Os meus bens já não estavam fora, nem eram
procurados sob este sol pelos olhos da carne. Aqueles que querem gozar fora de
si mesmos facilmente dissipam-se e derramam-se naquelas coisas aparentes e
temporais, lambendo com o pensamento faminto as imagens de tais objetos. Oh! se
eles se debilitassem com a fome e dissessem: “Quem nos mostrará o Bem?”
Santo Agostinho, Confissões
Um dos mais famosos aforismos de
William Blake é aquele que diz: The road
of excess leads to the palace of wisdom. Contemporâneo da Revolução Francesa
e seu irmão ideológico, Blake mantém com o espírito do nosso século vinte-e-um
a mais natural afinidade: para ambos o homem é um poço sem fundo que, tendo em
seu centro uma ausência, tão menos infeliz será quanto mais tomar do fluxo
mundano para dentro de sua goela imensurável; é, afinal de contas, um ser que não tem nada a perder, aquele a quem o
acaso jogou no palco da vida e, sem finalidade ou vigilantes, só tem contas a
prestar com seu aparelho sensório.
Deixando de lado a questão da
filiação ambígua ou cambiante do poeta William Blake a essas ideias,
assinalemos simplesmente que em tempos atuais essa é a interpretação que mais
apelo tem junto ao populacho (o qual muitas vezes coincide com nossa “classe
letrada”). Vivemos em tempos de idolatria do excesso enquanto signo de vida em movimento, tempos em que a vida
interior ou contemplativa é suplantada pelo mergulho passivo no mundo dos
sentidos.
Isto é válido sobretudo para a
cultura das grandes cidades. E aqui entramos no tema deste texto propriamente
dito: as grandes cidades, em geral; a cidade de São Paulo, especificamente. Falo
de São Paulo porque é a única megalópole que conheço de perto, mas é bastante
provável que muito do que se verifica a seu respeito valha também para os
outros grandes centros urbanos do mundo, pelo menos quanto aos tipos sociais
gerados por eles ou, dizendo de outro modo, ao efeito que a cultura da megalópole
tem sobre o humano.
São Paulo é uma cidade totalmente
voltada às exterioridades. É um lugar cuja cultura se resume a uma palavra:
dispersão. Inclusive o fascínio que ela exerce sobre tantas pessoas, residentes
ou visitantes, é comumente expresso por alguma variante da ideia de que São
Paulo é um lugar de “tudo ao mesmo tempo”; aqui todas as culturas se encontram,
todas as raças e classes sociais convivem, pode-se almoçar por 250 ou 2,50
reais. “São Paulo é a metrópole das oportunidades”, dizem. Já eu digo que São
Paulo é o palácio do excesso, onde mais facilmente do que em qualquer outro
lugar murcham as sementes da sabedoria.
É preciso, de fato, muita
fortaleza interior para não se deixar corromper por essa cidade. Ela tem
incontáveis facetas, por isso vou falar apenas daquela que conheço melhor,
porque julgo que por trás de todas as suas máscaras existe o mesmo rosto
ressequido. Eu convivo, desde que moro aqui, há seis anos e alguns meses, com
uma das dimensões de que São Paulo mais se orgulha das tantas que tem: a de
metrópole cultural. E afirmo que não preciso mais conhecer lugar nenhum para
saber que encontrei aqui o arquétipo do culturette
inculto – aquele que, vomitando por onde passa seus conhecimentos em alta cultura, se lhe trancarem num
quarto vazio com uma obra de arte, será incapaz de encontrá-la (e, por outro
lado, se adentrar um chiqueiro com a informação de que ali se encontram as
últimas tendências em arte contemporânea, medirá os porcos, beberá a lama e
tomará notas sobre a experiência). É como se o excesso de informação – o
excesso de formas tão pretensiosas quanto esvaziadas de arte – esterilizasse a
sensibilidade daqueles que vão pouco a pouco aprendendo a ignorar qualquer
possível relação entre (parafraseando o poeta) a vida apenas, sem abstração, e
o conteúdo de obras artísticas, chegando ao ponto de estas nem precisarem mais
ter um conteúdo intelectualmente apreensível, bastando excitarem os sentidos. Esse tipo de expressão artística irracional
é como uma extensão lógica das estruturas da cidade de São Paulo, a qual tem em
sua anti-arquitetura o símbolo perfeito de sua cultura (disforme, assimétrica,
sem comunicação entre suas múltiplas partes, egocêntrica). E no olho desse furacão está o tipo humano que incorpora aquele paradoxo, que consiste em as pessoas mais esterilizadas ou incultas serem justamente as que mais buscam (ou ao
menos aparentam) se cultivar.
Para entender melhor esse interessante
fenômeno psicológico, falemos de sua versão ampliada e massificada, o evento em
que o mencionado paradoxo ganha corpo em uma terrível multidão expressando em
uníssono a relação problemática de São Paulo com o objeto “cultura”. Refiro-me
ao evento Virada Cultural.
Aquilo que teoricamente se define
como “eventos culturais acontecendo durante 24h por toda a cidade de São Paulo”
tem pelo menos duas dimensões, ambas lamentáveis. A primeira e mais evidente
para quem, curioso e desavisado, resolve ir ver do que se trata é a que
chamarei de dispersiva: sob o pano de fundo dos “eventos culturais”, a multidão
se embriaga, se droga e se dissipa moralmente ao longo de 24h durante as quais tudo é permitido. Eu já estive lá,
leitor, acredite: as ruas da cidade, especialmente as do Centro, viram
verdadeiras terras de ninguém. Confesso que, circulando pelo meio da Virada
Cultural, cheguei inclusive a experimentar certo prazer, de fundo meio
antropológico, meio estético; era como estar diante da materialização de um
grotesco antes só acessível através de livros e filmes. Os brasileiros, que não
temos guerras nem catástrofes naturais em nossa memória coletiva, carecemos de
certo tipo de experiência do trágico capaz de nos mostrar a nós mesmos
cruamente. A Virada Cultural de certo modo oferece isso: quem se propuser
enfrentá-la terá diante de si um quadro horrendo, dantesco, que deve ser visto
na mesma medida em que é preciso um homem examinar sua própria consciência de
tempos em tempos e encarar a sujeira presente ali.
Por outro lado, há uma segunda
dimensão concomitante à da mera dispersão sensorial e que difere desta não tanto
por seus objetivos finais, mas sobretudo pelos meios que utiliza; trata-se de mera continuação adensada daquilo
que constitui a relação normal do paulistano com arte e cultura: pessoas
correndo de um lado para o outro, enfrentando filas intermináveis, se
acotovelando e competindo para ver quem atende a mais eventos. São uma variação
da figura do turista que, visitando ruínas do Velho Mundo, passa pelos marcos
históricos segundo o critério de já haver ou não tirado fotografias ali; uma
vez que as tirou, corre para entrar na fila do próximo local/monumento e assim
por diante. Aqueles paulistanos que não consideram a Virada Cultural como mero
pretexto para as mais diversas modalidades de dissipação sensória, isto é, que
colocam os eventos culturais em primeiro plano, já não praticam a dispersão por
se imiscuírem sexualmente com o primeiro bêbado ao lado ou encherem de química
seu cérebro a ponto de já não sentirem coisa alguma (não seria isso, no fim, o
que buscavam?); eles anestesiam, sim, seus sentidos, mas buscam fazê-lo já não
com álcool e drogas e sim por meio da famigerada arte.
O que acontece aqui é o mesmo que
faz pessoas lerem bombas morais como Dostoiévski e saírem intactas. A obra de
arte bate na consciência da pessoa sem conseguir penetrá-la, limitando-se a causar certa excitação sem forma definida. Por um lado há aí a
simples incapacidade de entender a boa arte, complexa por necessidade de sua
essência, mas não é só isso; não se trata apenas de um problema intelectual, de
carência em educação escolar; há no fundo disso um problema moral, de caráter –
quando um ser humano desconhece a si e a sua situação no mundo ao ponto de nem
saber que perguntas fazer, é natural que, se um artista lhe oferece respostas
cifradas simbolicamente, esteja o homem confuso desde a base inapto a acompanhá-lo. Não tem
jeito. Então as pessoas ficam patinando sobre a superfície de obras de arte,
sem qualquer critério ou com critérios risíveis de apreciação, até que já não
se diferenciam as boas obras daquelas produzidas pela pressa e ignorância da
cultura pop-urbana. É tentativa de expressão
artística, tá valendo – essa é a ideia da Virada Cultural paulistana e o
que faz a cabeça de seus frequentadores mais
cultos, que julgam pensar sobre o assunto.
Eu, indivíduo, Lorena Miranda,
não sou melhor que ninguém, mas já não posso lutar contra os fatos; se tenho
qualquer respeito por minha faculdade racional, afirmarei que o certo é o
certo, o errado é o errado, tal objeto é arte e tal outro não é, quando essas
verdades se me impuserem. Eu já estive lá.
Como diria Sylvia Plath, I know the
bottom. E lá está tudo errado.
Eles se movimentam em círculos viciosos e tudo se estrutura diabolicamente para
gerar sofrimento, para aniquilar a noção de pessoa, para minar toda e qualquer
autoestima. Essa máquina mortífera opera a todo vapor em São Paulo com sua
cultura da dispersão. As pessoas são jogadas na noite dessa cidade e amanhecem
só o pó. Muitas, acostumadas a ser pó, nem se dão conta de que existem outras
alternativas e pensam: viver é assim mesmo, é ter a vista turva contínua e
nauseantemente e de vez em quando receber um baque do chão.
Eu já andei demais por São Paulo
olhando a cidade pela janela do ônibus, ouvindo música e vendo tudo passar; já
me encantei e ainda me encanto com seus meandros de concreto, seus grafites,
seus mendigos pitorescos, seus pombos como sentinelas egípcios, seus jovens
fantasiados de mendigos pitorescos de luxo, o luxo de nunca ver uma face
repetida na multidão. Mas tudo isso só alimenta temporariamente, como assistir
a um filme; tudo isso não passa de exterioridade,
de luzinhas piscando para preencher nosso campo de visão. É barulho e mais
barulho e sentido nenhum.
Pela minha experiência pessoal,
São Paulo resulta nisso: cansaço, distância, confusão mental. Morar nessa
cidade é como se debater dentro de uma armadilha: você sai de manhã bem
disposto e ao fim do dia ela lhe terá sugado todas as forças. A lenda da
convivência harmônica de classes, aliás, é outra de suas mentiras. Os bairros
aqui são pequenas vilas onde, para se ser estrangeiro, basta vir de uma linha
diferente do metrô. Nada é mais fácil para São Paulo do que separar seus ricos
de seus pobres, seus paulistanos de seus nordestinos. Nada é mais fácil para
São Paulo do que dificultar o contato entre as pessoas, e tanto, que seus
habitantes acostumados a tal lógica da distância logo desenvolvem esse mesmo
traço em sua psicologia.
Não existe amor em SP? Mas não há lugar sobre a Terra privado de amor. Há, sim, lugares onde
estabelecer e expressar laços afetivos é mais difícil, onde ter vida interior e
silêncio para contemplar a realidade do espírito é mais difícil. São Paulo é um
desses lugares. São Paulo é um desses lugares onde vive muito bem quem só
precisa de uma desculpa para se esquivar da própria consciência.