terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Um momento de lucidez

Cheguei a isto. Depois das promessas e garantias que tudo ia bem – a quem eu estava enganando? Não ia bem. Não vou bem. Passei a noite em claro; a anterior também. Não lembro do último sono bom que tive. Isto é, sem a ajuda desses remédios para dormir e para acordar e para sorrir e para olhar nos olhos de quem me odeia. Joguei-os todos fora. Escrevo com a cabeça limpa e os olhos claros. Não, não estou escolhendo a morte. Escolho não mais usar o que me deixava desse jeito, viva (viva?) mas sem a única coisa que importa na vida. De que vale um sorriso sem a chama interior? De que vale dormir sem o sonho? Passei anos sem conseguir juntar um verso. Agora, finalmente, posso criar.

Juro que pensei que seria diferente. Acreditei no sonho da poesia, que é na verdade a negação da poesia. Não conhecia a hipocrisia, os cochichos, os convites que não chegavam a mim. Tudo por quê? Porque não sou como eles? Como vocês? Não escrevo movida pelo ódio. Digo sem medo que não vos odeio; quero apenas alertá-los. Julgávamos ser a nata de uma nova elite cultural e intelectual do mundo, quando na verdade reciclávamos vaidades. O que descobri nos últimos meses é o quanto mesmo nossos supostos momentos de honestidade eram vaidade. Não sou a primeira a dizê-lo: vanitas vanitatum, et omnia vanitas.

De que me valeram as láureas? Dos mesmos pares que hoje fingem que não me veem e se afastam de mim nos jantares nos quais eu ainda apareço? Hic transit gloria mundi. Sendo sincera, mesmo naqueles dias em que tudo parecia ir bem, em que eu me sentia no topo do mundo; não, em que eu queria me sentir no topo do mundo. Em que eu me sentia na obrigação de me sentir no topo do mundo. Mesmo naqueles dias, um vazio crescia dentro de mim. Talvez por causa daqueles dias. Um vazio que ainda cresce e que esta noite terá sua chance de dizer a que veio.

Tudo o que importa é o que não conseguimos dizer. Minha vida não vale nada se eu não expressar a verdade que há em mim; e só me interessa o inexpressível. Aquilo que podemos apontar sem nunca se apossar. A coisa, e não o conceito. Se há esperança de se chegar a ela, não é pela tagarelice dos intelectuais e filósofos; o que vale a pena ser dito é aquilo que só a poesia – e possivelmente nem a poesia – possa dizer. Ansiei, em vida, em dar voz a essa verdade, que está além das citações e das referências e da erudição; roupagens que escondem um rei nu.

Deixo minha afeição nestes últimos momentos a todos os meus amigos e ex-amigos; vou sem mágoas, ciente de que escolho a única redenção que me é possível. Queria poder prometer-lhes a afeição eterna, mas não acredito nela. Não digo, vejam, não digo nem mesmo que a vida eterna seja uma quimera, uma impossibilidade. Digo que ela pode existir. Digo que ela tem que existir e indubitavelmente existe para certas pessoas. Mas a mim cabe a finitude – a eternidade me é impossível, pois é só perante o vazio que me vêm os poucos momentos de lucidez. Não os trocaria pela sopa de lentilhas de uma vida eterna. Ainda que me lançassem ao inferno, valeria a pena: tudo que me interessa está neste instante de passagem do ser ao nada.

Há verdades – nisso eu acredito – que só se expressam in extremis. Que só se podem colocar em palavras nas experiências limítrofes entre ser e não-ser. No arrebatamento do amor quando carne se funde em carne. Bem sei o quanto eu o desperdicei, e também como essa possibilidade me é negada, agora, em definitivo. Jean, se você ler isto, e sei que lerá, saiba que o buraco negro que me suga por dentro começou com a ferida por você deixada. Tampouco o culpo; o vácuo interior já estava lá, e você só fez um pequeno rasgo na membrana que o separava do vácuo exterior. Em verdade, agradeço-te. O vento que me entala a garganta sussurra o seu nome.

Sem mais delongas. É hora da decisão da qual não pode haver arrependimento e nem perdão. Meus pés já sentem o vento gelado do abismo. Há coisas que só se revelam no limiar da morte. Repito que não estou escolhendo a morte; escolho o momento de clareza que ela proporciona. Que em minha queda final, o último grito revele o sopro de vida que a vida sufocou. A Deus (sive Natura) entrego minha alma; aos homens, meu último - meu único - lampejo de luz em meio à noite que a tudo engolirá.

K.

***

[nota do editor: K. foi encontrada morta em sua escrivaninha, com ambos os pulsos cortados. Em uma página separada, ao lado da carta copiada acima, estava seu último poema, escrito a pena com o sangue do pulso esquerdo, que segue reproduzido abaixo.]

***

Chorando se foi quem um dia só me fez chorar;
Chorando se foi quem um dia só me fez chorar.
Chorando estará, ao lembrar de um amor
Que um dia não soube cuidar.

A recordação vai estar com ele aonde for;
A recordação vai estar pra sempre aonde eu for.
Dança, sol e mar, guardarei no olhar
O amor faz perder encontrar

Lambando estarei ao lembrar que este amor
Por um dia um instante foi rei.
Canção, riso e dor, melodia de amor,
Um momento que fica no ar.

Ai, ai, ai
Dançando lambada 

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A Faísca Yoani

A nova cara da juventude revolucionária


Ninguém sabe direito o que pensar sobre Yoani Sanchez. A extrema esquerda diz que é agente da CIA. Os ultraconservadores, que é agente de Fidel. Outros, que é uma blogueira independente que conseguiu, graças à fama internacional e à retórica moderada, preservar alguma segurança e autonomia em meio à Cuba dos Irmãos Castro. Ninguém sabe direito de onde veio essa mulher ímpar, que aparentemente vive numa vizinhança de elite em Havana (sim, sim, existe elite em Cuba!) e que ao mesmo tempo em que sofre inconvenientes nas mãos do governo, tampouco recebe o tratamento deluxe que Fidel já dispensou a tantos outros.

Ninguém parece se interessar muito, também, pelo que ela tem a falar; Cuba é daqueles assuntos que todo mundo já tem uma opinião formada e que muito dificilmente revisa. Se Yoani diz que Fidel teve seus méritos,  isso lá me convenceria? Não. O que importa, o que todo mundo quer ou não quer enfaticamente, é que Yoani fale. Não é o que ela diz, mas o fato de dizê-lo. Se Yoani fala, a vitória é nossa; se é calada, a vitória é deles. E em sua visita, ela falou algumas vezes e foi calada em outras. Só que ontem ocorreu um fato digno de nota: uma contramanifestação libertária foi ao Conjunto Nacional em São Paulo combater a buona gente comunista que queria silenciar Yoani.

Queria e conseguiu. Depois de um tempo falando, os manifestantes pró-Paredón tomaram conta do auditório, fizeram seu apitaço e sua gritalhada até a Yoani ir embora. Venceram, mas pela primeira vez encontraram resistência. Os libertários já começam a existir nas ruas, sendo inclusive mencionados por grandes empresas do jornalismo. Os ventos estão mudando.

Foi dito que os anti-Yoani eram maioria numa ordem de 3 pra 1. É bem capaz. Para mim é um presságio positivo: já somos um terço deles? Na página do evento libertário no Facebook, um dos presentes dá seu diagnóstico: faltou disciplina e ordem na manifestação libertária. O movimento começa a aprender como fazer militância nas ruas. A vida dos Cheguevaristas não vai mais ser tão fácil daqui em diante. Queria eu ter estado lá, mas as responsabilidades do lar me impediram.

***

Militância é uma coisa feia. Os militantes "nem sempre" têm boas ideias e bons argumentos, não se pautam pelo debate civilizado, não querem conseguir adeptos só depois de uma profunda reflexão pessoal. Acreditam numa causa e agem em prol dela com absoluta convicção e sem nenhuma autocrítica; é isso que faz deles algo tão poderoso. E o libertarismo é a única ideologia da tal "ascensão da nova direita" que consegue verdadeiros militantes, no sentido feio do termo: mesmo porque é o único a apresentar ideia simples e radical, com forte potencial fanatizante. O resto, a nova Arena, a Juventude DEM, os Monarquistas; quem irá às ruas segurar suas faixas e cantar seus slogans? (Bem lembro que o IPCO ainda faz um tipo de militância pública; mas me parece antes um movimento em decadência do que em ascensão, e sua atuação política é muito pontual). Toda a força que eles têm deve-se à defesa parcial que fazem do livre mercado (cuja defesa não precisa - melhor, não deve! - de forma alguma resgatar os nomes e os símbolos de um governo autoritário que torturou e matou dissidentes); e o Liber e demais movimentos libertários fazem isso, sem a parafernália desnecessária ou até danosa.

Como eu disse, é coisa feia, mas necessária. A esquerda só chegou aonde chegou por causa da militância. Haveria Lula sem hordas de militantes e peleguistas? Se quisermos efetuar mudanças numa sociedade democrática por vias democráticas - isto é, via o voto do povão - , a militância é necessária; sem aparecer, nenhum movimento consegue nada; e para aparecer é preciso causar impacto. Vai ser preciso muito barulho, muito panelaço, muito papel craft. Uma pena, pois é um tipo de sacrifício moral a que as circunstâncias obrigam. Similar, penso, ao dever da guerra: algo nefasto, que não raro destrói a alma de quem participa, deixando indivíduos mutilados no corpo e no espírito, mas que às vezes é necessário. Um dos méritos de nossos tempos é que a propaganda oficial, de milênios, sobre as glórias da guerra, não domina mais o discurso padrão; mas mesmo o mais ferrenho pacifista deve reconhecer em seu íntimo que, se o inimigo ameaça invadir sua casa e matar seu povo, é preciso reagir. A atividade militante é um sacrifício moral bem menor do que o da guerra, mas não deixa de ser real.

Minha esperança é que, daqui alguns anos, a posição libertária esteja representada na política e cultura nacionais, já gerando mudanças e participando de toda e qualquer discussão. A militância terá seu papel nisso: produzindo material de divulgação, difundindo as versões mais simples dos argumentos (aliás, essa é outra questão boa: existe algum valor em discutir questões usando argumentação que não chegue ao nível mais rigoroso possível?) e fazendo muito barulho no espaço público. Se essas são as regras do jogo, seria  suicídio não jogá-lo! A esquerda estatizante não pode ter o monopólio das ruas.

Yoani tem sua causa, seus bons pontos, e defende coisas questionáveis também, como muitos libertários perceberam. Suas ideias, enfim, não foram o que marcou sua fala, e sim a luta para que ela pudesse falar. Foi uma pequena faísca que, espero, iniciou um fogo; um cigarrinho acesso que jogaram na palha seca. E a partir de agora a selva vai queimar!

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

O Legado da Renúncia

Repetir-me-ei um pouco. O artigo a seguir foi publicado na Gazeta do Povo, de Curitiba. Como meus leitores assíduos repararão, muito do que há nele já foi dito por mim no artigo "O Legado de Bento XVI". Contudo, como há também algo novo - uma análise de um possível significado da abdicação - julguei que faria sentido publicá-lo aqui no blog também.


***


Quando Bento XVI anunciou sua abdicação, muitos se apressaram em apontar os pontos negativos que teriam marcado seu pontificado: a crise da pedofilia ou o conservadorismo de uma hierarquia que perdeu o contato com o mundo moderno. São pontos injustos.

A crise da pedofilia, por exemplo, data de muitas décadas, e se estoura agora é em parte pelo esforço de gente como o cardeal Ratzinger, que adotou uma postura de tolerância zero com os molestadores. Já o conservadorismo de Bento XVI nada mais é do que acreditar na doutrina católica de sempre. Ainda que partes desse corpo doutrinal possam mudar no futuro (como, no passado, mudaram diversos ensinamentos), não deveria chocar o fato da autoridade máxima de uma instituição defender suas doutrinas oficiais.

Para mim, o legado de Bento XVI é outro: é a restauração da liturgia, cujos resultados são visíveis até na minha paróquia. É o esforço ecumênico, manifesto no diálogo com a Igreja ortodoxa e na criação do Ordinariato para que anglicanos entrem em comunhão com Roma. É o aumento de transparência nas contas do Vaticano. Por fim, penso nos escritos e falas do papa mais intelectual da era moderna, e que, curiosamente, atraiu quantidades inauditas de jovens à Jornada Mundial da Juventude.

Quem esperaria um papa que lê Marx e Nietzsche? Ou que faz um elogio do amor erótico, harmonizando-o ao amor cristão? A fama do Bento XVI obscurantista não resiste à leitura de seus textos. É um homem convicto do ensino oficial da Igreja, o que pode irritar a muitos; mas não é fechado ao diálogo e ao novo. Uma de suas criações, inclusive, foi o Átrio dos Gentios, uma iniciativa para promover o diálogo entre intelectuais católicos e intelectuais representativos da cultura secular, cujos méritos ele sempre reconhece, ao mesmo tempo em que vê nela muitas limitações.

Seu último legado é, sem dúvida, a abdicação. Ao renunciar, Bento XVI desmistifica um cargo que, pelos últimos 500 anos, mistificou-se além de qualquer limite. O bispo de Roma não é um super-homem, não é automaticamente mais santo ou sábio que o resto dos mortais. E não tem linha direta com Deus para que lhe cochiche verdades ao pé do ouvido. É um homem como todos nós, com suas inseguranças e falhas. Alguém que, para aprender, usa os únicos meios disponíveis: estuda, pensa, reflete, discute. Sua linha direta com Deus é a mesma que a de todos os outros crentes: a oração, na qual fé e incerteza andam de mãos dadas.

O papado é apenas um cargo. Os católicos acreditam que seu ocupante, que tem uma responsabilidade docente perante a Igreja, nunca ensinará algo que viole o conteúdo essencial da fé ou da ética cristãs. Fora essa crença, cuja aplicabilidade nunca foi perfeitamente elucidada, o papa é um homem normal eleito por meios humanos. E, como todo homem, se cansa e se enfraquece na velhice. Ao ressaltar o caráter humano do papado, Bento XVI nos obriga a olhar para o mistério divino que jaz além das carolices que sufocam e mundanizam a verdadeira fé.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Igreja como Pessoa Jurídica

A única entidade que pensa, quer e age é o indivíduo humano. Países não o fazem; raças não o fazem; bairros não o fazem; nem empresas; e nem Estados.

Nós, é claro, atribuímos ações a essas entidades impessoais. Quem vende os produtos se não a empresa que os produziu? Não é o João, gerente de vendas da empresa X, que é dono dos produtos e os vende pessoalmente para um comerciante do varejo. Ele atua em nome da instituição, e falamos como se fosse ela agindo. A ação, contudo, continua sendo dele tanto quanto se fosse uma venda de um objeto pessoal, mas é interpretada, tanto por ele quanto pelos outros membros da sociedade, como sendo não atribuível a ele pessoalmente (a não ser que ele tenha inserido nela, por iniciativa própria, algum outro elemento, como uma fraude para ganhar um dinheiro por fora). Toda e qualquer ação institucional é, na verdade, ação ou ações de certos indivíduos que são interpretadas como pertencendo à instituição.

Essa interpretação, contudo, está nas mentes; e é dúbio até que ponto essa manobra mental é capaz de isolar a pessoa de seus atos institucionais. O soldado que mata fica imune aos danos psicológicos de se tirar vidas violentamente? O empregado que só seguia ordens ou regulamentos é, por isso, isento de culpa?

Embora ficcional, o atribuir existência e atos a instituições é muito útil para nossa vida em sociedade. Nossa vida seria impensável sem pessoas jurídicas. Mas a ficção legal continua sempre sendo ficção, e se tomada como verdadeira, leva a enganos. No âmbito das instituições comuns de nossa vida (Estado e empresas), leva à impressão de que a sociedade - e todos os serviços e infraestrutura que ela implica - é algo automático, feito por entidades impessoais. As empresas estão aí provendo seus serviços, e sempre foi assim, e se algo falhar é porque alguém resolveu mexer onde não devia. Na verdade, mesmo os fatos mais banais do cotidiano, como a padaria ter um pão pra te vender, dependem de uma malha tão complexa de ações conscientes e voluntárias - que não têm nada de necessário e que podem mudar a qualquer momento. Isso leva à falta de perspectivas individuais (vê-se a realidade institucional do mundo como algo eterno e inalterável, alheio às ações das pessoas que de fato compõem o mundo) e ao sentimento de que o mundo nos deve algo, dado que tantos bens e serviços são produzidos automaticamente, sem esforço humano nenhum.

Quero, contudo, apontar para a distorção de perspectiva que nos acomete quando pensamos na Igreja como uma pessoa jurídica; isto é, como uma entidade que pensa, deseja e age mas que é, ao mesmo tempo, impessoal.

A Igreja é o conjunto dos fieis nesta vida e na próxima; não vou entrar em detalhamentos precisos: serão só os batizados? E os batizados que não se consideram parte da mesma Igreja? Uso o conceito católico atual da Igreja como consistindo de todos os fieis e abarcando mesmo gente que não é católica mas que é boa e por isso pode participar implicitamente dela. Pensemos, contudo, nos membros que são implícitos e explícitos: ou seja, os católicos em comunhão uns com os outros. Havia uma distinção básica na Igreja desde sempre: alguns de seus membros eram ordenados, capazes de ministrar uma série de Sacramentos , e outros não. Esses ordenados, descendentes dos apóstolos (lembrando que o bispo é o indivíduo plenamente ordenado, e todas as outras ordens são como que uma ordem parcial).

Enfim, o grupo dos fieis desde muito cedo aderiu à institucionalização, e com bons motivos: é preciso organizar de alguma forma a vida sacramental: saber quem é sacerdote e quem não é; quem é batizado e quem não é, saber quem pode se casar, etc. Alguns dos elementos da institucionalização estavam dados desde as primeiras gerações de cristãos: a divisão territorial das comunidades, cada uma sob os auspícios de um bispo. A reunião de muitos bispos em concílios para determinar as crenças e as práticas que devem se estender a todos. Cada vez mais, contudo, foi ganhando espaço o termo "a Igreja" como agente, coisa que hoje em dia é universal, embora o platonismo dos primeiros séculos do Cristianismo seja indefensável e mesmo impossível para nós (lembro-me da perplexidade de C. S. Lewis frente ao argumento patrístico de que toda a Humanidade pecou em Adão).

Usa-se "a Igreja" para se referir a uma série de coisas: em geral, são os clérigos, ou mesmo a cúria papal, ou mesmo apenas o papa. Mas ao se omitir a referência específica, despersonaliza-se o ato ou, o que é mais relevante, o pensamento. Se dizemos que a Igreja ensina algo, fica parecendo que uma entidade impessoal emite juízos caídos do céu. Se damos nomes aos agentes - por exemplo, "o papa X disse isso usando este e aquele argumentos, que têm sido repetidos desde então" - a aparência sobre-humana cai. Não quer dizer que o papa X não estava dizendo uma verdade, ou que o Espírito Santo não o impediria de dizer um erro naquele contexto, mas ficamos sem a muleta da ficção jurídica para nos ajudar a embasar uma posição.

Se a Igreja é composta de todos os fieis, então os bispos, ou um bispo específico, são uma parte da Igreja. Não podem falar por toda ela. Eles têm uma autoridade docente - ou talvez seja melhor falar em uma responsabilidade docente -, mas isso não tira deles, nem mesmo do bispo de Roma, a necessidade de aprender e argumentar como todas as outras pessoas do mundo. Esquecer disso permite que caiamos em afirmações como esta: "Ora, mas a Igreja não foi feita para acolher a todos? – Sim, mas quem não quer abdicar de suas opiniões para seguir a fé da Igreja já tem uma religião – a do egoísmo -, não precisa vir à Igreja Católica… Esta não deve mudar para se adaptar ao mundo; são as pessoas que precisam se conformar aos ensinamentos de Cristo."

Quando uma opinião, defendida historicamente por membros específicos da Igreja, adquire status de fé da Igreja? E como saber se um dado ensinamento bate ou não com o que Cristo ensinou? O católico está em vantagem automática sobre os demais ao ler a Bíblia e procurar entender o que se diz lá? Por que é egoísmo discordar de algum ponto do ensino oficial atual e não é egoísmo defender esse mesmo ponto? Se a imensa maioria dos fieis, dos padres e mesmo dos bispos acreditar em algo, isso é irrelevante. Mas não foi exatamente esse critério de universalidade que foi usado no passado para definir diversos ensinamentos e distinguir o que era e o que não era verdadeiro? Seja como for, parece-me claro que há uma pretensão epistemológica muito grande e infundada nos defensores mais ardorosos da ortodoxia (e a ortodoxia de hoje não é idêntica à ortodoxia de outras eras); e a nebulosidade de uma Igreja PJ, que fala e pensa por si só e não depende da mente de indivíduos específicos (embora, bem saibamos, eles pensam), ajuda a confirmar essa pretensão.

Uma pretensão que fornece uma dose de conforto - "não preciso pensar por mim mesmo, a Igreja já o faz; " - mas que, assim como os atos das pessoas jurídicas, não nos eximem da responsabilidade de pensar e ver com os únicos olhos de que dispomos: os nossos.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

O Legado de Bento XVI




Não sei o que dizer sobre a abdicação de Bento XVI, por isso decidi escrever um texto a respeito.

Quanto aos motivos da renúncia, sem dúvida o que o papa disse é verdade: ele está fraco para os fardos que o ofício exige. Entre esses fardos, sem dúvida, deve figurar a intensa oposição que enfrenta dentro da própria Igreja.

A grande mídia, como de costume, foi muito injusta com o papa, selecionando apenas aqueles pontos de seu pontificado que reforçam, para quem olha de longe, a imagem de um retrógrado altamente reacionário a vociferar contra um mundo liberal que deseja apenas ser feliz. Esses são os “pontos principais” do pontificado selecionados pelo G1: “O papado do conservador alemão foi marcado por algumas crises, com várias denúncias de abuso sexual de crianças e adolescentes e acobertamento por parte do clero católico em vários países, que abalou a igreja, por um discurso que desagradou aos muçulmanos e também por um escândalo envolvendo o vazamento de documentos privados por intermédio de seu mordomo pessoal, o chamado ‘VatiLeaks’, que revelou os bastidores da luta interna pelo poder na Santa Sé.”

Faltou dizer: o abuso sexual sistemático – que acometeu igualmente a diversas instituições, não só religiosas (o ensino público americano, por exemplo, foi palco da mesma exata dinâmica perversa) – é um problema de décadas, bem como o acobertamento. E Bento XVI foi, tudo considerado, alguém que se portou de forma exemplar, com tolerância zero para com abusos e sem conivências vergonhosas para salvar “a imagem” da Igreja. É uma crise, mas não começou no pontificado dele e nem consta que a postura dele tenha deixado a desejar.

O discurso que “desagradou aos muçulmanos” é um enorme não evento, a não ser por seu valor filosófico e histórico, que era muito bom. A revolta muçulmana foi comparável a de charges de jornal com Maomé. E de todo o modo, se irritar alguns muçulmanos fanáticos for uma falha, é, se tanto, de relações públicas.

O Vatileaks de fato marcou o período final do papado, mas novamente ele não evidenciou nada que desabone ao papa, e como até hoje o vazamento das cartas em si tenha recebido muito mais destaque do que o conteúdo de qualquer uma delas, é bem provável que o “escândalo” caia no esquecimento em breve.

Para mim, o pontificado de Bento XVI teve outros pontos memoráveis. A ênfase no aprimoramento da liturgia, que incluiu a liberação do rito antigo e o maior cuidado com como se celebra o rito novo. A jornada mundial da juventude na Espanha, em 2011, que reuniu 2 milhões de pessoas. O ordinariato para a inclusão dos anglicanos à plena comunhão com a Igreja católica. As medidas para tornar públicas e transparentes as finanças do Vaticano. A criação do “átrio dos gentios”, uma inciativa que visa a estreitar os diálogos entre intelectuais e cientistas católicos e ateus/agnósticos. Por fim, as encíclicas e demais textos e falas de Bento XVI, que revelam inteligência e erudição e apontam para a possibilidade de se ser ortodoxo e, ainda assim, intelectualmente vivo.

Assim, acho curioso que vejam Bento XVI como um terrível conservador. Alguns falam até em um papa nazista, isso sim uma mentira pura e simples. Ratzinger, de família antinazista, tendo perdido um primo com síndrome de Down para as políticas genocidas de Hitler, foi forçado a se juntar à juventude nazista, e nem mesmo comparecia às reuniões mandatórias, sendo nisso ajudado por um professor benevolente que falsificava a lista de presença em seu favor. Claro, ele poderia ter se negado abertamente a participar e ser mandado para a morte em algum campo de concentração, como alguns de fato fizeram. Mas levantar tal falta de um heroísmo belo, embora quixotesco, contra um adolescente de 15 anos (!) me parece fora de propósito. Por fim, próximo ao fim da guerra, sem ter lutado diretamente, desertou o exército.

O mito do nazismo é um golpe de mídia. Mas e o conservadorismo empedernido? Uma coisa podemos afirmar: Bento XVI acredita na doutrina oficial da Igreja tal qual ensinada no Catecismo. Quem olha de fora talvez não perceba o tamanho da revolução que seria mudar algo aparentemente inócuo: passar a aceitar, por exemplo, a licitude moral da pílula anticoncepcional. Pelo ensino oficial atual, isso não é algo que sequer o papa possa mudar, dado que a lei moral não é determinada pela vontade humana. O que não quer dizer que o ponto não devesse ser discutido com muito mais honestidade e abertura...

Enfim, no campo das doutrinas, especialmente morais, Bento XVI foi (e será ainda por duas semanas) um papa ortodoxo e que segue e reflete o ensinamento que chegou até ele. Um ensinamento que, se por vezes é inflexível para com certos atos, é também – ou tenta ser, dentro de suas restrições – receptivo a todos. A condenação aos “atos homossexuais” e aos casais de segunda união vem sempre aliada à compaixão para com eles e à afirmação de que todos, heteros e homos, divorciados ou não, são igualmente pecadores. Por mais que se questione ou discorde da postura da Igreja quanto à homossexualidade, ela não é homofóbica; pelo contrário, condena as tentativas de se humilhar ou hostilizar os homossexuais.

Em outros campos, Bento XVI é extremamente aberto: em sua relação com outras religiões e, especialmente, com outros grupos e igrejas cristãs, como protestantes e ortodoxos. Vejam o que o Patriarca de Constantinopla disse sobre a abdicação: “Rezamos para que o Senhor manifeste um sucessor digno para a Igreja irmã de Roma, e que possamos com ele continuar nossa jornada em comum pela unidade de todos rumo a glória de Deus”. Uma tal afirmação vinda da autoridade honorífica da Igreja ortodoxa representa um progresso ecumênico formidável. O mesmo se dá para com o diálogo de pessoas da Igreja com intelectuais seculares, ateus e agnósticos. Bento XVI não foi, de forma alguma, um papa ranzinza fechado para o mundo. A acusação de conservadorismo tem muito mais de sensacionalismo do que de justiça.

A injustiça midiática, contudo, foi ajudada pelas falhas de relações públicas e de procedimento do próprio Vaticano. Ninguém lá percebe que, em meio ao aparecimento generalizado de casos de abuso sexual infantil, posar de mestra moral do mundo e condenar a camisinha e a homossexualidade pega um pouco mal? E pega mal com razão. A Igreja é muito ciosa de sua existência como pessoa jurídica, como a instituição impessoal, com hierarquias e regras claras e que, por isso mesmo, pode emitir doutrinas “vindos do céu”, e não pensadas por indivíduos concretos ao longo da história. Sendo assim, o papa, como líder e representante máximo da instituição, tem o dever de responder pelos atos de seus membros e que foram permitidos e agravados pela dinâmica interna de autopreservação institucional. Bento XVI se esforçou para cumprir esse dever (com algumas lacunas, como a omissão de encontro a vítimas no México, terra dos Legionários de Cristo), mas ao mesmo tempo não viu incoerência em adotar discursos moralistas em outros contextos, quando talvez o mundo precisasse de um exemplo de humildade.

O papa e os cardeais próximos a ele e seus funcionários vivem em um mundo à parte, sem a menor ideia de que a reverência e o servilismo que vigora em seu meio não reflete o que a população normal, mesmo católica, está disposta a aceitar. Estão acostumados a tomar decisões sem nenhum diálogo, ou, o que é até pior, apenas com a aparência de diálogo. Nos últimos anos, muitas vozes de dissenso receberam um “cala a boca” do Vaticano, algumas simplesmente perdendo toda a base de sua existência. A um longo e omisso silêncio segue-se um ato canônico definitivo e implacável como raio em céu azul (algo similar, penso, ao infeliz episódio de escolha da reitoria da PUC-SP).  O conflito que se anuncia com um enorme grupo de freiras americanas, se o Vaticano endurecer o jogo, é sério; e o mesmo vale para um grande grupo de padres austríacos. Se a faísca for lançada, sabe-se lá que outros grupos contribuirão para o incêndio.

Conheço mais de uma pessoa cuja conversão ao Catolicismo se deu, em parte, pela influência do pensamento de Bento XVI. Lembro também que compareci a uma audiência pública dele em Roma no início de 2006, acompanhado de agnósticos que, embora sem nenhuma inclinação a se converter, ficaram bem impressionados com sua erudição e profundidade (a esse respeito, recomendo as considerações de Marcelo Coelho a seu respeito).

Talvez seja a produção intelectual o maior legado de Bento XVI. Se sua administração não foi marcada pela capacidade do diálogo interno, preferindo o silenciamento e as sanções institucionais, ele próprio é extremamente afeito à troca de perspectivas e a consideração aprofundada das questões com que se depara. Mesmo que para discordar (como discordo da proposta da ONU como uma espécie de governo mundial feita na encíclica Caritas in Veritate – na questão política, é interessante notar como João Paulo II era mais afeito ao empreendedorismo e à livre iniciativa em geral), elas nos mostram uma mente profunda, erudita e equilibrada (quem, no mundo não católico, esperaria um papa que cita Marx?), mas, mais importante do que isso, iluminadas pelas chamadas virtudes teologais: a fé convicta na revelação de Deus ao mundo, pela esperança de que todos possam encontrar a redenção, e pela caridade viva que busca sinceramente trazer todos à luz de Cristo. Virtudes que, sem dúvida, ele continuará a exercer mesmo destituído do cargo de uma instituição jurídica que, embora de certa maneira indispensável, é também um obstáculo ao seu exercício.
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