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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Não Somos Anões

É a segunda vez que João Mellão Neto traz o conservadorismo para o debate na grande imprensa (“Eu sou um conservador“, Estado de S. Paulo, 16/11/12). E acho que ele deve ser aplaudido por fazê-lo: novas posições, autores e referências são sempre bons em nossa cultura política cada vez mais carente de ideias. Neste segundo artigo fica explícita a influência, que já se fazia sentir no anterior, de Russell Kirk e Edmund Burke (se ele reproduz bem o pensamento desses dois autores é algo que não posso julgar).

Voltam à baila os pontos principais que ele frisara anteriormente: que os arranjos institucionais que chegaram a nós passaram por longos testes e portanto devem ser os melhores, e que nós, modernos, em relação a nossos antepassados, debruçamo-nos em ombros de gigantes. Isso não quer dizer ser avesso a toda e qualquer mudança, e sim que as mudanças propostas serão sempre graduais, aprimoramentos marginais ao invés de reformulações totais.

Além disso, há dois elementos novos. O primeiro é o rechaço ao relativismo moral; e o segundo é o valor dado ao meio-ambiente e à natureza. E quero me dedicar aqui ao primeiro desses, que ilustrará bem o que vejo como a fraqueza no cerne do pensamento conservador defendido por Mellão Neto. Diz ele:

“Voltando às principais teses conservadoras, um conservador de verdade não tolera o relativismo moral. Ainda no século passado, terríveis consequências sofreram os povos onde ocorreu um colapso da ordem moral, onde os cidadãos transigiram quanto a isso. A moral há de ser uma só, seja ela fruto de revelação divina ou tenha sido forjada pela convenção humana. Ela é o resultado de um arranjo costumeiro, cuja origem data de tempos imemoriais. E é ela que nos preserva do abismo.”

A princípio parece apenas uma defesa de uma moral/ética objetiva, ou seja, não dependente de caprichos ou adesões irracionais; mas leiam com mais cuidado. Ele diz que a moral há de ser uma só, e não que ela seja uma só. A confirmação disso é que ela pode ter origens díspares: revelação divina, convenção, arranjo costumeiro (o que está ausente: realidade, razão; tudo o que seja universalmente e objetivamente acessível a todos). Ao dizer isso, não se está rejeitando o relativismo moral; se está rejeitando apenas a variabilidade dos juízos morais, o que é muito diferente. Não se rejeita que a origem da moral esteja em alguma instância arbitrária (no capricho ou no salto de fé – que pode ser qualquer fé); rejeita-se, isso sim, que, existindo um código moral, outros existam paralelamente a ele. Isso é a ruína, isso nos joga no caos e no abismo. “A moral há de ser uma só”; não importa que seja verdadeira –cabe falar de verdade no âmbito das convenções? – e sim que seja a única. Nessa visão, o único ato verdadeiramente proscrito é propor um critério ou um valor moral diferente do dominante. Se a sociedade for escravocrata, tudo está bem; o problema nesse caso seriam os abolicionistas, ao introduzir princípios de desordem e desunião ao consenso moral outrora coeso.

Viver em um mundo escravocrata onde os homens podiam bater nas mulheres impunemente ou em um mundo em que todos tenham seus direitos individuais respeitados? Esse é o tipo de decisão que deixaremos nas mãos dos antepassados?

Nos ombros de gigantes?

O problema do conservadorismo expresso por Mellão Neto (trata-se ou não de leitura fiel de Kirk?) é que, no final das contas, ele redunda em nada mais do que uma recusa a se pensar racional (e, portanto, sistematicamente) sobre as questões da vida e da sociedade: o que nossos antepassados fizeram já deve ser o melhor; e, demais, como saber? Somos só anões em ombros de gigantes…De onde tal complexo de inferioridade? De onde se tirou que nossos antepassados sabiam mais do que nós? Tempo não é critério. A medicina tradicional do Ocidente durou milênios; e mesmo assim estava quase que completamente errada e foi completamente solapada pela medicina moderna. O mesmo vale para a física de Newton, que enterrou de uma vez por todas as doutrinas físicas aristotélicas (o que não tira, obviamente, o valor delas para o progresso do conhecimento humano). Nos campos moral e político, há progressos inegáveis também: a instauração de direitos individuais, e a descoberta de como funciona o mercado (que possibilitou diversas medidas políticas acertadas ao invés de completamente erradas), o fim da escravidão, o fim da condenação à morte por homossexualidade, o consenso hoje incontestável da igualdade dos sexos (e, portanto, do fim de práticastradicionais como a punição física da esposa), a condenação moral e proscrição da tortura, a conquista da liberdade religiosa. Como alguém pode afirmar que não houve “progresso algum”?

O que não quer dizer que a história seja feita só de progressos; meu ponto é que os progressos e retrocessos, especialmente em matéria política, são cognoscíveis e factíveis; e que portanto não devemos abrir mão inclusive de mudar radicalmente de rumo se algo que foi legado pela tradição vai demasiadamente mal.

Como uma ressalva quanto aos meios, como um alerta para que não se destrua as instituições vigentes levianamente, ele é válido: pois sabemos que o colapso das instituições básicas é terreno fértil para todo tipo de monstruosidade. Então, na medida em que, imperfeitas como sejam, as instituições garantam algum mínimo respeito a esses direitos, é melhor preservá-las. Se elas se convertem, contudo, em violadoras sistemáticas de nossos direitos (a tirania), daí já passa a ser louvável tentar derrubá-las mesmo. A mera antiguidade não prova nada. Os antigos não foram gigantes, e nem nós somos anões. Ouso dizer que é graças ao fato de eles não terem sido plenamente conservadores, mas de terem tido a coragem de inovar e romper consensos estabelecidos, que hoje gozamos dos progressos por eles alcançados e podemos mirar mais longe.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Nova Direita, Nascida Velha

Aos poucos o pensamento de direita tem chegado aos meios de comunicação de massa brasileiros, o que eu considero um bom sinal, pois significa que a obrigatoriedade de se ser de esquerda está acabando. É uma pena que a alternativa ao velho socialismo seja algo também velho (de espírito), e que tenta substituir valores ruins pela ausência de valores. Sim, falo do meu novo tema favorito: o conservadorismo.

Dessa vez foi João Mellão Neto, em artigo no Estadão. E ele começa com uma observação muito boa (talvez ela seja óbvia para muitos; eu nunca tinha me dado conta): a direita brasileira aliou-se, quase que por necessidade, aos militares; e ficou desde então associada à tortura, censura, etc. E ele também aponta, acertadamente, que a chamada "direita" é um balaio de gatos que engloba conservadores e liberais, duas coisas bem diferentes. E, mais curiosamente: é possível ser conservador liberal, conservador estatista, conservador democrata (que é o que o Mellão defende), conservador monarquista e até conservador socialista. Tudo depende do que estiver em vigor e for a "tradição" local.

Vejamos no que consiste esse conservadorismo que é uma das identidades da "nova direita".
"Em primeiro lugar, o conservador entende que os pensadores atuais são meros anões nos ombros de gigantes do passado. Eles acreditam enxergar mais longe, mas isso se dá unicamente em função da estatura de seus antecessores. No que tange a ideias, tudo o que existe já foi pensado ou implantado no passado. A única que medrou foi a da democracia liberal..."
E ainda: "Nenhuma ideia é plenamente nova. Tudo já foi pensado e idealizado. E se não foi implantado, é porque se mostrou inviável."

Convido meu leitor agora a um exercício imaginativo. Imagine-se a dialogar com um conservador - na definição dada acima - do século XIX brasileiro. Você, abolicionista entusiasmado, chega a ele com sua ideia revolucionária de acabar com a escravidão. O que responderia o velho conservador? [Perdoem os eventuais anacronismos de linguagem] "Não seja tolo, meu jovem. Não vê que nosso sistema já resiste há mais de trezentos anos? E antes dele, no Velho Mundo, tínhamos o quê? O trabalho servil. E antes dele, mais uma vez a escravidão. Claro está, portanto, que sua ideia de trabalho livre para todos é uma ideia radical, sem a menor noção de como nossa sociedade funciona, de nossas convenções e normas. Certamente alguém já pensou como você antes, e aqui estamos, ainda com a escravidão. O trabalho livre é simplesmente insustentável." Imaginem agora a reação de um judeu conservador do século I frente à novidade ensinada por Cristo...

Nos dias de hoje, o conservador defende a democracia liberal e o Estado intervencionista; em outros tempos, defenderia, com os mesmos argumentos, a monarquia absoluta e a escravidão. Mellão diz que para o conservador o novo não é necessariamente melhor que o velho. Mas a implicação lógica de sua doutrina vai além: tudo foi tentado e só o melhor sobreviveu; portanto, o que existe hoje em dia é melhor do que o que não existe (ou seja, não existe mais); logo, o novo (que não passa da repetição de algo velho e previamente descartado) é necessariamente pior que o velho. Somos anões em ombros de gigantes, e aparentemente incapazes de ver mais longe.

Isso é renegar a própria inteligência e deixar que os antepassados pensem por nós; uma forma de covardia intelectual, de se esconder atrás de uma autoridade supostamente infalível. E é também entregar o jogo completamente aos adversários. Pois a longevidade de uma instituição, embora dê a ela um caráter respeitável, não é prova de que ela é boa ou desejável em si. O socialista revolucionário apresenta um motivo para se ser contra a ordem democrática e liberal; como o conservador o rebate? "Nosso sistema é antigo". Mas pode ser antigo e péssimo, como eram as dinastias dos faraós. E cada mudança que os socialistas consigam impor (sob o nome de "reforma") vira, ela própria, uma instituição estabelecida, a ser preservada. O conservador defende hoje o que a esquerda defendia ontem.

Muito sintomático é que Mellão oponha o conservador ao "radical", outro termo que não denota nenhuma posição concreta. O radical é aquele que é consistente em suas crenças e convicções, levando-as até suas consequências lógicas. Isso pode ser bom ou mau. O oposto do radical, o moderado, é aquele que, por insegurança, cria limites arbitrários a suas propostas, para que elas não fujam muito ao senso comum. Um pouco dessa "insegurança", desse conservadorismo, é saudável no campo da prática; afinal, é possível errar, e o avanço gradual rumo aos objetivos permite correções e desvios prudenciais de rota. Mas isso se aplica aos meios; no reino dos fins, quem não é "radical" é apenas inconsistente, medroso. E o conservadorismo é uma ideologia medrosa: subjuga sua mente ao peso do passado, como forma de fugir da responsabilidade (em verdade inescapável) do pensamento individual.

Idade não é critério de acerto. A tradição acumula muita sabedoria, mas muita burrice também. Para distinguir um do outro, preservando o bom e descartando o ruim, é preciso julgar a própria tradição à luz da razão. O verdadeiro inimigo do conservadorismo não é o socialismo, ou a esquerda (que pode ser conservadora, como são os nossos velhos conservadores - ACM, Sarney, etc. - e como era a elite do partido comunista na União Soviética), mas a razão.

A frase final do artigo não poderia ser mais clara. À sociedade conservadora, que crê numa ordem moral permanente no universo, Mellão opõe a sociedade hedonista. "Mas se, por outro lado, não passar de uma malta de indivíduos ignorantes das normas e convenções, voltados exclusivamente para a imediata satisfação de seus apetites primários, essa sociedade, por melhor que seja o seu governo, desaparecerá." O que sustenta a moral social são simplesmente as normas e convenções; se as abandonarmos, cairemos no hedonismo animalesco. Temos que escolher entre a devoção a normas e convenções (o passado como critério absoluto) ou a esbórnia niilista. O que foi suprimido nessa dicotomia maléfica é justamente a vida da virtude, a vida racional, que não é nem obediência cega, nem desvario alucinado. E é justamente esse valor (que por mais antigo que seja, será sempre jovem) que falta aos parâmetros éticos e políticos dos dias de hoje; não a ideologia de quem já desistiu do mundo, que por mais que compre roupas novas, será sempre velha.
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