sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Utilitarismo Cristão

A preocupação maior do Cristianismo é a salvação da alma. É a melhor coisa que podemos querer para nós mesmos e para os outros. O amor cristão é compatível, em casos extremos, com querer até mesmo a morte do próximo (por exemplo, se for um terrorista perigoso), mas não - nunca - sua perdição eterna. A "salvação das almas", entendida genericamente, é, segundo alguns, o princípio que deve guiar os atos individuais.

Chegamos assim a uma espécie de utilitarismo cristão. O bom cristão é aquele por cujas ações salvar o maior número de almas possível e que, obviamente, queira salvá-las; se um homem comete um crime terrível com a intenção de ficar rico e, acidentalmente, isso acaba convertendo e salvando milhões de seres humanos, isso não faz dele um homem bom. (É óbvio que quem salva os homens é Cristo; aqui estamos usando a linguagem popular, a mesma que usamos ao dizer que fulano converteu ciclano.) E como a salvação da alma é, sem dúvida, o evento com maior utilidade imaginável (utilidade infinitamente maior do que mesmo o maior deleite possível aqui neste mundo), pode-se mesmo dizer que o bom cristão busca maximizar a utilidade (ou felicidade) do maior número de pessoas; só que isso se faz mandando suas almas para o Céu.

Mas e se for possível, pecando, salvar uma alma? A resposta tradicional é que não se deve fazê-lo, mas sempre junto da convicção de que é quase impossível haver um dilema desse tipo. Afinal, a comunhão dos santos é tal que uma boa ação, uma ação movida pela caridade, beneficia a todos os homens; e uma má ação, mesmo que tenha efeitos imediatos bons, prejudica a vida espiritual dos demais cristãos. E que mesmo esse efeito imediato bom dificilmente incluirá a salvação de uma alma. Afinal, como isso seria possível? Matando alguém que está em estado de graça? Mas você nunca sabe se uma pessoa está realmente em estado de graça.

Só que existe uma situação na qual essa relação acidental entre pecado e salvação da alma alheia (pois a relação essencial é entre virtude e salvação) pode ser consistentemente produzida. Isso ocorre porque existe um estado da vida, plenamente observável (ao contrário do estado de graça nos adultos), em que, se o indivíduo morre, ele vai com certeza absoluta para o Céu: o do bebê batizado.

A salvação de um homem adulto é incerta (segundo os Verdadeiros Católicos, é quase certo que a maioria das pessoas no mundo moderno se destinam ao Inferno). A de um bebê batizado é infalível. Portanto, se aceitamos que a salvação da alma é um bem tal que comparado a ele todos os outros são praticamente irrelevantes (é comparar o infinito ao finito), segue-se que o homem que mata um bebê batizado lhe faz um grande serviço: priva-lhe de uns noventa anos de felicidade imperfeita e lhe garante, desde já, a felicidade perfeita e eterna.

Alguém pode contra-argumentar que o bebê que morre e vai para o Céu não teve tempo de ser bom e virtuoso, e que portanto a alma do adulto que se salva tem uma felicidade maior no Céu. Logo, pode ser um desserviço ao bebê matá-lo para que ele garanta o Céu. Essa objeção não procede. Primeiro porque a felicidade essencial de todos os salvos é a mesma; a diferença é apenas acidental, ou seja, finita; uma ou duas cerejas a mais no mesmo bolo. Esse ganho acessório não pode ser comparado ao ganho básico que é garantir a salvação da alma. Ademais, é bem capaz que muitas pessoas que se salvem cheguem ao fim da vida num estado espiritual pior do que o bebê; isto é, mais voltados para o mal do que para o bem. São salvos por se arrependerem, quererem de forma tíbia o bem, embora seu deslocamento durante a vida tenha sido mais na direção contrária. Chegar à idade adulta, portanto, torna a salvação incerta e, mesmo que o indivíduo se salve, não garante que seu estado beatífico seja melhor do que o da alma do bebê que morreu sem pecado.

(Olhando o bebê, não temos como saber se ele, quando for adulto, se condenará ou se salvará, e qual será o estado final de sua alma. Portanto, na falta de maiores informações, e sendo conservadores, supomos que haja 50% de chances de uma pessoa se salvar e que, dos que se salvam, 50% estão melhores que a alma pura dos bebês e 50% estão piores. Ou seja, comparando as utilidades esperadas (tendo a salvação como 100 e a perdição como zero) temos: bebê batizado: 1*100 = 100. homem adulto: 0,5*0 + 0,5*(0,5*99 + 0,5*101) = 0 + 0,5*100 = 50. A utilidade esperada do que morre bebê é maior do que a do que morre adulto. Se quisermos maximizar o número de salvos ou a beatitude esperada, matar os bebês batizados é a melhor estratégia.)

Portanto, um serial killer católico, que matasse o maior número de bebês batizados (se considerarmos acertada a crença mais aceita hoje em dia de que não há Limbo, e que portanto mesmo os bebês não-batizados são salvos, a qualificação batizados é desnecessária), não por sadismo ou sede de sangue, mas para garantir a salvação de suas almas, estaria agindo bem? Ora, ele certamente estaria tomando a "salvação das almas" como o guia máximo de seus atos. Estaria condenando sua alma ao Inferno? Sim, mas o que é a perdição de uma alma se comparada à salvação de milhares e milhares de outras? E sacrificar-se pelo bem do outro não é justamente a mais nobre ação possível? Pois esse homem sacrifica seu bem máximo, a salvação, para que o resto do mundo a alcance. Ele quer a melhor coisa possível para o próximo, e seu desejo não fica estéril: ele garante com certeza absoluta que o próximo ganhará esse bem. Não seria nosso serial killer católico, verdadeiramente, um santo?

***

É óbvio que o assassino em questão é um monstro, e não um santo. Quero apenas indicar como certos lugares-comuns, alguns deles bem tradicionais, com os quais se tenta explicar e formular filosoficamente a ética cristã, não dão conta do recado. A pergunta de se a pessoa deve estar disposta a ir para o Inferno para que outra seja salva é sempre respondida - e acertadamente, na minha opinião - com um "não". Mas é uma restrição imposta, extrínseca e até meio contraditória com o resto da ética, formulada em termos de que "fazer o bem é se sacrificar pelo próximo", "tudo deve ser feito pela salvação das almas", ou ainda que a vida neste mundo não importa, só importa a salvação da alma.

Resta, então, a pergunta: Onde está o erro no raciocínio do serial killer cristão; ou, melhor dizendo, de nosso utilitarista cristão? Por que sua ação não é boa?
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