sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O Tradicionalismo Pós-Moderno



Se não existe verdade, se tudo são narrativas de diferentes pontos de vista, se a razão iluminista falhou, se não temos acesso à "coisa em si", se as pretensões de objetividade foram desconstruídas e revelaram-se vontades de poder, então... então todas as opiniões valem, sejamos livres, leves e soltos e vamos curtir o pluralismo, não é mesmo?

Não tão rápido, camarada! Esse mesmo discurso pode ser usado - já é! - por crenças muito distantes do "Paz e Amor". Pense o seguinte: se nenhuma crença é objetivamente válida ou verdadeira, então todas o são igualmente. E a minha religião ou ideologia do coração, que sob o sistema antigo, racionalista, era claramente inválida e furada, agora merece tanto respeito quanto a ciência mais bem estabelecida. Com um bônus: quem garante a verdade da sua crença secular e liberal são apenas os pensamentos falíveis e relativos da sua cabecinha; já a minha é garantida pela autoridade de Deus. Ganhei.

Chamou minha atenção o dia em que li um editorial abertamente, orgulhosamente pós-moderno na Al Jazeera (sim, sim; a Al Jazeera não é uma porta-voz de movimentos fundamentalistas islâmicos. Mas ela os trata, e a outros "pontos questionáveis" do mundo árabe, com luvas de pelica). Pensando em escrever este texto, fui lá procurar o editorial de meses atrás. Nem precisei. O primeiro artigo de opinião que encontrei era exatamente a mesma coisa. Vejam lá: "Who is a Muslim?", de Hamid Dabashi, professor de Estudos Iranianos e Literatura Comparada (indicador infalível) em Columbia.

O artigo (na verdade a introdução a um livro a ser publicado) prima por joias pós-modernas como esta:

Imagining ourselves in a post-Western world requires the dismantling of the regimes of knowledge the fiction of "the West" has historically generated. In the Second Chapter, "Breaking the Binary", I will explore why and how is it that a post-Western regime of knowledge is necessary and in fact the elements of which are already evident. The habitual binaries between "Islam and the West", between "religion and secularism", need to be conceptually discarded. These binaries have concealed much about Muslim worlds rather than revealing anything about them. These binaries have been imposed by the power of the regimes of knowledge production that take "the West" as an ontological a priori and narrate the rest of humanity in terms conducive to that primacy.
Narrativas são produtos de vontades de poder humanas. Nenhuma é mais válida do que as outras (a não ser a Ocidental, que é menos válida do que todas). Fiquem vocês com o ecoveganismo, que eu fico com as profecias comprovadas do Corão. Que venham os véus e a crença nos djinns! Sob o regime ocidental, colonialista e anglo-americano da razão e da ciência, a coisa ia mal para as pretensões de verdade do Islã. Já em meio ao discurso pós-moderno ele se sente em casa, ganhando até mesmo ares de justiça social.

Não vou bater em cachorro manso. Se eu vivesse no Londonistão ou em Islamsterdã talvez fosse relevante, mas aqui no Brasil a comunidade muçulmana é pequena, amistosa e tolerante. Quero falar das loucas da minha própria casa, a Igreja Católica. Pois há certos tipos de Catolicismo que, embora façam careta e finjam não gostar, acolhem de muito bom grado o discurso pós-moderno quando ele lhe é útil. A realidade é incognoscível e ininteligível; estamos perdidos e sem guia em meio ao caos. Felizmente, Deus mandou para nós um guia infalível, uma rocha em meio à tempestade, a quem submeteremos nosso intelecto sem mais perguntas. É claro que eu não estou falando de Jesus Cristo!

O católico adere ao pós-modernismo, ainda que não o perceba, quando recorre à infalibilidade da Igreja (em geral, dos papas) como justificativa última de sua doutrina. A Bíblia? Só a temos graças ao papa, claro. Tudo bem que o cânone só foi definido oficialmente no século XVI, e que pequenas diferenças ainda existam entre latinos e gregos (e que, mesmo com essas diferenças, formaram uma só Igreja visível até o século XI), e ainda mais com outros grupos apostólicos (com os quais fomos uma Igreja só até o século V).

Ou então dizem que é impossível interpretar a Bíblia por conta própria, que precisamos da autoridade da Igreja para fazê-lo. Ora, o que a Igreja preserva para nós são as interpretações bíblicas de diversos autores ao longo da história. Não há tal coisa como um "guia dos católicos sobre como ler a Bíblia verso por verso".   Primeiro aceita-se o papa, depois pode-se entender a Bíblia ou as palavras de Cristo, todas elas indecifráveis ao leitor comum. A prova disso? Ora, é o que a Bíblia diz em Mateus 16...

Sem o papa, nunca teríamos certeza doutrinária; ficaríamos navegando perdidos num mar de opiniões, sem uma rocha para se ancorar nossa certeza absoluta e descansar em paz, seguros de que possuímos a verdade. Mas e se mesmo entre papas ao longo da história não houver consenso perfeito?

Católico conservador, o papa não tem uma linha direta com Deus que lhe sussurra dogmas! Todos os papas, para chegar a decisões, estudam, meditam, pesam argumentos como qualquer pessoa. Ocorre muitas vezes de um papa discordar do que pensaram outros papas do passado. É dificílimo apontar com alguma certeza sobre quais pontos da doutrina pesa ou não pesa a infalibilidade papal, mesmo porque o ato de fazer essa distinção não é infalível. Coisas outrora tidas como infalíveis hoje são consideradas falsas. O maior exemplo que me vem à mente é a usura, outrora repetida e solenemente condenada, e hoje em dia permitida - uma mudança lenta e, infelizmente, bem pouco transparente. A opinião da hierarquia sobre a liberdade religiosa é outro bom exemplo.

Dessa constatação, duas correntes igualmente pós-modernas se formaram: o daqueles que rejeitam o que os papas recentes disseram para manter o que foi dito por papas mais antigos; e os que rejeitam o que os papas antigos disseram (ou os reinterpretam até que eles queiram dizer o oposto do que queriam) para manter tudo o que os recentes dizem. "É o papa, temos de aceitar, sob pena de pecado mortal!" Que um ato do intelecto de aderir ou não a uma opinião seja visto como passível de pecado já mostra a confusão de fundo: a confusão entre intelecto - faculdade cognitiva - e vontade - faculdade volitiva.

O bispo de Roma sempre teve, desde os primeiros séculos da Igreja, o papel de um árbitro de último recurso; e se bem me lembro Roma foi a única sé a nunca cair em heresia. Talvez não fosse o superbispo com autoridade absoluta e imediata sobre tudo o que acontece na Igreja no mundo inteiro, como é mais ou menos o caso hoje, mas havia uma primazia - não só honorífica, mas de autoridade doutrinal - relativamente reconhecida por bispos de todo o mundo. Os desenvolvimentos na relação com as Igrejas orientais são o que há, na minha opinião, de mais interessante para quem sabe se chegar a um equilíbrio mais justo do verdadeiro papel do bispo de Roma; e que provavelmente será algum meio do caminho entre o que afirmam os ultramontanistas e os ortodoxos orientais.

O papa nunca foi o critério de se ser ou não católico. E não era o filtro pelo qual os cristãos olhavam a realidade. Se o transformamos no critério último, na autoridade divina manifesta, caímos no fideísmo. Pois qual o motivo de aceitá-lo desta forma? A própria autoridade dele em afirmá-lo? No fundo, resta apenas o ato da vontade. Nossa mente é incapaz de conhecer a realidade; por isso, vamos escolher nosso representante divino favorito para arcar com nossa insegurança. Nossa consciência e nossa vida pagarão o preço. O papado se transforma, para esses católicos - muitas vezes (mas nem sempre) à revelia do que querem os papas -, numa espécie de Fidel Castro da alma: "Dar-te-ei segurança e paz de espírito. Peço apenas que abras mão de pensar; de usar sua (nefasta) faculdade crítica."

O mesmo problema se dá quando nosso critério não é o papa mas "a Igreja" ou "os Santos Padres", como fazem muitos ortodoxos. Pois não há essa entidade impessoal e abstrata, "a Igreja", que emite doutrinas e ensinamentos vindos do céu. Há pessoas concretas que formam a Igreja e que escreveram e disseram muitas coisas ao longo dos séculos. Em pouquíssimas delas há um consenso claro, mesmo entre os santos canonizados. É mérito dos latinos ter percebido isso já há quase mil anos, por exemplo, quando Abelardo escreveu seu Sic et Non. O intuito era que todas as aparentes contradições entre os Santos Padres fossem perfeitamente conciliáveis, mas não foi o que a história mostrou. Hoje em dia, então, quando nosso acervo de Santos Padres é muito maior do que o disponível na Europa do século XII, a coisa ficou ainda mais improvável. É uma pena que, à crença ingênua em um "consenso dos Padres", tenha-se substituído, gradativamente, a adesão acrítica ao juízo de um santo padre.

A lição disso tudo? Mesmo com uma religião hierárquica, a certeza absoluta nos escapa. Sua mente, sim, seu intelecto pessoal, sua razão individual; continua sendo sua única ferramenta para pensar, conhecer e tomar as decisões que lhe cabem, mesmo no campo espiritual. É possível fingir, talvez com alguma dose de auto-engano, que essa responsabilidade pessoal possa ser delegada a um terceiro. Ao fazê-lo, você perde a própria realidade, e passa a viver no sonho pós-moderno (que não é nada moderno - existe desde que um certo casal foi expulso de um Jardim): o sonho de que desejos humanos determinam a realidade; seus companheiros são Derrida e Bin Laden. Hora de acordar!

domingo, 16 de dezembro de 2012

Ad Hominem Entrevista: Rodrigo Gurgel

Prêmios literários no Brasil obedecem a uma curiosa regra: existem para confirmar reputações tidas e havidas como indiscutíveis ou alavancar reputações futuramente tidas e havidas como indiscutíveis. O que menos se espera de um jurado, aparentemente, é que julgue e premeie obras literárias de fato relevantes. E se a literatura brasileira “é uma das formas mais eficazes do tédio”, da crítica literária brasileira não se poderia mesmo esperar outra coisa que não enfado e subserviência.


Ocorre que, de tempos em tempos, aparece alguma figura rigorosamente sensata que, de tão deslocada no cenário nacional acostumado a pantomimas e salamaleques, passa a impressão de quixotesca ou, como se costuma dizer nesses casos, polemista.


É o caso de Rodrigo Gurgel, o famigerado Jurado C, na última edição do nunca assaz celebrado Prêmio Jabuti. Desde o desaparecimento do curitibano Wilson Martins, não se tinha notícia de crítico que julgasse obras literárias com os dois únicos ou principais critérios com que se espera um crítico julgue uma obra e, por conseguinte, seu criador: inteligência e honestidade inegociável.

Gurgel acaba de se tornar figura non grata entre os escritores e respectivos editores que preferem a adulação ao julgamento; o compadrio ao destemor; a imitação à literatura. 

E é com tal figura a nós gratíssima que achamos por bem começar o Ad Hominem Entrevista.

***

Você provocou um pequeno rebuliço nos meios editorial e literário brasileiros apenas por julgar um livro a partir do que considerou seus deméritos intrínsecos, e não pelo nome do autor. Qual a sua avaliação final do incidente? O que lhe diz sobre as condições da crítica literária hoje no Brasil?


Como já disse em meu blog, a avaliação do incidente pode ser resumida no pensamento de Samuel Johnson: “É difícil contentar aqueles que desconhecem o que exigem ou aqueles que exigem propositalmente o que julgam impossível obter”. No que se refere à crítica literária, em 2010, numa entrevista ao jornal O Globo, o professor de literatura da PUC-RJ, Karl Erik Schøllhammer, questionado pelo jornalista Miguel Conde sobre os críticos que receavam fazer julgamentos de valor, respondeu claramente: “As pessoas não têm coragem. A dura verdade é essa. Existe no Brasil uma cordialidade exagerada entre crítica e escritor, que é ambígua, mas que é mantida assim: o crítico diz para o autor ‘Isso é muito bom’, mas vira a cabeça e diz ‘Isso é uma droga’. Essa cordialidade, essa falsa afinidade, essa conivência bloqueiam a franqueza na discussão. Com poucas exceções. Existem algumas exceções na crítica brasileira”. Quando li essas palavras, fiquei em estado de júbilo: alguém pensava como eu. Essa é, portanto, minha avaliação. Grande parte dos nossos críticos esconde sua opinião nos jargões acadêmicos exatamente para não julgar. Quando não utilizam o discurso hermético, ficam naquilo que minha avó chamava de “conversa para boi dormir”. Nos dois casos, trata-se do que eu chamo de síndrome do bom-mocismo. No fundo, uma forma de hipocrisia.
Por falar em julgar uma obra pelo que lhe é intrínseco... O seu livro, Muita Retórica Pouca Literatura (Vide, 2012), adota um procedimento similar aos do new criticism: comentar os textos lidando com passagens específicas, sem se afastar da materialidade da obra para incorrer em afirmações muito genéricas. É de se supor que considere esse um procedimento útil aos nossos meios jornalístico e acadêmico. Ou não? E por quê?


Utilizo essa forma de analisar o texto por um motivo didático e não por ser filiado ao new criticism. Não entendo a crítica literária como um exercício acadêmico e narcisista, que busca apenas sua autossatisfação. Não. A crítica literária é um instrumento a serviço do homem. Serviço, aliás, extremamente honroso, pois elabora o diálogo que sempre deve haver entre a obra literária e o leitor. O discurso da crítica é imprescindível e deve ser feito com destemor e autoridade. Sem ele, sem a crítica, teríamos o depauperamento da cultura, da própria civilização. 

Qual é, na sua opinião, o papel da literatura na vida humana?

A literatura pode servir como bom passatempo. Pode também desempenhar o papel de força inspiradora – são inúmeros os casos de escritores que, antes de começar o exercício diário de escrita, leem uma ou duas páginas de autores geniais. Mas ela tem duas funções primordiais. A primeira é permitir ao leitor que ele se abra à variedade da experiência humana; ou seja, reconstituir, na imaginação, os conflitos humanos, como Olavo de Carvalho sempre repete. Poucas pessoas têm a oportunidade, em suas vidas, de experimentar, por exemplo, situações em que uma extrema coragem é exigida. Refiro-me àquele momento em que você se torna herói ou covarde. Em termos morais, em termos de aperfeiçoamento da personalidade, trata-se de uma situação fundamental, que testa os limites do ser humano. Pois bem, a literatura coloca nas mãos do leitor a chance de experimentar tal realidade, ainda que de forma, digamos, oblíqua ou indireta: basta ler “Lorde Jim”, de Joseph Conrad. A segunda função primordial é “ajudar o indivíduo a se confundir, em paz e na alegria, com a uniformidade do ser”. Essa ideia, defendida por Milan Kundera, agrada-me, pois é um aprofundamento do que costumamos chamar de leitura por prazer: na verdade, essa relação prazerosa com a literatura é apenas o sintoma de algo mais profundo: nossa reintegração no Ser.

A visão de mundo do crítico (sua religião ou ausência dela, bem como convicções morais e políticas) influi na atividade crítica de maneira geral? E no seu caso específico; se você visse a realidade de maneira diferente, sua opinião sobre obras literárias seria afetada?

Essa é uma pergunta que não pode ser respondida com um “sim” ou um “não”. O fato de eu ser católico impregna toda a minha vida, todo o meu ser. O crítico literário francês Patrick Kéchichian, convertido, creio, em 2009, afirma com sabedoria: “Católico não é um adjetivo, mas um substantivo. Não sou um crítico ou um escritor católico; sou crítico, escritor e católico”. Então, é evidente que a fé católica está comigo não só quando leio uma obra. No entanto, penso como Robert Louis Stevenson. Em um de seus ensaios, “The Morality of the Profession of Letters”, ele diz que, na verdade, quando se trata de literatura, todos, escritores e críticos, dispõem de uma só ferramenta: a empatia. Ele afirma que (traduzo sem ser literal) “quando um livro é concebido sob grande tensão, com um espírito que, graças a essa tensão, multiplicou seu poder, aqueceu e eletrificou, por meio do esforço, a sua obra, as condições do nosso ser se veem presas de uma iluminação tão vasta que, ainda que o conceito básico da história seja trivial ou vulgar, não pode deixar de surgir do livro algo belo e verdadeiro”. E concluía: “Da força nasce a doçura; mas algo ruim pobremente executado é algo ruim do princípio ao fim”. Esses trechos resumem a maneira como me aproximo de uma obra literária: disposto à empatia, ainda que o tema seja, digamos, anticristão; certo de que a beleza e a verdade vencem tudo, inclusive um tema eticamente duvidoso.


Você considera que a literatura brasileira tenha valor verdadeiramente universal, e que nossos escritores – os maiores, especialmente: Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Osman Lins – possam ser colocados, lado a lado, com os maiores ficcionistas do cânone literário?



Temos ótimos escritores, mas nenhum pode ficar, lado a lado, com Dante Alighieri, Tolstói, Dostoiévski, Henry James ou Joseph Conrad. Somos um país que ainda está engatinhando. Temos um Manuel Bandeira, cuja obra caminha, ombro a ombro, com a maioria dos poetas do século XX. E Machado de Assis, claro. Mas nenhum deles é um desses gênios cuja leitura é obrigatória a toda a humanidade. Um russo, por exemplo, pode passar a vida sem ler Machado, mas não sem ler Shakespeare. 


Hoje, muitos jovens no Brasil têm saltado a formação literária para ir direto ao estudo de outras áreas, como filosofia, ciência política e economia. A ignorância da literatura brasileira, em específico, excetuado um Machado ou um Bandeira, é até bem maior. O que você pensa a respeito?

Nosso sistema escolar é medíocre. Basta ver as listas de compra de livros de ficção para escolas públicas. Ali há autores contemporâneos brasileiros que, dentro de duas décadas, já estarão na lata de lixo da história literária. Outros demorarão um pouco mais... Na verdade, a escola se encarrega, hoje, de transformar os alunos em presas fáceis de quaisquer discursos, de qualquer besteira ou mentira lida ou ouvida na Internet, nos jornais, na tevê. O país está se desintegrando sob um populismo rasteiro. Os jovens não são treinados para serem mestres do seu próprio intelecto. Essa expressão, aliás, não é minha, mas da escritora Dorothy Sayers, que no ensaio “The Lost Tools of Learning” resumiu bem, creio que na década de 1940, o problema que só se agravou até hoje. A solução defendida por Sayers, ainda que radical, é a que recomendo a quem me pergunta como romper essa ordem na qual o cinismo marxista tornou-se hegemônico: devemos retornar ao Trivium. Qualquer outra saída será apenas um paliativo. 

O seu livro – assim como o que lhe seguirá – trata apenas de prosadores brasileiros. De um modo geral, o que você tem a dizer sobre a poesia brasileira?

Como leitor, digamos, profissional, dedico-me exclusivamente à prosa. Leio poesia, mas minha relação com esse gênero é essencialmente amorosa. Tenho alguns poetas que aprecio – e sempre retorno a eles. E, em suas obras, gosto às vezes de alguns poucos poemas. É o caso de Carlos Drummond de Andrade, por exemplo. Dos brasileiros, só Bandeira tem meu amor irrestrito. 

Certa vez Olavo de Carvalho afirmou que Bruno Tolentino era o maior poeta em língua portuguesa desde Camões. Na sua opinião, qual o papel de Tolentino para essa nova geração de poetas brasileiros?

Sempre que penso no Tolentino lembro-me de meu professor de latim na PUC-SP, o brilhante padre Matheus Nogueira Garcez. Tínhamos duas aulas por semana com ele – e sempre éramos premiados com um dito irônico sobre os concretistas. Só percebi muitos anos depois como aqueles comentários tinham o efeito de um conforto moral, pois ali, no templo semioticista paulistano, em que pontificava, na pós-graduação, o próprio Haroldo de Campos, alguém tinha coragem de ir contra o pensamento hegemônico. Tolentino foi um dos que ousou apontar as deficiências do movimento e os males que sua hegemonia causou. Ao mesmo tempo, a poesia de Tolentino tem o mérito de recuperar à nossa imaginação a força, a energia das formas fixas. Temos, em língua portuguesa, uma versificação riquíssima – basta ler o Tratado de versificação, do Olavo Bilac –, mas que permanece, apesar dos esforços do Tolentino, esquecida. Como disse Manuel Bandeira, “precisamos urgentemente voltar à métrica, à rima, à sintaxe lusíada [...]. O modernismo era suportável quando extravagância de alguns. Agora é a normalidade de toda a gente. Então depois que reinventaram a brasilidade, a coisa tornou-se uma praga. [...] Confesso que acho um certo sabor nos poemas dos iniciadores. Os meninos que vieram depois é que estão caceteando”. E continuam caceteando até hoje. 

A presente geração é marcada pelo advento da Internet. Uma das consequências dessa nova realidade é que as pessoas podem produzir literatura e publicá-la imediatamente, em sites e blogs, sem a mediação de editores e casas de publicação. Você vê esse cenário com bons olhos?

O cenário é irreversível. E permite, como a própria realidade, coisas boas e ruins. A “estranha pretensão” de que falava Ortega y Gasset, a pretensão “de ser mais que qualquer outro tempo passado; mais ainda: por se desligar de todo o passado, não reconhecer épocas clássicas e normativas, e ver-se a si mesmo como uma vida nova superior a todas as antigas e irredutível a elas”, veio para ficar. O homem-massa é indestrutível. Vivemos e viveremos sob o império dos filisteus. É o que previu Jacob Burckhardt em suas cartas: “Um dia o mundo irá sufocar e cair sobre o estrume de seu próprio filisteísmo”. Por isso mesmo não podemos ficar em silêncio ou agir como vaquinhas de presépio. 

Desde o ponto de vista privilegiado de jurado de um grande prêmio literário, você diria que há boa literatura em nossa produção recente, ou tem razão de ser a não rara impressão de que o momento é de estagnação e mesmice?

Ontem, hoje e sempre, não só no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo, precisamos analisar a produção literária dos nossos contemporâneos usando uma pinça. Posso dizer, utilizando-a de modo cirúrgico, que, na última década, começamos a sair do beco escuro controlado pelo eterno vanguardismo. Sim, é verdade que estamos impregnados da cultura contemporânea, relativista, materialista, de um niilismo que chega a ser atroz. Mas nossos escritores estão começando a criar coragem para desobedecer os departamentos de Letras das universidades e os críticos que só valorizam acrobacias linguísticas. Abandonar o vício de recriar constantemente um dialeto exclusivo, que só pode ser entendido pelo escritor e meia dúzia de amigos, é apenas o primeiro passo. Será um longo caminho até sermos curados da doença à qual dei o nome de narratofobia. Há, no entanto, bons escritores, dispostos a contar boas histórias, corajosos a ponto de escrever com bom humor, sem se preocupar com discursos politicamente corretos. E há outros, em menor número, que já percebem que boa literatura não é, necessariamente, literatura niilista; que um bom livro não precisa falar apenas de fracasso, vileza e perversidade.


Recentemente vieram à mídia dois casos ímpares para a cultura brasileira atual: o seu voto polêmico no prêmio Jabuti e o projeto da Vara Criminal de Joaçaba-SC, idealizado pelo juiz Márcio Bragaglia, que propõe a diminuição da pena dos detentos que lerem grandes obras da literatura universal. Ambos os casos nos proporcionaram ver expostas na grande mídia ideias até então confinadas ao “gueto conservador”. Tanto você quanto o juiz Márcio são admiradores confessos do pensamento de Olavo de Carvalho. Será que já podemos dizer que a “contrarrevolução cultural”, cujas bases o filósofo preparou, está começando a dar frutos?



As ideias de Olavo de Carvalho estão fadadas a produzir frutos – e bons frutos. Ninguém faz tudo que o Olavo já fez – e ainda vai fazer –, com a sinceridade de coração, com as intenções retas que o impulsionam, para ser tratado como a figueira estéril. Ao contrário. Estamos, assim, só no começo, nos primeiros gemidos de uma contrarrevolução cultural. É a primeira batida de coração de um feto que não será abortado.

Está chegando o Natal. Deixe-nos de presente a indicação de um bom livro que nos ajude a viver o espírito natalino.

“Sangue sábio”, de Flannery O’Connor, pode nos ajudar a compreender não apenas o mistério da Encarnação, mas, principalmente, o da Redenção. Ou seja, compreender o sentido da existência humana e o mistério da Graça, pois, para Flannery, e ela estava certa, “a Graça é o acontecimento perante o qual o homem entende o seu destino, o seu verdadeiro destino”.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Sobre as propostas de controle estatal da mídia

Respostas dadas por mim a um trabalho de graduação de um amigo que chegaram tarde demais e por isso não foram usadas. Para que não fiquem inúteis, publico-as aqui. Tema: controle estatal/social da mídia.



Você apoia a aprovação, no Brasil, de uma Lei de serviços audiovisuais, a exemplo do que ocorreu na Argentina ou de legislações europeias?

Sou radicalmente contra uma tal lei.

O caso da Argentina é paradigmático nesse sentido: o governo argentino vem cada vez mais aumentando seu poder e limitando a liberdade dos cidadãos e promovendo a desinformação intencional. Os órgãos estatísticos oficiais do governo estão tão corrompidos, publicando dados de inflação tão abaixo da real, que a revista The Economist, que publica semanalmente centenas de dados sobre quase todas as economias do mundo, viu-se obrigada a parar de publicar os dados oficiais da inflação argentina ("Don't lie to me, Argentina", fev/2012). Órgãos e pesquisadores independentes são alvo de perseguição constante e ameaça de processos judiciais.

Para conter a fuga de capitais, o governo tem imposto restrições e vigilância cerrada à compra de dólares (mesmo para fins de turismo) e se fechado cada vez mais à importação. Tentou-se até mesmo controlar a entrada de livros no país sob a justificativa inusitada de que era preciso averiguar a quantidade de chumbo na tinta da impressão; a repercussão internacional foi tão negativa que o governo logo voltou atrás; mas a atitude que subjaz a essa e a outras tantas medidas é claríssima.

Com relação à mídia, vale a mesma postura autoritária; é só ver a perseguição intensa que o governo tem feito ao Clarín, que já foi alvo de mais de 450 (!) ações judiciais e administrativas. Sem falar nas acusações mais pífias e estapafúrdias, como a de que os filhos adotivos dos donos do Clarín fossem órfãos de vítimas da ditadura, o que os obrigou a passar por um vergonhoso teste de DNA público - cujo resultado, claro, foi negativo.

O governo Kirchner, não obstante estar arruinando a economia nacional, quer também silenciar toda a oposição e controlar sozinho toda a informação do país. Um passo importante nesse projeto é exatamente a nova Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual, que vai finalmente permitir que o governo tome posse das propriedades do grupo Clarín, e que vai basicamente submeter todo o conteúdo veiculado no país a órgãos estatais ou paraestatais, que serão livres para usar critérios políticos para conceder licenças públicas de funcionamento (são 7 novos órgãos criados) e com recursos para produzir cada vez mais material estatal e obrigar que esse material seja veiculado. Promete-se, para o dia 07/12, o desmantelamento do Clarín; diversos editores e jornalistas no mundo inteiro condenam o ato.

Sob o pretexto demagógico de garantir a "pluralidade", pune-se os veículos mais bem-sucedidos e premia-se aqueles mais dispostos a fazer propaganda estatal; que também recebem, por sua vez, mais verbas do Estado via propaganda de estatais, como aliás já é prática comum no Brasil. Note-se que o argumento de promover a pluralidade é particularmente fraco nos dias de hoje, quando a revolução digital permitiu o aumento de veículos de comunicação online sem precedentes. Falando como alguém que defende posições extremamente minoritárias, não há a menor dúvida de que hoje em dia há muito mais espaço para que elas sejam veiculadas do que havia, digamos, na década de 90; e nada disso teve a ver com o Estado (que, aliás, já quer também regulamentar a internet...).

No mais, é bom que grupos que conseguem consistentemente apresentar à população programas e publicações que os consumidores queiram comprar cresçam e se tornem dominantes. Essa dominância, longe de constituir um impedimento à concorrência, é fruto da concorrência, e dura apenas enquanto a população continuar a patrocinar livremente a programação do grupo de mídia em questão. Nesse caso, ser grande é sinal de se servir bem aos consumidores. Foi assim que se deu a transição de dominância da Tupi para a Globo. E notem que a Globo, longe de poder sentar confortavelmente em sua liderança, como faz uma estatal ou monopolista (que recebe licença exclusiva do Estado), tem que ficar diariamente preocupada com o Ibope. Os espectadores não são domáveis; atrações outrora popularíssimas como o Fantástico passaram (ainda passa?) por imensas dificuldades. Estrelas como a Xuxa amargam em espaços cada vez menores, e mesmo novelas de escritores consagrados (como a Salve Jorge) podem ter desempenho ruim. A Folha e o Estado, assim como o muito maior New York Times, têm passado por maus lençóis com o advento da internet e com os jornais gratuitos; muitos jornais americanos já fecharam. A concorrência em criar valor para os consumidores nunca para. A dominação da Globo dura apenas enquanto ela conseguir produzir jornais, novelas e atrações melhores do que os produzidos por suas rivais (isto é, melhores na opinião dos espectadores); no fundo, ela é serva do desejo dos espectadores e não vice-versa.

Agora imagine uma sociedade em que toda geração de conteúdo tivesse que passar pelo crivo de funcionários públicos e "representantes de classe". Em que qualquer notícia ou opinião contrária aos desejos dos governantes nos deixasse a mercê de processos judiciais ou mesmo pressões informais (ligações de figurões para as redações, exigência de que se demita um jornalista, ameaça de não mais receber anúncios de estatais, etc.); em que qualquer grupo de mídia que queira crescer um pouco precise basicamente vender sua integridade e suas opiniões para o partido reinante. Infelizmente, a realidade brasileira já é um pouco assim; mas ficaria ainda pior se entrássemos na mesma onda da Argentina.

Felizmente, até hoje, a presidente Dilma, ao menos em seus discursos, tem se distanciado de propostas desse tipo. Mas outras figuras ligadas ao PT, gente de reputação ilibada e dotada das melhores intenções, como José Dirceu, exigem leis nesse sentido.


Uma lei dessas não seria interpretada como censura por parte dos grandes grupos midiáticos?

Censura é proibir um certo conteúdo de ser veiculado. Essa lei engloba e vai além da censura, ao não só potencialmente proibir conteúdos e negar licenças, como ao exigir veiculação de certos conteúdos (produzidos no país, por exemplo). Ela visa a estabelecer o controle estatal da mídia; o que incluirá, decerto, a censura indireta, que não é a proibição ex ante de certas teses, pois essa pegaria mal, mas a pressão e a punição de quem, sendo relativamente grande, publique algo que desagrade aos interesses do governo.


Como a sociedade civil e o governo poderiam responder a essas questões?

A "sociedade civil", isto é, cada indivíduo enquanto representante de seus próprios interesses, já responde a isso perfeitamente bem. Quem não gosta de uma programação, não a assiste; quem não gosta de uma publicação, não a lê. É por isso, por exemplo, que Rede Globo conseguiu preponderar sobre a outrora dominante Rede Tupi na década de 70. É por isso também que uma revista como a Veja tem tiragem de 1,2 milhões, e uma Carta Capital de 70.000; as pessoas escolhem aquilo que querem ler. O governo, é claro, nem sempre aprova essa escolha.

A única postura correta do governo nesse campo é o de não interferir de forma alguma. Deixe que os grupos de mídia compitam livremente. Quando alguma notícia ou acusação gravemente falsas forem feitas, o autor ou veiculador podem ser processados na justiça, e só.


Você entende que os grandes grupos de mídia têm uma postura parcial em suas coberturas políticas? Quais são as implicações desse comportamento? 

Não existe imparcialidade plena. A própria seleção do material a ser coberto já indica uma prioridade. Curiosamente, em grandes grupos de mídia há uma tendência maior a uma certa imparcialidade do que em pequenos, devido às dificuldades de se coordenar um grande número de pessoas, e ainda mais em mantê-las ideologicamente na mesma linha. Por isso um jornal com uma linha editorial "conservadora" como o Estadão acaba contratando jornalistas com visões de esquerda, formados por faculdades (como a ECA-USP) cujo currículo é solidamente de esquerda. Então temos, ao mesmo tempo, artigos de opinião com uma certa visão, e reportagens que partem de bases diferentes. A presença de editores e de toda a hierarquia da redação complicam ainda mais as coisas. Em pequenos jornais e sites, as equipes podem ser muito mais ideologicamente coesas.

Há méritos e deméritos em se ter uma publicação mais ou menos coesa ideologicamente. É, por acaso, um grande crime que uma revista como a Carta Capital publique apenas uma visão, e muito parcial, das coisas? Não; é natural, e preocupante seria se ela não tivesse o direito de publicar o que publica. O mesmo vale para todas as outras publicações.

As implicações para a sociedade são duas. Enquanto consumidores de serviços de mídia, os indivíduos usam seu discernimento para escolher aqueles veículos que mais lhes agradam. Enquanto produtores em potencial, vivem num sistema que permite que, se considerarem que há um ponto de vista que não está sendo contemplado e que tem potencial para contribuir de forma relevante no debate público, podem eles mesmos tomar a iniciativa de cobrir essa lacuna. Dou como exemplo veículos pequenos em que trabalham amigos meus: o site já citado Implicante (de viés anti-esquerdista), e, com posição socialista convicta, a revista Brasil Atual.

Por fim, é preciso lembrar que grupos de mídia estatal estão igualmente sujeitos a erros, parcialidades, manipulações e escândalos. Mesmo um grupo sério como a BBC (de um país em que se consegue muito mais separar serviço estatal de defesa dos interesses do partido) tem passado por escândalos e dificuldades: vide aqui e aqui. A diferença é que, enquanto um grupo privado depende de leitores ou espectadores (que por sua vez garantem que o valor da propaganda nesse veículo será alto) para se manter, um grupo estatal responde a interesses de gestores descolados de qualquer feedback da sociedade; e portanto a adaptação e as mudanças são muito mais lentas, difíceis e custosas.


Você acredita que os governos petistas realizaram mudanças no quadro das comunicações no Brasil?

Não sei dizer. Sei que o PT é famoso pela pressão informal a órgãos de imprensa, e tem se aliado com veículos como Carta Capital e Record (embora esse tipo de atitude não seja monopólio do PT; José Serra também é notório por coagir órgãos de imprensa). Isso não é nada positivo. Na verdade, a única mudança positiva que consigo conceber, no que diz respeito à atuação do governo, é que ele diminua seu poder e sua influência nesse setor; e está bem claro que o PT não fez isso.


Qual a sua opinião a respeito da cobertura dos grandes meios a respeito dos movimentos sociais?

Um movimento social é um grupo de pessoas unidas por uma causa e cujos representantes, por algum motivo, gozam de algum tipo de legitimidade política aos olhos da população. A atividade deles, em geral, se limita a pressionar o Estado para realizar alguma ação que os beneficiará. Infelizmente, nosso sistema político é tal que esse tipo de estratégia funciona. E quanto mais funciona, mais os movimentos tendem a se corromper e buscar usar o sistema (o melhor exemplo são os muitos casos de beneficiários do MST que vendiam suas terras e voltavam ao movimento).

A forma de atuar dos movimentos sociais é, em geral, nociva à sociedade, pois substitui os mecanismos voluntários do mercado pelo uso da força e da coerção para sanar demandas, prerrogativas do Estado. Sem falar que a escolha de quais movimentos sociais importam ou não importam é ela própria uma escolha enviesada, que revela juízos de valor por parte dos governantes (a diferença entre essa parcialidade dos funcionários públicos e a parcialidade dos jornalistas na seleção de matérias é que a dos funcionários públicos gerará leis e políticas que afetarão a toda a sociedade indiscriminadamente, enquanto a dos jornalistas afeta apenas seus leitores e espectadores, que podem deixar de sê-lo se julgarem que a qualidade do que assistem não corresponde à suas expectativas). Quem disse que o MST ou o MTST têm reivindicações mais justas que o MVB (Movimento Viva Brasil - pelo direito de se ter e portar armas de fogo no Brasil) ou do que o Homeschooling Brasil - pelo direito ao ensino domiciliar?

Quem escolherá quais representantes de movimento devem ou não ter voz e poder político? No final das contas, toda a vida nacional se resumirá a negociações entre líderes de grupos de interesses, sufocando o espaço das escolhas pessoais e da livre interação e cooperação. Líder de movimento social não representa, de forma alguma, "a sociedade". Representa em geral um grupo de pessoas que quer conseguir algo via Estado (o que sempre implica que algum outro grupo demográfico, organizado ou não em "movimento social", perderá algo via Estado) e nada mais do que isso. Toda a lógica dos movimentos sociais, dos sindicatos e das organizações de classe, que buscam agregar indivíduos em classes e grupos de interesse num eterno cabo-de-guerra, minando - e às vezes proibindo - a possibilidade de cada um de atuar fora do grupo, é distorcida e deletéria para a sociedade.

Assim, parece-me exagerada a importância que a grande mídia dá aos movimentos sociais, especialmente aos de discurso marxista. O cúmulo disso seria se o Estado desse ou subsidiasse a eles canais de comunicação, para que realizassem e difundissem suas pregações, seus discursos e suas propagandas com recursos extraídos à força do resto da população, mais interessada em assistir e ler revistas, jornais e canais de TV que, por essas mesmas leis, estariam impossibilitados de crescer.

O interesse da população por eles parece que vem caindo, e por isso aparecem menos no noticiário, mas ainda assim contam com uma exposição muito maior do que qualquer mérito que tenham; fora que contam com a permissão tácita para violar a lei sem consequências. Quem sabe essa perda de interesse mude um pouco seu foco de atuação: menos gasto de recursos em influenciar a opinião pública e conseguir passar leis de seu interesse, e mais iniciativas voluntárias de realizar seus propósitos dentro da ordem social já estabelecida, usando financiamento privado.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Sobre o Surto Moralista que Ameaça nosso Humor

Uma piada pode ser brutalmente ofensiva; pode desancar gente que não o merece; pode afirmar os preconceitos mais nefastos, ser moralmente podre, escrota mesmo. E, ainda assim, ser engraçada.

Moralidade e graça são coisas muito diferentes. Nós, que vivemos em uma sociedade crescentemente moralista, acabamos confundindo as coisas. Nosso moralismo é diferente do moralismo da primeira metade do século passado. Naquela época, o tabu era o sexo; comediantes profissionais contavam uns aos outros, longe do público, as piadas mais sujas como The Aristocrats. Eu não sei o que os humoristas atuais cochicham uns para os outros nos camarins, mas observo como nós, não-humoristas, contamos baixinho, envergonhados e com um milhão de ressalvas piadas sobre raça, estupro ou deficiência. O novo moralismo apareceu muito rápido; no início dos anos 90, tanto aqui como nos EUA, coisas impensáveis para nossa década. Vide a piada mais engraçada do Debi & Loide.



Parte da graça está estupidez, ao mesmo tempo demencial e perversa, do Loide; mas a outra parte está na situação simplesmente patética do menininho cego com seu canarinho morto; pretty bird, pretty bird (e se não fosse para rirmos disso, a cena não voltaria para o menino; ficaria só na conversa do Debi e Loide). Não tenho talento para analisar a graça, mas de alguma maneira ver claramente o estado de indefensibilidade e autoilusão de uma pessoa é engraçado.

Minha principal ferramenta de análise neste post, falha como ela é, é a análise da minha própria subjetividade, e o único teste possível é saber se essa análise "soa" verdadeira aos leitores; isto é, se ela bate com as percepções e análises de cada um. Alternativamente, usarei também a definição sucinta e com alguma base de pesquisa proposta por Peter McGraw: o humor ocorre quando uma mesma situação cumpre dois critérios simultaneamente: 1) é uma situação de violação - isto é, trata-se de algo que viole algum aspecto de como o mundo deveria ser; 2) essa situação é benigna, ou seja, não apresenta uma ameaça ao espectador. Essa definição bate com a minha experiência subjetiva, então parece ser boa; mas ainda resta saber se ela funciona para toda e qualquer instância de humor. A formulação não é muito distante da tese da Ayn Rand sobre o humor: o humor é a negação da relevância ou da importância metafísica de algo feito por meio de uma incongruência ou contradição, isto é, violando a expectativa do ouvinte sobre a realidade.

Tendo esses guias básicos em mente, olho para a reação crescente ao humor brasileiro, que tem longa tradição de não se importar muito para os padrões vigentes de moralidade. Citei acima o Debi & Loide, e para o Brasil poderia citar Os Trapalhões. Digam-me se este quadro seria possível hoje em dia:


Dois negos pobres e malandros enchendo a lata, chega o garçom, preocupado com uma pindura, e os chama de "Engenheiros, bacharéis...". Todo o personagem Mussum brincava com esses traços comuns da percepção social do negro, como aliás também era o caso de Grande Otelo, e dos sambas humorísticos: nega do cabelo duro... Humoristas brancos como Mazzaropi brincavam com a imagem do caipira.

O estupro também é tema antigo no repertório humorístico nacional, incorporado até mesmo em ditado popular: "se o estupro é iminente, relaxa e aproveita". A brincadeira aí é com o suposto desejo devasso de toda mulher.

Mariana Hamellini diz, lá pelos 3:20 min, que a graça em se ver uma pessoa cair na calçada está no fato de haver, ali, uma quebra. Mas ela mesma mina um pouco essa explicação: "você ri dela porque ela não morreu; e porque não é você."

"Quem é filho da puta? Eu? Não, vocês." - 7:25 - Danilo Gentilli falando da piada da Preta Gil, saída fácil pros comediantes.

E quando chega o acadêmico de Humanas, lá vem o desinteresse - Idelber Avelar - 9:10

piadas de preconceito - mais fáceis? Depende do preconceito, depende da obviedade e do nível de consciência que as pessoas têm do estereótipo.

piada de gordo - longa tradição

15:01 - piada que é contra "a autoridade" é melhor?

"toda piada tem um alvo" - Gentilli

piada com homem - a piada do "aperta a teta" era com o homem

22:20 - a piada, fora do contexto de piada ("mulher feia deveria ser estuprada"), se dita como um expressão séria, seria horrível. Mas como piada não é. A piada pega um elemento de uma realidade complexa e se foca nele: a mulher feia que, por ficar privada de sexo por muito tempo, fica desesperada (e aqui não importa a realidade, mas a percepção acerca da realidade. Freira é recalcada e desejosa de sexo? Provavelmente não; mas tem muita piada nesse sentido). E, nesse contexto, o estuprador lhe faz um favor.

23:00 - honestidade: riu com a piada, mas a evitaria para evitar a polêmica ou mesmo por considerá-la imoral.

Cop-out: condenar a piada por não ser boa como humor; mas fica óbvio que o problema do cara não é esse: o problema é o tema e o caráter "antirrevolucionário", "não transformadora" da piada.

28:43 - bela saída. Gentilli sabe ir além e brincar com a coisa.

29:45 - o guarda não é massacrado pela opinião "transformadora" de hoje em dia?? Esse próprio discurso pode ser tão ofensivo quanto os outros.

A indignação vem do quê?

Hábito muito ruim de documentários politizados: colocar respostas logo em seguida à fala daqueles de quem se discorda.

"Não chamar o negro de macaco é decência básica humana" - Idelber, 36:40. nem toda piada é decente.

Justiça traz problemas de limite à liberdade legal, mas não é o problema de base. O problema é a atitude básica da indignação moral constante, que reflete uma mudança no padrão de conduta: o importante não é ser uma pessoa boa, mas ter as opiniões corretas sobre uma série de assuntos. Isso leva, por um lado, ao à patrulha moralista (sobre tudo de si mesmo: "não posso rir disso; estarei traindo a causa; tenho o dever de protestar publicamente") que, por sua vez, leva à mais preguiçosa autossatisfação moral ("estou fazendo a minha parte, sou bom"). Como eu vejo as coisas, todas as lutas e todas as causas. Quanto mais moralista a pessoa, menos capaz de humor ela é; e portanto menos capaz de olhar para os próprios defeitos; para seus reais defeitos, e não para aquilo que pega bem quando se faz piada a respeito (aliás, esse tema rende: como vivemos numa sociedade de raiz cristã, a postura socialmente aceitável ainda é a da humildade: "sou um homem cheio de defeitos" - só que essa ostentação da humildade acaba virando uma mostra de orgulho ainda maior do que a afirmação acrítica da própria perfeição moral). Pega muito bem dizer que a melhor piada é aquela que critica o próprio piadista, mas será que é verdade? Ou é apenas uma resposta confortável para se fugir do desafio do humor? Se o humorista for negro, ele pode/deve contar piada de preto? E não é possível que uma piada sobre si mesmo também seja imoral (ao desancar alguma característica boa do humorista)?
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