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segunda-feira, 3 de junho de 2013

Promessa e Matrimônio


Day Teixeira afirma que o “divórcio só se explica – e aplica – numa sociedade que já não entende mais para que existe o casamento”. Eu iria um pouco mais longe e diria que só se explica e aplica numa sociedade que já não entende mais para que ela própria existe. A aliança matrimonial, o sinal de empenho mútuo, é a lembrança mais constante que um filho, observando seus pais, pode ter de que determinadas escolhas são graves. De que há um limite mais ou menos ponderável à ação humana que não lhe é imposto por simples impossibilidade (teoricamente, um cônjuge insatisfeito pode a qualquer momento mandar-se para a China), mas que é tanto mais humano porque auto-imposto por deliberada escolha. É um daqueles paradoxos práticos que não se resolvem sem recurso a algumas ferramentas de metafísica: a liberdade do homem (a sua necessidade, fatalidade de livre-arbítrio) pode se afirmar mais acentuadamente por meio da abdicação consciente de um tipo de ação que acarretaria em abrandamento da intensidade de suas experiências (a superficialidade de que tratarei adiante). Pois domar a sexualidade é incomparavelmente mais difícil que deixar-se, por assim dizer, ser cavalgado por ela. E, porque é uma escolha muito mais difícil, é uma escolha muito mais livre. Mais adulta, aliás.

Vez ou outra já esbarrei em algumas páginas, de diferentes autores, nas quais se observava: o ser humano é o único bicho capaz de fazer promessas. Nenhum outro animal tem capacidade similar; é um dos nossos dados antropológicos centrais. A cada vez que um amigo nos diz: “Semana que vem irei te visitar!”, ele está lançando mão do elemento mais abstrato, sério e especificamente humano de que dispomos. Não é à toa que, em todas as culturas, os textos mais impressivos e lingüisticamente mais duradouros são aqueles que portam promessas, as promessas mais refinadas porque tornadas já irrevogavelmente cumpridas – os textos proféticos, enfim.

Mas em que consiste uma promessa? Por insuficiente que seja, por ora me contento com a seguinte definição: promessa é o ato deliberado, seja público ou não, pelo qual um indivíduo se compromete consigo mesmo – e eventualmente com outrem – a se empenhar continuamente para realizar um determinado ato em futuro próximo ou distante. Dessa definição provisória e imediata se depreende o fato, bastante simples mas não tão óbvio, de que a promessa é um dos principais meios (talvez o principal) pelos quais um indivíduo integra sua consciência e sua conduta em meio à multiplicidade de fatos que lhe ocorre. “Eu dou a minha palavra”, diz o homem – e o homem que o diz, empenhando-se em cumprir aquilo com que se compromete, é homem mesmo quando está se comprometendo com um assassínio porque será sempre aquele indivíduo comprometido com aquela finalidade, e tais unidade de sujeito e ação é que darão um mínimo de sentido humano a uma massa de fatos que, em si mesma, é amorfa e pouco significativa. Sem promessa não existe história. O comprometido é, assim, basicamente um tenaz que às coisas imprime sentido. As adversidades lhe afiam a tenacidade. Tornam-lhe um obcecado sadio. O obcecado a toda a prova.

(Talvez seja por isso que, pessoalmente, eu simpatize tanto – embora não especialmente – com os monotemáticos. Na década de 1930, se não me engano, Cioran escreveu um artigo devastador sobre Eliade cujo tema era a repulsa que lhe causava o enciclopedismo deste último. Cioran não acreditava que um homem pudesse ser tão flexível, tão adaptável a sistemas filosóficos e religiosos tão diversos, e que, sendo-o, continuasse a ser... um homem sério. O “erudito” lhe nauseava; e, embora discordando, como em parte mais tarde o próprio Cioran reveria sua posição sobre o amigo em Exercícios de admiração, eu o compreendo. De modo geral, grande parte dos que – principalmente em artes – hoje reconhecemos como “gênios” eram homens de duas ou no máximo três idéias, que as burilaram a vida toda e morreram sem delas se livrar. Como se todo o conhecimento adquirido girasse em torno da fidelidade ao enfrentamento e resolução de uns poucos problemas com que estavam comprometidos pessoalmente. “Os gênios, invariavelmente, são filhos espúrios de idéias fixas. Eles as aceitam, as levam para passear, põem-nas a dormir, mas ao fim do dia vão à mesa escrever só porque nunca as docilizam inteiramente. Borges jamais conseguiu solucionar a incógnita de por que era ele Borges e não você ou eu – e, ainda, por que o é em um dado tempo (e não noutro), ocupando um certo espaço (e não outro), tendo tal proporção (e não outra). E, porque nunca compreendeu nada disso, escreveu sua obra. François Villon tinha a ‘paixão pelas ruínas’, como gosta de escrever Marco Lucchesi – e se o topos latino do ubi sunt? (‘onde estão?’) a Villon fosse mero expediente retórico, e não real surpresa frente à irrevogabilidade do tempo (surpresa que a ele, um assassino, um proscrito, deveria ser especialmente dolorosa), não teria escrito a ‘Ballade des Dames du Temps Jadis’” – se é que o leitor me permite citar a mim mesmo.)

A fidelidade a um propósito é o que nos permite nos erguermos um pouco acima da fatalidade temporal. Sem o sentido da promessa, homem algum saberia o que é o futuro para além de uma extensão mecânica e fatal do que se vive hoje. E por isso desconheceria o que é o passado, não lhe ocorreria que o que passa pode ser integrado em um projeto executável com um sentido latente; sequer suspeitaria, assim, o que passava pela cabeça de um homem do mundo antigo para quem o seu próprio nome era um destino e uma responsabilidade – em suma, o judeu, o filho da promessa, da terra prometida, lhe seria o maior monstro a andar sobre a terra.

Pois bem: o matrimônio é a mais bem acabada solução prática, pela adoção de um compromisso, de dois problemas atormentadores – a solidão e a superficialidade*. A transitoriedade das relações instáveis pode ser uma prática razoavelmente benéfica a curto prazo, no sentido de dotar o indivíduo de alguma experiência, seja por não dispor de meios menos conflituosos de adquiri-la (através de livros, numa igreja, junto a um amigo mais velho etc.), seja por não dispor de fortaleza. Mas sempre será uma superficialidade, por mais intensas que sejam as experiências daí decorrentes. Afirmo isso porque falta a essas vivências o teste cabal de sua saúde e verdade, que é dado pela constância, continuidade e resignação consciente. Como a qualquer momento o indivíduo pode se desembaraçar desse tipo de situação sem quase prestar contas a si mesmo ou a outros, como ele não deu a sua palavra, tais vivências podem morrer e ser sepultadas a qualquer momento, por mais que deixem impressões duráveis no indivíduo. A solidão, aí, é sempre uma saída de emergência, e onde quer que tal ocorra a solidão será não facultativa, mas impositiva; ela será o complemento binário do desapego; será a circunferência virtual em torno de um centro frouxo. O único meio de escapar deste segundo mal, a solidão, através da realização do amor erótico, é pôr-se a serviço de algo que não se sujeita só às disposições atuais do indivíduo, mas também às de outro, lançando-se ainda para adiante das disposições atuais deste último – sobretudo se diante de uma imagem a ser honrada (como a da caridade de Cristo, por exemplo). Bons momentos, maus momentos, cumprimentos da promessa, quebras da promessa – tudo é percalço da promessa, afinal, e é bom que seja assim. Diz Chesterton: “A família é um fato mesmo quando não é um fato agradável, e um homem é parte da sua esposa mesmo quando não quer sê-lo. Os dois são uma só carne – sim, até mesmo quando não são um só espírito. O ser humano é duplo. O ser humano é um quadrúpede.”

Um filho, então, é o que de mais concreto podemos encontrar como motivo e estímulo para o cumprimento daquilo que nos obriga. Filhos, tenho a impressão (tenho a impressão porque ainda não tenho filhos), são um tremendo sacrifício. Esse é o motivo pelo qual andam fora de moda e esse é justamente o motivo pelo qual acho eles devam sempre estar na moda. Não é que uma vida sem sacrifícios seja pouco nobre. É o caso de que uma vida sem sacrifícios simplesmente não existe. É no máximo uma fantasia publicitária. Essa é a razão de a vida adulta ser inaugurada, consciente ou inconscientemente, pela escolha de quais sacrifícios o indivíduo fará. E essa é uma questão que não chega sequer a ser compreensível a uma criança. O que, por sinal, nos faz ver boa parte das pessoas que nos rodeia como um monte de crianças grandes.

Por fim, uma observação. O simples fato de que ninguém é obrigado a casar deveria bastar para apaziguar os que, revoltados, exigem que na esfera civil cada pessoa, a qualquer momento, faça o que lhe der na telha com relação à sua família, desde que arque com umas poucas conseqüências (pensões etc.). Repito: ninguém é obrigado a se comprometer com um cônjuge e um filho. É uma escolha (claro que não penso aqui, sei lá, em casamentos arranjados numa casa-grande em Pernambuco no séc. XVII, muito embora eu acredite que os “casamentos de interesse” também pudessem dar, como deram, em matrimônios tranqüilos**). É até uma questão de lógica: quem deseja casamento dissolúvel está predicando indevidamente um determinado ente abstrato, o matrimônio, pois “dissolubilidade” não é uma nota de tal ente. Quem fala em divórcio, por conseguinte, não está a falar de algo que tenha alguma relação com matrimônio. Trata-se de um outro tipo de relação, o qual pode até ter sua validade e proficuidade, mas que não se identifica de modo algum com a vida matrimonial. Esse, aliás, é o problema com o “casamento gay”: todo mundo se diz a favor ou contra, mas ninguém pergunta de que afinal se trata o dito cujo (não existe definição de casamento gay; com “relação estável entre pessoas do mesmo sexo reconhecida pelo Estado” não dá nem pra começar a discussão). Em suma: não chamem de matrimônio o que não é matrimônio.

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* Aproveito para lembrar que não é possível compreender o matrimônio sem contrapô-lo ao homossexualismo. O oposto ao matrimônio não é tanto a relação sexual descompromissada entre indivíduos quanto a relação especificamente homossexual. Grosso modo, homossexualidade institucionalizada (entendam: socialmente institucionalizada) representa uma absorção muito grande da vida dos indivíduos pelo sexo. É como se o erotismo se expandisse sobre tudo e, por isso, fosse perdendo seu elemento propriamente erótico. Os judeus “inventaram” a noção de homossexualidade, rejeitando-a, para que o sexo fosse exercido dentro de um quadro ordenado na vida do indivíduo. Leiam este artigo.

** Claro que matrimônios podem até gerar a infelicidade de ambos os cônjuges, mesmo eles tendo se casado após muita deliberação e na certeza de estarem fazendo algo bom para ambos. Mas o risco do erro não pode ser motivo bastante para pôr abaixo a dignidade da meta. Dizer que o risco mina a meta, nesse caso, seria algo como dizer que a idéia de sair à rua é intrinsecamente absurda só por existir maior risco de que, na rua, sejamos assaltados, assassinados etc.

domingo, 2 de junho de 2013

Os Filhos do Divórcio, ou Leiam o “Claro Escuro” do Corção!

"Il est plus facile de légaliser certaines choses que de les légitimer".
Nicolas Sébastien Roch Chamfort

Li recentemente o “Claro Escuro”, uma coleção de breves ensaios onde Gustavo Corção comenta um infame projeto de lei que estava para ser votado ao final da década de 50 e que pretendia legalizar o divórcio no Brasil.* Naquelas páginas (publicadas em jornais, à época) ele discute as ideias dos chamados “divorcistas”, que militavam pela dissolubilidade do casamento baseando-se quase somente no argumento de que as pessoas, plenas de dignidade humana, deveriam ter o direito de tentar novamente caso o casório lhes trouxesse mais tristezas que alegrias, mais pobreza que riqueza, menos saúde e mais doença.

A coletânea é valiosa, pois trata não só das questões sociais envolvidas no problema do divórcio, mas também dos princípios que sustentam a indissolubilidade do matrimônio. Recheados de análises fenomenológicas, os ensaios têm o mérito de dialogar com o leitor suscitando-lhe, inevitavelmente, a reflexão.  Pode parecer ultrapassado discutir o assunto, visto que a lei foi aprovada e já há algumas décadas os casais exercem seu direito legal de deixar seus filhos sem família. Mas o fato de algo ter sido legalizado não significa que foi legitimado. E me parece sumamente válido tocar no assunto, uma vez que o divórcio é uma realidade cotidiana cujas vantagens quase todos nós tivemos a sorte de em algum grau experimentar.

Não é difícil para nós, habitantes da virada do milênio, notar que casamento não significa mais a mesma coisa que significou durante a história humana. A palavra é a mesma, mas o que jaz por trás do conceito? O fato de termos sido criados no mundo onde o divórcio faz parte da vida matrimonial privou-nos de entender com clareza a natureza desse fenômeno. E ao que parece, tira-se a indissolubilidade e o casamento perde o sentido. Mas por quê?

Para entender é preciso meditar sobre o que é o casamento, sobre as regras intrínsecas que o regulam e, principalmente, sobre os seus propósitos, seus frutos. Essa análise não é fácil. Qualquer um que tenha se esforçado para entender o porquê do “até que a morte os separe” notou que o assunto é grave, enlaça desde a vida mais imediata do casal até a constituição de um Estado social. Mas não só isso, é preciso pensar o que é o sexo, o supremo ato comunicativo em que dois corpos viram uma só carne e dão vida a outro ser. É preciso pensar na natureza desse novo ser, e ainda na relação dele com o casal, e com o mundo. Não é simples entender, muito menos explicar, o que vem a ser o casamento. No entanto...

Basta uma breve conversa por aí para perceber que a grande maioria – muitos dentre os quais cristãos, católicos, conservadores – define o casamento como “a união entre pessoas que se amam.” Ora, o “amor”! O termo está entre aspas porque a palavra amor também pode ser entendida como um sentimento originado num ato de vontade, onde ele perderia o caráter puramente passional e se tornaria uma espécie de “sentimento racional”. No falar cotidiano, entretanto, não é esse o significado dado a amor, sendo a palavra usada para designar um movimento erótico, misto de afeto e desejo sexual, que seria mais propriamente chamado de cupidez, ou simplesmente paixão. Mas estou aqui falando com a voz do povo, por isso o amor entre aspas. Voltando, o “amor” entendido nesse contexto refere-se a um sentimento muitas vezes tão arrebatador quanto efêmero. Que pode permanecer, com sorte, aceso por alguns anos, mas que inevitavelmente se atenuará com o tempo. As pessoas que se unem tendo por única causa esse “amor” estão fadadas ao divórcio. Assim que a chama se apaga, cada qual pega sua trouxinha, repartem as crianças ao meio, e caminham para lados opostos, quase sempre atrás de um novo “amor”.

Para tentar encontrar, rapidamente, uma alternativa à definição de “casamento por amor”, deixemos em suspenso todas as implicações filosóficas que existem no conceito e vamos pensar no mecanismo mais imediato, e prático, que regula o matrimônio: numa situação natural, quando homem e mulher se casam eles formam uma célula social de onde surgirão filhos. Os filhos são a manifestação viva dessa união, são o ponto em torno do qual o casal costuma orbitar. Eles são o motivo e o motor, são o fruto dos esforços dos pais que, a fim de sustentá-los e educá-los, precisam se manter unidos, cada qual atuando em sua função: a mãe sendo mãe, o pai sendo pai. Sem precisar discutir a questão da grandeza humana, onde vós sois deuses criados à imagem do vosso Criador, os filhos são, ao menos, cidadãos. E a mínima função dos pais seria a de criá-los para que fossem saudáveis membros da sociedade. Para que tivessem o apoio e a segurança imediata que uma criança precisa, os limites e exemplos que nutrem um adolescente e, por fim, a coragem e disposição com que um adulto se torna independente e faz girar a roda da vida. A família é o núcleo que dá forma e sustento à sociedade. E a união de pai e mãe é a condição de possibilidade da família.

 Amar e cuidar dos filhos, esse é o primeiro fim do casamento. Poderia ser também uma definição melhor, mais condizente com a natureza da coisa, e sobrevivente às intempéries passionais do casal. Porém, o que vemos atualmente quando se fala em casamento é quase o oposto dessa ideia. Pensa-se muito na relação entre o casal, e a relação do casal com os filhos é empurrada para debaixo do tapete. A paixão, a fidelidade, a divisão de tarefas, tudo parece ser mais importante do que a criação das crianças. Crianças essas, coitadas, que estão se tornando cada vez mais escassas, visto que os casais de hoje parecem ter refutado o ditado do “um é pouco...”

Agora pensem na ideia do divorcio e decidam: ela leva em consideração os pais ou os filhos? O argumento mais comum na defesa do divórcio é a garantia da felicidade do casal. Não sejamos hipócritas, em casos extremamente raros vemos o divórcio ser defendido para garantir a felicidade dos filhos. O bem-estar do casal está sempre em primeiro plano, e as crianças, que deveriam ser o centro das atenções, acabam relegadas a um fim de semana aqui, um feriado ali. O divórcio só se explica – e se aplica – numa sociedade que já não entende mais para que existe o casamento. O divórcio é como uma ideia-vírus, que destituída de vida própria, invade uma instituição e começa a roer os laços que a sustentam, invertendo o eixo natural e fazendo com que os membros da família passem a pensar primeiro, e antes de tudo, em si mesmos. Sendo a família destruída, a sociedade se dilui, se tornando algo próximo ao ambiente no qual cresceu a minha geração: nós, os filhos do divórcio.

Visto isso, é espantoso notar que quase todos os prognósticos feitos há cinco décadas por Corção a fim de alertar o poço sem fundo em que se metia a sociedade brasileira se concretizaram. Desde a moral do egoísmo hedonista que move a vida atual até o fato de habitarmos todos, não em lares, mas empilhados em caixas cada vez mais apertadas, está tudo lá, previsto, explicado, solucionado. É de se admirar – e lamentar – que esses ensaios não estejam em circulação. Ao que me consta, a última edição do livro foi em 1963, e hoje só se acha em sebos. Esse livro tem o poder de discutir sobre sexo, casamento, família, num nível tão alto, e ao mesmo tempo tão acessível e necessário, que escrevi esse texto para lhes pedir ajuda: leiam e divulguem o Claro Escuro do Corção e cumpram com sua boa ação do ano. Mas chega. Não vou mais falar. Que o livro fale por si mesmo:

“Todo o mundo sabe que o divórcio é extremamente nocivo aos filhos. Em recente inquérito feito nos Estados Unidos foi reconhecido, e proclamado em termos patéticos, que as deformações psicológicas criadas nos filhos pelos divorciados são muito mais graves que as deformações físicas criadas pela poliomielite. Há cerca de cinco milhões de aleijados psíquicos produzidos pelo divórcio nos Estados Unidos. Convém, entretanto, acentuar um aspecto do problema que frequentemente escapa aos psicólogos que aproximam os efeitos do divórcio dos efeitos produzidos pelos conflitos familiares. Bem sabemos que não é só o divórcio que fabrica crianças neuróticas, e que em muito ambiente familiar se torturam inocentes. Mas há alguma coisa diferente e específica nas consequências do divórcio. Para a criança em baixa idade, a união de pai e mãe tem um caráter especial que o adulto, sem alguma reflexão ou intuição de amor, não pode atingir. Para nós, que vimos os noivos individualmente separados, que os vimos viver um aqui outro acolá, com nomes diferentes, em bairros diferentes – para nós a união tem caráter moral, mas fisicamente nos aparece como um fenômeno acidental. Qualquer jovem casal produz em nós, durante alguns anos, um sentimento vagamente divertido e espantado. Sentimos bem o que há de gratuito e fortuito no encontro dos sexos, e temos que fazer apelo a considerações morais e religiosas para sentirmos o mistério do vínculo que une aqueles dois na mesma carne. Para a criança, ao contrário, a união dos pais é física, metafísica e necessária. Melhor do que os filósofos e teólogos, a criança vê, “d´un simple régard”, o vínculo que faz dos pais um bloco, uma base. É uma experiência afetiva e intelectual de uma importância enorme para a criança essa primeira apreensão da realidade familiar.

Assim como se abrem os olhos para o jogo das leis naturais, abrem-se também para essa realidade de pedra que a protege, que a envolve, como paredes de uma casa viva. Por isso, a separação dos cônjuges terá para a criança um aspecto de alucinação. Não se trata apenas de um afastamento livremente consentido de duas pessoas que livremente se uniram. Não será apenas a quebra de um juramento ou a rescisão de um contrato. A separação dos pais, para a criança, é um absurdo. Não é um drama moral, é uma tragédia cósmica. Não é conflito de duas pessoas, é conflito dos elementos constitutivos do universo. O mundo enlouqueceu se os pais se separam. Na mente infantil, a repercussão afetiva e intelectual significa um abalo de todas as fundamentais experiências até então colhidas. É como se a água deixasse de molhar, o sol deixasse de brilhar, a pedra deixasse de ser dura. Não é muito difícil extrapolar as consequências de tão brutal experiência: os psiquiatras estão aí para dizer no que dão os filhos do divórcio.”

Trecho retirado do ensaio “Os inocentes castigados”, do livro Claro Escuro de Gustavo Corção.

* Ao que parece, aqueles que estavam contra a aprovação do divórcio conseguiram adiar a tal votação por quase vinte anos, sendo o divórcio aprovado no Brasil somente em 28 de junho de 1977.

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