sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Fé, Ciência e Ateísmo: uma entrevista com Daniel Darkins

O cientista e filósofo Daniel Darkins é um dos maiores defensores da ciência e do racionalismo no debate contemporâneo entre ciência e religião. Seu novo livro, O Triunfo da Ciência, é dos ataques mais fulminantes à fé que já publicados. Darkins argumenta que a crença em Deus é a maior ameaça à existência da humanidade. Sua solução é simples: um ateísmo puro, sem meias-palavras. Nós do Ad Hominem (que somos, atualmente, compostos de três cristãos e um ateu) conseguimos entrevistá-lo para nosso blog, recém-chegado a terras brasileiras. Qualquer que seja sua posição, é importante ouvir os dois lados.

Ad Hominem: Seu livro tem sido considerado desrespeitoso, e até intolerante. Como você responde a esse tipo de crítica?

Daniel Darkins: Só posso dizer que quem diz isso não entendeu minha mensagem. Meu livro é uma súplica por tolerância. Veja, eu não tenho nada contra pessoas religiosas. Alguns dos meus melhores amigos são homens e mulheres de fé, sem falar de vários parentes. Tenho a mais profunda admiração por eles. Na verdade, eu acho até que a religião tem suas características louváveis e é um belo produto da mente humana. A própria Bíblia tem ensinamentos muito salutares. O que eu oponho, o que eu ataco com força total nos meus argumentos, é o fanatismo. Fanatismo é sustentar um dogma irracional e impor suas crenças à força sobre os demais. E isso é o exato oposto da atitude científica, que é acreditar apenas no que as evidências permitem, e com a força que elas permitem, e convencer os outros com argumentos racionais.

AH: Nesse caso, não pode o ateísmo se tornar fanático?

DD: Como poderia? O ateísmo não é um sistema de crenças que possa ser imposto a alguém. Ele não adiciona nada. É simplesmente a ausência de crença em um deus; uma suspensão de juízo. Como pode uma mera ausência ser imposta?

AH: No capítulo II [“Átomos e Fantasmas”] você explica que a religião e a ciência nascem de duas visões de mundo opostas. Você pode explicar isso um pouco mais?

DD: A diferença é simples: para o cientista, o universo é um sistema ordenado, guiado por leis objetivas que não admitem exceção. Há causa e efeito, ação e reação, gostemos ou não disso. Descobrimos essas leis observando, fazendo experimentos, usando nossas mentes. Se você saltar de um penhasco batendo os braços, esperando voar, a lei da gravidade vai destruir seus sonhos. Já a religião nega isso e exige de nós um salto de fé. Para a visão de mundo religiosa, a realidade são os caprichos de uma divindade milagreira todo-poderosa. Ao invés da razão, você tem fé, sentimentos e tradições. A marca distintiva da religião é essa crença num deus, ou ao menos num reino espiritual; essa é sua essência. E se você passa a vida olhando para o céu, vivendo entre os espíritos, então a terra não importa muito. Portanto é natural que quem se preocupe em melhorar a vida aqui, neste mundo, sejam os cientistas, os ateus – eu uso os dois termos indiferentemente – enquanto os religiosos sonham com o outro lado. Se isso não é moralmente e intelectualmente falido, o que é?

AH: Pode haver ética sem religião?

DD: Pode haver ética sem ateísmo? Seguir ordens de um tirano por medo da punição não me parece muito virtuoso. O humanismo secular é o único código de valores que não depende de ameaças de danação eterna ou da expectativa das delícias do céu, mas do amor pela humanidade. Um amor livre para pessoas livres que vivem neste mundo; fazendo a coisa certa porque ela é certa. No fundo, ateísmo é isso: amor aos homens.

AH: Mesmo assim, quando contemplamos o universo, ou mesmo a face de uma pessoa amada, sentimos um maravilhamento que nos diz que a realidade é complexa e bela demais para ser sem significado. A religião captura esse sentido do sublime. Como um ateu se relaciona com isso?

DD: O ateísmo apenas reforça esse sentimento. Quando olho a Via Láctea, com todas as suas estrelas e planetas, sou tomado pelo maravilhamento. Essas coisas são deslumbrantes em si mesmas, sem referência a um deus. Mesmo porque, como poderia um deus invisível nos maravilhar se nunca o vimos? Olhe para o homem: existe alguma coisa mais admirável que o corpo humano? Nosso cérebro, nosso coração, nosso sistema digestório: como a comida desce por nossos intestinos enquanto nosso corpo absorve lentamente sua água, até chegar ao reto e jorrar ânus afora. Para mim, isso é sublime. Eu também amo poesia, música, arquitetura, gastronomia, um bom whisky. A cultura e as artes elevam o espírito humano e nos dão significado melhor do que qualquer religião.

AH: Alguns líderes religiosos consideraram seu livro profundamente ofensivo e aconselharam seus fiéis a não lê-lo. O que você pensa disso?

DD: Honestamente? Eu não esperava outra coisa. É o mesmo tipo de fanatismo que mandou Galileu à fogueira por dizer que a terra é redonda. Os muçulmanos queimam embaixadas por uma caricatura de jornal. As autoridades cristãs adorariam banir meu livro e me colocar na prisão, no mínimo. Tudo o que eu peço dos crentes é que eles mantenham suas mentes abertas. Religião e liberdade de pensamento não caminham muito bem juntos. Agora, o que eu considero ofensivo são a santa inquisição, a caça às bruxas, as Cruzadas, o Index dos livros proibidos, a jihad; tudo feito em nome da fé.

AH: Sua leitura da história não é um pouco parcial? E todas as coisas boas que a religião já fez ao longo dos séculos?

DD: Existem alguns templos e igrejas bonitos, e umas músicas religiosas relaxantes, isso eu concedo. Agora olhe para as coisas boas que a ciência já fez. Computadores, aviões, carros. Você não pode encher o estômago com arte. Com ciência e tecnologia nós agora vivemos vidas mais longas e melhores. Como eu argumento no capítulo 9 [“Julgando o Juiz”], vamos supor que Jesus tenha mesmo multiplicado um pão em milhares. Mesmo nesse caso absurdo, a ciência ainda seria superior, porque ela multiplicou não só o pão, mas todas as necessidades da vida, mais do que um milhão de vezes. Então quem é o verdadeiro salvador?

AH: Ainda assim, muitas atrocidades também foram cometidas por regimes e governantes ateus, especialmente no século XX. Stalin é um bom exemplo.

DD: Sim, Stalin; os crentes acham que podem classificá-lo de ateu. Eles convenientemente se esquecem de Hitler, um cristão devoto. Quanto ao Stalin, embora ele fosse superficialmente ateu, seu fanatismo era religioso. No caso dele, sua religião era sua ideologia. Uma religião sem deuses ou espiritualidade, mas ainda assim uma religião em suas características essenciais. É por isso que eu classifico a URSS e a China comunista entre as nações religiosas ao calcular as mortes causadas pela religião no capítulo III [“Alguns Fatos”]. É isso que acontece quando a razão dá lugar à fé.

AH: Se a religião é intelectualmente, moralmente e historicamente indefensável, como você explica que tantas pessoas tenham algum tipo de religiosidade?

DD: A religião oferece algo que as pessoas desejam. Um deus que se importa com você; vida após a morte; sentido; paz de espírito; uma razão simples para ser bom com seu vizinho. Ela pinta um mundo cor-de-rosa e bonitinho de felicidade e amor, e isso produz um sentimento acolhedor. Que homem não quereria isso? A mente humana se engana com muita facilidade. O ateísmo oferece o mundo como ele é: um universo duro, frio e impessoal, cada um por si, sem perdão vindo de cima para passar a mão em nossas cabeças. Isso requer coragem e força mental.

AH: Você concorda, então, que a religião pode ser boa psicologicamente?

DD: De jeito nenhum. Veja, eu cresci numa família católica muito tradicional. Meus pais eram crentes muito rigorosos, então falo de experiência pessoal. Tínhamos tudo: Deus, Jesus, a Virgem Maria; íamos à Missa, sem falta e sem exceção, toda Páscoa; o pacote completo. No início eu os acompanhava, mas conforme amadureci e comecei a pensar nessas questões, percebi que a religião nada mais é do que tortura mental. Há essa culpa pelo pecado, esse medo do inferno, que são crônicos. Paz e amor são uma casquinha inócua que esconde a obsessão com o pecado. Depois de considerar com cuidado todas as possibilidades, eu finalmente decidi abandonar a fé e abraçar o ateísmo, e foi só daí – eu já tinha quase treze anos – que encontrei a paz de espírito.

AH: Alguns defensores da religião afirmam que fé e razão não se excluem mutuamente. Eles tentam provar a existência de Deus racionalmente, por exemplo com as cinco vias de Tomás de Aquino. Qual sua resposta a esses argumentos?

DD: As cinco vias de Tomás de Aquino, a causa primeira e todos os argumentos similares talvez tivessem algum peso num passado distante. Mas hoje em dia temos conhecimento científico o bastante para ver como suas premissas estavam erradas. Elas dependem de modelos ultrapassados, com noções metafísicas como, por exemplo, causa e efeito. Os físicos quânticos e filósofos modernos já provaram que não existe causa e efeito; a suposta ordem do universo não passa de uma frequência estatística casual. A assim chamada “realidade objetiva” depende tanto do observador quanto de qualquer lei externa. A fé ingênua num universo objetivo e ordenando não faz mais sentido.

AH: E nossa consciência moral, nosso sentido de certo e errado? Isso não aponta para Deus?

DD: Se você quiser provar Deus usando a moralidade, terá que provar a moralidade sem usar Deus, o que é impossível. Como a biologia mostra claramente, todos os nossos desejos e impulsos são determinados pelos genes. Todos os nossos pensamentos e ações são obra de genes tentando propagar a si mesmos; a ética, o amor desinteressado, são invenções muito engenhosas de alguns genes egoístas para se replicar melhor do que outros. Como a arte e a cultura, ela não passa de secreção do cérebro. O homem é um veículo de genes egoístas. Desista: o ateísmo está positivamente demonstrado de todas as formas possíveis.

AH: Bem, então quais os seus argumentos para provar que Deus não existe?

DD: Em primeiro lugar: qual deus? [risos] Estamos no século XXI; você ainda precisa de argumentos? Nós dividimos o átomo; os mamíferos vieram dos répteis; crianças morrem; é óbvio que Deus não existe.

AH: No último capítulo do seu livro, “Por uma Sociedade Livre”, que é também o mais polêmico, você defende que o ensino religioso seja banido de todas as escolas, públicas e privadas. Isso não violaria o direito dos pais de educar seus próprios filhos?

DD: Não existe direito de fazer lavagem cerebral e violentar crianças inocentes. Você permitiria que uma escola ensinasse o mito da fada do dente aos seus filhos como se fosse verdade? E se a fada do dente fosse um tirano sádico todo-poderoso que gosta de torturar pessoas pela eternidade? Eis o cristianismo. A Bíblia é um bom exemplo: tem tanta violência e obscenidade ali; qualquer outro livro que dissesse a mesma coisa seria proibido para menores. Eu peço apenas que todas as publicações sejam tratadas com igualdade. Temos que proteger as crianças do meme de Deus. É isso que a religião é: um meme, um vírus da mente. Se temos vacinação obrigatória contra tantas doenças, por que não contra essa? É uma questão de saúde pública. Não tenha ilusões: todo crente é um homem-bomba potencial que está apenas esperando o comando de seu deus para nos explodir. Não dá para confiar em nenhum.

AH: A teoria da evolução acabou com a necessidade de Deus?

DD: Sim. Ele é um conceito supérfluo, uma entidade desnecessária. A seleção natural explica a diversidade da vida. Eu trabalhei com um time de programadores para provar isso. Uma vez que você elabore as regras do sistema, defina os parâmetros e introduza algumas entidades, elas se desenvolvem e mudam por conta própria, sem necessidade de deus algum.

AH: Como surgiu a vida?

DD: Isso é algo que os cientistas ainda estão pesquisando. Não sabemos ainda como o primeiro organismo unicelular apareceu na Terra, mas eu tendo para a hipótese do asteroide que colidiu com nosso planeta trazendo formas de vida microscópicas.

AH: E quem, ou o quê, criou essas formas de vida?

DD: Alienígenas altamente desenvolvidos.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

De Foie Gras e Couve-flores

Minha experiência pessoal é a de que o vegetarianismo tem crescido. Conhecidos, amigos e até parentes já aderiram ou pensam em aderir à causa. Alguns, é verdade, aderiram e voltaram atrás, e há a possibilidade de que seja uma moda; depois de um tempo, como o impacto do movimento será pequeno (aqui no Brasil, por exemplo, o que se tem é o aumento maciço do consumo de carne conforme as classes mais baixas ascendem economicamente), uma hora o grosso do movimento cansa e o núcleo de militantes e convictos volta a ficar só. Contudo, acho que além de moda há algo mais aí: um problema ético que o vegetarianismo (e veganismo e outros) levanta e que tem que ser respondido, pois vai se tornar cada vez mais agudo.

Estou falando aqui exclusivamente de um tipo de vegetarianismo: não o por motivos de saúde, ou de ascese espiritual, ou até o de pena pelos bichos ("tenho pena de comer o cordeirinho, mas não digo que seja imoral comê-lo"). Tenho em mente o vegetarianismo moral, que diz exatamente que provocar o sofrimento e a morte animais para nosso bem-estar é errado, imoral; ou seja, aderir ao vegetarianismo não é questão de gosto ou opção subjetiva, mas um adequar-se a uma ordem moral objetiva. E dentro das justificativas morais, trato apenas das ligadas ao direito dos animais (e não, por exemplo, do suposto auxílio que o vegetarianismo dá ao combate da fomehumana no mundo).

De certa maneira, se adotarmos como nossa postura ética o utilitarismo ou algo próximo dele, as conclusões vegetarianas são inescapáveis. O sofrimento é um mau e deve ser minimizado. Mesmo se se aceita que o sofrimento animal é, genericamente, de tipo inferior ao humano (ou seja, que é menos mau que um cachorro quebre a pata do que que um homem quebre a perna), ainda assim é possível algum tipo de correspondência ou proporcionalidade: a morte dolorosa de um milhão de golfinhos é obviamente pior do que uma unha humana encravada.

Por que um homem do mundo urbano de hoje em dia come carne? Dois motivos: costume e gosto. Nutricionalmente é possível substituir a carne por alternativas que saem inclusive mais barato (do que a carne de vaca certamente; frango já não sei- isto é, mantendo-se uma alimentação gostosa e variada, humana, sem cair na ração). Só que nenhum dos dois justifica o sofrimento animal causado pelo consumo de carne: seja a morte do bicho em si, seja o tipo de tratamento ao qual ele é sujeitado antes do abate.

Mas é claro que o argumento vai muito mais longe do que isso. Todo nosso uso de animais é para fins não-essenciais. Ovos, leite, couro, tantos outros derivados animais que exigem ou a morte ou ao menos a "escravidão" deles (vou passar batido aqui pelo argumento de que certas ocupações animais, como as vacas leiteiras, têm vida melhor e mais prazerosas do que teriam in natura). No limite, chega-se a:

"Adoro música clássica e às vezes vou a concertos, durante os quais, mesmo estando com a mente a anos-luz de distância, inebriado por todo aquele som, aquelas dezenas de instrumentos em acordo, levado por relevos sonoros inimagináveis, há sempre algo me cutucando os neurônios: esses arcos são feitos com crina de cavalo! Incômodo que não passa nem na mais delicada sinfonia. E fico pensando: o que mais deve haver de origem animal nesta orquestra? Será que essa flautista de gestos e expressões tão doces é uma devoradora de cadáveres?" (Tirado do blog do meu amigo Dennis Bluwol)

O veganismo radical é a consequencia lógica inescapável do raciocínio ético acima, mas é também algo assumidamente incompatível com: a) a população mundial contemporânea, alcançada apenas com a industrialização e a alteração maciça de muita natureza b) a civilização e a cultura como a conhecemos e, enfim, todos os desenvolvimentos da história humana desde o homem das cavernas (que já comia carne e domesticava alguns animais) até hoje. Enfim, se se é coerente, deve-se abraçar as vertentes mais radicais (e consistentes) do veganismo, que vêem que a relação supostamente problemática entre homens e animais vai muito mais fundo do que apenas comer ou não comê-los; tudo teria que ser diferente.

É um trabalho meritório mostrar por que essa visão está errada (se é que ela está), mas não é um que eu me sinta agora capaz ou desejoso de fazer (o que envolve discussões não só estritamente éticas mas antropológicas, biológicas e históricas). Vou partir do pressuposto, que é partilhado pela imensa maioria das pessoas - o que não prova nada -, de que o ideal do veganismo radical não é desejável (por quê? p. ex: incapacidade de sustentar grandes populações e dos benefícios culturais que a divisão de tarefas nos proporciona). O mundo seria um lugar pior se fôssemos todos monges jain.

E o jainismo é ainda benigno, pois troca este mundo de dores pela eternidade. Para o utilitarismo não-especista, este mundo é tudo o que há, e portanto não devemos apenas nos abster de causar sofrimento aos bichos. Temos o dever até de diminuir o sofrimento dos animais in natura (quem sabe anestesiando as presas logo antes de serem caçadas?).

o vegetariano moderado, normal, a meu ver, padece de uma inconsistência filosófica. Eu considero essa inconsistência louvável, mostra de bom senso. Ainda assim, é algo que, idealmente, deveria ser eliminado. Talvez alguns lidem com ela dando de ombros e lamentando que o mundo fica muito aquém do que deveria ser, que não dá pra ser santo no mundo moderno; ou seja, admitindo derrota. É uma maneira de se lidar com inconsistência entre crenças e ações, mas é também uma forma triste de encarar a realidade.

Para sair da inconsistência, ou se adota o veganismo, ou se nega o princípio ético da coisa toda: o prazer/sofrimento como fundamento da ética, que chamo aqui, em sentido largo, de utilitarismo. Isso significa dizer: não é a capacidade de sentir prazer e dor que confere valor moral a um ser. É o homem, dotado de razão, que confere valor moral ao universo, e apenas o seu bem tem verdadeiramente o caráter de fim. O resto da criação deve ser tratado como meio pelo homem.

Isso não quer dizer que deva-se ser cruel com os animais. Afinal, o sofrimento é um mau. Uma conclusão que se tira disso é que causar o sofrimento pelo sofrimento, por sadismo, é mau. Agora, se o mau do animal tiver uma finalidade humana (o que inclui não só a pesquisa de remédios, mas o prazer na alimentação, a diversão da tourada, etc) não há a priori nenhuma quantidade de dor animal que o torne imoral. Que venha o foie gras!

Ao mesmo tempo, não digo que a compaixão pelos animais seja equivocada. Ela é mostra da bondade de coração da pessoa. Mas não é, digamos, obrigatória. Não tê-la pode indicar certa falta de consideração pelos outros (seres humanos), mas não necessariamente. De fato, em muitos casos é bom não tê-la (ou então viveríamos tristes pelas mortes de gazelas na África); algo que é verdade, em grau menor, até para a pena humana. Digo que mesmo o vegetarianismo por pena pode ser bom, contanto que não vire uma condenação da morte de animais para o bem humano (a linha entre os dois é tênue, mas real: uma coisa é ter pena do bebê chorando por um chocolate e dar-lhe o chocolate; outra coisa é dizer que seria imoral recusar-lhe; bem conheço esse dilema!).

A razoabilidade (que não é prova de nada; se nosso modo de vida for completamente equivocado como argumentam os veganos, nossos parâmetros de razoabilidade são igualmente imprestáveis) exige que reconheçamos o homem como categoricamente superior ao resto dos seres vivos, e digno portanto de usá-los como meios para seus fins.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A Ordem do Universo Prova a Existência de Deus?

Muito comum o maravilhar-se com a ordem do cosmos e ver, por detrás dela, uma inteligência divina. Afinal, todas as coisas se encaixarem tão bem, produzindo ordens desde o maior até o menor plano que a inteligência humana alcança, parece que tem que haver algum ordenador externo.

Contudo, considerem um exemplo pequeno de ordem: jogamos água num copo cujo interior é completamente irregular e, voilà, depois de alguns instantes a água adquiriu o exato formato, muito complexo, do interior do copo. Onde está a inteligência para garantir que a água adquira precisamente esse formato, e não outro?

Claro, sabemos que pela leis da física, ela tem que adquirir esse formato. Muito bem; mas então precisamos de uma inteligência para garantir as leis da física! Pera lá: aquilo a que chamamos de leis da física são expressões abstratas, em geral matematizadas, de como os seres se comportam. E eles se comportam de acordo com suas naturezas. Logo, a lei da física não é algo exterior, imposto aos corpos, mas algo que decorre de suas naturezas (ok, podemos discutir isso aqui também, mas me parece uma opção bem mais parcimoniosa do que dizer que existem os corpos e que as leis da física são impostas sobre eles, de forma que eles poderiam continuar idênticos mas operar sob leis diferentes). Portanto, é da natureza da água que ela se comporte dessa maneria. E dado que tudo o que é é aquilo que ele é, então seria impossível que a água não manifestasse essa ordem.

Isso vale para todos os seres. Tudo é aquilo que ele é. Portanto, não importa como fosse o universo, não importa que seres existissem, ele teria ordem. "Quem garante que, dando um passo para frente, não chovam donuts de chocolate vindos do nada e que o sistema elétrico que usávamos até ontem simplesmente simplesmente pare de funcionar embora nada tenha quebrado nele? O universo poderia ser completamente caótico." Isso é ilusão verbal. Dado que a realidade é como é (ou seja, que o universo seja composto de tais e tais seres). tais eventos são impossíveis, pois envolvem contradições. Envolvem que, digamos, os elétrons deixem de ser elétrons, que uma natureza seja e não seja ela mesma.

Você me dirá "Ok, mas como e por quê esses seres existem? É preciso um Criador.". E daí concordo plenamente. O que discordo é que, para além da existência, seja necessária uma inteligência para garantir a ordem, pois, conforme meu argumento, dada a existência, a ordem se segue necessariamente.

Há, contudo, um motivo pelo qual acho que a ordem do cosmos aponta (embora não prove) a existência de Deus. O motivo é um argumento que sempre me pareceu meio fraco, mas que hoje reconsidero. Sim, o universo necessariamente tem ordem. Mas isso não nos diz sobre qual ordem, ou melhor, qual o nível de ordem, de distinção entre diferentes tipos de seres. A sopa entrópica final tem uma ordem, mas comparada com a realidade de hoje em dia mais se assemelha ao puro caos, devido à sua homogeneidade. Enfim, a ordem do universo não precisava incluir coisas como a vida, e muito menos a vida humana (negar isso é afirmar que a matéria produz a vida, e mais, a vida humana, necessariamente - o que já é, na minha opinião, uma teologia). Aliás, chama a atenção a improbabilidade da vida humana, que é algo substancialmente superior a tudo o mais que existe no universo.

E há algo que fere nosso senso de justiça (no sentido menos usual do justo como aquilo que cabe, que faz sentido e está no lugar certo) mais profundo em se dizer que um universo tal como o nosso, que permite nossa existência, seja um fruto do acaso sem finalidade. Mas claro que esse senso não prova nada, e por isso o argumento não demonstra a existência de Deus. Mas a indica.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Sem Deus

Fui convidado a participar deste espaço com a finalidade de oferecer um contraponto a alguns princípios partilhados pelos meus colegas. Não que eles apresentem uma visão homogênea e uniforme. Trata-se antes de uma divergência fundamental, referente a nossas convicções pessoais: eles são cristãos e eu me considero ateu. Portanto, antes de mais nada, gostaria de especificar melhor meu ponto de vista, pois dizer que alguém não acredita em Deus pouco esclarece sobre os princípios filosóficos que norteiam a visão de mundo dessa pessoa. A argumentação a seguir ainda não tem o objetivo de iniciar um debate, o que acontecerá em ocasiões futuras, mas apenas enumerar os motivos que fazem com que eu me declare ateu e não agnóstico.

De saída, devo dizer que não imagino que a ciência possui ou um dia possuíra todas as respostas, atendendo a todas as inquietações existenciais que, desde os primórdios da humanidade, têm feito com que as pessoas se voltem à religião. Acho que há uma limitação para o entendimento humano que nem milênios de desenvolvimento científico, ou mesmo filosófico, serão capazes de transpor. Isso para mim está relacionado ao funcionamento de nosso aparelho cognitivo, que trabalha a partir de categorias fundadas no espaço e no tempo. Dessa maneira, é impossível que consigamos de fato compreender algo além daquele ponto no qual tempo e espaço se configuraram, pois a partir daí nossas categorias de apreensão da realidade falhariam absolutamente. No meu modo de ver, a pergunta sobre a origem das coisas deve permanecer eternamente sem resposta.

Os argumentos filosóficos tradicionais que tentam demonstrar a necessidade de um Criador baseiam-se em sua maioria na noção de causalidade — noção sobre a qual se estrutura a lógica humana —, que deixa de fazer sentido se abolirmos a ideia de tempo. Para além do tempo, para além daquele momento em que as coisas começaram a existir, não há qualquer pertinência em se falar de criador ou criação. Adotando o ponto de vista da eternidade, talvez pudéssemos supor, aceitando hipoteticamente a existência divina, que é impossível determinar se Deus antecede a realidade ou o contrário; impossível porque a pergunta simplesmente não cabe. O pressuposto de que tudo precisa ter uma causa vale somente até recuarmos a um instante 0, que abarca toda a eternidade e a partir do qual a realidade se configura (digamos, num instante 1, o primeiro instante da existência, a primeira fagulha do tempo). Entre 0 e 1 haveria um abismo que ultrapassa a compreensão humana — é o mistério por excelência. Atribuir tal passagem a um ato de vontade parece-me ainda questão de fé.

Levando em conta somente o aspecto ontológico da discussão, eu poderia ser facilmente classificado como agnóstico, afinal, não defendo que é impossível que Deus tenha criado a realidade, mas que é impossível determinar uma causa qualquer, pois a própria ideia de causa me parece problemática nesse caso. Mas se eu reduzisse a discussão sobre a existência divina apenas à questão da necessidade lógica e mecânica de um agente criador, estaria agindo como muitos deístas que enxergam Deus como uma força impessoal que se limita a colocar as engrenagens do universo em funcionamento e as manter funcionando. Está claro que culturalmente a ideia de Deus transcende em muito essa imagem mecanicista. Deus não seria meramente uma força, ou uma “energia” como dizem alguns, mas também uma consciência moral, dotada de vontade e entendimento (na verdade, de vontade e entendimento absolutos). É justamente nesse ponto que minha dúvida começa ceder lugar à descrença.

Não vejo necessidade de uma inteligência superior por trás da ordem que rege o universo. Em primeiro lugar, porque essa ordem nada mais é do que um precário momento de equilíbrio das forças que compõem o tecido da realidade. E, como seres dotados de uma perspectiva limitadíssima que somos, tal momento nos parece a realidade inteira. Isso que nos habituamos a chamar de natureza, por exemplo, corresponde a uma série de arranjos bastante instáveis e provisórios, sempre à beira do colapso. Não há nada no universo que me faça supor a obra perfeita de um artista infalível. A mim, a realidade transmite a ideia de um rascunho interminável, traçado em torno de um número limitado de temas (ou formas).

Em segundo lugar, acredito que os princípios sobre os quais a realidade está estabelecida — e que determinam os temas e formas aos quais me referi — não pressupõem necessariamente uma inteligência arquitetônica. Num próximo texto, pretendo defender a ideia de que, da realização aleatória de um número finito de possibilidades infinitas, a realidade teria o poder de se auto-estruturar por meio da determinação recíproca dos elementos que a integram. Defenderei a hipótese de uma ordenação progressiva da realidade, contrária assim à hipótese de uma ordenação prévia, à qual a realidade se conformaria.

Por último, o aspecto que envolve a crença na existência de Deus do qual discordo mais incisivamente é a suposição de uma ordem moral por trás do universo. Para os que creem, tal aspecto, revestido com algum nível de angústia, apresenta-se no que se costuma evocar como “problema do mal”. Se Deus é infinitamente bom e ama a humanidade, por que existe o mal, para além da capacidade de ação humana? Não estou falando apenas do mal que se abate sobre uma pessoa como consequência da ação de outra, ao que sempre se poderia responder com a ideia de livre-arbítrio. Estou falando de coisas como maremotos que, em poucos minutos, varrem do mapa centenas de milhares de vidas humanas, ou de doenças congênitas, que independem de fatores ambientais.

Não abordarei por ora as soluções que o pensamento teológico tem proposto para o problema do mal por um motivo bem simples: tal problema só existe para os que supõem uma ordem moral incrustada nas estruturas do real, o que não é meu caso. Para mim, nossos códigos morais são culturalmente construídos, do que não excluo um componente biológico, fixado por meio da seleção natural e que teria representado um ganho evolutivo para nossa espécie. Portanto, a moral nada mais seria do que um conjunto de circunstâncias biológicas moldadas por conjunturas históricas e sociais, e a ordem moral que supostamente organiza a existência, uma projeção de valores humanos sobre a natureza.

Por último, gostaria de pontuar uma questão de foro íntimo. Muitos crentes, embora não saibam expressar em termos inteligíveis os fundamentos de sua fé, dizem simplesmente “sentir” que Deus é uma presença concreta e bastante palpável em suas vidas. Às vezes é apenas um sentimento dessa natureza que separa um crente de um agnóstico — intimamente, alguma coisa dá ao crente a certeza de uma força superior. Pois bem, não sinto nada semelhante. Sequer possuo uma convicção obstinada quanto à inexistência de Deus, um sentimento qualquer que me dê a nítida impressão de que o céu está desabitado, para usar uma imagem batida. Deixei de acreditar porque a ideia de Deus foi gradativamente perdendo espaço em minha visão de mundo, parando de fazer sentido, talvez porque nunca tenha experimentado aquele sentimento que dá ao crente a certeza da existência de seu objeto de culto.

Pretendo, futuramente, dedicar ao menos um texto a cada um desses tópicos. Como já disse, este texto ainda não tem como objetivo lançar o debate, mas apenas explicitar para meus colegas e leitores os princípios que norteiam meu ponto de vista em relação ao problema da existência (ou não) de Deus.

domingo, 4 de setembro de 2011

Noções de Etiqueta para Filósofos Acadêmicos

Muito mais difícil que o meio-termo da virtude ética é o meio-termo da virtude etiquética. O que faz sentido, pois é mais fácil achar o ponto certo na grande (ética) do que na pequena (etiqueta). Vejam só o caso da pronúncia dos nomes estrangeiros. Abrasileire demais, e você se mostrará um iletrado rústico. Fale corretamente, e será um pedante.

Começo com um caso vulgar, isto é, de fora da academia: o Facebook. Entre os extremos de "fêisbuk" (que mostra como você se acha melhor que o interlocutor por falar inglês e é muito chique por passar o feriado em Miami) e "fasseboóque" (ocorrência que nunca encontrei de fato, pois quem fala assim deve, no máximo, usar orkut), está a forma normal, urbana, cosmopolita "fêicibúqui". Nem muito aos EUA, nem muito ao Brasil.

As faculdades de filosofia não ficam para trás em matéria de etiqueta. Muito pelo contrário: pequenos deslizes, aparentemente inocentes, podem significar o fracasso da vida acadêmica de um aspirante ingênuo. Um comentário mal pensado, uma expressão de opinião pessoal contrária ao que demanda o bom gosto, e o clima social que envolve o estudante cai a temperaturas baixíssimas e duradouras.

Os nomes dos filósofos (dos quais, nem preciso dizer, não há um que seja em português) são um campo minado para o jovem que deseja ascender socialmente e adentrar o excitante mundo dos minúsculos jogos de poder e disputas de ego ferozes que compõem um universo acadêmico saudável.

Descartes.

Se o nome do insigne francês soar em seus lábios como uma jogada de baralho, pode dar adeus à sonhada iniciação científica: você está descartado. Por outro lado, fale em francês puro e o resultado será o mesmo: o professor tomará sua pronúncia como um desafio à sua autoridade, uma hubris a ser punida com a devida nemesis. Pois veja: só depois de alguns anos num pós-doc na que outrora chamava-se Sorbonne é que você conquista o direito de falar "Dêcarrt". A única exceção é se você for um dos puxa-sacos oficiais (a qualificação é importante; escreverei sobre isso em edições futuras) de um professor que já conquistou e se utiliza desse direito, caso no qual o afrancesamento não é nem sequer opcional, mas obrigatório. Para os demais, sigam pelo caminho estreito do meio: as formas "Dêcarts" ou "Dêcart" (ambas com r fraco!) criam um equilíbrio perfeito entre o francês arrogante e o brasileiro chucro.

Regras similares se aplicam a Heidegger (o elegante é "Ráideguer", não "Ráid-garr" e muito menos "Eidejér"), Locke ("Lóqui", e não "Lók" ou "Lôque"), Bacon ("Bêicom" e não "BêicãN" ou "Bacôm") e todos os outros posteriores ao florescimento das línguas nacionais. Entre antigos e medievais vale ainda um sistema mais simples, herdado de nosso passado luso: a tradução.

Você leu primeiro aqui: a tradução do nome é, em si, extremamente deselegante (e desnecessária, dado o método acima traçado). É apenas o costume de séculos que, viciando nossos ouvidos, nos acostumou com nomes como Platão. Agora vá aos diálogos dele em edições da Metrópole e sinta como a mesma tradução produz resultados de ranger os dentes: Critão, Menão, e claro, o pior de todos, Fedão. Pois você acha que Platão soa melhor do que esses? É a força do preconceito enraizado.

Os lusos levaram adiante esse expediente rude que é a tradução, se atrevendo a grafar nomes como o do artista Miguel Ângelo (nós mesmo seguíamos esse costume em épocas menos polidas), o do economista e filósofo Carlos Marcos, do utilitarista João Duarte Moenda e - cereja do bolo - do bardo imortal Guilherme Balança-a-Lança. Mas sobre tais gafes, como diria "Vitiguênstáim" (evite pronunciar o "s" como "sh"), é melhor calar.
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