terça-feira, 30 de abril de 2013

O Martírio do Padre Beto



O céu se fechou para o Padre Beto, e ontem, dia 29/04, caiu o relâmpago da excomunhão, ato inédito para a diocese de Bauru, outrora notória pela ortodoxia de seu clero. Sendo assim, ele já é, à sua maneira, um mártir da repressão hierárquica. “Ainda bem que não tem fogueira”, comentou, lembrando que, séculos atrás, esse seria precisamente seu destino. Em nossos dias de tolerância, e graças às pressões de um mundo secular, a Igreja teve de voltar às boas práticas de sua origem: limitar-se às sanções eclesiásticas. É bom que seja assim. A hierarquia tinha algo a aprender com o mundo.

Pe. Beto defende um Cristianismo um tanto... pós-cristão. No campo dos costumes, sexo livre. No campo da teologia, incerteza sobre o além-túmulo. Há como compatibilizar o pensamento de Pe. Beto com o ensinamento oficial da Igreja Católica? Não há. Nesse sentido sua excomunhão era inevitável. Uma certeza matemática. O que surpreende é sua ordenação. As autoridades clericais não foram capazes de perceber o seminarista com ideias avessas a tudo o que elas pregam. Ponto negativo para o departamento de RH.

Do ponto de vista institucional, a postura do bispo D. Caetano foi perfeita. Embora considere o Pe. Beto “brilhante”, explicou muito bem sua incompatibilidade com o ensinamento atual da Igreja, a qual ele jurou obedecer (mas e a discordância não pode ser, ela também, um serviço?). Pe. Beto “avançou no sinal” (será que o sinal um dia abrirá?), foi além do que a doutrina da Igreja permite. Tendo sido já advertido em privado, e tendo tornado públicas suas ideias, coube à Diocese pedir uma retratação.

Pe. Beto é o rosto da Igreja para muita gente. É preciso cobrar algum tipo de coerência entre suas opiniões e as da instituição que ele representa. Se lembramos ainda que ele tem um foro privilegiado para emitir suas opiniões, aumentando seu alcance, justamente por causa desse suporte institucional, então a cobrança de disciplina fica ainda mais justificada.

Enfim, a excomunhão foi justa. Mas foi sábia? A Igreja não vive seu melhor momento na História. Com razão, suas posturas e diversos ensinamentos são publicamente questionados. Cabe a nós, católicos, e de maneira especial a nossos líderes visíveis, abrir-se a essas questões e acolher quem as levanta. O bom professor não é aquele que manda para fora da classe quem levanta objeções, mas aquele que dá as respostas que põem fim às dúvidas. Precisamos ver D. Caetano – e não só ele, mas todos os bispos do mundo – dando os motivos pelos quais Pe. Beto está errado. Que dialoguem com ele nesse nível, no nível das questões levantadas, e não no da obediência devida aos superiores. Queria ver o Bispo, ou mesmo outros sacerdotes, fazendo seus próprios vídeos, discordando, enfrentando as opiniões de Pe. Beto em seu próprio meio. Aí sim teriam alguma esperança de conquistar as almas seduzidas pelo papo de Beto à mesa do bar.

Afinal, o problema do Pe. Beto, se houver, não foi ter desobedecido aos superiores. Suponha que ele esteja certo em suas doutrinas; então será futuramente canonizado um confessor da fé. “Mas é óbvio que ele está errado!” – Aí está o cerne da questão. Então a medida principal não é ele ter “avançado o sinal”, mas ter dito coisas erradas. Ele as ter dito em voz alta é um dado relevante, mas não é o principal.

Um amigo meu, católico, foi aluno de Pe. Beto, e demonstrou seu apoio por ele nas redes sociais. Conheço muitos outros como ele. A quantidade de Betos, tanto no clero quanto no laicato, supera em muito os defensores aguerridos da ortodoxia oficial. Talvez estejam completamente errados, navegando a esmo em meio a um mar de heresias; talvez estejam certos, apontando o dedo para uma nudez milenar que só agora se tem a coragem de notar. Talvez as duas coisas convivam em cada alma indecisa que acredita na Igreja mas não em tudo que seus hierarcas dizem.

Infelizmente, cultivou-se uma cultura do silêncio na Igreja. Enquanto não se abrir a boca, não há heresia exterior, e portanto não cabem sanções. O real pecado do Pe. Beto foi exatamente ter falado em voz alta o que tantos outros pensavam. E de fato, falar tais coisas sendo padre tem sim muito de imprudência e não deve ser incentivado; cabe uma punição. Mas o buraco é mais embaixo: se é realmente com a sã doutrina que se preocupam as autoridades, e não com uma mera obediência exterior e tipicamente romana; se eles querem almas e não números para o IBGE, então ou o rapa não pode parar no Pe. Beto, ou o rapa não é a solução, talvez nem mesmo para o Pe. Beto.

Ao contrário de D. Caetano, não vi brilhantismo algum nos vídeos polêmicos do Pe. Beto. Repetia muitas opiniões comuns, clichês do mundo contemporâneo, sem dar a eles nenhuma formulação persuasiva ou defesa cogente. Rejeitava formulações tradicionais (“Céu”, “Casa do Pai”) como antiquadas, ultrapassadas, impossíveis hoje em dia, mas sem dizer por quê. Seu talento aparece em vídeos mais comedidos, que agradariam qualquer diocese. É a excomunhão, mais do que o brilhantismo do excomungado, que confirmará a ala mais progressista da Igreja em suas dúvidas e dissensos. Quem ousa não aceitar tudo só porque a hierarquia de séculos anteriores o declarou teve sua boca calada. Suas palavras continuaram sem resposta. A Igreja mostrou sua face burocrática, fria e impassível; as rodas implacáveis do direito canônico giraram, com direito mesmo a juiz eclesiástico. Nenhuma palavra ou gesto de entendimento foram ofertados para aqueles que se identificavam com o que Pe. Beto dizia.

A Igreja tem um sério dilema à frente: o que fazer com as centenas de milhões de Betos que existem no mundo, cada vez menos dispostos a tolerar uma hierarquia doutrinalmente autoritária, que faz demandas pesadas e, descobre-se, é capaz de encobrir os próprios crimes de forma vergonhosa, só para não denegrir a imagem da Igreja. A hierarquia pode tapar ouvidos e os olhos e mandar todo mundo embora. É seu direito; o catecismo está aí e os incomodados que se mudem. Pode fingir que não há nada de errado, que o problema é com o resto do mundo que se recusa a obedecê-la. É a saída mais confortável, que exige menos disposição de mudança; e que garantirá a obsolescência. Ásia e África ainda dão influxo positivo à Igreja. Mas e quando a insatisfação ocidental chegar lá?

Ou então ela pode descer do palanque, reconhecer que também tem muito a aprender (afinal, é humana), e quem sabe, aos poucos, conquistar o direito de liderar ao mesmo tempo em que se despe da pretensão de mandar. Não escrevo nada disso como uma crítica a D. Caetano, cuja nota oficial foi justa e honesta. Tampouco teço loas ao Pe. Beto. É que por trás desse Beto há outros novecentos milhões, sentados à mesa de um boteco, com a cerveja na mão. Quando decidirem, como ele, ser transparentes e abrirem a boca... haja canonistas!

***


sexta-feira, 26 de abril de 2013

Enfrentando o Epílogo de Crime e Castigo


Agora que meu mestrado entrou na fase ou vai ou racha, em que um ano e meio de leituras tem de começar a transformar-se em texto, achei que era também a hora certa para reler a obra literária de Dostoiévski. É claro que estou continuamente consultando seus romances e contos, mas uma leitura integral e minuciosa da literatura dostoievskiana como sistema é algo que demanda um esforço paralelo à minha pesquisa em si, que é mais sobre história cultural da Rússia.

Pois bem, tenho empreendido essa integral e minuciosa leitura.  Confesso que às vezes, por mera curiosidade dir-se-ia psicológica, gostaria de voltar ao ponto em que me era possível defrontar ingenuamente um romance de Dostoiévski. Por exemplo, voltar à percepção que tinha quando li pela primeira vez Crime e Castigo e fiquei confusa quando, no fim do livro, Raskólnikov não se arrepende explicitamente de seu crime. Lembro de almoçar com a Day Teixeira no bandejão da USP e discutir – quase brigar – por causa disso. Era estranho, não fazia muito sentido, mas estava escrito lá: entre um êxtase religioso e outro, o protagonista do livro declarava não se arrepender de seu crime.

Para completar, recentemente tive o privilégio mórbido de assistir a uma palestra do tradutor Paulo Bezerra em que ele, peito estufado de orgulho, declarava: Raskólnikov não se arrepende! O crime foi um experimento social. Dostoiévski foi, até o fim da vida, um homem de cosmovisão socialista, se bem que perto da morte tenha deixado seu socialismo tingir-se de um certo matiz cristão.

Ao ouvir tal fala especializada, pude distinguir nitidamente onde e como o tradutor distorcia as ideias e a biografia de Dostoiévski, mas ao mesmo tempo havia em minha memória a impressão daquela primeira e já longínqua leitura de Crime e Castigo: de fato, parece que Raskólnikov não se arrepende...

Foi nesse momento que percebi que já estava na hora de parar de ler interpretações da obra de Dostoiévski e copiosas histórias da Rússia e fazer, por obrigação, aquilo de que mais gosto: enfrentar os romances, agora desde um ponto de vista abalizado. Alguns deles eu já relera e treslera, mas curiosamente Crime e Castigo ficara relegado àquela primeira leitura pueril, talvez por ser muito comentado pela crítica, o que cria a ilusão de que você conhece bem o romance só de ouvir falar tanto nele.

Durante a releitura, fui pensando numa possível justificativa para a frase que encontraria forçosamente no Epílogo – ele não se arrependia de seu crime. Pus-me a pensar sobre o pessimismo (ou “realismo superior”) de Dostoiévski, em como ele mostra as consequências funestas de certas ideias, elevando-as a sua máxima força e sugerindo, em geral sutil e prolixamente, que o leitor dê a seu destino um rumo diverso daquele representado em seus romances. O príncipe Míchkin é esmagado pelo mundo em O Idiota, Piotr Vierkhoviênski escapa no fim de Os Demônios... Ora, não seria tão absurdo assim Raskólnikov terminar Crime e Castigo ainda infectado pelo “drama da razão”. O que importa – pensava eu – é o leitor compreender que ele deveria arrepender-se, e nesse sentido a figura de Sônia se impõe majestosamente ao longo de todo o romance.

Seguindo essa linha de raciocínio, cheguei ao Epílogo do livro. E qual não foi minha surpresa ao descobrir que Dostoiévski não é nem tão críptico, nem tão enviesado quanto sonha nossa vã leitura ingênua! Eis o que nos diz, leitor, o Epílogo de Crime e Castigo (considerarei que meu interlocutor conhece o enredo e as personagens, pois explicá-lo complicaria o meio de campo aqui):

Após muito agastar-se e adoecer, às voltas com a consciência de seu crime, Raskólnikov entrega-se à polícia, é condenado e mandado aos trabalhos forçados na Sibéria. Sônia (a personagem positiva do livro; o puro espírito cristão) o acompanha. Podemos dividir o Epílogo em dois momentos diversos e antagônicos: o primeiro é mera continuação da porção precedente do livro e nele Raskólnikov mantém a mesma atitude soberba e altiva de antes; não reconhece seu crime; despreza Sônia; não consegue relacionar-se com os colegas de prisão (em outras palavras, com o povo russo). Esses são os elementos para os quais devemos olhar se quisermos entender a visão de Dostoiévski sobre seus personagens. Quando ele quiser nos comunicar a transformação espiritual de seu protagonista, usará essas mesmas senhas. Todos esses elementos (a relação com o que Sônia representa e com o povo russo) são passíveis de análise a partir do Epílogo, mas por questão de foco nos detenhamos apenas no problema do crime.

No primeiro momento, nos diz o narrador:


Sofrimentos e lágrimas – ora, isso também é vida. Mas ele não se arrependia de seu crime. Ele poderia ao menos enfurecer-se com sua tolice, como antes se enfurecera com os seus atos vis e mais tolos, que o levaram à prisão. Mas agora, já na prisão, em liberdade, mais uma vez analisou e ponderou todos os seus atos pregressos e de maneira alguma os achou tão tolos e vis como lhe pareciam antes, naquele período fatal.
“E por que meu ato lhes parece tão vil? – dizia de si para si. – Por ter sido uma perversidade? O que quer dizer a palavra ‘perversidade’? Minha consciência está tranquila. É claro que foi cometido um crime comum; é claro que foi violada a letra da lei e derramado sangue, mas tome a minha cabeça por letra da lei... e basta! Claro, neste caso até muitos benfeitores da humanidade, que não herdaram mas tomaram o poder, deveriam ser executados ao darem os seus primeiros passos. No entanto, aqueles homens aguentaram os seus passos e por isso estavam certos, mas eu não aguentei e, portanto, não tinha o direito de me permitir esse passo.”
Eis em que ele não reconhecia o seu crime: apenas no fato de não o ter aguentado e ter confessado a culpa. (p. 554, ed. 34, 2008. Grifos do autor.)


Aparentemente, o tradutor Paulo Bezerra só leu Crime e Castigo até aqui. É muito curioso pensar no peso que têm essas palavras sobre a percepção do leitor. Já disse que eu também me deixei enredar por elas anos atrás. São palavras claras demais e talvez ganhem realce diante da sutileza do que vem depois. É um efeito análogo ao que acontece em Os Irmãos Karamázov: os capítulos que se ocupam da revolta metafísica de Ivan Karamázov eclipsam os que vêm depois, os quais, segundo desejava Dostoiévski, deveriam ser “uma refutação triunfal” dos raciocínios de Ivan. Digo eclipsam aos olhos da crítica: basta comparar a quantidade de análises sobre “O Grande Inquisidor” com o quão pouco se escreveu sobre o Livro VI dos Karamázov, que contém a filosofia do stárietz Zossima, a qual coincide com a do próprio Dostoiévski. De fato, não é injusto dizer que o gênio do romancista produz seus mais instigantes frutos quando representa sua – por assim dizer – filosofia negativa; a expressão de suas ideias positivas costuma resultar utópica e um tanto piegas (notem que me refiro à expressão).

Mas voltemos a Crime e Castigo. Imediatamente após o trecho citado acima, o narrador descreve a reflexão de Raskólnikov sobre o ímpeto suicida que teve antes de entregar-se à polícia, enquanto sofria esmagado entre o sentimento de culpa e a convicção da plausibilidade de seu crime:

Ele sofria também ao pensar: por que não se matara naquele momento? Por que ficou parado acima do rio e preferiu confessar a culpa? Será que existe tamanha força nesse desejo de viver e é tão difícil superá-lo? (Idem.)

E então se segue o turning point, o parágrafo no qual o narrador nos indica que o presente estado mental e espiritual de Raskólnikov não é definitivo, não representa o estado do herói com que o romancista conclui a narrativa:

Ele se fazia essa pergunta atormentado, e não conseguia entender que, naquele momento em que estava sobre o rio, talvez pressentisse uma profunda mentira no seu íntimo e em suas convicções. Não compreendia que aquele pressentimento pudesse ser o prenúncio da futura transformação em sua vida, de sua futura ressurreição, da sua futura concepção nova de vida. (Idem. Grifo meu.)

Assim em destaque esse parágrafo é claro demais, mas é impressionante como certas leituras (como a de Paulo Bezerra e tantos outros; procurem o livro Crime and Punishment and the Critics) conseguem fazê-lo passar despercebido. O que esse parágrafo diz? Que Raskólnikov não se matou porque, no fundo, reconhecia o valor da vida e, mais ainda, no contexto geral do livro, indica que ele sabia que a condição de assassino o aferrava à existência, pois era preciso expiar o sangue derramado. Trata-se do mesmo instinto que o faz entrar na delegacia e confessar o crime, mesmo que ao longo de todo o caminho ele se perguntasse por que deveria confessar e não conseguisse chegar, racionalmente, a uma conclusão. Aqui é preciso repetir aquilo que vem dito na orelha de qualquer edição de Crime e Castigo: Raskólnikov é um nome derivado de raskól, palavra russa que significa “cisma”; é o indivíduo cindido entre convicções intelectuais e instinto moral – desenvolvimento de Bazárov, protagonista de Pais e Filhos, de Turguêniev.

Portanto, a tão temida (ou venerada) frase “ele não se arrependia de seu crime” está longe de ser a palavra final de Crime e Castigo. O Epílogo continua e nos mostra a lenta progressão espiritual de Raskólnikov. Sua transformação é precipitada pela figura de Sônia. Habituado a desprezá-la e a receber com desdém o amor e os cuidados abnegados dela, ele se surpreende com saudades quando por vários dias ela não o visita, pois ficara doente. Quando os dois se reencontram, dá-se a cena de seu verdadeiro encontro – Raskólnikov percebe que a ama e enfim consegue receber o amor dela. Porém tenhamos em mente que Sônia, no âmbito do romance, não é qualquer mulher – é o puro amor cristão. A partir do momento em que se une a ela, Raskólnikov retorna a suas “origens”, ao contato com o solo russo, com o Cristo russo. (Seria complicado explicar aqui a parte da filosofia de Dostoiévski que diz respeito ao povo e ao solo russo; contentemo-nos com a “infecção” de Raskólnikov pelo amor cristão.) Tanto é assim que, no mesmo dia em que se entrega espiritualmente a Sônia, sua relação com os colegas de prisão transforma-se:

Na noite do mesmo dia, quando o quartel já estava fechado, Raskólnikov, deitado na tarimba, pensava nela [Sônia]. Nesse dia até lhe pareceu que todos os galés, antes seus inimigos, já o olhavam de modo diferente. Ele mesmo começou a conversar com eles, e lhe respondiam de modo carinhoso. Agora ele se lembrava disso com esforço, mas era assim que devia ser: acaso tudo não devia mudar agora? (p. 559)

Por fim, o crime. O que pensa Raskólnikov sobre seu crime, agora que foi transformado?

Tudo, até o crime dele, até a condenação e o exílio, agora, no primeiro impulso, pareciam-lhe algum fato externo, estranho, até como se não tivesse acontecido com ele. Aliás, nessa noite ele não conseguia pensar de forma demorada e constante em nada, concentrar o pensamento em nada; demais, agora ele não resolveria nada de modo consciente; apenas sentia. A dialética dera lugar à vida, e na consciência devia elaborar-se algo inteiramente diferente. (Idem. Grifo meu.)


Raskólnikov já não é o indivíduo cindido. Ele abandona o racionalismo – a racionalidade alijada da vida, da experiência concreta. Uma vez que já entregou-se ao castigo e aceitou a cruz, está livre da obsessão pelo crime que cometeu.

O romance não poderia terminar de modo mais significativo: Raskólnikov abre o Evangelho, de que até então apenas escarnecera. Mas, pensando em Sônia, para quem aquele era o único livro sobre a terra, ele pergunta-se: “Será que agora as convicções dela podem não ser também as minhas convicções? Os seus sentimentos, as suas aspirações, ao menos...”(p. 561; última página do romance) Lembremos que Sônia é o indivíduo que, diante da confissão de assassino de Raskólnikov, dissera-lhe: “Vai agora, neste instante, pára em um cruzamento, inclina-te, beija a terra, que tu profanaste, e depois faz uma reverência a todo este mundo, em todas as direções que quiseres, e diz a todos, em voz alta: ‘Eu matei!’” (p. 428)

As convicções de Sônia agora são também as de Raskólnikov. Este é o livro que Dostoiévski escreveu, a despeito do wishful thinking do tradutor Paulo Bezerra.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Dia do Índio



Em tempos passados, entristecia-me um pouco ver índios na TV usando bermuda, havaiana, vendo TV, guiando carro. Achei uma graça algo melancólica ao saber que os índios isolados do Xingu, que preservavam diversos de seus rituais e aceitaram colaborar para o filme Kuarup, pediram como pagamento uma antena parabólica. Um pouco desse sentimento ainda persiste em mim, mas hoje luto bravamente contra ele. Que pena - pensava então; índio de verdade tem que pintar o corpo, andar nu, amarrar pênis com cordão e fazer as danças rituais que sempre fizeram. Ao abandonar esses costumes, estariam perdendo sua cultura tradicional, a unidade estética que os distinguia de nós; eram menos índios. Na verdade, eles estavam é se afastando da unidade e pureza cultural e estética que existia apenas na minha cabeça, mas que nunca caracterizou povo algum, ao contrário do que a mitologia romântica que sobrevive até hoje gosta de supor.

O que a história nos mostra é que todo povo é um misto de elementos vindos de todas as partes, e com base neles cria coisas novas. O povo judeu é um bom exemplo disso; exemplo acessível a todos que tiverem uma Bíblia em casa. A cultura desse povo que saiu da Mesopotâmia (a referência aos "querubins" no Genesis aponta para uma entidade da mitologia babilônica) vai incorporando uma série de traços dos diversos povos com quem se relaciona: egípcios, fenícios, gregos, persas, babilônicos, romanos. Essa inculturação constante só era condenada quando botava em risco o culto a Deus; de resto, ela foi mesmo incorporada na relação dos judeus com Deus e com a religião em geral (o sacrifício nas alturas, a construção do Templo - similar a templos egípcios e a outros - que sucedeu essa prática ainda associada ao paganismo, o uso do grego, e por fim a incorporação à cidadania romana - mencionada, por exemplo, por S. Paulo). Leituras mais detalhadas revelam diversos outros elementos de fusão e intercâmbio cultural. Isso de um povo particularmente cioso de manter sua própria cultura e que cria impedimentos teológicos à mistura e à miscigenação. Os demais povos do mundo carregam consigo ainda mais elementos de outras culturas.

A ideia da pureza cultural é falsa; e quando a aplicamos apenas aos outros (como os índios) e não a nós, é condescendente ao extremo. Por acaso os índios deveriam ser peças de museu vivas para nossa contemplação, ou ainda para alimentar a vã fantasia de que existem enclaves ainda intocados pela cultura ocidental que se espalhou pelo mundo? Claro que não. A influência cultural é um fenômeno incontornável quando há comunicação entre diferentes culturas. Nosso mundo globalizado lembra o Oriente Médio do início da era cristã: uma colcha de retalhos de povos todos misturados, comunicando-se em várias línguas mas com uma em comum, o grego. Por acaso um egípcio estava traindo seu povo ou sua cultura ao adotar o modo de se vestir helênico? Não, ele estava ajudando no desenrolar dela, assim como o índio que veste shorts e assiste televisão.

O que é, então, culturalmente falando, o índio? Ele é aquilo que cada um deles escolher adotar ou ser. Somos menos "brasileiros" (aliás, o que é isso?) por comer mandioca ou relaxar numa rede? Ah, mas os brasileiros são essa mistura, então tá valendo... Mas e os filhos e netos de portugueses que primeiro adotaram esses costumes estrangeiros? Estavam eles matando sua cultura ou criando uma nova, ou nem faz sentido falar de uma coisa sem a outra? No final das contas, preservar um modo, uma língua ou uma música para manter a pureza de uma cultura não faz sentido; mesmo porque esse passado supostamente puro já não era nada puro, e só surgiu porque muita gente violava sem receio as regras que os tradicionalistas do presente defendem.

Que triste espetáculo assisti na televisão no ano passado! Uma certo tribo tinha um ritual de pesca, mas devido à construção de uma barragem próxima, não chegavam mais peixes ao trecho do rio em que os índios pescavam. A FUNAI então trazia os peixes de caminhão e os soltava naquele trecho de rio para que os índios, alguns metros abaixo, pudessem pegá-los. Há infantilização mais óbvia do que essa? A cultura das diferentes tribos é tratada como uma peça de museu a ser preservada; da mitologia à comida. Essa preservação artificial, que é diferente da preservação natural que ocorre quando fazemos as coisas de uma certa maneira porque julgamos que ela é boa, congela a cultura e infantiliza seus membros. Nessa onda, até mesmo a língua geral, codificação e união de diferentes línguas indígenas, feitas pelos jesuítas, e que permitiu que todos os povos se comunicassem com mais facilidade e tivessem uma língua escrita, é criticada como "poluição" das culturas originais.

Os índios são descendentes de povos que estavam aqui antes da chegada dos portugueses; que se organizavam em tribos, sociedades e nações. Às nações e tribos que porventura ainda existam, e que perderam suas terras pela violência do Estado português ou do brasileiro, deveriam ter seus direitos reconhecidos. Mas não por meio de reservas e políticas culturais que os mantenham na eterna infantilidade.

O que quero hoje aos índios é que recebam o reconhecimento de que são homens como nós, capazes de tomar suas próprias decisões. Sendo assim, deveriam receber suas terras ou como propriedade suas dentro do Brasil ou mesmo como nações plenamente independentes do Estado brasileiro, e daí que façam com elas o que bem quiserem: cultivar, vender, retornar à caça e à coleta, desenvolver softwares a impostos baixos, etc. É isso que desejo aos índios do Brasil. Se quiserem TV à cabo ou não, se quiserem pintar a cara ou não, se preservarem o tupi-guarani ou alguma outra ou adotarem o português ou mesmo o inglês, pouco importa. Isto é, importa apenas na medida em que importar para eles. Seria terrível para a minha cultura abrir mão de restaurantes japoneses, do jogo de futebol e do rock; não posso, pensando assim, querer que membros de outros povos pensem diferentemente. Eu não me defino em nada pelo folclore de camponeses portugueses de um passado perdido; e nem eles precisam se definir por alguma dança da chuva ancestral.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Estupros e "estupros"

Nicole Bahls passava uma tarde calma na livraria
quando eis que Gerald Thomas a aborda com a pior das intenções...
Sua expressão facial revela o medo que sentiu.


Existe linguagem não-verbal? Nosso comportamento, nossas roupas, nossas expressões faciais e nossos gestos comunicam algo às outras pessoas? Se sim, não dá pra acusar Gerald Thomas de estuprador, embora seja o que o feminismo militante queira.

Thomas deu uma resposta bem ao ponto em seu blog:
"Vem uma menina, de (praticamente) bunda de fora, salto alto de “fuck me”, seios a mostra, dentro de um contexto chamado PANICO e eu (que não deixo me intimidar e gosto desse pessoal) entro no jogo e viro as cartas – e os intimido ! (que nada! Brincadeira também!) (TUDO BRINCADEIRA, GENTALIA HIPOCRITA que abriu uma facebook Page e debate e me massacra e passa dias editorializando e “moralizando”uma questão tão simples e tão absolutamente inútil:"
O papel da Nicole Bahls, escolhido por ela mesma, é se apresentar e agir sexualmente, sem perguntar se os rapazes querem ou não (afinal, é razoável supor que querem, e muito). Se alguém interage com ela na mesma moeda, é estuprador? Mas o negócio dela não é desconcertar por meio do sexo? A desconcertada agora foi ela.

Claro, um pouco depende do que exatamente fez a mão de Gerald Thomas. Há limites que são relevantes em cada contexto. Seria relevante também saber o que a Nicole Bahls achou da situação? Ela se sentiu violada, humilhada, estuprada? Ou só ficou um pouco constrangida? Ou quem sabe gostou? Vai saber. Isso me lembra do caso velho do estupro no BBB, que foi comentado neste blog também. A própria "estuprada" disse que não se importou; ou seja, que o ato do ficante da ocasião não tinha contrariado a vontade dela. Para muita gente, contudo, a opinião dela era irrelevante para definir se o sujeito violou ou não os limites dela. E isso é lutar pela autonomia de alguém?

É preciso ter um contrato verbal firmado antes de se encostar numa mulher mesmo se a linguagem não-verbal dela comunicar que ela quer ser tocada sexualmente? 



Essa tensão entre linguagem verbal (que, via de regra, reflete um juízo mais prudente e intelectual) e a linguagem não-verbal (que reflete um desejo menos filtrado pela razão) não é simples. Há os casos claros, que vão do sexo plenamente consensual em que a mulher toma a iniciativa até mesmo verbal de iniciar, até o sexo plenamente forçado em que a mulher, amedrontada e enojada pelo homem, sofre calada de medo. Entre esses dois, há muita área cinza, e negar isso é deixar uma ideologia simplória falar mais alto do que a realidade que o próprio indivíduo, sem dúvida alguma, percebe. O caso mais interessante é o da interação sexual que, se for trazida ao nível do discurso verbal, será abortada; ou porque o homem "quebrou o clima" ao pedir sexo diretamente, ou porque uma das duas partes tem alguma vergonha do que está fazendo e portanto se sentirá na obrigação de cortar o contato se ele for formulado conscientemente. "O quê?? Você achou que eu ia fazer isso?? Nem me passou pela cabeça!"

Enfim, negar o papel do contexto e da comunicação não-verbal é dizer que o contexto não importa e que todas as nossas interações se dão (ou deveriam se dar) sob a absoluta falta de pressuposições sobre o comportamento alheio. "Um sujeito com olhar de ódio corre em sua direção empunhando um facão? Vamos perguntar o que ele quer antes de esboçar alguma reação.". Às vezes o homem com o facão tinha a intenção mais pacífica do mundo. falhas de comunicação e sinais equivocados são sempre possíveis; o que não impugna a realidade e o valor dessa via de troca de informações. (Aliás, as pessoas menos capazes de captar e participar dessas trocas não-verbais sofrem muito mais para se relacionar).

Nicole Bahls chegou oferecendo seu produto, achando que Gerald Thomas não teria a coragem de pegá-lo. Ele teve (e qual era a intenção dele: realmente sentir um prazer sexual ou gerar algum constrangimento para a "repórter" que tentava constrangê-lo?). Ela se saiu um pouco embaraçada, como fica qualquer um que tem seu jogo virado.

Um dia, eu passeava à noite com três amigos pela rua. Um carro com três meninas da nossa idade parou para perguntar onde era a balada "Pecato". Percebendo que não éramos os maiores pegadores da vizinhança (pois é, comunicamos muito sobre nós mesmo sem abrir a boca), elas resolveram tirar onda. Depois de acertarem onde eu estudava só pelo meu tipo físico e roupas (!!) ainda disseram que, se a gente as ajudasse, elas nos mostrariam os seios. Vendo nossa inibição, ainda foram além e disseram algo como: "Olha só, são três tetas!". Um dos meus amigos, menos propenso a se intimidar, respondeu na lata para a menina, com uma conotação de curiosidade excitada: "Você tem três tetas?". Nisso elas fecharam a cara, xingaram-nos e foram embora. Bons tempos!

O que há num contexto! Se esse mesmo amigo tivesse se aproximado de uma menina quieta num ônibus e, no ouvido dela, tivesse sussurrado a mesma pergunta, seria um assédio sexual bem condenável e bem nojento. Mas naquela noite, naquela troca com as meninas provocadoras dentro do carro, quem o condenaria? Estava completamente dentro do contexto criado por aquela interação. Embora a intenção fosse explicitamente constrangê-las, jogando o mesmo jogo sexual que elas iniciaram, e que estivesse ligado a um desejo de ver até onde elas levariam a brincadeira, foi uma resposta, na minha opinião, perfeitamente aceitável, dado o contexto.

O barulho sobre a "cultura do estupro", quando feito em casos como esse, sem levar em conta contexto e intenção dos participantes, tem apenas um efeito: banalizar o estupro e tirar a seriedade do assunto. Que, aliás, tem menos a ver com a cultura patriarcal, e mais com a biologia: sim, leitores, os bichos também estupram. Portanto, o melhor remédio talvez seja a velha educação de controle sobre nossos instintos. Mas isso não pega bem, né?

terça-feira, 9 de abril de 2013

Finalidades Naturais e suas Perversões, ou Ética do Bom Senso

O homem é um animal. Racional, é verdade, mas ainda assim partilha com os demais animais toda uma estrutura biológica: instintiva, sensitiva, metabólica, etc. Sentimos fome assim como um cachorro ou um macaco sente fome. Ser animal é parte do que somos. Nosso corpo, e as inclinações e tendências que dele decorrem, apontam para funções naturais, biológicas, que temos que cumprir para continuar a viver e preservar nossa espécie. Seria desumana, irreal, angelical, uma ética que fosse contra, por exemplo, o ato de comer. Afirmar isso não é, nem de longe, propor a ética igualmente desumana que nega nosso lado espiritual e afirma que devemos perseguir apenas os bens do corpo. Há um justo meio a ser buscado, e ele inclui corpo e alma. Negar ou contrariar as finalidades naturais que temos em nós é errado para um ser humano; ou seja, é algo que nos faz menos humanos; menos animais racionais.

Peguemos, então, um membro do nosso corpo para mostrar a aplicação prática disso: por exemplo nossos pés e pernas, que podemos chamar de nosso sistema locomotório. Alternativamente, podemos falar não dos membros em si, mas dos atos que por meio deles efetuamos: andar e correr. Esses atos são naturais para nós (claro, um homem anda de maneira diferente à de um cachorro; um mesmo tipo de função natural se expressa de diferentes maneiras segundo as diferenças de natureza). Analisemos essa função natural tendo em vista sua(s) finalidade(s) própria(s).

Ora, a finalidade dos atos de andar e de correr, e por extensão das pernas e dos pés, é a locomoção. Usamo-los para ir de A a B. É para isso que temos pernas; e se nossas pernas ou nosso ato de andar, por algum defeito, não cumprissem essa função, seriam inúteis. A locomoção é, portanto, a finalidade primária do andar. Mas ela não esgota todas as potencialidades que o ato contém. Há também uma outra função que decorre dessa: ao andar, exercitamos e fortalecemos nossas pernas e nosso sistema cardio-respiratório. Assim, podemos falar dessa outra finalidade, secundária, do ato de andar ou correr: o exercício físico.

Não há necessidade de se prender muito a essa nomenclatura de fins primários e secundários; basta notar que ambos existem e que um decorre do outro: ao nos locomover, ao ir de A para B, também nos exercitamos e melhoramos nossa saúde.

Assim, não há problema nenhum em que uma pessoa ande pela rua, não com a finalidade expressa de chegar a algum lugar, mas apenas com o intuito de se exercitar. É evidente que, ao fazê-lo, ela está plenamente aberta à finalidade locomotória de seu ato: ela vai de fato de um lugar a outro, cumpre a função biológica inseparável ao exercício de caminhar, ainda que esta não seja seu objetivo naquele momento. Não é incomum que uma pessoa saia para dar algumas voltas de jogging no quarteirão e termine no mesmo ponto do qual saiu, e não há nada de errado nisso.

Há, contudo, algumas pessoas que não se contentam em desempenhar essa função natural e insistem, por algum motivo, em tentar cumprir uma das finalidades do ato de andar negando a outra. É o que acontece quando, artificialmente, separam exercício e locomoção. Por meio de um aparelho artificial, chamado "esteira rolante", essas pessoas desempenham um exercício ao mesmo tempo em que frustram deliberadamente a função locomotória. Suas pernas se movimentam conforme o processo biológico, mas o aparelho, colocado ali propositalmente, faz com que o indivíduo fique exatamente no mesmo lugar a cada passada. Aí temos uma clara violação da lei moral natural: a frustração deliberada da finalidade do ato de andar, ou seja, uma violação de uma das finalidades que decorrem de nosso ser. Em última análise, trata-se de um ato contrário à natureza humana.

Vejam, não se trata, de maneira alguma, de uma condenação do exercício físico! Ele é bom e louvável. Mas ele deve ocorrer dentro do contexto natural em que se expressa: a locomoção. Também não se trata de dizer que a pessoa age imoralmente toda vez que mexe as pernas e não sai do lugar. Suponhamos que uma pessoa tente andar num chão muito escorregadio e, por isso, não saia do lugar. Se a pessoa não teve a intenção de fazer com que o chão ficasse escorregadio para frustrar a locomoção que decorre naturalmente do ato de andar, não haveria falta moral nenhuma. Digamos que um proprietário de terreno o tenha coberto de gelo para promover um concurso de patinação. Nada há de errado que, encontrando-se no meio do terreno, ele dê vários passos em falso, sem sair do lugar. Agora, se ele for para o meio do piso de gelo com a intenção de andar sem se locomover, daí sim estará cometendo uma falta moral. O motivo, como já expliquei, é simples: nossa natureza animal atende a diversas finalidades necessárias para que vivamos de forma plena segundo aquilo que somos. Frustrar qualquer uma delas é negar parcialmente, na prática, algo daquilo que somos por natureza. É, ademais, um ato irracional, pois se age de forma a atingir um fim A ao mesmo tempo em que se sabota o fim A.

Esse juízo moral se aplica àqueles que usam seus pés e pernas para andar frustrando deliberadamente a finalidade locomotória do ato de andar. Mas podemos ao menos dizer, no caso deles, que o movimento que praticam ao andar ainda é natural: seus pés e pernas se movem da maneira adequada, e a finalidade desse movimento só não é atingida por causa de um aparato artificial posterior ao ato que acaba negando sua natureza. O que dizer, então, de uma pessoa que, num ato de pura perversão anti-natural - movida sem dúvida por um preguiçoso hedonismo -, usa seu pé descalço para pegar (ato próprio das mãos; não é preciso ser doutor em biologia para sabê-lo!) uma caneta que caiu no chão?

terça-feira, 2 de abril de 2013

2019

2011 – STF aprova a união civil homoafetiva.
2013 – Senado aprova a PEC das domésticas.
2015 – TST determina, irrevogavelmente, a ilicitude da contratação de funcionários Pessoa Jurídica.
2017 – STF aprova com unanimidade a união civil poliafetiva.

-2019-

Certidão lavrada no cartório do 9º subdistrito da Vila Olímpia, comarca da capital do Estado de São Paulo:

CERTIDÃO DE CASAMENTO

CERTIFICO E DOU FÉ que sob o número 11101962, às Fls. 23, do Livro V-02 de Registros de Casamentos, encontra-se o assento do matrimônio poliafetivo de LUIZA LOPES DE ALCÂNTARA BULHÕES e MARYA KELLEN DOS ANJOS, contraído no dia 02 de abril de 2019, perante o MM. Juiz de Casamento Rafael Queiroz, e as testemunhas constantes do termo.

A primeira contraente, brasileira, psicóloga, casada com RAPHAEL VON LEUCHTENBERG DE ALCÂNTARA BULHÕES, natural de Miami, Estados Unidos da América (transcrito para o 1º Subdistrito – Sé), nascida no dia vinte e dois de dezembro de mil novecentos e noventa e quatro (22/12/1994), filha de ORLANDO BACHIR LOPES e de MARIA CRISTINA MARCHIORI.

A segunda contraente, brasileira, dona de casa, casada com JEFFERSON SILVA, natural de Senador Sá – CE (registrada em Fortaleza – 1º Subdistrito – Centro), nascida no dia quinze de novembro de mil novecentos e noventa e oito (15/11/1998), filha de CLEUDEMIR APARECIDO DOS ANJOS e NEIDE AUXILIADORA DE JESUS.

Ambas continuam a assinar os mesmos nomes.

Adotaram o regime de separação total de bens, e a poliafetividade é assumida segundo a cláusula de intransitividade.

Notas: Anexo a esta certidão constam as duas declarações de que o presente matrimônio é contraído por motivo de amor e desprovido de constrangimento pecuniário.

O referido é verdade e dou fé.

São Paulo, 02 de abril de 2019
Allan dos Santos
Escrevente autorizado


Tendo-se despedido das duas testemunhas, amigas de Luiza que estavam mais ou menos na mesma condição, as recém-casadas entraram no banco de trás da BMW que as esperava. Marya olhou para a nova esposa; o assunto era delicado. Após um segundo de hesitação, decidiu falar.

“Olha, dona Luiza, minha tia Jemilda falou que na casa da patroa dela veio um fiscal do trabalho na semana depois do casamento.”

Em geral Luiza não dava bola pro papo chato da Marya, mas dessa vez dignou-se a responder, sem, contudo, dirigir-lhe o olhar: “É?”

“É. Ele foi ver se ela era esposa mesmo.”

“Mas se elas tão casadas no papel, ele não pode fazer nada.” Irritava-a o hábito da Marya de sempre trazer problema. Pressentiu que lá vinha mais um.

“Não, eles investigam! Viu que elas não dormem na mesma cama nunca. Que não tinha foto do casal.”

“E aí?” Perguntou, já preocupada, virando a cabeça para a esposa.

“Falou que ia abrir processo. Elas até se beijaram, só que ele falou que não adiantava. Que tinham que transar na frente dele, ali, ou gravar e mandar o vídeo. Senão ele processava. Já imaginou?”

“Nossa, Marya, que absurdo! A Suzy deve estar passada!” Depois de um instante de silêncio, sorriu ao imaginar a cena: “E elas toparam?”

“Aí já não sei.”

Luiza tranquilizou-se pensando que as providências seriam simples. Reconfortava-a que, enquanto a Jemilda era uma velha feia, a Marya era até que bonita (no dizer do Rapha, depois de uma noite de caipiroskas: “beeem gostosinha”), e não de todo burra. O casamento era verossímil. Mesmo assim, que amolação essa história de fiscal!

“Olha, pra mim esse governo já deu. Tá cada dia pior! Cansei de sustentar corrupto. O Rapha já tá pensando em se mudar pra fora. Aliás, deixa eu ligar pra ele.”

Luiza tocou com o indicador no lado direito dos óculos e pronunciou baixinho: “Rapha”. Após um breve sinal sonoro, emendou:

“Amor, tô saindo agora aqui do cartório.”

A voz do marido vinha de minúsculos autofalantes nas hastes dos óculos: “E deu tudo certo, querida?”

“Ah, deu, foi tudo normal. Mas a Marya tá falando aqui que vai chegar fiscal pra inspecionar a nossa casa.”

“Como é que é?” – naquele tom briguento que ficava a cada dia mais comum.

“É, o fiscal do trabalho vai vir na nossa casa pra ver se a gente se casou por amor mesmo. Tem que ter prova.”

“Puta que pariu! É sério isso?”

“É sério. Tão processando mesmo. Você faz um favor pra mim? Encomenda uma cama de casal daquelas que dobram, pra botar no quarto da Marya? Manda instalar a NET na TV dela também?”

“Caralho, hein, amor?”

“O que que você quer que eu faça? Não é culpa minha! Eles vão ferrar com a gente!”

Um suspiro do outro lado da linha. “Tá bom. Vou olhar aqui.”

Marya, olhando a rua pelo vidro fumê, pensava no benefício inesperado daquela cama de casal. Facilitaria as estadias secretas do patrão em seu quarto durante a madrugada. Uma diversão noturna, mais os quinhentos extra por mês, sem FGTS e INSS, eram uma boa; filminho na NET também. Se esse casamento colasse, seria mais dinheiro no bolso. E caso a Luiza passasse dos limites, dava pra entrar na Justiça, dizer que foi obrigada. Sentiria um pouco de pena do Raphael: gostava das horas com ele, sentia que ele ficava à vontade, e ela também. Bem diferente dos longos silêncios pesados com o Jefferson, aquela pobreza do "apertamento" dele. E sabe-se lá onde encontraria outro emprego que pagasse bem. Enfim, o futuro a Deus pertence, e o momento era de celebrar. 

A voz do marido saiu novamente dos óculos de Luiza. “Amor, é cama de casal ou de trio?”

“Só de casal. A gente casou no intransitivo.”

“Tem certeza? Não quero comprar errado e depois ter que ir na loja trocar!”

“Ai Rá, certeza, né! Compra hoje, tá? Eu vou passar com a Marya num restaurante do shopping pra gente tirar uma foto com um pró-seco na mão. Depois vou emoldurar.”

(Espumante em shopping center chique? Marya já antecipava a reação da parentada invejosa quando publicasse a foto.)

“Tá bom. Aproveita e passa no mercado? Tá faltando sal pro churrasco gourmet de hoje à noite.”

“Ih, Rá; a receita do sal expirou, lembra? Precisa ligar pro Dr. Juliano.”

“Caralho, amor! E agora??”
Tecnologia do Blogger.

Total de visualizações