— A história das minhas omissões, toda a minha história,
cabe nestas poucas palavras: um insensato horror à mistura!
Assim fala José Maria, narrador
das Lições de Abismo de Gustavo
Corção, ao descobrir mais um pedaço de si mesmo que antes lhe escapava. José
Maria que, ao encontrar-se à beira da morte, se isola de tudo e todos com a
intenção de descobrir quem é e a que veio a esse mundo, para ao fim se dar conta
de que um de seus equívocos fundamentais foi ter passado toda a vida nessa outra
espécie de isolamento a que ele chama de “horror à mistura”.
Corção leva seu protagonista a
encarar o fato de que “a descoberta do eu se completa nos abismos da
subjetividade”, inapelavelmente; e isso pressupõe, em certo sentido, que o
sujeito se volte para si em detrimento do mundo. Mas é preciso notar o “em certo
sentido”: a descida aos abismos da subjetividade em nenhum ponto coincide com o
horror à mistura, que, dito de outro modo, consiste em horror ao próprio mundo,
como se este contradissesse o Eu.
Doutor Aquiles, interlocutor
dostoievskiano de José Maria no livro de Corção, explica: “Existe o genuíno,
existe a verdade, mas é preciso ir buscá-la na mistura, é preciso aceitar por algum tempo a confusão do joio e do
trigo.” (grifo meu) A passagem pelo mundo e pela mistura não é o fim do
percurso, mas é condição necessária ao fomento da subjetividade do homem. A
verdadeira (porquanto útil) introspecção só é possível após o sujeito já ter
aprendido a lição de humildade que o mundo tem a nos ensinar: o amor pelo
próximo como decorrência natural do amor por si mesmo.
É salutar, uma vez que faz parte
do processo de autolapidação do ser humano, chegar ao momento em que se deseja
desviar os olhos do mundo para cravá-los na própria consciência; é um
isolamento para o bem, e em geral temporário. Ao passo em que aquele outro tipo
de isolamento, o horror à mistura, não elabora um novo momento do ser, sendo mero
reflexo defensivo de egos muito apegados a si mesmos (isto é, vaidosos).
José Maria foi um desses durante
toda a vida, e confirma: “Essa é a minha triste dominante: uma exasperação do
senso de ridículo”, senso esse que nos faz ter verdadeiro nojo daquilo que só
nos parece alheio por nossa falta de autoconhecimento. O homem do horror à
mistura é aquele que, sem se dar ao trabalho de procurar muito, decide já ter
encontrado suas verdades e se senta sobre elas confortavelmente (às vezes,
basta-lhe a verdade do seu amor-próprio acima de todas as coisas). Sobre isso,
diz Doutor Aquiles: “O que envenena tudo é o contentamento mesquinho; é a
vaidade.” No que emenda José Maria, compreendendo: “E quer que lhe diga aonde
é, em que meio, em que grupo de homens é mais visível a vaidade? Eu lhe digo: é
nos grupos de homens virtuosos, bem intencionados, bem comportados, que se unem
para guardar a sã doutrina e os bons costumes.” E assim Corção desce a lenha
naqueles que deveriam ser seus companheiros de luta, estivessem eles
interessados em algo além de seus próprios umbigos: “Ah! e as assinaturas dos
jornais católicos com fotografias de ilustres prelados; e as conferências
paroquiais, em que se convencem os superconvencidos, em que se explica o horror
do comunismo aos super-horrorizados, ou se apontam os inconvenientes do
divórcio ao superindissolúveis casais!”
Doutor Aquiles reitera, e eu
posso vê-lo acentuar cada sílaba, como se sublinhasse a obviedade suplicante da
frase: “O mundo é um lugar de mistura.” Mesmo os que crêem sinceramente na
dureza dos pilares em que se apóiam, se se fecham para o mundo, recusam (é o
caso específico dos supercatólicos) os próprios pilares. Há algo de errado com
o cristianismo da mansidão, como há algo de errado com as crenças inabaláveis. Se o
cristianismo nos oferece qualquer coisa de inabalável, certamente não é uma simples
crença, mas algo mais fundo, mais
essencial, algo que se vai instalar no que somos e lá permanece subjacente à acidentalidade das coisas plausíveis que pode até ser que existam. O cristianismo é uma força ativa que nos revolve as entranhas; uma vez que se entre em contato real com sua mensagem, não creio possível posteriormente um retrocesso total, tampouco a indiferença, menos ainda a apaziguada mansidão.
Aquele que declara ter suas entranhas acalmadas porque conheceu Deus, ou mente sobre a
suposta calma ou não conheceu Deus.
Quando Corção põe na boca de seu
protagonista as palavras: “Também eu tenho vivido um prolongado solilóquio”, a
frase pode se referir tanto ao isolamento voluntário a que se submete o
personagem durante seus últimos meses de vida, quanto à totalidade da vida
deste personagem, o qual agora reconhece em sua passagem pelo mundo o erro dos
que se crêem autossuficientes. Ao contrário do que se pode pensar, nem o ermitão
que se isola no deserto em busca de si mesmo e de Deus nega o mundo; se ele
busca a solidão e o silêncio é porque já compreendeu plenamente o atributo
coletivo da existência de todo e qualquer homem, e ainda poderá voltar ao mundo
com as suas lições de deserto.
É preciso que uma pessoa
determine os limites de seu próprio ser sem negar o mundo. Isolar-se em si
mesmo, sem se isolar do mundo. Eis o paradoxo.