domingo, 29 de abril de 2012

Pensando fora da caixa sobre a Revolução Industrial

O que causou a Revolução Industrial? Por que ela não ocorreu antes na China ou em Roma? Essas duas perguntas geralmente são evitadas em qualquer conversa ou até mesmo livros de historiadores. É muito mais fácil simplesmente narrar a ocorrência dos fatos utilizando uma linha do tempo, gráficos e fotos bonitas, objetos da época e até mesmo história de pessoas comuns. O problema é que isso só desvia a atenção da falta de uma explicação aceitável e que ao menos pareça definitiva sobre o que causou a Revolução Industrial na Inglaterra. 

A explicação tradicional é que a Inglaterra reunia naquele exato momento um contexto com instituições necessárias para esse salto civilizatório juntamente com a existência de depósitos de carvão que poderiam ser extraídos com relativa facilidade. O problema com essa explicação é que esse mesmo ambiente existiu em diversos outros momentos da história e com outras sociedades, com mais destaque para a China e Roma antiga. Isso não quer dizer que essa explicação está errada, mas que ela está incompleta. 

Um ponto de vista destacado por alguns historiadores nos últimos anos é a influência que o pensamento holandês teve para gerar essas transformações na Inglaterra. Alegam que os holandeses foram pioneiros no que conhecemos como engenharia atualmente, que é utilizar teorias abstratas para criar equipamentos concretos que facilitam a nossa vida. O problema dessa alegação é que a engenharia não surgiu nesse momento, já que esse tipo de comportamento sempre existiu, mas também podemos conceder o ponto que isso se deu de forma mais generalizada na Holanda naquele período que em qualquer outro momento na história, quer dizer, os romanos tinham conhecimentos avançados de engenharia e isso me transpareceu também como algo generalizado. 

Um terceiro enfoque que pode ser usado para complementar a explicação tradicional é a ideia de aleatoriedade. É a ideia de que alguns indivíduos excepcionais nasceram e conviveram na mesma época e conseguiram ligar os pontos para gerar o que conhecemos como a Revolução Industrial. Por isso a referência ao pensar fora da caixa no título. Esses empreendedores e inventores (no caso inglês eram a mesma pessoa) conseguiram “pensar fora da caixa” do seu tempo e ligaram os pontos de forma correta, utilizando o carvão como combustível e outros métodos que aumentaram a produtividade de forma incrível. Nada de errado com essa explicação, até porque talvez ela esteja presente em qualquer mudança histórica, mas ela é difícil de ser verificada – acredito até mesmo que esse grupo de notáveis ocorreram em diversos outros momentos da nossa história, como a Athenas, Vienna e a Revolução Americana. 

Mas como essa explicação tradicional com os seus adicionais não explica definitivamente o motivo pelo qual a Revolução Industrial não ocorreu antes – o caso da China é emblemático porque eles eram mais evoluídos tecnologicamente que a Inglaterra naquele período, além de terem melhores instituições que são consideradas propícias para a produção industrial – surgiram diversas teorias que tentam explicar isso, e a maioria parece tentar “pensar fora da caixa” de forma radical. 

Uma a que Eu tenho prestado bastante atenção é a do pensador Hans-Hermann Hoppe. Hoppe alega que a peste negra gerou uma pressão de seleção natural em um período de cerca de dois séculos, o que fez com que houvesse uma seleção dos mais inteligentes (que ele diz que sobreviveram em maior quantidade à peste) e com isso pessoas mais inteligentes tornaram possível a Revolução Industrial. Está chocado com essa explicação? Eu também fiquei. Mas a explicação não é tão maluca e sem sentido quanto parece; há alguns pontos interessantes na ideia. 

Meus conhecimento de biologia e genética me fazem desacreditar completamente que esse tipo de mudança genética possa ocorrer em um período tão curto de tempo. Porém, lembro de ter visto uma pesquisa alguns anos atrás dizendo que existiam alguns indícios de mudanças genéticas em povoados do Caribe em menos de 500 anos. Isso não prova nada, principalmente porque talvez não existam um maior número de pesquisas sobre isso, mas já mostra que ao menos existe algum tipo de possibilidade disso acontecer. Porém, mesmo partindo do princípio de que esse tipo de mudança genética ocorreu em um curto espaço de tempo, a ideia de que existem genes da inteligência é altamente questionável, até porque definir inteligência me parece uma tarefa inglória e vai muito além de sobreviver à peste negra. 

Outro ponto que ajuda a teoria é uma pesquisa recente indicando que é possível que os ingleses tenham um pool genético mais propenso a ideias individualistas que os povos em geral, principalmente os asiáticos que estariam no outro extremo, o do coletivismo. Temos aqui o problema de ligar algumas coisas que são altamente culturais à genética, mas não tenho como comentar muito sobre isso; talvez faça sentido, mas não me parece algo que se possa usar para embasar alguma coisa. Mas lembro que essas diferenças genéticas são possíveis já que é relativamente famoso o caso de um povoado na Itália em que as pessoas têm uma mudança genética que garante a eles a imunidade ao vírus da aids. 

Sendo assim, mesmo faltando à teoria provas extraordinárias, já que as alegações são extraordinárias, e o próprio autor não ter dado nenhuma prova, já que disse que a Revolução Industrial ter acontecido é a prova da sua teoria (o tal argumento circular débil mental), a ideia não é uma total maluquice já que de acordo com alguns estudos isolados há uma possibilidade remota dela ser verdadeira, apesar de não levar essa probabilidade muito a sério. 

Essa explicação dos motivos que levaram a Revolução Industrial seria algo que preencheria os pontos de disputa atualmente, mas seu tom é altamente politicamente incorreto para os nossos dias, mesmo com os avanços da ciência evolucionária nos últimos anos, além da falta de credibilidade do autor para tratar sobre o tema que embasa sua teoria, incluindo ai a sua falta de vontade de provar ou mostrar quais os indícios de que isso ocorreu, já que essas fatos foram descobertos em pesquisa que Eu fiz de forma totalmente desvinculada da explicação dada por Hoppe. 

Esse é talvez um dos poucos artigos em que não concluo alguma coisa, então aproveitem porque isso é algo raro e se possível indiquem pontos que possam ajudar ou atrapalhar essa teoria e a tradicional, além de trazer alguma outra explicação que Eu possa não conhecer, como a de que o café foi o responsável por tudo.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

O Brasil será mais livre daqui a 10 anos?


Escuto com certa frequência libertários dizendo que não viverão em liberdade em seu tempo de vida. Não apenas que eles não viverão em total liberdade, mas que dificilmente eles terão muito mais liberdade do que existe atualmente. Como você pode não desconfiar, eles estão errados, por três motivos.

O primeiro motivo é que, como um Transhumanista, não acredito nessa questão de que “a única certeza que temos na vida é que vamos morrer”. Sendo assim, as pessoas terão que no mínimo esperar que a situação vá continuar dessa forma ou pouco pior ou pouco melhor nos próximos anos. Acredito que a estimativa de vida que essas pessoas têm sobre si mesmas não passe de 100 anos, então eles só pensam que em cerca de 70 anos a liberdade não dará as caras no Brasil.

O segundo motivo é que essa visão fatalista (tão tradicional e presente entre os brasileiros) esconde a revolução que está acontecendo. E a palavra revolução aqui é bem adequada, porque muita gente não faz ideia de como o movimento libertário está crescendo no Brasil. Mas o motivo do meu realismo (ou talvez otimismo) é que prevejo que o movimento libertário brasileiro será tão relevante por aqui quanto o americano é por lá atualmente, senão maior do que o que existe lá atualmente.

Isso acontecerá devido à existência de um grande movimento libertário americano, que acaba gerando uma externalidade positiva gigantesca para os libertários brasileiros. Nós não precisamos nos dar ao trabalho de criar muita coisa, devido a existência desse material em inglês, o que faz com o nosso principal trabalho seja aprender o que eles já fizeram, copiar o máximo possível e focar nossas forças restantes em criar soluções somente para nossos problemas e realidade específica. Com isso, vamos alcançar os americanos muito mais rápido do que eles demoraram para chegar a esse nível de movimento pela liberdade, da mesma forma que a China, Japão ou Coréia do Sul estão alcançando a renda per capita americana muito mais rápido do que se estivessem isolados do mundo.

O que as finanças foram (e ainda são) para acelerar o crescimento econômico sem precisar de acumulação de capital e invenções locais, é o que a internet é para o embate de ideias, que faz com que o custo de transação entre libertários (e todos os outros grupos) seja reduzido drasticamente, fazendo com que as melhores ideias sejam copiadas e compartilhadas mais rapidamente.

E por fim, o terceiro motivo para ser otimista quanto ao futuro da liberdade é que o status quo estatista é muito mal organizado no Brasil, ficando muito mais fácil tomarmos o debate público por aqui que os libertários tomarem o debate público nos Estados Unidos. Não existe nenhum grande instituto sério defendendo o estado e o nível de pesquisas e argumentos dos estatistas são algo difícil de ser levado a sério, deixando evidente para todos quem está certo. Como a propagação deles depende de criar cabides no estado, quanto mais formos vencendo no campo das ideias (e isso vai continuar crescendo exponencialmente por um bom tempo), mais rapidamente vamos conseguir eliminar o poder da máquina estatal e dessa forma assegurar o declínio do estatismo de uma vez por todas no Brasil.

Se há um local em que existe uma conjuntura positiva para a liberdade no futuro, esse local é o Brasil. Podem esperar que em cerca de 10 anos já seremos muito relevantes nos rumos que a sociedade brasileira buscará.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Ao meu Anjo da Guarda

Semper illumina, custodi,
rege et guberna.
Anjo santo, mais amigo
de minh'alma do que eu mesmo,
semeia em meus pensamentos
pensamentos amorosos,
e não deixes de limpar
toda consideração
sobre mim e o meu quinhão;
porque planta alta e sem poda,
quando vê o tempo da ceifa,
frutifica frustração.

Anjo santo, eu gostaria
de esquecer todo direito
a opinar, reivindicar,
exigir como implorar.
Queima em tua espada ardente
tudo o que, vindo de mim,
a mim visa. Limpa já
toda consideração
sobre mim e o meu quinhão;
porque planta alta e sem poda,
quando vê o tempo da ceifa,
frutifica frustração.

Santo arauto de meu Pai,
purifica meu amor
na torrente incandescente
da Paixão do Bom Pastor;
Em seguida purifica
toda consideração
sobre mim e meu quinhão:
toda a culpa de meus crimes
queima no fogo infinito
de Sua Ressurreição.

domingo, 22 de abril de 2012

S. Dráuzio Varella, Perdoai nossa Intolerância!


A auréola não está aí à toa.

Dráuzio Varella é um exemplo do que seria um iluminista dos dias atuais: convicção no poder da razão humana de conhecer a realidade acoplado a uma ignorância algo mal-intencionada para com todo tipo de fé ou de religiosidade. Contudo, à candura e à combatividade iluminista (com todo seu sarcasmo e desprezo aberto pelo diferente, pelo não-civilizado, pelo irracional), ele prefere os ideais contemporâneos da tolerância e do politicamente correto.

Assim, à panfletagem antirreligiosa clássica, ele adiciona alguns vícios favoritos de nossos tempos, como o se fazer de vítima/oprimido e se colocar humildemente como exemplo de virtude mal compreendida. Vejamos seu mais recente artigo para a Folha de S. Paulo (21/04): Intolerância Religiosa.

Algo ou alguém desrespeitou Varella? Não sabemos. Ele ou algum outro ateu é vítima de agressão palpável? Ele não diz. Ou seja: não, pois se houvesse algo concreto do qual reclamar ele seria o primeiro a apontar o dedo. O que há, provavelmente, é ainda um ranço contra as manifestações religiosas não muito expressivas contra o aborto do anencéfalo, polêmica que o lado religioso perdeu (bem, considerando as religiões contrárias ao aborto; há aquelas que o defendem, como a Igreja Universal do Edir Macedo).

Sem finalidade clara e sem nenhum fato ou argumento relevante, o artigo é um misto de tese antropológica, propaganda antirreligiosa e, por fim e principalmente, autoelogio. Vou fazer um comentário sobre cada parte.

Varella começa explicando a suposta origem da religião: o medo da morte. Não entrarei nesse mérito, mas a tese tem alguma plausibilidade: a morte é algo dramático o bastante para nos fazer querer que haja algo maior. O dado, contudo, de que todos os povos acreditavam em vida após a morte é falso. Os judeus antigos, retratados no Pentateuco, parecem não ter nenhuma noção de existência pós-morte. Falam muito em vida farta e rica, em descendência numerosa, mas nada para além da cova. Entre os gregos também é sabido que diversas escolas filosóficas negavam a imortalidade da alma (atomistas, epicuristas); não consta que tenham sido perseguidos, embora fossem mal-vistos por outras correntes. Segundo uma anedota relatada por Diógenes Laércio, Platão teria tentado queimar todos os livros de Demócrito (e, de fato, em toda sua obra Platão não faz nem sequer uma menção a esse contemporâneo importantíssimo de Sócrates); mas o próprio, que segundo a mesma fonte viveu 100 anos, não foi "perseguido e assassinado".

Sejamos claros e honestos: houve sim muita perseguição religiosa no passado; coisa lamentável e injustificável. A própria Igreja Católica teve que aprender muito ao longo de sua história, e embora tenha cometido crimes (em escala menor do que se propagandeia e quase sempre com menos fanatismo e violência do que queriam as turbas enfurecidas e os governos sedentos por dominação total de seus súditos) é hoje a maior defensora da liberdade de consciência do planeta. A desonestidade de Varella está em esticar essa ligação histórica e construir uma ligação necessária entre religião e intolerância ou fanatismo. Para isso, ele usa exemplos enviesados, manipulação da linguagem e qualificações arbitrárias.

"Na realidade, a religião do próximo não passa de um amontoado de falsidades e superstições." - É assim que ele descreve como um religioso enxerga o crente de outra religião. A linguagem dele dá a entender que quem tem religião necessariamente desrespeita ou é agressivo com quem discorda de sua fé. A escolha da expressão "religião do próximo" não é acidental: ela remete ao "amor ao próximo", dando a entender que, no fundo, a religião que prega isso (que nós sabemos qual é) é hipócrita. Só que, despida dos termos inflamatórios que Varella utiliza, a afirmação é trivial; ela diz que quem crê na religião A considera que a religião B é falsa, ou ao menos que ela tem elementos falsos. Como é isso que a frase comunica de fato, e trata-se de uma verdade quase tautológica, o leitor é levado a assentir também ao significado emocional da frase: quem tem religião desrespeita as crenças do próximo.

Mas vejam: a afirmação é verdadeira não só para religiões. Quem é ateu acredita que a religião X é falsa. Assim, usando do mesmo truque de Varella, sou autorizado a dizer que, para Dráuzio Varella (ateu), a religião do próximo não passa de um amontoado de falsidades e superstições. E, portanto, o ateísmo também leva naturalmente ao desrespeito do próximo.

Em outros trechos, ele usa o qualificador "religioso" para transmitir à religião o caráter negativo de alguma postura ou atitude humana má em si mesma. "Quantas tragédias foram desencadeadas pela intolerância dos que não admitem princípios religiosos diferentes dos seus?"; ou ainda "O fervor religioso é uma arma assustadora, sempre disposta a disparar contra os que pensam de modo diverso". Troquem, nessas frases, o termo "religioso" por "político", "filosófico", "econômico", e o resultado será o mesmo. Sim, a intolerância dos que não admitem princípios políticos diferentes dos seus já causou muitas mortes; isso deve nos levar a concluir que a política é em si perigosa? Não; perigoso é o fanatismo, a intolerância, que não é monopólio da religião. Lembremos que, na União Soviética, praticar uma religião podia ser (e era!) punido com a morte. E ao dizer que "ele" (isto é, o fervor religioso, no sentido de fanatismo intolerante), promove a desunião e o massacre, embora se refira objetivamente ao fanatismo e à intolerância (que podem não ser religiosos), promove a confusão dos significados: pois se a crítica se aplica a todo tipo de fervor irracional, a frase designa apenas o fervor religioso.

A argumentação chega a seu ponto mais baixo quando se refere a pastores mercenários e a homens-bomba, como se eles fossem socialmente bem vistos por serem religiosos, o que é obviamente falso. Ninguém, a não ser os iludidos por esses malfeitores, aplaudem o mal que fazem; o fato de alguém usar o nome de Cristo para alguma falcatrua só aumenta o opróbrio que sobre ele recai. Na imaginação do bom médico, todo crente considera ateus desprezíveis. Não é possível inverter o ponto de vista e fazer uma generalização muito parecida, com alguns pequenos ajustes, para a forma como ateus vêem crentes? Existe até mesmo uma versão ateia para a afirmação religiosa de que sem Deus é impossível ser bom: é a de que, se a ética depende de Deus, então ela é apenas oportunismo e não virtude verdadeira. E é isso mesmo que o artigo insinua ao dizer que não se deve fazer o bem "para agradar a Deus".

O artigo fecha no que deve ser sua finalidade última: o autoelogio. Superior à estreiteza do pensamento religioso (que não foi, contudo, instanciada em nenhum exemplo concreto; nosso contato com a religião é todo ele mediado pela impressão subjetiva do autor), Varella dá aula de respeito ao próximo: "Fui educado para respeitar as crenças de todos, por mais bizarras que a mim pareçam". Admito que fiquei tocado.

Varella é o epígono da virtude moral ateia. Enquanto os crentes olham-no com um misto de ódio e medo, dado que a existência de um ateu tão virtuoso os força a questionar suas próprias convicções, ele nada tem além de compreensão e carinho por todos. "Quanto aos religiosos, leitor, não os considero iluminados nem crédulos, superiores ou inferiores, os anos me ensinaram a julgar os homens por suas ações, não pelas convicções que apregoam". E como sabemos que a religião apregoa o desrespeito e a intolerância, concluímos que os que têm religião, se não se deixarem levar pelos falsos ideais apregoados pela religião, ou seja, se não levarem sua fé a a sério, podem ser pessoas boas.

A mensagem de amor e respeito de Varella é em muito superior à dos livros sagrados, e foi ensinada pela longa experiência de vida que ele acumulou. Bem interpretada, ela diz: Crentes e homens de fé, não temam: eu respeito suas crenças bizarras que lhes tornam terroristas em potencial. E, contanto que elas lhes sirvam apenas de muleta existencial e não sejam levadas a sério, não vejo problema algum. Com essa sanção e essa advertência oportuna, podemos dormir em paz.

Meditemos agora no corajoso brado de indignação (sem, como vimos, objeto definido) que abre o artigo: "Sou ateu e mereço o mesmo respeito que tenho pelos religiosos". Não seja modesto, Varella: você merece muito mais do que esse misto de desprezo, condescendência, preconceito e autoglorificação travestidos de virtude superior. Merece muito menos, contudo, do que os elogios efusivos que os leitores, levados pela mesma vaidade, têm derramado a seus pés.

sábado, 21 de abril de 2012

Ou eu, o outro, a continuidade intrínseca


Escrito por Diego Ivo.

A defesa do aborto recai necessariamente em uma relativização do valor da vida humana que, não sendo absoluta segundo a tese abortista, dependerá de situações e conceitualizações para ser considerada digna e, assim, humana e, pois, impassível de ser interrompida tal qual interrompemos a vida de uma galinácea para a canja, um boi para o churrasco ou uma mosca que pintou para abusar, sob pena de sermos enjaulados. O problema é que a vida como querem os abortistas, não tendo eles um corpo teórico uno, poderá variar conforme a filiação política ou, mesmo, o humor do sujeito que a conceitualize: "vida deve ser a presença de cérebro", diz um; "vida deve ser a presença de sistema nervoso", diz o outro ; "vida deve ser a possibilidade de sentir dor", arrisca um sofrível; "vida humana e inalienável só há quando existe inserção cultural e valores sociais", poderá dizer outro, com toda a razão se seguirmos esse argumento, e assim seria justificável o aborto de bebês já nascidos sem muito esforço, ainda que hoje soe absurdo. Deste modo relativizante, no fundo, vida seria o que quiséssemos que vida fosse e, a nos fiarmos nessa tese, qualquer assassinato seria potencialmente justificável, se algum desses argumentos viesse a ser amparado política ou juridicamente, bem como acontecia no Holocausto quando do conceito de vida eliminavam-se os judeus.

Preocupa-me que o STJ, amparado pelo PT e pelos setores esquerdistas, tendo como único inimigo as vontades reais da própria população, tenha permitido o aborto de fetos anencéfalos com o argumento de que, em suma, aqueles bebês morreriam em alguns dias ou, no máximo, poucos anos de vida (parece que alguns vivem 2 anos), sob a justificativa de que a presença de cérebro é o que define a vida humana e que os problemas causados à mãe do feto anencéfalo são, potencialmente, menores que os "benefícios" dela e do próprio bebê, mesmo quando não há risco iminente de morte para mãe, o que me leva a concluir que uma mulher defensora dessa monstruosa tese torna-se mãe, pois, não por um senso maternal mas antes por um duro amor que mais parece uma espécie de troco transcedental que se recebe pelo sacrifício de se doar ao outro, de pagar suas contas.

Deste modo, a lógica do argumento do STJ é que a vida deve ser considerada de acordo com a quantidade e a qualidade da vida, não pela vida em si mesma, que num anencéfalo seria pouca (mas quem pode dizer se é pouca ou muito a vida do outro?), tomando por parâmetro a média estatística dos seres humanos em geral, em detrimento das minorias que nascem com alguma doença crônica que, em vez de encontrar mais cuidados e apoio, mais amor como concedeu uma mãe que veremos a seguir, devem ser eliminadas posto que são um estorvo diante de nós, os perfeitos normais. Embora já em si gravíssimo este caso atual, porque dá poderes de eliminar vida humana, segundo entendo o conceito jurídico de jurisprudência o que se legalizou foi não só o aborto de anencéfalos mas o de qualquer bebê que não venha a ter vida em qualidade ou quantidade "compatíveis com a dignidade humana" segundo a infalível opinião de nossos ministros, bastando para isso um advogado convincente e com alguns contatos.

Tão preocupante quanto, não há como não notar uma séria dificuldade em distinguir entre o Eu e o Outro, visto que o futuro concorrente à condição de ser humano vivente no planeta Terra (o feto tornou-se um vestibulando ou concurseiro!) deve preencher os pré-requisitos definidos pelos abortistas, não pela natureza, que são no fundo uma projeção de seus próprios egos na condição das vidas alheias. A vida humana torna-se, deste modo, só e somente aquilo que é imagem e semelhança, não de Deus, mas do sujeito específico que defende a tese, mesmo que para ser capaz de defendê-la ele tenha de ir contra não só toda a história do homem na terra, bem como a natureza que o fez pensante, fértil e, no caso das mulheres, dotadas do dom da maternidade e de ser capaz de um amor ao próximo como talvez eu próprio nunca chegue a ser capaz.

Há, todavia, um argumento abortista que em vez de conceituar a vida e, com isso, correr o risco de defender uma ideia que poderia vir a mudar amanhã, mira-se como diametral oposto no exemplo das mulheres de Atenas que geravam para seus maridos os novos filhos de Atenas e, portanto, não eram donas de seus próprios corpos, antes eram propriedade de seus maridos e do Estado, mesmo este não houvesse ainda. Para tais feministas, porque as mulheres não são propriedade de nenhum marido ou do Estado, o que naturalmente é certo, elas têm sobre o seu corpo direito de lhe fazer o que bem entender, o que continua sendo aceitável embora já pudesse ser caso de internação, bem como de fazer o que bem entender com o feto que se encontra em seu útero - e agora a situação ficou preta! Assim como o abortista quer que aos fetos seja concedida vida desde que estes vivam à sua imagem e semelhança, para esse tipo de feminista o feto, em vez de ser uma vida humana, ou até mesmo uma vida humana em potencial, é meramente uma continuidade intrínseca de seu corpo tal como um sexto dedo que surgisse da mão. Logo, nada impede que sendo ele dado à luz ganhe agora o status de continuidade extrínseca da própria mãe e, seguindo este pensamento, não tardaria a chegar um maluco que defendesse o infantícidio de Medéia como, na verdade, auto-mutilação. E o que impediria que esse "direito" se perpetuasse ao longo da vida adulta?

Percebamos que em todos os argumentos abortistas o que temos é uma vontade de que até os fetos sejam à imagem e semelhança dos abortistas, de que vivam com a mesma quantidade e qualidade relativas de suas vidas, o que não é verdade no outro pólo dessa discussão, que por sua vez é capaz de lidar com a vida nas situações teoricamente mais adversas tal como esta corajosa mulher que amou seu filho anencéfalo mesmo sendo coagida a abortá-lo por inúmeros médicos, pelos 9 meses de gestação e poucas horas de vida extrauterina. É curioso que, no caso dos abortistas do sexo masculino, que não são capazes de gestar e dar à luz, o direito ao aborto se defende pelas vias do conceito da vida humana uma vez que o homem, mais racional que a mulher por natureza, obviamente nunca poderia falar do próprio corpo durante a gravidez, exceto um antiabortista que se considerasse mutilado pelo aborto causado a um filho seu, mas aí estaria incorrendo, afinal de contas, no mesmo erro das feministas pró-corpo, que não distinguem Eu e Outro, tratando-o como o que chamei de contínuo intrínseco. As mulheres pró-aborto (chamam de "pro-choice", mas escolher escolhemos a todo o instante e o que se quer só pode ser escolher no lugar do outro, usurpar-lhe o direito à vida), que são naturalmente propensas à maternidade, querem todavia impor seu ego revoltado e doentio até mesmo àqueles a que chamariam, em uma situação mentalmente saudável, maior dom de suas vidas e o transformam em um mal tão gigante, por exigir cuidados e amor, que deveria ser eliminado antes da condenação inevitável a este mundo de sofrimento e mal.

***

Para um bom conhecedor de Nietzsche, deve estar patente que todo este artigo segue o mesmo argumento que o filósofo bigodudo usa para analisar a psiquê humana e revelar, entre os seus inimigos filósofos, como estes procuravam imprimir todo o seu subjetivo na realidade, para que a realidade, até ela, se tornasse uma imitação de seu ser orgulhoso, uma continuidade de sua vontade de poder cada vez mais absoluta. Explicito essa característica até porque se utilizou Nietzsche em favor do aborto e, sinceramente, parece-me improvável alguém em sã consciência citar Nietzsche em seu favor, quando ele todo é um corpo teórico que impõe mera e simplesmente a necessidade de dele se discordar, pois a sua filosofia é apenas "processo" para chegar às verdades próprias e não aos absurdos que ele professava meio consciente, meio insano, testando as verdades. Quem usa Nietzsche para concluir erra. Eu preferiria, por outro lado, ter argumentado citando o Freud que em “O Mal-Estar na Cultura” aponta como problemática do homem moderno o fato de este ter com a realidade uma relação "oceânica", isto é, de sensação de continuidade entre o seu ser subjetivo e a realidade, como se ambos fossem o mesmo, tal como mencionei ao longo do texto e fica explícito na relação da abortista com o seu feto: ela trata-o como o seu próprio corpo! Ademais, seria preciso o esforço de desvincular esses argumentos de Freud de sua dura crítica à religião, que por sinal ele só conhecia das carolas que ficavam na primeira fila da igreja e nada tinham de teologicamente profundo.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Sobre o Aborto do Anencéfalo

O STF aprovou o aborto de fetos anencéfalos. Tinham ou deveriam ter poder para tanto, ou estão usurpando o papel do Legislativo? Não sei. Nem me parece ser essa a questão fundamental. Quero argumentar aqui por que não se deve abortar um feto anencéfalo. Minha posição é de que esse ato é imoral (o que não prova estritamente que deva também ser ilegal). Vou também comentar motivos e razões levantadas que não me parecem nada convincentes, e que mais geram ruído no debate do que ajudam de alguma forma concreta.

Primeiro ponto: não, permitir o aborto dos anencéfalos, ou mesmo o aborto em geral, não é equivalente ao Holocausto. O Holocausto foi fruto de uma política de extermínio populacional. Quem defende o direito de abortar o anencéfalo não quer exterminar uma população, e nem há nenhum esforço coletivo institucional nesse sentido. Ele quer dar às mães o direito de não passar por um processo muito doloroso e custoso e cujo melhor resultado possível é que o filho tenha sobrevida curta, sofrida e semi-consciente (ou totalmente inconsciente? Um ponto que não tem sido claramente exposto é o que anencefalia realmente significa; é ausência total do cérebro ou de parte dele? O bebê sente dor, prazer, fome, ou algo do tipo? Embora talvez isso não seja diretamente relevante para o caráter moral do ato, certamente seria relevante para a maneira que enxergamos o bebê). Não há nenhum tipo de coerção, de obrigação, de se matar o feto, o que, daí sim, constituiria uma política de assassinato em massa. Suponhamos que, num futuro próximo, surja o seguinte argumento: "O nascimento e sobrevida dos anencéfalos custa muito ao SUS; pelo bem da saúde pública, portanto, toda paciente grávida de anencéfalo do SUS será obrigada a abortar". Daí sim, teremos um medida semelhante ao genocídio institucionalizado.

Tampouco a nova decisão tem algo de eugenia. Eugenia é a política de se melhorar geneticamente a população. Ora, o anencéfalo jamais se reproduzirá; a morte ou a vida dele não tem efeito sobre o pool genético do restante da população.

Não é o ódio "à vida", ou o desejo dos mais fortes de "destruir os mais fracos" que motiva os defensores do direito ao aborto do anencéfalo, mas a preocupação com a mãe e o desejo de amenizar seu sofrimento. O tipo de campanha anti-aborto, que vi muito no Facebook, carregada emocionalmente e altamente antagonizante, me parece contraproducente: não faz bons pontos, não vai convencer ninguém, e só vai aumentar a animosidade dos dois lados, que não é pouca. E lembremos que, na prática, pouca coisa mudou; já se podia, mediante um processo na Justiça, abortar o anencéfalo. E já era possível e fácil burlar essas restrições ao aborto (na verdade, de todos os tipos de aborto). A realidade moral das mortes provocada dos fetos anencéfalos continuará, agora permitida de antemão pela lei.

Agora, do outro lado: ser contra o aborto de anencéfalo não é preferir a vida do feto inconsciente à da mãe. Mesmo porque, se o feto for causar a morte da mãe, é legítimo retirá-lo, assim como é perfeitamente aceitável usar de força letal contra outro ser humano em legítima defesa (mesmo que o agressor seja moralmente inocente; p. ex: se o agressor sofrer de severo retardo mental). Tampouco se trata de um amor ao sofrimento e de um ódio à felicidade neste mundo, como o Constantino argumentou. Ninguém quer o sofrimento enquanto tal; ele é mau. Ele pode, é verdade, ser usado para o bem, como meio de crescimento, ganho de maturidade e de abandono de vícios do indivíduo; mas pode também, se encarado de forma negativa, piorar muito a pessoa. Não há absolutamente nada de errado em querer interromper ou amenizar o próprio sofrimento; quem discorda que vá obturar uma cárie sem anestesia! E, ademais, ninguém tem o direito de impor um sofrimento aos outros, e não vi ninguém do lado anti-aborto negar isso.

O motivo para se ser moralmente contra o aborto, mesmo o de anencéfalos, é que ele depende de uma ética em que os fins justifiquem os meios. O raciocínio que embasa a decisão é que o saldo final, para os pais, familiares e  para o próprio bebê, é negativo: todos sofrem, o bebê não tem consciência nenhuma e sua vida não terá nenhum dos bens que caracterizam a vida humana. Se o bebê morrer na gestação, para ele não fará a menor diferença, e para todo o resto será bem menos sofrido.

Essa comparação dos dois estados é questionável (pois há casos em que a mãe tem o filho e gosta de tê-lo tido), mas não é totalmente inverossímil. É bem possível que, ao menos à primeira vista, seria melhor para os pais que o filho morresse na gestação; e para o filho não faria a menor diferença. Mesmo assim, se forem eles a causar o aborto, estarão tirando a vida de um ser humano.

[Aqui cabe um adendo, fruto de uma discussão recente com o Rodrigo Constantino. Pois alguém pode dizer que não, que no aborto do anencéfalo não se tira a vida de um ser humano, pois o feto ou mesmo o bebê anencéfalo, não é ser humano. Abro este parênteses, então, para discutir se faz sentido considerar o feto ou o anencéfalo como um ser humano.

Se definirmos o valor da vida (ou o momento em que ela passa a ser "humana") com base nas funções que o feto/bebê tenha, de forma que só seja humano o ser que tem todas as funções que permitem uma boa vida humana, então concluiremos que o ser só passa a ser humano na infância, digamos aos cinco anos de vida, posto que mesmo um bebê já nascido não tem nem de perto tudo aquilo que consideramos essencial na vida humana (não tem, por exemplo, a razão).

Se adotarmos outro critério, um critério mínimo, como ser capaz de sentir dor (o anencéfalo chega a senti-lo? Questão relevante que nunca vejo exposta), então não teremos base para fazer uma distinção moral entre o homem e os outros animais, que sentem dor da mesma forma que nós. É tão imoral matar um homem quanto um boi, pois ambos sentem dor?

Neste artigo estou pressupondo que não, que matar um homem é algo muito mais sério do que matar um boi. É muito relevante a informação de que o ser que está sentindo dor é um humano, e não um feto de cachorro.

A não ser que estejamos dispostos a abrir mão do "especismo" (que considero perfeitamente razoável e que, enfim, não é o objeto deste artigo), então não é apenas "a capacidade de sentir dor" que importa para nos fazer humanos. E se é possível ser humano antes dos cinco anos de idade, então também não é a "posse de todas as capacidades de um humano desenvolvido" que nos faz ser humanos. É algo anterior e mais básico, algo que está na raiz dessas capacidades, embora não esteja desenvolvido desde o início da vida orgânica. É o que, mais antigamente, seria chamado de natureza ou essência.

Na prática, a conclusão deste critério é que é ser humano todo organismo vivo da espécie biológica Homo sapiens sapiens. Outras tentativas de definição ou determinação caem em um dos dois problemas acima assinalados: ou não consideram como humanos seres que certamente o são - criança de dois anos - ou consideram como equivalentes ao homem seres que claramente não o são - ratos, vacas, etc.
]

E se se aceitar essa premissa, de que se pode matar um ser humano inocente se o saldo de sua morte for positivo, justifica-se potencialmente qualquer assassinato. Pois não dá para negar que existem no mundo pessoas cuja vida piora a vida dos demais, e que são, elas próprias, infelizes. Hitler talvez fosse um exemplo. Suponhamos que Hitler fosse cronicamente deprimido, e detestasse viver; seria moralmente lícito matá-lo ainda criança, supondo também que ninguém se importasse com ele e que essa morte evitaria de fato o genocídio nazista? Descendo a questões mais chãs, é evidente que muitas mortes proporcionam bens maiores do que o bem da vida tirada, especialmente quando a morte salva um número de vidas alheias superior a 1 (o caso de um acidentado cujos órgãos salvam outras três pessoas).

Julgo essa posição ética consequencialista (que compara os saldos de bem e mal de diferentes cenários possíveis e prescreve a ação com base nisso) inaceitável por dois motivos principais. O primeiro é que ela é incompatível com direitos individuais inalienáveis. Necessariamente, todo direito será negociável caso a violação pontual dele produza o bem global líquido. E aí extingue-se qualquer possibilidade de pensamento individualista, pois todo ato terá que necessariamente se pautar por uma consideração do bem global de todos; e se o bem global assim o demandar, nada do indivíduo pode ser resguardado; nem mesmo sua consciência e sua integridade pessoal (é só lembrarmos da possibilidade de que, em certos países desenvolvidos, médicos e enfermeiras sejam legalmente obrigados a praticar abortos e eutanásias mesmo que objetem por motivo de consciência).

O segundo é que ela é impossível de ser implementada: mesmo os casos acima citados, em que a comparação de dois estados de coisas alternativos parece tão óbvia, são enganadores. Pois é impossível conhecer todas as consequências de um ato; qualquer limitação dos efeitos a serem considerados será arbitrária (por que medir os efeitos apenas imediatos do ato e não os que ocorrerem 1000 anos depois dele? Por que limitar a consideração aos familiares ao invés de toda a população do país?). Mesmo ignorando o problema da impossibilidade se comparar estados subjetivos ou bens incomensuráveis, resta que toda ação tem tantos efeitos, e cada um deles se estende e se ramifica de tal forma ao infinito, que é impossível comparar objetivamente dois estados possíveis do mundo. Esse tipo de comparação do bem global advindo de possíveis ações alternativas é impossível ao homem, pois envolveria abarcar basicamente todos os eventos do universo do momento do ato até o fim do mundo (foi um pouco isso que explorei no meu conto Carlos, o consequencialista).

Assim, todo argumento consequencialista tem uma arbitrariedade em seu âmago. E essa arbitrariedade esconde que, no fundo, tem-se uma preferência por algum ato, e a escolha parcial de certos efeitos seus para justificá-lo é antes uma racionalização do que uma prova racionalmente válida, que é como a posição consequencialista se vende.

Não está no poder do homem comparar estados globais de bem e de mal, e nem evitar que o mal surja e se efetive no mundo. Está em seu poder, isso sim, não ser um canal de efetivação do mal; isto é, está em seu poder não visar nenhum objetivo mau em sua ação. Em outros termos: não querer destruir deliberadamente nenhum dos bens que constituem a vida humana; dentre eles, é claro, a própria vida humana, que é precondição aos demais. Não podemos evitar a morte, e é certo que alguns de nossos atos, ainda que indiretamente e de formas que nunca imaginaremos, resultarão em mortes; mas podemos nunca visar a morte como objetivo de nossos atos. É moralmente, e psicologicamente, diferente prever a morte de um acidentado e com base nela agendar um transplante de órgãos e causar um acidente para que esse mesmo transplante ocorra; os resultados são os mesmos, mas no primeiro caso você é um herói e, no segundo, um monstro. A violação de consciência está aí, nessa escolha pelo mau enquanto tal, que define e determina dali em diante o caráter do agente; mesmo que o resultado seja bom.

A má formação de um cérebro é uma tragédia, algo terrível, e torcemos todos para que um dia a ciência possa evitá-la ou remediá-la. O anencéfalo traz sim uma medida de sofrimento ao mundo. Sua anencefalia é um mal, e dependendo do caso pode trazer mais mal ao mundo (ou mais bem, como no caso dos pais que amam seu filho, mesmo anencéfalo). Mas a decisão de matá-lo é o buscar deliberadamente o mal, a destruição da vida humana. Ainda que o resultado global seja bom (e todo juízo quanto a isso tem um quê de arbitrariedade), não é isso que determina a bondade ou maldade de nossos atos, e sim o objeto que eles buscam. É preciso que haja o mal, por motivos que fogem ao nosso controle; mas não é preciso que sejamos canais voluntários do mal.

***

E a legítima defesa citada acima, não é um caso em que se mata um ser humano? Sim, mata-se um ser humano, mas a intenção não é matá-lo, e sim se defender. A morte do agressor é uma consequência previsível do ato de se atacá-lo, mas não é em nenhum momento querida pelo agente, se ele estiver agindo moralmente. São coisas diferentes a morte como efeito colateral previsível de um ato e a morte como meio querido para que se produza um efeito bom. Uma questão relevante nesse caso é: se fosse possível tirar o feto de dentro da mãe sem matá-lo, essa opção seria preferida ao aborto?

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Escolástica como decadência filosófica? - Da discussão entre Júlio e Olavo

Um novo debate entre meu amigo e colega de Dicta Julio Lemos e o filósofo Olavo de Carvalho tem sido travado acerca de se a filosofia tem uma função de formadora moral do praticante ou do estudante. Não tenho opinião formada no assunto; dedico-me a ler e ouvir diferentes lados. Já sei, contudo, quais posições definitivamente não me convencem. Uma delas é a da filosofia como puro exercício do intelecto sem relevância moral para a vida da pessoa, como é o caso, ou ao menos parece-me ser, da matemática. Claro, o matemático pode ter sua vida afetada de várias maneiras pelo seu objeto de estudo: pode enlouquecer, pode clarear seu juízo e entender melhor diversos aspectos do mundo, etc. Mas tudo isso são, digamos, efeitos extrínsecos ou acidentais (em oposição a intrínsecos ou essenciais) de seu trabalho intelectual. Ele não lida diretamente com as questões mais importantes da vida humana e do lugar do homem no universo. Já o filósofo lida.

E por isso é quase certo que ele confrontará, de forma muito direta e visceral, os princípios que regem suas ações e suas crenças básicas sobre Deus, o mundo e todo o resto. Se levar sua tarefa a sério, não sairá moralmente incólume. Mas nada nos diz que esse efeito moral será necessariamente positivo. Tal qual Zenão sereno frente ao leão que se aproximava - pois ele provara que todo movimento é ilusório -, um filósofo pode se arruinar - em sentidos mais profundos do que o da anedota de Zenão - justamente por causa de sua grandeza filosófica. Se fosse mais tímido, menos corajoso, menos profundo, não botaria em risco as convenções, as crenças e opiniões fáceis e o senso comum que contribuem para nos fazer homens de bem, piedosos, dotados de consciência social, etc. A busca da verdade enquanto tal é um ideal moral nem sempre em harmonia com os demais. Ele por vezes exige que desempenhemos o papel do iconoclasta, do destruidor da certeza e da segurança em nome de uma visão mais clara. A Fé pode dizer que, no limite, tudo se encontra e se harmoniza (e será que ela diz isso mesmo? Quanto que já se passou por Fé inquestionável foi depois abandonado?); e a Fé é exatamente a crença no que ainda se é incapaz de ver...

(Claro, nada disso exclui a possibilidade do efeito moral da filosofia ser bom. E mesmo quando ele é mau, quando o efeito da filosofia é imoral e destrutivo, não descarto que ela possa ser bom numa consideração mais profunda.)

Daí já dá para ter uma ideia de outra posição que me parece indefensável: a da filosofia como escola moral, estética e espiritual; às vezes até com conotações iniciáticas. Olavo não vai tão longe, mas um ponto de sua exposição dá a entender justamente isso: que o escolasticismo medieval já era um período de decadência filosófica se comparado à educação dada nas escolas de catedral, que consistia no exemplo e no carisma do mestre e era veiculada por meio de doutrinas não-escritas, passadas primariamente pela convivência e ao se assistir o mestre filosofando in loco. Essa afirmação já foi feita aqui no AdHominem, numa discussão minha com o Ronald Robson. Olavo menciona essa tese polêmica (dizer que no século XI fazia-se melhor filosofia e investigação racional em geral do que fizeram os escolásticos é, no mínimo do mínimo, altamente discutível) como se fosse ponto pacífico da historiografia contemporânea. No passado não se sabia, mas hoje é dado certo que no século XI as escolas de catedral formavam filósofos tão profundos e elevados que, dizia-se, até os anjos lhes invejavam; ao contrário dos já decadentes escolásticos, que trocaram a filosofia viva por sistemas mortos.

Newman inspira-se no exemplo da universidade medieval do século XIII, mas hoje sabemos, e ele na época não poderia saber, pois só a historiografia posterior o revelou, que aquela instituição, longe de representar o cume da educação na Idade Média, não constituiu senão a cristalização tardia, institucionalizada, mais formalizada e menos vigorosa, daquilo que se ensinava nas chamadas “escolas catedrais” dos séculos X a XII.[3] E o que nestas se ensinava eram precisamente as qualidades do gentil-homem – “um intelecto cultivado, um gosto delicado, uma mente cândida, equitativa e desapaixonada, uma conduta nobre e cortês” – como preparatórias à aquisição das virtudes cristãs, no mesmo sentido em que Clemente de Alexandria proclamara ser a filosofia “o pedagogo que conduz ao Cristo”. O ensino aí alcançou tais alturas, e tão visíveis eram os seus frutos de bondade e sabedoria, que se afirmava, na época, que os anjos mesmos o invejavam. Malgrado o seu fulgurante e breve prestígio intelectual, as universidades que vieram depois, com toda sua história de greves, arruaças e até morticínios e a sua queda posterior numa esterilidade deprimente, jamais mereceram nem mereceriam louvor semelhante.

Essa polêmica histórica é importante ao debate atual porque concretiza as duas posições em disputa: a escolástica representa obviamente um momento da filosofia/teologia descolada da formação humana completa (literária, dos costumes, etc.), muito especulativa e com pouca relação com a vida prática, enquanto o período das escolas de catedral caracterizava-se exatamente por essa visão da filosofia como parte de uma educação para a virtude defendida por Olavo. O grande ponto é: qual desses dois sistemas presta-se mais à filosofia? Olavo claramente julga as escolas de catedral como filosoficamente superiores. A referência que ele dá é o livro The Envy of Angels: Cathedral Schools and Social Ideals in Medieval Europe, 950 - 1200 de C. Stephen Jaeger. Não conhecia o livro, e pelo que vi na Amazon, ele parece mesmo ser muito interessante. Embora eu já tivesse ouvido falar em "humanismo medieval" relacionado ao período, não tinha a noção clara de que se pode falar num período educacional e cultural distinto entre a Renascença Carolíngia e a Escolástica. Mas o pouco que pude ler revelou que o próprio Jaeger discorda da opinião do Olavo (de que os humanistas medievais foram superiores aos escolásticos enquanto filósofos). Diz ele na conclusão do livro (disponível na página da Amazon), cujo trecho que nos é mais relevante coloquei em negrito:

"This study ends with a general reflection on its subject rather than a summary. The movement it has observed is the second of three major events in the education of the European Middle Ages. Each produced changes in western thought, culture and institutions.

The first were the Carolingian educational reforms. They shaped or reshaped the seven liberal arts as a school curriculum and as the basic framework of education. They made rudimentary grammatical, rhetorical and scriptural learning available on a broader scale and created a literate culture in Europe where there had been virtually none before. The institutional shift that made learning possible in a large scale was the revitalizing of monastic and cathedral schools.


The second began in the Ottonian educational innovations and flowed into the intellectual trend I have referred to as medieval humanism. Its institutional basis was the cathedral school as a conveyor of “civil manners” (civiles mores) and educator of future administrators in worldly and ecclesiastical courts. It considerably broadened the basis on which court and civil education were available. Its contribution to rational thought was minimal, in fact retarding, since it was based on personal authority and discouraged skeptical, critical thinking. Its cultural contribution, however, was the social values of European aristocracy, at least that side of their social values that set gentleness and modesty against harshness and arrogance, the codes of behavior we know as civility and courtesy.

The third change occurred in the course of the twelfth century. It represented a shift to rational inquiry and systematic critical thought. Its institutional foundation were the independent schools in Paris which emerged in the course of the twelfth century as a result of the end of the bishop’s monopoly on instruction. Its intellectual contribution was scholasticism. Its cultural contribution was minimal; the individual schools evolved into the institution of the university, and its bequest is that institution with its tradition of systematic, critical thought.

Monasticism gave Europe new ways of studying; humanism gave it new ways of behaving; scholasticism gave it new ways of thinking. Political policy and patronage was behind each of these shifts. The first was Carolingian, the second Ottonian, the third Capetian.

The first and third of these movements have commanded the attention of intellectual historians. The history of the second has still to be written. I have tried to formulate a typology of its curriculum, an outline of its development and a conceptual framework within which its history can be described. Its main points are – (...)"
.


Que houve um período notável de florescimento dos costumes e da formação humana global (ao menos na preocupação dos homens refletida no ensino) é um fato, e é isso que Jaeger afirma. Que esse período tenha sido um cume filosófico e intelectual do qual a escolástica é cristalização decadente e tardia, aí já é interpretação do Olavo.

A interpretação que Jaeger dá nesta breve conclusão é justamente como tendo a pensar. Esse tipo de educação moral e preparação espiritual, embora muito louvável, não é propriamente filosofia. Ela não pode questionar suas próprias bases, e nem debater a sério, pois sua finalidade de formar um certo tipo de homem virtuoso já está dada de antemão; e portanto não resultará em grandes filósofos (os dois grandes pensadores que eu consigo pensar do período não refletem esse sistema das escolas de catedrais: um é S. Anselmo, um verdadeiro gênio solitário no interior do monasticismo e com uma visão pra lá de pessimista da cultura secular humanista; e o outro é Pedro Abelardo, que com sua razão crítica e iconoclasta basicamente criou a escolástica). A relação carismática, ou mesmo iniciática, entre mestre e pupilo não substitui o debate racional. É ridículo e ingênuo imaginar que "sábios" semi-anônimos do século XII que não deixaram obra escrita tivessem pensamento superior ao dos grandes escolásticos. Os poucos registros escritos que sobraram deles mostram que, muito pelo contrário, seus pensamentos eram muito mais conservadores e convencionais, ainda que belos e nobres.

O foco na relação mestre-discípulo e na sabedoria não-verbal (e que, por isso, não pode ser escrito sem ser, em alguma medida, traído) nos aproxima novamente dos sonhos tradicionalistas e perenialistas, dos sistemas simbólicos esotéricos e da imersão em tradições orais. Mas Filosofia é perseguir avidamente o real; e isso é a fuga consumada.

Não estou dizendo que o que o Olavo faz e ensina em suas aulas se pauta por esse modelo fantasioso do tradicionalismo; evidentemente não o faz. E por isso é estranho que ele e tantos de seus seguidores continuem a ter esse tipo de fantasia como ideal de vida e de formação filosófica; mais ou menos como empresários que prestam homenagem ao socialismo.

O humanismo medieval é um fenômeno histórico notável e tem diversos méritos; seu aspecto angelical, contudo, aparentemente devia-se mais ao refinamento dos costumes do que à clareza na contemplação das ideias. A escolástica, por sua vez, como Olavo bem aponta, teve um milhão de contradições, defeitos e fraquezas. Mas um ponto ela teve: fez-se, ao menos por um tempo, filosofia de primeiro nível. Nesse quesito ela é muito superior a qualquer coisa que tenha vindo antes na cultura e nas instituições medievais.

E por isso, para o verdadeiro filósofo, que quer a verdade acima de tudo, acima do refinamento, acima da beleza, acima dos esquemas e das harmonias, das opiniões e das belas crenças, dos costumes louváveis, dos dogmas e da prudência - quase acrescentei "acima da salvação da alma", mas estaria mentindo, pois para ele o maior pecado imaginável seria abandonar essa busca -, os escolásticos de formação parcial e truncada, latim tosco, sem literatura e nada refinados lhe serão de mais interesse do que os anjos da finesse e do saber global humanista e do que os sábios a proferir ensinamentos (ainda que ensinamentos santos!) do fundo de algum eremitério.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Sobre a "Honestidade Total"

É um lugar-comum dizer que alguma medida de dissimulação, insinceridade e mentira é essencial à vida humana em sociedade. A afirmação é, ao menos superficialmente, plausível: se manifestássemos todos os nossos pensamentos para todo mundo, muitas situações desagradáveis surgiriam. Quem ousaria, ou melhor, quem seria cruel a ponto de ser brutalmente sincero sobre o romance recém-publicado do melhor amigo? E isso para não entrar nas manifestações de ressentimento, inveja, repulsa e atração sexual que se tornariam corriqueiras; quiçá onipresentes.
É impossível testar essa afirmação. No entanto, e embora ela pareça verossímil à primeira vista, tendo a discordar. Pois o homem é um ser adaptativo. Depois de um período de choque com a manifestação de tantos pensamentos baixos, agressivos e indizíveis, todos nós nos acostumaríamos à nova condição. Assim como não nos julgamos a nós mesmos, e nem consideraríamos razoável sermos julgados, por cada pensamento aleatório que cruza nossa mente, aos poucos aprenderíamos a ver e julgar os outros da mesma maneira. Os pensamentos secretos seriam como um lixo, um acumulado de detritos que aprenderíamos a filtrar. (Estou aqui tratando apenas dos juízos secretos; e não das informações secretas, cuja manifestação imediata traria outro tipo de mudança.)
Isso nos traz a uma outra constatação: os pensamentos involuntários, embora revelem algo sobre nós, não nos definem. É muito comum fazer momentaneamente juízos dos quais, se refletíssemos com mais calma, discordaríamos. Em situações de tensão, como em discussões acaloradas, esses juízos parciais e que não refletem nossa real opinião (embora reflitam alguns elementos formativos de nossa opinião), acabam sendo expressos como forma de insulto (“Você é um incompetente inútil!”). Se forem eficazes, refletirão algo que o próprio interlocutor pressinta, ou tema, que seja verdade, ainda que negue para si mesmo. Supondo que a percepção não seja um completo delírio, isso significa que o insulto, essa manifestação do pensamento que normalmente ficaria oculto, tem um quê de realidade. Mas é uma realidade parcial. Mais tarde, arrependidos, asseguramos o interlocutor de que o insulto não refletia nem a realidade em si e nem nosso juízo acerca dele.
Assim, os pensamentos involuntários e ocultos não refletem, ou nem sempre refletem, nossa real opinião; são, nesse sentido, falsos. Logo, ao ocultarmos certos pensamentos, e ao filtrar nossa fala, podemos estar sendo mais sinceros (isto é, manifestamos melhor a realidade profunda de nossa mente, que pode ser contrária a pensamentos e impressões superficiais também presentes nela) do que se disséssemos tudo o que vem à mente.
A política da honestidade completa, “dizer tudo o que se pensa”, doa a quem doer, é mais desonesta do que a fala “censurada”. A vida em sociedade não depende de nosso poder de enganar e mentir; é mais verdadeiro dizer que ela depende de nossa capacidade de dizer a verdade mesmo com incontáveis pensamentos contraditórios e parciais que cruzam nossas mentes sem, no entanto, fixarem-se nelas.
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