Day Teixeira afirma que o
“divórcio só se explica – e aplica – numa sociedade que já não entende mais para que existe o casamento”. Eu iria um pouco mais longe e diria que só se
explica e aplica numa sociedade que já não entende mais para que ela própria
existe. A aliança matrimonial, o sinal de empenho mútuo, é a lembrança mais constante
que um filho, observando seus pais, pode ter de que determinadas escolhas são graves. De que há um limite mais ou
menos ponderável à ação humana que não lhe é imposto por simples
impossibilidade (teoricamente, um cônjuge insatisfeito pode a qualquer momento
mandar-se para a China), mas que é tanto mais humano porque auto-imposto por
deliberada escolha. É um daqueles paradoxos práticos que não se resolvem sem
recurso a algumas ferramentas de metafísica: a liberdade do homem (a sua
necessidade, fatalidade de livre-arbítrio) pode se afirmar mais acentuadamente
por meio da abdicação consciente de um tipo de ação que acarretaria em abrandamento
da intensidade de suas experiências (a superficialidade de que tratarei
adiante). Pois domar a sexualidade é incomparavelmente mais difícil que
deixar-se, por assim dizer, ser cavalgado por ela. E, porque é uma escolha
muito mais difícil, é uma escolha muito mais livre. Mais adulta, aliás.
Vez ou outra já esbarrei em
algumas páginas, de diferentes autores, nas quais se observava: o ser humano é
o único bicho capaz de fazer promessas. Nenhum outro animal tem capacidade
similar; é um dos nossos dados antropológicos centrais. A cada vez que um amigo
nos diz: “Semana que vem irei te visitar!”, ele está lançando mão do elemento
mais abstrato, sério e especificamente humano de que dispomos. Não é à toa que,
em todas as culturas, os textos mais impressivos e lingüisticamente mais duradouros
são aqueles que portam promessas, as promessas mais refinadas porque tornadas já
irrevogavelmente cumpridas – os textos proféticos, enfim.
Mas em que consiste uma
promessa? Por insuficiente que seja, por ora me contento com a seguinte
definição: promessa é o ato deliberado, seja público ou não, pelo qual um
indivíduo se compromete consigo mesmo – e eventualmente com outrem – a se
empenhar continuamente para realizar um determinado ato em futuro próximo ou
distante. Dessa definição provisória e imediata se depreende o fato, bastante
simples mas não tão óbvio, de que a promessa é um dos principais meios (talvez
o principal) pelos quais um indivíduo integra sua consciência e sua conduta em
meio à multiplicidade de fatos que lhe ocorre. “Eu dou a minha palavra”, diz o
homem – e o homem que o diz, empenhando-se em cumprir aquilo com que se
compromete, é homem mesmo quando está se comprometendo com um assassínio porque
será sempre aquele indivíduo
comprometido com aquela finalidade, e
tais unidade de sujeito e ação é que darão um mínimo de sentido humano a uma
massa de fatos que, em si mesma, é amorfa e pouco significativa. Sem promessa
não existe história. O comprometido é, assim, basicamente um tenaz que às
coisas imprime sentido. As adversidades lhe afiam a tenacidade. Tornam-lhe um
obcecado sadio. O obcecado a toda a prova.
(Talvez seja por isso que,
pessoalmente, eu simpatize tanto – embora não especialmente – com os
monotemáticos. Na década de 1930, se não me engano, Cioran escreveu um artigo
devastador sobre Eliade cujo tema era a repulsa que lhe causava o
enciclopedismo deste último. Cioran não acreditava que um homem pudesse ser tão
flexível, tão adaptável a sistemas filosóficos e religiosos tão diversos, e que,
sendo-o, continuasse a ser... um homem sério. O “erudito” lhe nauseava; e,
embora discordando, como em parte mais tarde o próprio Cioran reveria sua
posição sobre o amigo em Exercícios de
admiração, eu o compreendo. De modo geral, grande parte dos que –
principalmente em artes – hoje reconhecemos como “gênios” eram homens de duas ou
no máximo três idéias, que as burilaram a vida toda e morreram sem delas se
livrar. Como se todo o conhecimento adquirido girasse em torno da fidelidade ao
enfrentamento e resolução de uns poucos problemas com que estavam comprometidos
pessoalmente. “Os gênios, invariavelmente, são filhos espúrios de idéias fixas.
Eles as aceitam, as levam para passear, põem-nas a dormir, mas ao fim do dia
vão à mesa escrever só porque nunca as docilizam inteiramente. Borges jamais
conseguiu solucionar a incógnita de por que era ele Borges e não você ou eu –
e, ainda, por que o é em um dado tempo (e não noutro), ocupando um certo espaço
(e não outro), tendo tal proporção (e não outra). E, porque nunca compreendeu
nada disso, escreveu sua obra. François Villon tinha a ‘paixão pelas ruínas’,
como gosta de escrever Marco Lucchesi – e se o topos latino do ubi sunt? (‘onde estão?’) a Villon fosse
mero expediente retórico, e não real surpresa frente à irrevogabilidade do
tempo (surpresa que a ele, um assassino, um proscrito, deveria ser
especialmente dolorosa), não teria escrito a ‘Ballade des Dames du Temps
Jadis’” – se é que o leitor me permite citar a mim mesmo.)
A fidelidade a um propósito é
o que nos permite nos erguermos um pouco acima da fatalidade temporal. Sem o
sentido da promessa, homem algum saberia o que é o futuro para além de uma
extensão mecânica e fatal do que se vive hoje. E por isso desconheceria o que é
o passado, não lhe ocorreria que o que passa pode ser integrado em um projeto
executável com um sentido latente; sequer suspeitaria, assim, o que passava
pela cabeça de um homem do mundo antigo para quem o seu próprio nome era um
destino e uma responsabilidade – em suma, o judeu,
o filho da promessa, da terra prometida, lhe seria o maior monstro a andar
sobre a terra.
Pois bem: o matrimônio é a
mais bem acabada solução prática, pela adoção de um compromisso, de dois
problemas atormentadores – a solidão e a superficialidade*. A transitoriedade das relações instáveis pode ser uma prática
razoavelmente benéfica a curto prazo, no sentido de dotar o indivíduo de alguma
experiência, seja por não dispor de meios menos conflituosos de adquiri-la (através
de livros, numa igreja, junto a um amigo mais velho etc.), seja por não dispor
de fortaleza. Mas sempre será uma
superficialidade, por mais intensas que sejam as experiências daí decorrentes.
Afirmo isso porque falta a essas vivências o teste cabal de sua saúde e verdade,
que é dado pela constância, continuidade e resignação consciente. Como a qualquer
momento o indivíduo pode se desembaraçar desse tipo de situação sem quase
prestar contas a si mesmo ou a outros, como ele não deu a sua palavra, tais vivências podem morrer e ser sepultadas
a qualquer momento, por mais que deixem impressões duráveis no indivíduo. A
solidão, aí, é sempre uma saída de emergência, e onde quer que tal ocorra a
solidão será não facultativa, mas impositiva; ela será o complemento binário do
desapego; será a circunferência virtual em torno de um centro frouxo. O único
meio de escapar deste segundo mal, a solidão, através da realização do amor
erótico, é pôr-se a serviço de algo que não se sujeita só às disposições atuais
do indivíduo, mas também às de outro, lançando-se ainda para adiante das
disposições atuais deste último – sobretudo se diante de uma imagem a ser
honrada (como a da caridade de Cristo, por exemplo). Bons momentos, maus
momentos, cumprimentos da promessa, quebras da promessa – tudo é percalço da
promessa, afinal, e é bom que seja assim. Diz Chesterton: “A família é um fato
mesmo quando não é um fato agradável, e um homem é parte da sua esposa mesmo
quando não quer sê-lo. Os dois são uma só carne – sim, até mesmo quando não são
um só espírito. O ser humano é duplo. O ser humano é um quadrúpede.”
Um filho, então, é o que de
mais concreto podemos encontrar como motivo e estímulo para o cumprimento daquilo
que nos obriga. Filhos, tenho a impressão (tenho a impressão porque ainda não
tenho filhos), são um tremendo
sacrifício. Esse é o motivo pelo qual andam fora de moda e esse é justamente o
motivo pelo qual acho eles devam sempre estar na moda. Não é que uma vida sem
sacrifícios seja pouco nobre. É o caso de que uma vida sem sacrifícios
simplesmente não existe. É no máximo uma fantasia publicitária. Essa é a razão
de a vida adulta ser inaugurada, consciente ou inconscientemente, pela escolha
de quais sacrifícios o indivíduo fará. E essa é uma questão que não chega
sequer a ser compreensível a uma criança. O que, por sinal, nos faz ver boa
parte das pessoas que nos rodeia como um monte de crianças grandes.
Por fim, uma observação. O
simples fato de que ninguém é obrigado a casar deveria bastar para apaziguar os
que, revoltados, exigem que na esfera civil cada pessoa, a qualquer momento,
faça o que lhe der na telha com relação à sua família, desde que arque com umas
poucas conseqüências (pensões etc.). Repito: ninguém é obrigado a se
comprometer com um cônjuge e um filho. É uma escolha (claro que não penso aqui,
sei lá, em casamentos arranjados numa casa-grande em Pernambuco no séc. XVII,
muito embora eu acredite que os “casamentos de interesse” também pudessem dar,
como deram, em matrimônios tranqüilos**). É até uma questão de lógica: quem
deseja casamento dissolúvel está predicando
indevidamente um determinado ente abstrato, o matrimônio, pois
“dissolubilidade” não é uma nota de tal ente. Quem fala em divórcio, por
conseguinte, não está a falar de algo que tenha alguma relação com matrimônio. Trata-se
de um outro tipo de relação, o qual pode até ter sua validade e proficuidade,
mas que não se identifica de modo algum com a vida matrimonial. Esse, aliás, é
o problema com o “casamento gay”: todo mundo se diz a favor ou contra, mas
ninguém pergunta de que afinal se trata o dito cujo (não existe definição de casamento gay; com “relação estável entre pessoas do mesmo sexo reconhecida
pelo Estado” não dá nem pra começar a discussão). Em suma: não chamem de
matrimônio o que não é matrimônio.
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* Aproveito para lembrar que
não é possível compreender o matrimônio sem contrapô-lo ao homossexualismo. O
oposto ao matrimônio não é tanto a relação sexual descompromissada entre
indivíduos quanto a relação especificamente homossexual. Grosso modo,
homossexualidade institucionalizada (entendam: socialmente institucionalizada)
representa uma absorção muito grande da vida dos indivíduos pelo sexo. É como
se o erotismo se expandisse sobre tudo e, por isso, fosse perdendo seu elemento
propriamente erótico. Os judeus “inventaram” a noção de homossexualidade,
rejeitando-a, para que o sexo fosse exercido dentro de um quadro ordenado na
vida do indivíduo. Leiam este artigo.
** Claro que matrimônios podem
até gerar a infelicidade de ambos os cônjuges, mesmo eles tendo se casado após
muita deliberação e na certeza de estarem fazendo algo bom para ambos. Mas o
risco do erro não pode ser motivo bastante para pôr abaixo a dignidade da meta.
Dizer que o risco mina a meta, nesse caso, seria algo como dizer que a idéia de
sair à rua é intrinsecamente absurda só por existir maior risco de que, na rua,
sejamos assaltados, assassinados etc.