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domingo, 2 de junho de 2013

Os Filhos do Divórcio, ou Leiam o “Claro Escuro” do Corção!

"Il est plus facile de légaliser certaines choses que de les légitimer".
Nicolas Sébastien Roch Chamfort

Li recentemente o “Claro Escuro”, uma coleção de breves ensaios onde Gustavo Corção comenta um infame projeto de lei que estava para ser votado ao final da década de 50 e que pretendia legalizar o divórcio no Brasil.* Naquelas páginas (publicadas em jornais, à época) ele discute as ideias dos chamados “divorcistas”, que militavam pela dissolubilidade do casamento baseando-se quase somente no argumento de que as pessoas, plenas de dignidade humana, deveriam ter o direito de tentar novamente caso o casório lhes trouxesse mais tristezas que alegrias, mais pobreza que riqueza, menos saúde e mais doença.

A coletânea é valiosa, pois trata não só das questões sociais envolvidas no problema do divórcio, mas também dos princípios que sustentam a indissolubilidade do matrimônio. Recheados de análises fenomenológicas, os ensaios têm o mérito de dialogar com o leitor suscitando-lhe, inevitavelmente, a reflexão.  Pode parecer ultrapassado discutir o assunto, visto que a lei foi aprovada e já há algumas décadas os casais exercem seu direito legal de deixar seus filhos sem família. Mas o fato de algo ter sido legalizado não significa que foi legitimado. E me parece sumamente válido tocar no assunto, uma vez que o divórcio é uma realidade cotidiana cujas vantagens quase todos nós tivemos a sorte de em algum grau experimentar.

Não é difícil para nós, habitantes da virada do milênio, notar que casamento não significa mais a mesma coisa que significou durante a história humana. A palavra é a mesma, mas o que jaz por trás do conceito? O fato de termos sido criados no mundo onde o divórcio faz parte da vida matrimonial privou-nos de entender com clareza a natureza desse fenômeno. E ao que parece, tira-se a indissolubilidade e o casamento perde o sentido. Mas por quê?

Para entender é preciso meditar sobre o que é o casamento, sobre as regras intrínsecas que o regulam e, principalmente, sobre os seus propósitos, seus frutos. Essa análise não é fácil. Qualquer um que tenha se esforçado para entender o porquê do “até que a morte os separe” notou que o assunto é grave, enlaça desde a vida mais imediata do casal até a constituição de um Estado social. Mas não só isso, é preciso pensar o que é o sexo, o supremo ato comunicativo em que dois corpos viram uma só carne e dão vida a outro ser. É preciso pensar na natureza desse novo ser, e ainda na relação dele com o casal, e com o mundo. Não é simples entender, muito menos explicar, o que vem a ser o casamento. No entanto...

Basta uma breve conversa por aí para perceber que a grande maioria – muitos dentre os quais cristãos, católicos, conservadores – define o casamento como “a união entre pessoas que se amam.” Ora, o “amor”! O termo está entre aspas porque a palavra amor também pode ser entendida como um sentimento originado num ato de vontade, onde ele perderia o caráter puramente passional e se tornaria uma espécie de “sentimento racional”. No falar cotidiano, entretanto, não é esse o significado dado a amor, sendo a palavra usada para designar um movimento erótico, misto de afeto e desejo sexual, que seria mais propriamente chamado de cupidez, ou simplesmente paixão. Mas estou aqui falando com a voz do povo, por isso o amor entre aspas. Voltando, o “amor” entendido nesse contexto refere-se a um sentimento muitas vezes tão arrebatador quanto efêmero. Que pode permanecer, com sorte, aceso por alguns anos, mas que inevitavelmente se atenuará com o tempo. As pessoas que se unem tendo por única causa esse “amor” estão fadadas ao divórcio. Assim que a chama se apaga, cada qual pega sua trouxinha, repartem as crianças ao meio, e caminham para lados opostos, quase sempre atrás de um novo “amor”.

Para tentar encontrar, rapidamente, uma alternativa à definição de “casamento por amor”, deixemos em suspenso todas as implicações filosóficas que existem no conceito e vamos pensar no mecanismo mais imediato, e prático, que regula o matrimônio: numa situação natural, quando homem e mulher se casam eles formam uma célula social de onde surgirão filhos. Os filhos são a manifestação viva dessa união, são o ponto em torno do qual o casal costuma orbitar. Eles são o motivo e o motor, são o fruto dos esforços dos pais que, a fim de sustentá-los e educá-los, precisam se manter unidos, cada qual atuando em sua função: a mãe sendo mãe, o pai sendo pai. Sem precisar discutir a questão da grandeza humana, onde vós sois deuses criados à imagem do vosso Criador, os filhos são, ao menos, cidadãos. E a mínima função dos pais seria a de criá-los para que fossem saudáveis membros da sociedade. Para que tivessem o apoio e a segurança imediata que uma criança precisa, os limites e exemplos que nutrem um adolescente e, por fim, a coragem e disposição com que um adulto se torna independente e faz girar a roda da vida. A família é o núcleo que dá forma e sustento à sociedade. E a união de pai e mãe é a condição de possibilidade da família.

 Amar e cuidar dos filhos, esse é o primeiro fim do casamento. Poderia ser também uma definição melhor, mais condizente com a natureza da coisa, e sobrevivente às intempéries passionais do casal. Porém, o que vemos atualmente quando se fala em casamento é quase o oposto dessa ideia. Pensa-se muito na relação entre o casal, e a relação do casal com os filhos é empurrada para debaixo do tapete. A paixão, a fidelidade, a divisão de tarefas, tudo parece ser mais importante do que a criação das crianças. Crianças essas, coitadas, que estão se tornando cada vez mais escassas, visto que os casais de hoje parecem ter refutado o ditado do “um é pouco...”

Agora pensem na ideia do divorcio e decidam: ela leva em consideração os pais ou os filhos? O argumento mais comum na defesa do divórcio é a garantia da felicidade do casal. Não sejamos hipócritas, em casos extremamente raros vemos o divórcio ser defendido para garantir a felicidade dos filhos. O bem-estar do casal está sempre em primeiro plano, e as crianças, que deveriam ser o centro das atenções, acabam relegadas a um fim de semana aqui, um feriado ali. O divórcio só se explica – e se aplica – numa sociedade que já não entende mais para que existe o casamento. O divórcio é como uma ideia-vírus, que destituída de vida própria, invade uma instituição e começa a roer os laços que a sustentam, invertendo o eixo natural e fazendo com que os membros da família passem a pensar primeiro, e antes de tudo, em si mesmos. Sendo a família destruída, a sociedade se dilui, se tornando algo próximo ao ambiente no qual cresceu a minha geração: nós, os filhos do divórcio.

Visto isso, é espantoso notar que quase todos os prognósticos feitos há cinco décadas por Corção a fim de alertar o poço sem fundo em que se metia a sociedade brasileira se concretizaram. Desde a moral do egoísmo hedonista que move a vida atual até o fato de habitarmos todos, não em lares, mas empilhados em caixas cada vez mais apertadas, está tudo lá, previsto, explicado, solucionado. É de se admirar – e lamentar – que esses ensaios não estejam em circulação. Ao que me consta, a última edição do livro foi em 1963, e hoje só se acha em sebos. Esse livro tem o poder de discutir sobre sexo, casamento, família, num nível tão alto, e ao mesmo tempo tão acessível e necessário, que escrevi esse texto para lhes pedir ajuda: leiam e divulguem o Claro Escuro do Corção e cumpram com sua boa ação do ano. Mas chega. Não vou mais falar. Que o livro fale por si mesmo:

“Todo o mundo sabe que o divórcio é extremamente nocivo aos filhos. Em recente inquérito feito nos Estados Unidos foi reconhecido, e proclamado em termos patéticos, que as deformações psicológicas criadas nos filhos pelos divorciados são muito mais graves que as deformações físicas criadas pela poliomielite. Há cerca de cinco milhões de aleijados psíquicos produzidos pelo divórcio nos Estados Unidos. Convém, entretanto, acentuar um aspecto do problema que frequentemente escapa aos psicólogos que aproximam os efeitos do divórcio dos efeitos produzidos pelos conflitos familiares. Bem sabemos que não é só o divórcio que fabrica crianças neuróticas, e que em muito ambiente familiar se torturam inocentes. Mas há alguma coisa diferente e específica nas consequências do divórcio. Para a criança em baixa idade, a união de pai e mãe tem um caráter especial que o adulto, sem alguma reflexão ou intuição de amor, não pode atingir. Para nós, que vimos os noivos individualmente separados, que os vimos viver um aqui outro acolá, com nomes diferentes, em bairros diferentes – para nós a união tem caráter moral, mas fisicamente nos aparece como um fenômeno acidental. Qualquer jovem casal produz em nós, durante alguns anos, um sentimento vagamente divertido e espantado. Sentimos bem o que há de gratuito e fortuito no encontro dos sexos, e temos que fazer apelo a considerações morais e religiosas para sentirmos o mistério do vínculo que une aqueles dois na mesma carne. Para a criança, ao contrário, a união dos pais é física, metafísica e necessária. Melhor do que os filósofos e teólogos, a criança vê, “d´un simple régard”, o vínculo que faz dos pais um bloco, uma base. É uma experiência afetiva e intelectual de uma importância enorme para a criança essa primeira apreensão da realidade familiar.

Assim como se abrem os olhos para o jogo das leis naturais, abrem-se também para essa realidade de pedra que a protege, que a envolve, como paredes de uma casa viva. Por isso, a separação dos cônjuges terá para a criança um aspecto de alucinação. Não se trata apenas de um afastamento livremente consentido de duas pessoas que livremente se uniram. Não será apenas a quebra de um juramento ou a rescisão de um contrato. A separação dos pais, para a criança, é um absurdo. Não é um drama moral, é uma tragédia cósmica. Não é conflito de duas pessoas, é conflito dos elementos constitutivos do universo. O mundo enlouqueceu se os pais se separam. Na mente infantil, a repercussão afetiva e intelectual significa um abalo de todas as fundamentais experiências até então colhidas. É como se a água deixasse de molhar, o sol deixasse de brilhar, a pedra deixasse de ser dura. Não é muito difícil extrapolar as consequências de tão brutal experiência: os psiquiatras estão aí para dizer no que dão os filhos do divórcio.”

Trecho retirado do ensaio “Os inocentes castigados”, do livro Claro Escuro de Gustavo Corção.

* Ao que parece, aqueles que estavam contra a aprovação do divórcio conseguiram adiar a tal votação por quase vinte anos, sendo o divórcio aprovado no Brasil somente em 28 de junho de 1977.

domingo, 27 de maio de 2012

O Paradoxo do Isolamento


 A história das minhas omissões, toda a minha história,
cabe nestas poucas palavras: um insensato horror à mistura!


Assim fala José Maria, narrador das Lições de Abismo de Gustavo Corção, ao descobrir mais um pedaço de si mesmo que antes lhe escapava. José Maria que, ao encontrar-se à beira da morte, se isola de tudo e todos com a intenção de descobrir quem é e a que veio a esse mundo, para ao fim se dar conta de que um de seus equívocos fundamentais foi ter passado toda a vida nessa outra espécie de isolamento a que ele chama de “horror à mistura”.

Corção leva seu protagonista a encarar o fato de que “a descoberta do eu se completa nos abismos da subjetividade”, inapelavelmente; e isso pressupõe, em certo sentido, que o sujeito se volte para si em detrimento do mundo. Mas é preciso notar o “em certo sentido”: a descida aos abismos da subjetividade em nenhum ponto coincide com o horror à mistura, que, dito de outro modo, consiste em horror ao próprio mundo, como se este contradissesse o Eu.

Doutor Aquiles, interlocutor dostoievskiano de José Maria no livro de Corção, explica: “Existe o genuíno, existe a verdade, mas é preciso ir buscá-la na mistura, é preciso aceitar por algum tempo a confusão do joio e do trigo.” (grifo meu) A passagem pelo mundo e pela mistura não é o fim do percurso, mas é condição necessária ao fomento da subjetividade do homem. A verdadeira (porquanto útil) introspecção só é possível após o sujeito já ter aprendido a lição de humildade que o mundo tem a nos ensinar: o amor pelo próximo como decorrência natural do amor por si mesmo.

É salutar, uma vez que faz parte do processo de autolapidação do ser humano, chegar ao momento em que se deseja desviar os olhos do mundo para cravá-los na própria consciência; é um isolamento para o bem, e em geral temporário. Ao passo em que aquele outro tipo de isolamento, o horror à mistura, não elabora um novo momento do ser, sendo mero reflexo defensivo de egos muito apegados a si mesmos (isto é, vaidosos).

José Maria foi um desses durante toda a vida, e confirma: “Essa é a minha triste dominante: uma exasperação do senso de ridículo”, senso esse que nos faz ter verdadeiro nojo daquilo que só nos parece alheio por nossa falta de autoconhecimento. O homem do horror à mistura é aquele que, sem se dar ao trabalho de procurar muito, decide já ter encontrado suas verdades e se senta sobre elas confortavelmente (às vezes, basta-lhe a verdade do seu amor-próprio acima de todas as coisas). Sobre isso, diz Doutor Aquiles: “O que envenena tudo é o contentamento mesquinho; é a vaidade.” No que emenda José Maria, compreendendo: “E quer que lhe diga aonde é, em que meio, em que grupo de homens é mais visível a vaidade? Eu lhe digo: é nos grupos de homens virtuosos, bem intencionados, bem comportados, que se unem para guardar a sã doutrina e os bons costumes.” E assim Corção desce a lenha naqueles que deveriam ser seus companheiros de luta, estivessem eles interessados em algo além de seus próprios umbigos: “Ah! e as assinaturas dos jornais católicos com fotografias de ilustres prelados; e as conferências paroquiais, em que se convencem os superconvencidos, em que se explica o horror do comunismo aos super-horrorizados, ou se apontam os inconvenientes do divórcio ao superindissolúveis casais!”

Doutor Aquiles reitera, e eu posso vê-lo acentuar cada sílaba, como se sublinhasse a obviedade suplicante da frase: “O mundo é um lugar de mistura.” Mesmo os que crêem sinceramente na dureza dos pilares em que se apóiam, se se fecham para o mundo, recusam (é o caso específico dos supercatólicos) os próprios pilares. Há algo de errado com o cristianismo da mansidão, como há algo de errado com as crenças inabaláveis. Se o cristianismo nos oferece qualquer coisa de inabalável, certamente não é uma simples crença, mas algo mais fundo, mais essencial, algo que se vai instalar no que somos e lá permanece subjacente à acidentalidade das coisas plausíveis que pode até ser que existam. O cristianismo é uma força ativa que nos revolve as entranhas; uma vez que se entre em contato real com sua mensagem, não creio possível posteriormente um retrocesso total, tampouco a indiferença, menos ainda a apaziguada mansidão. Aquele que declara ter suas entranhas acalmadas porque conheceu Deus, ou mente sobre a suposta calma ou não conheceu Deus.

Quando Corção põe na boca de seu protagonista as palavras: “Também eu tenho vivido um prolongado solilóquio”, a frase pode se referir tanto ao isolamento voluntário a que se submete o personagem durante seus últimos meses de vida, quanto à totalidade da vida deste personagem, o qual agora reconhece em sua passagem pelo mundo o erro dos que se crêem autossuficientes. Ao contrário do que se pode pensar, nem o ermitão que se isola no deserto em busca de si mesmo e de Deus nega o mundo; se ele busca a solidão e o silêncio é porque já compreendeu plenamente o atributo coletivo da existência de todo e qualquer homem, e ainda poderá voltar ao mundo com as suas lições de deserto.

É preciso que uma pessoa determine os limites de seu próprio ser sem negar o mundo. Isolar-se em si mesmo, sem se isolar do mundo. Eis o paradoxo.

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