quarta-feira, 25 de junho de 2014

Foi muito bom enquanto durou

Caros leitores,

Considerável porção dos dramas humanos se concentra nos fins de episódios. O presente final, porém, pretende-se desprovido de qualquer tragicidade.

Vocês decerto notaram que o blog já não tem o mesmo gás de antes. Pois bem, onde não há fumaça extinguiu-se o fogo: esta carcaça já não vive, aqueles que a moviam já têm outros interesses e, em vista disso, não há por que não oficializar o fim do Ad Hominem.

Não brigamos nem morremos, apenas... mudamos. Um coletivo de articulistas precisa de pelo menos três membros ativos revezando-se na publicação de textos e alimentando as discussões. O que aconteceu nos últimos tempos foi o gradual desinteresse de alguns dos autores pela atividade de blogar e, à medida que se ia esvaziando a casa, aqueles que ainda têm saco, isto é, ainda escrevem na internet foram perdendo o estímulo de publicar solitários. Consideramos a possibilidade de renovar os membros (o convite a Filipe Celeti, gentilmente aceito, ilustra essa tentativa), mas no fim das contas há uma grande tristeza nesse seguir adiante à força, como essas bandas de rock cujo último membro original morreu há dez anos.

Afinal, o Ad Hominem não era senão a expressão por escrito de debates travados entre um grupo de amigos. O sucesso do blog ao longo desses três anos se deveu justamente à química entre os articulistas, às faíscas produzidas pelo atrito entre suas afinidades e divergências. É difícil imaginar um Ad Hominem feito de outra matéria.

Aquele que um dia se incumbir de escrever a História Concisa da Blogosfera Brasileira pode incluir o seguinte verbete sobre este já saudoso blog:

O Ad Hominem foi um site opinativo criado em 2011 por Rafael Falcón, Joel Pinheiro da Fonseca, Lorena Miranda e Day Teixeira. Em seguida, juntaram-se ao grupo Ronald Robson, Gustavo Nogy, Emmanuel Santiago e Francisco Razzo. (Juliano Torres contribuiu por um tempo, mas a culpa é toda do Joel!) Com atualizações quase diárias, não demorou a tornar-se um dos “must read” da blogosfera conservadora do país. Notório pelas inflamadas polêmicas, seus membros ganharam fama de brigões e não mediram esforços para fazer jus ao epíteto. Com leitores fiéis e inimigos mais fiéis ainda, o blog teve seus trolls de estimação, encorajados pela seção de comentários que, com exceção dos meses finais, era aberta a anônimos e sem qualquer moderação. Falava-se mal, mas se falava da discussão em curso no Ad Hominem. Foi assim até fins de 2013, quando as postagens começaram a rarear e as polêmicas praticamente desapareceram. Desacostumados do tédio, os membros fundadores decidiram pela eutanásia do corpo em sofrimento e extinguiram o blog em junho de 2014.

Agradecemos profundamente a nossos visitantes pela leitura, pelos comentários, pelos xingamentos. A cada um de nós, individualmente, este blog teve grande serventia, pelos mais diversos e impronunciáveis motivos. Esperamos tê-los, se não informado ou instruído, ao menos entretido.

Alguns de nós ainda estão a dar o ar da graça por aí; basta procurá-los onde atualmente se escondem:

Day Teixeira é a engrenagem por trás do Curso de Latim Online. É mãe de família e não se interessa por blogs.

Emmanuel Santiago publicou seu primeiro livro de poemas pela Editora Patuá. Adquira-o aqui.


Gustavo Nogy é editor e colunista da Revista Nabuco. Mantém seu site pessoal.

Joel Pinheiro da Fonseca escreve uma coluna no Liberzone, em breve iniciará discussões filosóficas no Instituto Liberal e também mantém sua filosófica conta no Ask.fm.

Lorena Miranda pendurou as chuteiras do mundo dos blogs. Até o fim deste ano dedicar-se-á exclusivamente ao setor de gestação de bebês. Depois, só Deus sabe.

Rafael Falcón mantém o Curso de Latim Online e segue dando diversos cursos e palestras. Para manter-se informado, basta entrar em seu site pessoal e inscrever-se em sua newsletter.

Ronald Robson é editor da Revista Nabuco. Mantém seu site pessoal e seu tumblr.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

A sabedoria na greve do transporte coletivo


Quando lemos sobre as greves nos deparamos sempre com a mesma temática. Disserta-se sobre política, trânsito, política, direito, política, ética, política, urbanismo, política, transporte e política. Mas pouco é percebido acerca do modo como os homens vivem. Perde-se oportunidades valiosas em entender um pouco mais sobre como pensamos e agimos. Há um lado bom na greve. Poucos conseguem ver. Para entender como ela proporciona o exercício do cérebro, temos de entender o cotidiano numa grande cidade.

A rotina numa grande cidade é marcada pelo compromisso e pelo comprometimento. Há horário para tudo. Existe uma agenda a ser concretizada. Os estudos, o trabalho, o almoço, a academia, o lazer e as compras são todos adequados à nossa maneira de estruturar nossa vida ordinária. Numa cidade complexa há horários diversos. São infinitos os arranjos.

Entretanto, os arranjos pessoais dependem de condições externas aos esquemas e anseios internos de cada indivíduo. É por este motivo que uma greve, como a do transporte coletivo, torna a vida de praticamente a totalidade dos indivíduos um caos.

A greve, porém, tem um lado bom. A greve nos força a pensar. A greve nos retira do cotidiano. Do estancamento da rotina. Que beleza maior há do que a possibilidade de inventar o novo? De remodelar-se?

As reclamações sobre o trânsito, sobre ter de mudar o caminho para onde quer que se esteja indo, estão permeadas por uma vontade de não mudança. Deseja-se que o universo seja sempre o mesmo, que tudo esteja sempre no mesmo lugar. A realidade não é assim. Quando se contempla o mundo ao redor percebe-se que a todo instante faz-se necessário alterar os planos.

O homem tem a necessidade de organizar o mundo, que por sua vez é caótico. Não entender esta caoticidade faz com que o indivíduo caia em alguns extremos. Em primeiro lugar não há de se relativizar tudo por conta da dinâmica existente. Em segundo lugar, a insistência no controle leva necessariamente ao sentimento de impotência em poder controlar tudo e todos. É este desejo de universo controlado que mais se sobressai quando vemos o horror estampado na face daqueles que ficam desorientados diante de uma situação nova.

Quando uma pessoa amada morre, termina o amor, não se passa na entrevista, na prova ou no exame, o que fazer? É preciso recalcular a rota. Às vezes voltar e seguir outro rumo. Outras vezes basta fazer uma conversão à direita e seguir para o mesmo alvo por outro caminho. Quando uma ponte cai você procura outra ponte, toma um barco, vai a nado ou simplesmente não atravessa. É o mesmo dilema da pedra no caminho, tão popular e banalizado, mas pouco compreendido em sua essência.

A greve dos transportes coletivos é sábia. Mostra o quão estamos viciados em nossos planos e em nos adequar aos planos de terceiros. Mostra ao trabalhador que ele pode não ir trabalhar quando outros fatores o impedirem. Mostra ao patrão que ele não pode contar com todos os funcionários sempre. Mostra a ambos a necessidade de conhecer rotas alternativas.

A greve nos transportes é sábia. Escancara a quem quiser ver o modo como estruturamos a nossa vida. Além disso, mostra exatamente como é a condição de viventes. Mostra que não há segurança nos planos. Evidencia que a condição humana é a de esgueirar-se em meio as tempestuosas adversidades.

Por conta disto tudo, pode-se amar a greve. Ame a greve! Ame quando a vida te forçar a se reinventar. Contemple, mas não a inércia da pacata existência que te retira a possibilidade de escolher, errar, acertar, mudar, viver.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

A Formação de Santo Antônio

Estive recentemente em Porto Alegre, de onde trouxe muitas experiências boas, e um tesouro em especial: minha primeira relíquia de santo, presente de alguém que não suportava passar um só dia sem me prestar algum serviço valioso. Quando recebe um dom desses, um católico decente não tem o direito de considerá-lo mera coincidência: tem de procurar o motivo de ter recebido a graça em questão. E esse motivo, no meu caso, ficou muito claro quando li sobre a vida do santo cuja relíquia eu recebera. Estou seguro de que a generosidade portoalegrense foi apenas o canal usado por Santo Antônio para chegar até mim; um canal, ademais, muito coerente com o proceder daquele homem que, embora famoso pelo discurso, verdadeiramente incendiou a Europa com a espada da bravura e o escudo da humildade. Minha intenção é, portanto, dividir com alguns companheiros de viagem uns poucos pensamentos e sentimentos dentre os que me foram suscitados pela vida do santo.

A 15 de agosto de 1.195, no período de maior esplendor da Idade Média, nascia o nobre Fernando Martins de Bulhões, futuro Santo Antônio de Pádua. Do meu ponto de vista -- é o único que tenho, e é a partir dele que costumo falar -- não foi o acaso que fez de Fernando o descendente de uma antiga dinastia de cavaleiros, remetendo, pelo pai, ao comandante da primeira Cruzada, Godfrey de Bouillon, e pela mãe, ao Rei das Astúrias. Sua linhagem pura sugeria um grande cavaleiro cristão, um Cruzado, um príncipe. A de S. Francisco de Assis, por outro lado, pedia em primeiro lugar um rico comerciante. Deste, a Providência fez um mendigo sem nada de seu, a encarnação mesma da virtude da pobreza; daquele... veremos.

Fernando de Bulhões era um jovem inteligente, artificioso, vislumbrador de segredos e coisas ocultas. O chamado divino à entrega total poderia tê-lo conduzido à Ordem Dominicana -- chamada por antonomásia "Ordem dos Pregadores" -- que teria atendido aos anseios do cavaleiro dentro de si; os dominicanos, afinal, eram os mais "militantes" dos frades, os que mais apareciam, moviam, comandavam. Suponho, porém, que Fernando não quisesse converter seus impulsos naturais em serviço divino, isto é, que não desejasse tornar-se um "soldado do Senhor", por receio de que o santo nome de Deus acabasse por tornar-se uma mera desculpa para satisfazer suas aspirações humanas.

Seu primeiro impulso foi, portanto, esconder-se; lutar contra a ambição de seus ancestrais, contra a glória, contra o desejo de estar à frente. Tendo passado, na infância, por uma escola de catedral (onde recebera a educação de elite da época, isto é, a instrução nas chamadas artes liberais), a vida de isolamento talvez lhe parecesse envolver, por sua própria natureza, o estudo e a meditação. Um mosteiro agostiniano, então, deve ter parecido ideal para contrariar os desejos mundanos de Fernando -- pois (talvez pensasse em seu íntimo) quem quiser seguir a Cristo, negue a si mesmo, tome sua cruz e vá atrás d'Ele.

Aos quinze anos de idade, pois, aquele jovem nobre toma o hábito de Santo Agostinho e adentra uma vida de profundos estudos bíblicos e de oração contemplativa que duraria oito anos. No fim do segundo ano, diz o biógrafo mais antigo, o santo pediu transferência para o Convento de Santa Cruz, em Coimbra, de modo a livrar-se das visitas de parentes e amigos.

Este dado biográfico pode parecer pouco importante ou até antipático; a mim, soa iluminador. Fernando fugia do mundo. Por quê? Para um rapaz de alma tão santa, como hoje sabemos que ele era, não pode ser porque só pensasse em si mesmo, detestando saber das preocupações alheias. Podemos imaginar que fosse bem o oposto: sentia dentro de si a inclinação pelos problemas do povo, pela liderança política, pelo combate em defesa da família e da pátria. O mundo, no sentido mais elevado, o seduzia, e por isso ele o abominava: porque via nisto a ação do demônio, que desejava usar da nobreza dos bens humanos para impedi-lo de entregar-se aos superiores bens divinos. Desde muito cedo, dizia o mesmo biógrafo, Fernando descobrira o tédio das coisas do mundo. As risadas dos amigos desaparecem nos túneis do passado; os beijos e juras da mulher amada não possuem o mesmo efeito na pele ressequida e no coração endurecido de um homem maduro; as vitórias na guerra, por muitas que sejam, não garantem a paz. No fundo, nenhuma das preocupações humanas vale realmente a pena, e ele o percebia.

Contudo, mesmo longe do mundo e das suas ilusões, Fernando não encontrara o caminho para a perfeição que desejava. Um dia, vendo passar os corpos de cinco mártires franciscanos -- condenados por pregar o cristianismo no Marrocos -- sentiu arder o peito. Talvez o que tenha ficado claro para si é que restava uma imperfeição a pesar-lhe as costas: mesmo sem o peso da glória mundana, restava a vanglória acadêmica. Fernando era o orgulho dos professores e colegas, um jovem brilhante e estudioso que dava a todos esperanças de tornar-se um grande doutor agostiniano. Um tal encontro com o lumezinho humilde de S. Francisco foi sentido por ele, com razão, como forte sinal da Providência. Aqueles oito anos o haviam preparado para reconhecer que mesmo os estudos eram um obstáculo à sua aproximação com Deus. Abandonou-os incontinenti. Pediu aos irmãozinhos franciscanos que o aceitassem em sua Ordem, e o enviassem também ao Marrocos para morrer por Cristo. O desejo do martírio o incendiava. Esperava, talvez, pagar logo por todos os seus pecados e fugir deste mundo que o constrangia, que não fazia sentido algum para ele.

Ou porventura havia ali algo de um nobre príncipe, descendente de reis e Cruzados, desejando glorificar, numa morte honrosa, seu nome e o do seu Senhor. Seja como for, Fernando, tendo recebido o hábito de Francisco e o nome de Antônio, não alcançou porém o seu intento. Caiu doente no meio do caminho e, sendo impossível para um doente pregar tanto no Marrocos como em qualquer outra parte, mandaram-no de volta para que se curasse.

Foi só então, sob o nome de Antônio e a aparência de um frade mendicante, que se operou o que poderíamos chamar de vocação definitiva do nosso Fernando. Estando a acompanhar o Provincial de Coimbra na cidade de Forli, ocorreu que alguns franciscanos e dominicanos fossem ali recebidos para serem ordenados sacerdotes. Quando o superior pediu que alguém pregasse o sermão, todos os sacerdotes se recusaram, porque uns haviam pensado que os outros estariam preparados, e vice-versa; de modo que ninguém preparara coisa alguma para falar. Como a necessidade o pedia, o superior escolheu um frade franciscano ao acaso e, tendo em vista sua aparência humilde e sua atitude silenciosa, ordenou-lhe falar o que quer que lhe sugerisse o Espírito Santo. Esse frade era Santo Antônio de Pádua, e logo se viu que seu silêncio não era uma ausência como a da secura do deserto, mas a contenção rigorosa de uma enorme represa.

Naquele momento começava a carreira de orador de Santo Antônio, que lhe renderia, pela profundidade da compreensão, o epíteto de "Arca do Testamento"; pela precisão dos golpes e pelo ardor guerreiro, o de "Martelo dos Hereges". Pregou por toda parte, convertendo leigos e heresiarcas; como um mutirão vivo, por onde passava ia confessando pecadores e sacramentando uniões extra-eclesiais (pelo que se tornou o santo casamenteiro), deixando um rastro de salvação e bênçãos. Quando abria os lábios, tudo o que falava vinha acompanhado de milagres. Ficou famoso o caso em que, pregando próximo ao mar, como o povo zombasse dele e não quisesse ouvi-lo, voltou-se aos peixes; principiou a elogiar as virtudes desses bichos, e como contrastavam com a ignorância e insensibilidade dos homens; e para provar que não falava com sua própria autoridade, mas com a do Pai, eis que um enorme cardume levanta suas cabeças do oceano, à frente de Antônio, para ouvir sua santa voz. E o humilde franciscano, depois de uma vida fugindo da publicidade e da glória à qual o dirigiam o nascimento e a educação, encontra seu propósito em ser exatamente quem era: um cavaleiro, um Cruzado, um representante glorioso do Senhor dos Senhores.

Haveria muitos casos semelhantes, e muitas venturas para contar a seu respeito, em vida como em morte, cheias de sentido espiritual, propósito e valor pedagógico; mas este texto vai ficando longo. Se ele e seu Senhor me derem forças, no próximo treze de junho eu me proponho dar continuidade a este esforço, tosco mas sincero, de retribuir-lhe humildemente qualquer coisa que me seja possível por sua preciosa intercessão e pela inestimável vida que nos deixou, com o fim de a imitarmos, o que desejo que façamos agora e sempre. Santo Antônio de Pádua, rogai por nós.

sábado, 7 de junho de 2014

João Filho e nosso mais recente grande livro de poesia

Período de vacas gordas na poesia brasileira! Enquanto Emmanuel Santiago lança seu Pavão Bizarro em São Paulo, o poeta João Filho, em Salvador, dá à luz A Dimensão Necessária. Assino embaixo de cada palavra de Érico Nogueira sobre este último, e gostaria de acrescentar algumas outras:

Ao meu primeiro contato com a poesia de João Filho, tive a impressão de estar diante de uma locomotiva irrefreável de imagens – o que é o mesmo que dizer que João tem uma evidente imaginação de poeta; que lhe é natural (de)cifrar o mundo poeticamente.

Mas, como sabemos, um artista é antes as margens do rio do que a torrente que estas comprimem (adaptando um repisado refrão socialistóide). E aí, justamente, está a grandeza desse A Dimensão Necessária com que João Filho acaba de nos presentear: ele é abundância imagética, é experimentação sensorial, é coro de sons e de ritmos – tudo isto cuidadosamente dirigido pela atenção do poeta, que é capaz de nos conduzir pelas mais espiraladas especulações existencial-metafísicas sem perder o fôlego ou o tino.

Há quem se compraza nos mais agudos graus do surrealismo na arte; não é o meu caso. Não consigo ver graça no que se diz “esteticamente estimulante” sem comunicar coisa alguma para além de vagas sensações, mesmo quando não tão vagas. Consigo pensar em alguns casos da recente poesia brasileira (não cito nomes para evitar a fadiga) que são bem assim: é bom, mas não interessa; legal, mas demasiadamente cool. Enquanto isso, João Filho mete o dedo nas mais variadas feridas com a naturalidade de quem não saberia fazer diferente; como um baiano bocejando sob o sol, ao som do Requiem de Mozart.

Talvez seja mesmo essa a qualidade primeira dos poemas de A Dimensão Necessária: sendo produtos de muita labuta artística (e aí cabe trocar uma ideia com o poeta), soam naturais, sem esforço. E não se perdem num lirismo inconsequente: não há verso que não continue a busca de sentido do anterior, ao mesmo tempo sem cair no tom professoral que embarga muita poesia dita conservadora (a minha inclusa, ó inferno!). Não, não, João Filho sabe ao melhor de um Murilo Mendes em diálogo com o melhor Drummond; torno a afirmar que o adjetivo primordial de sua escrita é imagética. Ele, ao dizer, sugere, e suas sugestões, de tão nítidas, desenham na mente do leitor com perfeita eloquência a ideia ou sentimento que despertou o poema. Isso é poesia.

De vez em quando me cai nas mãos um livro do qual sei instantaneamente que o lerei por muito tempo. É o caso de A Dimensão Necessária. O último havia sido O Outro Lado, de Ivan Junqueira, no qual encontrei um estudo exaustivo do tipo de rima que gosto de chamar de “invisível”: ela está lá, mas não salta aos olhos; faz-se sentir, mas quase como uma mensagem subliminar. Esse esquema rímico atendeu perfeitamente às demandas de minha sensibilidade pós-moderna, pós-tradicional, pós-camoniana, como se queira dizer. Ora, e não é que, aparentemente, tocou também os ouvidos desse poeta sangue-puro que é João Filho (embora eu não saiba dizer se via Ivan Junqueira)? A primeira seção do livro de João, intitulada “Luz Alheia”, é um belo catálogo de rimas invejavelmente invisíveis e, como se não bastasse, em metro octossilábico! O octossílabo, de que João Cabral (se não me falha a memória, foi ele) bem disse que “raramente tem oito sílabas”, esse metro que foge à retidão das redondilhas, à previsibilidade dos decassílabos e ao serpentear prolixo dos alexandrinos – é o par perfeito da rima invisível como a concebo ideal e como a encontramos em A Dimensão Necessária. Sem dúvida, é fonte de uma esperançosa sensação de pertença perceber o mundo – especialmente o mundo da poesia – em sintonia com pessoas que admiramos.

Por fim digo apenas, João, valendo-me da felicidade que é poder falar com você diretamente, que seu livro me servirá de alimento por meses sem fim, muito dignamente ao lado de Tolentino, Cabral, Cunha Melo. São recíprocas as palavras que me dirigiu em sua dedicatória: João Filho, poeta, raro diálogo.

Concluo com um de meus poemas favoritos do livro, conquanto um dos mais simples:


Pós-fábula


No seu delírio de durar,
buscou a forma permanente,
que atravessasse os mares findos
e desse em praias do presente.

Não bronze ou aço, algo mais dúctil,
que suportasse as elegias
que as estações ditam ao tempo
na sua má caligrafia.

Envelheceu em tal propósito,
a elaborar um falso eterno:
em cada ruga um desespero,
em cada perda um novo inferno.

E não buscava só memória,
nome num muro ou numa mente,
mas extrair o cerne vivo
do que ontem fora e é presente.

Antes do fim logrou, ó suma!,
a sua bilha de aporia,
que lá chegou, nas praias findas –
bela, intocável e vazia.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Lançamento de "Pavão bizarro", livro de poemas de Emmanuel Santiago



Caros leitores, tenho a satisfação de divulgar para vocês o lançamento de meu primeiro livro de poesia, Pavão bizarro, que ocorrerá no próximo dia 14 (de junho) no bar Canto Madalena, localizado na Rua Medeiros de Albuquerque, nº 471, Jardim das Bandeiras - São Paulo/SP. Estarei lá, a partir das 19h00, rabiscando algumas dedicatórias.

Quem não puder comparecer e ainda assim quiser adquirir o livro, por conta e risco próprios, há como fazê-lo pelo site da Editora Patuá (clicando aqui). Devo alertar que o conteúdo de alguns poemas (poucos deles) talvez aborreça alguns cristãos de maior suscetibilidade. Quem quiser se informar melhor, leia a entrevista publicada no Ad Hominem; e o prefácio, escrito por Fábio César Alves, professor de Literatura Brasileira da USP, pode ser lido aqui.

Como aperitivo, aqui vão dois poemas de Pavão bizarro:

Soneto branco

Queria meu soneto da cor branca,
todo branco, que nunca fosse negro,
pois o negro é profundo, cheio de ecos
e coisas das quais só se sente o cheiro.

O branco, não. O branco é superfície
e silêncio, o suspense de um relâmpago
retido na espessura de um espelho;
branco é a cor das coisas sem conceito.

Não o branco solúvel, cor de gelo,
nem o branco volátil, cor de espuma,
nem o branco dourado do ouro branco;

quero um branco absoluto, branco abstrato,
o mais puro, o mais claro — mas sem brilho:
quadrado branco sobre fundo branco.

***

Furor parnasiano

Eu sou a Musa Impassível,
a Virgem de amianto,
impermeável ao sôfrego
fogo de tuas entranhas.

De meus seios, jorram
cascatas de mármore,
arquiteturas, estátuas
de antigos deuses
mutilados, mas
nenhuma gota
que aplaque a súplica
de teus lábios ávidos.

Contra um cinto de castidade
forjado no bronze, a frio,
teus dedos se debatem
em meu corpo seminu;
é inútil. Trouxeste
a chave (de ouro)?

Eu, a Musa Impassível,
estéril e etérea, um frígido
Moloch; em minhas coxas,
o poema é um coito sem gozo.

***
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