[Resenha publicada originalmente no Mídia Sem Máscara.]
A rigor, Poder Global e Religião Universal (Ecclesiae,
2012), do Monsenhor Juan Claudio Sanahuja, não traz informações novas
nem secretas, mas traz informações fundamentais expostas de forma
ordenada, o que lhes dá uma inteligibilidade que geralmente lhes falta,
ainda as reputando a personagens e iniciativas bastante concretas – com o
que dá nome aos bois. O leitor brasileiro que opina sobre política já
não tem desculpas para ignorar ou dar de ombros diante do projeto
totalitário de governo mundial que canta como sereia à elite do
ocidente: isso, porque tanto A verdadeira história do Clube Bilderberg (Planeta, 2006), do jornalista espanhol Daniel Estulin, como Corporação (Cultrix, 2008), do scholar
inglês Nicholas Hagger, estão publicados no Brasil – claro, são só uma
ponta do iceberg, mas pelo menos são uma ponta que abre caminho em nosso
mercado editorial. Caminho esse, enfim, que é o mesmo do livro de Mons.
Sanahuja, que ainda acrescenta uma peculiaridade aos estudos da
matéria: o enfoque da “espiritualidade” que há décadas vem sendo forjada
e promovida como caixa de ressonância na qual, para o cidadão comum,
fará sentido a destruição sistemática de tudo que de mais honrado temos.
Livros como False Dawn,
de Lee Penn, interessam-se mais pela “doutrina” (Helena Blavatsky,
Alice Bailey, Barbara Hubbard, Teilhard de Chardin etc.), se assim
podemos chamá-la, e pelos grandes promotores da religião universal que
se quer baixar como decreto. Já ao Mons. Sanahuja interessam os
estratagemas com os quais se baixam o decreto: o desenvolvimento de
novos “paradigmas éticos” e “paradigmas religiosos” em uma operação
multilateral – e cujo controle foge até mesmo aos grandes engenheiros
sociais – de imposição de definições sempre mutáveis de “direitos
humanos”, “desenvolvimento sustentável” e outras belas palavras que o
leitor bem conhece, e cuja fonte irradiadora próxima o autor localiza
nas grandes conferências internacionais da década de 1990, inspiradas no
Relatório Kissinger (1974). Mas vamos por partes.
Primeiro:
em que consiste o projeto de uma nova religião universal? Consiste na
tentativa de “dar uma resposta única e universal a todas as questões que
possam ser propostas pelos seres humanos, em qualquer situação em que
se encontrem e onde quer que estejam. Para tanto, é necessário, como é
lógico, colonizar a inteligência e o espírito de todos e de cada um dos
habitantes do planeta”, especificamente através de um “credo religioso”,
de todo oposto ao cristianismo (“a ética judaico-cristã não poderá ser
aplicada no futuro”, afirmou Hiroshi Nakajima, ex-diretor geral da OMS).
O leitor mais precavido poderá fazer um muxoxo ao tentar se lembrar de
quando viu, se viu, algum João Batista a pregar o novo Messias da ONU.
De fato, são raros os sacerdotes de um novo culto paramentados em praça
pública a anunciar seu credo. Mas existem muitos burocratas, ongueiros e
professores simpáticos a distribuir, como se fez em setembro do ano passado, em Recife, 50 mil exemplares da Carta da Terra (documento
oficial da ONU) em forma de cordel a crianças de escolas públicas. É um dos principais documentos da “espiritualidade ecologista” que
põe homem e besta no mesmo nível, ao estilo de um panteísmo verde
grosseiro à la Mikhail Gorbachev e sua Cruz Verde Internacional, cujos agentes defendem publicamente a substituição dos Dez Mandamentos pelo decálogo da Carta.
É
tortuoso o percurso até a elaboração de um documento como esse. Em
1991, aponta Mons. Sanahuja, uma das agendas de trabalho da UNESCO dava
conta da elaboração de uma “ética universal de vida sustentável”. De
forma muito clara ali era posta a pedra fundamental do discurso
ambiental alarmista que hoje conhecemos bem: “É necessário lembrar a
verdade indiscutível de que os recursos disponíveis e o espaço da Terra
são limitados” (UNESCO, Diez Problemas Prospectivos de Población, Documento de Trabajo, Caracas, Febrero 1991, pp. 6-9).
Vale a pena aqui citar mais extensamente Poder Global e Religião Universal:
“Nestes
documentos de trabalho, a nova ética aparece quase como um paradigma
messiânico: um ‘chamado a viver uma nova ética que terá que iluminar as
interrelações complexas entre os fatores econômicos, o meio-ambiente e a
população’. Seus preceitos, afirmam, deverão guiar a tomada de decisões
dos governos, já que estas ‘não deverão ser consideradas como medidas
sobre assuntos nacionais, mas sobre assuntos de interesse
internacional’, pois, por exemplo, o alto crescimento demográfico de um
país pobre cria necessariamente um fluxo migratório para países com
melhor nível de desenvolvimento, os quais não têm capacidade de acolher
novos imigrantes.”
Apontava-se,
no mesmo documento, a necessidade de frear o desenvolvimento industrial
em países do terceiro mundo (“o progresso industrial dos países
desenvolvidos não se estenderá aos Países do Terceiro Mundo”) com vistas
a preservar o meio ambiente; mas, de modo incompreensível, chama
atenção Mons. Sanahuja, “o documento acrescenta que a única causa de
degradação ambiental nesses países é o fator demográfico, e que é
intolerável que ‘os pobres, que serão a maioria no futuro, prejudiquem
os ecossistemas do mundo para conseguir se desenvolver a qualquer
preço’”.
O que ali se plantava depois se colheria nos Princípios para viver de forma sustentável
(Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, 1991), em que
se lê que “deve-se alcançar o equilíbrio entre a capacidade de carga da
Terra, o volume da população e os estilos de vida de cada indivíduo”.
Poucos poderiam, à época da apresentação desses princípios, imaginar que
a massificação do aborto e do gayzismo seriam meios de salvar o
planeta... É que não se pode perder de vista o que Mons. Sanahuja chama
de “paradigma da reinterpretação dos direitos humanos”, assentado sobre a
idéia de que os direitos humanos são “evolutivos”. Por exemplo, a Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher
(CEDAW, 1979) reivindicara programas de “planejamento familiar”.
Posteriormente o comitê de monitoramento dessa convenção “interpretaria”
tal reivindicação como referência ao estímulo à esterilização, à
contracepção e ao aborto, sem que nada disso constasse no texto
original. Mais absurdo é o caso do comitê de monitoramento do Tratado Internacional contra a Tortura, que, por uma hermenêutica jurídica feérica, interpretaria o impedimento ao aborto como um ato de tortura contra a mulher.
Notem que isso não se limita a discussões chiques em salões da ONU: em 2009, o Comitê contra a Tortura efetivamente aplicou tal interpretação ao julgar que a Nicarágua, ao proibir o aborto terapêutico, violava o tratado.
Aliás,
muitos desses documentos sequer necessitam ter vigência no direito
internacional para que “painéis intergovernamentais” se ponham a
trabalhar no que em curto prazo já será matéria universitária
respeitável e, em seguida, política de governo. Um exemplo são os
“Princípios de Yogyakarta”, que, embora não contem com o aval da
“comunidade internacional”, vão pouco e pouco divulgando os “direitos
humanos em perspectiva homossexual” através de estudos acadêmicos e
cumplicidade de autarquias governamentais. Como se vê, atira-se de todos
os lados, mas o alvo é um só: pois a destruição dos modelos correntes
de sociabilidade (casamento gay, etc.) e a completa desvalorização da
vida humana (aborto, etc.) são aríetes a abrir caminho para um novo
projeto civilizacional, cujo esteio popular é o bom-mocismo da devoção
ecológica à “Terra como Grande Mãe, Magna Mater, Inana e Pachamama”,
como disse Leonardo Boff – sim: o homem é ainda hoje muito influente –
na Assembléia Geral das Nações Unidas em 2009.
Os capítulos 5 e 6 de Poder Global e Religião Universal,
“A confusão dentro da Igreja” e “Notas para uma conduta cristã”,
endereçam-se especialmente ao leitor católico, delineando estratégias de
oposição ao presente estado de coisas. Curiosíssima é a resenha
apresentada, no capítulo quinto, de um livro pouco conhecido, o romance Os três diálogos e o relato do Anticristo,
escrito em 1900, do filósofo russo Vladimir Soloviev. Trata-se de uma
distopia em que o diabo, no fim dos tempos, apresenta-se como
“pacifista”, “ecologista” e “ecumenista”... O leitor há de julgar o que
vai ou não de profético aí.
O livro do Mons. Sanahuja se
encerra com dois apêndices: o artigo “Obama e Blair. O messianismo
reinterpretado”, do filósofo belga Michel Schooyans (que inclusive viveu
no Brasil), tratando do governo Obama no que diz respeito, por exemplo,
a políticas abortistas; e a conferência “A Terra e seu Caráter
Sagrado”, que a irmã canadense Donna Geernaert apresentou no Plenário da
União Internacional de Superioras Gerais (UISG, Roma, 2007), e a qual
ilustra bem o modo como pessoas de dentro da Igreja pervertem a verdade
de Cristo e a põem a serviço da adoração da “Mãe Terra” do novo culto
sem altar.