O regionalismo literário é fenômeno típico do subdesenvolvimento intelectual. Nas literaturas inglesa, francesa e alemã, não existe regionalismo como o encontramos no Brasil, e não existe porque, como poderia dizer – vamos imaginar – um russo, a região é mundo; quiçá, o mundo. Serei o último a negar o valor de obras-primas de nossa literatura “regionalista” como Fogo Morto; falo apenas do acanhamento com que exorcizamos de nossa mentalidade um cacoete crítico datado, posto que regionalismo é mais um conceito inadequado criado pela crítica – seja com saúde e vigor de idéias, pelo Gilberto Freyre de Região e Tradição, ou com decrepitude estética, como ainda hoje encontramos em manuais escolares a reverberar Antonio Candido – e menos uma força ingente de nossa criação literária; por certo, colaborou para tanto a desarticulação histórica dos diferentes tipos de desenvolvimento entre as regiões do país, notadamente nordeste e sudeste.
Algo do que digo talvez aluda ao já tão praguejado e hoje exumado cadáver do “provincianismo” brasileiro e a incapacidade de sua cultura erguer-se ao plano da universalidade. Contudo, não penso nisso, e se pensasse seria justamente para defender a província contra o vício do universalismo cosmético de quem, desconhecendo-a, quer cruzar seus limites e emigrar para as alturas excelsas da cultural universal, seja lá o que isso for e onde porventura esteja (às vezes na Inglaterra, não raro na Alemanha, quase sempre na França...).
O que digo é só exórdio ao tema de nosso antiprovincianismo corrente, cujo erro está em desconhecer que só está apto a produzir algo que fale a todos os homens de todas as épocas o indivíduo que olhou com clareza atroz o que se passa ao seu redor e amou ou odiou, com todo o empenho do seu ser, a sua particularíssima situação concreta. (No cômputo final se verá que sempre se trata de amor: o conhecimento efetivo de algo pressupõe, em algum nível, um tipo de identificação com o objeto, ao qual só se pode chamar adequadamente de amoroso.) Em um momento como o atual da cultura brasileira, em que paira no ar um esforço difuso e espontâneo de reeducação – todo estudante hoje diz “Há um monte de coisas erradas, não é bem por aí, portanto...”, e as diferenças entre os vários espécimes estão no diagnóstico das “coisas erradas” e nos prognósticos e programas do “portanto...” –; mas, como dizia, num momento como este importa muito que atinemos ao lugar onde estamos. O que falo nada tem que ver com patriotismo ou com politicagem, mas com a sintonização das antenas da raça e com atenção e apreço, por exemplo, àqueles que antes de nós se dedicaram a compreender a situação existencial do ser humano nascido e vivido num lugar chamado Brasil.
A impopularidade atual, ou mesmo desconhecimento puro e simples, de sérias tentativas de resposta à indagação pelo local onde estamos diz muito. Deixamos de lado caminhos abertos por obras como Interpretação da Realidade Brasileira, de João Camilo de Oliveira Torres, Fenomenologia do Brasileiro, de Vilém Flusser, A língua nacional, de João Ribeiro – e, por falar em língua, imagino, sinal dos tempos, que parecerão ou muito triviais ou muito excepcionais as lições do Ensaio de estilística da língua portuguesa, de Gladstone Chaves de Melo, àqueles que andam a escrever com cariz de gramática universal inglesa traduzida para o coitado português.
Em parte, isso se deve a uma componente histórica de nosso antiprovincianismo: a dissociação entre os fatos de nossa cultura e a visão cultural que temos deles. Esse é o motivo de não desenvolvermos, em que pese termos pelo menos seis bons ou grandes filósofos, uma tradição filosófica sólida no Brasil. Exceção, daquelas que legitimam a regra, deve ser feita à obra do lógico Newton Carneiro da Costa, criador da lógica paraconsistente (ou LP, para os íntimos, entre os quais infelizmente não me incluo), que encontrou lugar não só em muitas universidades estrangeiras como também em algumas nacionais, a exemplo da UFPR e da Unicamp. Mas, vejam, apreciamos muito fenomenologia e Heidegger, mas quase não levamos em conta o que Vicente Ferreira da Silva, em ensaios como Dialética das Consciências, tem a dizer a respeito. Amamos Immanuel Kant, mas não integramos a sério em nossos debates a seu respeito o que Miguel Reale, mais que todos, tem a dizer com livros como Experiência e Cultura. Apreciamos Wittgenstein e estudos de análise da linguagem, mas pouca bola damos ao Vilém Flusser de Língua e Realidade. Os exemplos poderiam se multiplicar à náusea.
Institucionalmente, aliás, o problema se agrava. É detalhe, mas detalhe significativo: o primeiro mestre em “Pensamento Brasileiro” formado nestas plagas surgiu, por assim dizer, outro dia – Ricardo Vélez-Rodríguez na PUC-Rio, em 1974! Também o primeiro a tanto, doutorou-se ele em “Pensamento Luso-Brasileiro” na Universidade Gama Filho em 1984, mas ambos, aquele mestrado e este doutorado, foram, segundo conta o professor neste artigo, fechados por “perseguição da CAPES”. Não é de estranhar, assim, que tenhamos chegado aonde chegamos e como chegamos, e não poderei considerar de todo equivocado o marxista que chamar à minha geração e à anterior de “alienadas”. Alienamo-nos de nós mesmos porque quisemos. Fugimos do provincianismo e chegamos – perdoem a comparação indevida – a uma situação cultural ainda mais vaga e frouxa que a daquela do Império, com a versão nacional do “ecletismo” de Victor Cousin, e pior: com saudade dos jegues.
Retornemos, portanto, à província. É o que nos aconselha Tolstoi: “Canta a tua aldeia e serás universal”.