Dessa vez foi João Mellão Neto, em artigo no Estadão. E ele começa com uma observação muito boa (talvez ela seja óbvia para muitos; eu nunca tinha me dado conta): a direita brasileira aliou-se, quase que por necessidade, aos militares; e ficou desde então associada à tortura, censura, etc. E ele também aponta, acertadamente, que a chamada "direita" é um balaio de gatos que engloba conservadores e liberais, duas coisas bem diferentes. E, mais curiosamente: é possível ser conservador liberal, conservador estatista, conservador democrata (que é o que o Mellão defende), conservador monarquista e até conservador socialista. Tudo depende do que estiver em vigor e for a "tradição" local.
Vejamos no que consiste esse conservadorismo que é uma das identidades da "nova direita".
"Em primeiro lugar, o conservador entende que os pensadores atuais são meros anões nos ombros de gigantes do passado. Eles acreditam enxergar mais longe, mas isso se dá unicamente em função da estatura de seus antecessores. No que tange a ideias, tudo o que existe já foi pensado ou implantado no passado. A única que medrou foi a da democracia liberal..."E ainda: "Nenhuma ideia é plenamente nova. Tudo já foi pensado e idealizado. E se não foi implantado, é porque se mostrou inviável."
Convido meu leitor agora a um exercício imaginativo. Imagine-se a dialogar com um conservador - na definição dada acima - do século XIX brasileiro. Você, abolicionista entusiasmado, chega a ele com sua ideia revolucionária de acabar com a escravidão. O que responderia o velho conservador? [Perdoem os eventuais anacronismos de linguagem] "Não seja tolo, meu jovem. Não vê que nosso sistema já resiste há mais de trezentos anos? E antes dele, no Velho Mundo, tínhamos o quê? O trabalho servil. E antes dele, mais uma vez a escravidão. Claro está, portanto, que sua ideia de trabalho livre para todos é uma ideia radical, sem a menor noção de como nossa sociedade funciona, de nossas convenções e normas. Certamente alguém já pensou como você antes, e aqui estamos, ainda com a escravidão. O trabalho livre é simplesmente insustentável." Imaginem agora a reação de um judeu conservador do século I frente à novidade ensinada por Cristo...
Nos dias de hoje, o conservador defende a democracia liberal e o Estado intervencionista; em outros tempos, defenderia, com os mesmos argumentos, a monarquia absoluta e a escravidão. Mellão diz que para o conservador o novo não é necessariamente melhor que o velho. Mas a implicação lógica de sua doutrina vai além: tudo foi tentado e só o melhor sobreviveu; portanto, o que existe hoje em dia é melhor do que o que não existe (ou seja, não existe mais); logo, o novo (que não passa da repetição de algo velho e previamente descartado) é necessariamente pior que o velho. Somos anões em ombros de gigantes, e aparentemente incapazes de ver mais longe.
Isso é renegar a própria inteligência e deixar que os antepassados pensem por nós; uma forma de covardia intelectual, de se esconder atrás de uma autoridade supostamente infalível. E é também entregar o jogo completamente aos adversários. Pois a longevidade de uma instituição, embora dê a ela um caráter respeitável, não é prova de que ela é boa ou desejável em si. O socialista revolucionário apresenta um motivo para se ser contra a ordem democrática e liberal; como o conservador o rebate? "Nosso sistema é antigo". Mas pode ser antigo e péssimo, como eram as dinastias dos faraós. E cada mudança que os socialistas consigam impor (sob o nome de "reforma") vira, ela própria, uma instituição estabelecida, a ser preservada. O conservador defende hoje o que a esquerda defendia ontem.
Muito sintomático é que Mellão oponha o conservador ao "radical", outro termo que não denota nenhuma posição concreta. O radical é aquele que é consistente em suas crenças e convicções, levando-as até suas consequências lógicas. Isso pode ser bom ou mau. O oposto do radical, o moderado, é aquele que, por insegurança, cria limites arbitrários a suas propostas, para que elas não fujam muito ao senso comum. Um pouco dessa "insegurança", desse conservadorismo, é saudável no campo da prática; afinal, é possível errar, e o avanço gradual rumo aos objetivos permite correções e desvios prudenciais de rota. Mas isso se aplica aos meios; no reino dos fins, quem não é "radical" é apenas inconsistente, medroso. E o conservadorismo é uma ideologia medrosa: subjuga sua mente ao peso do passado, como forma de fugir da responsabilidade (em verdade inescapável) do pensamento individual.
Idade não é critério de acerto. A tradição acumula muita sabedoria, mas muita burrice também. Para distinguir um do outro, preservando o bom e descartando o ruim, é preciso julgar a própria tradição à luz da razão. O verdadeiro inimigo do conservadorismo não é o socialismo, ou a esquerda (que pode ser conservadora, como são os nossos velhos conservadores - ACM, Sarney, etc. - e como era a elite do partido comunista na União Soviética), mas a razão.
A frase final do artigo não poderia ser mais clara. À sociedade conservadora, que crê numa ordem moral permanente no universo, Mellão opõe a sociedade hedonista. "Mas se, por outro lado, não passar de uma malta de indivíduos ignorantes das normas e convenções, voltados exclusivamente para a imediata satisfação de seus apetites primários, essa sociedade, por melhor que seja o seu governo, desaparecerá." O que sustenta a moral social são simplesmente as normas e convenções; se as abandonarmos, cairemos no hedonismo animalesco. Temos que escolher entre a devoção a normas e convenções (o passado como critério absoluto) ou a esbórnia niilista. O que foi suprimido nessa dicotomia maléfica é justamente a vida da virtude, a vida racional, que não é nem obediência cega, nem desvario alucinado. E é justamente esse valor (que por mais antigo que seja, será sempre jovem) que falta aos parâmetros éticos e políticos dos dias de hoje; não a ideologia de quem já desistiu do mundo, que por mais que compre roupas novas, será sempre velha.