grandes. Os mais pobres querem um emprego que exija pouca qualificação, e os mais ricos querem se livrar do tédio e do fardo dos afazeres domésticos. Os ganhos dessa divisão de tarefas são evidentes para as duas partes.

Com o aumento da produtividade do trabalho ao longo do século XX, o preço do trabalho aumentou muito, e a demanda por ele, em consequência, diminuiu. Além disso, talvez as leis trabalhistas mantenham no desemprego gente que poderia considerar trabalhar como criado doméstico. Seja como for, enquanto durou (na verdade ainda existe, mesmo na Europa, mas só nas casas muito ricas), o trabalho doméstico foi uma boa opção de ascensão econômica para muita gente.

Por termos uma cultura mais pessoalista que a inglesa, a relação de criados domésticos e patrões é ainda mais forte aqui. Conheço não poucos casos de empregadas e babás que acabam virando quase parte da família. Em um caso, virando de fato, sendo madrinha de netos do patrão original, tendo entre os próprios filhos afilhados dele e novos agregados e trabalhadores da família. Há muita beleza nessas relações de décadas, marcadas pela fidelidade e pelo sentido de gratidão de ambas as partes. De uma forma um pouco mais igualitária ela também se reflete nas casas de classe média, que é onde a maioria das empregadas trabalha: alguma amizade, ou ao menos uma convivência informal não raro se desenvolve nessas casas.

Não que isso tenha que ser eternizado. Como já disse, conforme a produtividade do trabalho aumenta, ter uma empregada torna-se cada vez mais caro (coisa que já vem acontecendo em São Paulo há anos; não se acha com facilidade - como se achava nos anos 90 - a retirante nordestina disposta a trabalhar o dia inteiro por um salário baixíssimo). A instituição está fadada a terminar; ela aliás contribui para seu próprio fim, ao melhorar as condições de vida de uma classe. Muitas filhas de empregada não se tornam, elas próprias, empregadas, tendo crescido com muito mais oportunidades que suas mães.

Assim, não há porque temer a acusação de que o serviço doméstico é fruto da escravidão. Não é. E tudo o que há de bom nele, e que em parte havia mesmo durante a escravidão (vide a literatura brasileira e americana sobre as relações dos escravos domésticos com a família), não depende da infraestrutura injusta sobre a qual se erguia então. Como também não dependem a porcelana azul, a casa de fazenda e a toalha de renda.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Lobão, Médico de Almas




Outro dia me perguntaram se considero Lobão “um sábio”. Não, penso que não. Ele não alcançou o patamar dos gimnosofistas e dos mitopoetas da Antiguidade. Mas é sabido. E tem sabido colocar o dedo em muitas feridas. Roqueiro não serve (também) para isso?

Tem que chutar o balde mesmo! Se pensarmos no roqueiro como uma espécie de sacerdote da juventude, Lobão é um Pe. Beto da contracultura, contestando os dogmas e as falhas institucionais que o resto vê em silêncio, timidamente. Ninguém está gostando; bom sinal. De certa forma é como ele mesmo disse em 2011: “Tem que ser um cara muito escroto pra poder falar sobre isso” – referindo-se à sua visão da ditadura e de seus torturados. Por sinal, penso que aqui ele escorrega. É leviano fazer pouco das torturas e das mortes, ainda que, bem saibamos, a repressão no Brasil foi pequena se comparada a outras. Ainda assim, a ditadura perseguiu, torturou e matou. Coisa bem condenável. Isso não anula seu outro ponto: a cultura de vitimização que o período gerou continua entre nós, mais forte do que nunca. Quem gostaria de ter tido as unhas arrancadas pela ditadura está agora tendo os calos pisados pelo Lobão.

Como de costume, a estratégia da nossa cultura quando agredida é dupla. A dominante é a do silêncio. Lobão está nos maiores meios de comunicação do país soltando frases duras, afrontosas, sobre o cenário musical e cultural. Diz barbaridades sobre o céu e o mundo. Ninguém responde. Em outras épocas funcionaria. Mas já passou o tempo em que o silêncio do mainstream silenciava. Os funis da opinião aceitável estão morrendo; qualquer bloguezinho comanda milhares de acessos. A outra estratégia, usada por gente mais marginal e temerária, ou que fez sua carreira na Internet e portanto não conhece o modus operandi da velha guarda, é responder com a arma favorita da intelectualidade brasileira ameaçada: o psicologismo.

Cynara Menezes tem um diagnóstico para explicar Lobão, Roger e outros roqueiros da direita (aliás, o roqueiro didireita é já uma instituição tradicional): a volta do filho pródigo ao lar burguês. Já repararam, aliás, que direita e esquerda já não têm mais sentido algum além de "bem" e "mal"? E aqui estou já perdendo o foco. Para Mano Brown e outros, Lobão quer se autopromover. Lobão desqualificou sua arte e o acusou de ser braço armado do PT; além de chamar para a briga física, nenhuma resposta? Lobão integraria também o rol dos reaças na moda, esses malditos que, pensando como pensam, ousam aparentar ser cool. É, pode ser. Mas o fato é que os reaças estão na moda; quem não gosta pode fazer graça, mas é melhor se acostumar e tentar preparar alguma reposta, ou a moda pode crescer. Quando Caetano e Lobão citam Olavo... mau sinal.

Lobão vende porque diz o que muita gente ou gostaria de dizer e não tem coragem, ou já sentia e não sabia. Não só sua música, mas agora suas afirmações, têm levado à catarse. São coisas um tanto óbvias (depois  de terem sido ditas), lugares-comuns, que precisavam de uma voz que as trouxesse à atenção consciente do povo. O elogio do empreendedorismo e a revolta contra o funcionalismo estatal, o saco cheio com os patrulheiros da moral pública, o tédio com a música popular, o ridículo do nacionalismo (que hoje é de esquerda, mas poderia não ser) e da obsessão pela arte que reflita a "realidade nacional". Falta rock n' roll.

Há mil e uma vozes prontas para explicar Lobão. Nenhuma para responder-lhe. No final das contas, não importa se Lobão é louco, se quer vender livro, se é psicótico, se recebeu lavagem cerebral. Imagine o pior caso possível: que ele seja um músico sem talento, decadente, desesperado por algum sucesso, ressentido contra um mundo que não o nomeou para o Nobel de Literatura e invejoso das conquistas sociais do governo PT. Isso não muda suas provocações sobre a relação de nosso país com a cultura, sobre a estatização e politização da arte, sobre o vitimismo e o patrulhamento que se consagraram como as maiores virtudes almejáveis pelo brasileiro. Ele já se declarou um Nada; nada se ganha ao se descascar sua imagem. O bom do bobo-da-corte é que ele não tem pretensões pessoais a defender; é preciso que se olhe para aquilo que ele aponta. Ou então que se o leve a sério, e daí sim ele corre o risco de perder a graça e ir fazer outra coisa.

André Barcinski foi a exceção honrosa nessa história toda. (Já malhamos um artigo seu nesta Folha, mas desde que publicou o Guia da Culinária Ogra ele voltou a ser kosher.) De resto, ninguém sabe – ou tem a coragem de – dizer nada. Nosso establishment cultural, plenamente autossatisfeito e seguro de sua virtude em outros contextos, chora uma pobre lágrima no escuro.

***

De todas as manifestações do Lobão, esta sem dúvida é aquela que, mais do que qualquer outra, poderia valer-lhe o título de “sábio”. Quando estou na pior, me sentindo mal, sempre volto a essa verdadeira therapeia da alma.


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