A cada dia fico mais seguro de que liberais e libertários tomaram uma decisão sábia ao não integrar a Marcha do Passe Livre, preferindo um protesto a parte. Não fomos massa de manobra do MPL, que conseguiu emplacar a revogação dos vinte centavos; sua única causa, malgrado as juras em contrário da maioria dos participantes.
A verdadeira causa final de uma manifestação popular não é necessariamente o que vai na cabeça da maioria. É a intenção daqueles manifestantes que de fato conseguem atingir seu objetivo. O objetivo da grande marcha pacífica de segunda-feira (17/06) e das que se seguiram foi alcançado: 20 centavos a menos na passagem. O custo extra sairá de algum outro investimento estatal, ou virará aumento de imposto. Espero que você, manifestante engajado, que se encantou com a beleza do povo nas ruas, goste desse resultado, porque foi isso que sua ação produziu. Até o meio da semana passada.
Só que a massa que foi de manobra está fermentando, crescendo sem parar, e agora parece dar o tom. Para muita gente da esquerda, a coisa não vai bem: a "direita" está dominando cada vez mais as manifestações com seus traços distintivos: apartidarismo, roupas brancas, narizes de palhaço, faixas pedindo o fim da corrupção e, acima de tudo, muita, mas muita bandeira nacional.
Devo dizer que, quando a Marcha cruzou o protesto libertário na segunda-feira (17/06), eu achava que havia possibilidade de briga. Nosso lado não deixou de provocar, entoando inclusive refrões contra o passe livre, pedindo - isso sim - livre concorrência e menos Estado. Muitos que passavam tiravam foto. Conversando com manifestantes do MPL e distribuindo panfletos, encontrei interesse, curiosidade, muita discordância inicial e, conforme discutíamos, uma maior abertura a ideias liberais: no final das contas, a maioria é a favor à livre iniciativa de motos, taxis e vans, e de algum tipo de concorrência nos ônibus. Foi uma noite produtiva.
Apesar da paz que reinou no encontro das duas manifestações, houve um ato de agressão. E não, não veio de algum esquerdista querendo implantar à força a ditadura do proletariado. Veio de um "moderado", um apartidário, que se ofendeu sobremaneira ao ver a faixa do Libertários chegar perto dele. Meteu um soco no peito, e quase recebeu de volta uma porrada com um mastro. (Em um protesto subsequente na Paulista um "apartidário" foi bem sucedido: conseguiu finalmente levar uma bandeirada de um petista e já integra o rol dos mártires).
O mais bizarro foi o que aconteceu logo depois. Após os gritos de "sem violência!" - dos quais participei - um manifestante exaltado, vestindo a bandeira nacional, aproveitou uma brecha de silêncio e fez seu manifesto. "Esta é nossa única bandeira!". Aplausos. Após mais alguns gritos - estranhos pelo grau de raiva - ele e seus amigos entoaram um hino nacional, que foi acompanhado por quase todos. (Só a primeira parte, claro; a segunda ninguém decora.)
Eu e mais alguns nos olhamos perplexos. O que era aquilo? Qual o sentido de se exaltar o amor à pátria numa manifestação dessas? Vi um cartaz que dizia apenas "Pelo Brasil", como se amor à pátria fosse proposta política. O que isso comunica? Zero. E zero também é o que constitui o núcleo de todos os moderados e apartidários que foram e continuam indo às ruas.
Os apartidários não são apenas contra partidos políticos; são contra ideias. Não têm absolutamente nada a oferecer além de platitudes que cada um pode interpretar da maneira mais conveniente para sua ideologia, de forma que todos se iludam com um sentimento de união e de estar "lutando por algo maior". No caso, o "algo maior" ainda era ditado pelo MPL, pela "esquerda". Agora, já não é mais ele quem dá as cartas do levante popular.
A única causa que um discurso patriótico e apartidário pode ter é a do combate à corrupção (ato antipatriótico por excelência, embora não antibrasileiro...), que muitos erroneamente veem como o pior mal do Brasil. O discurso anticorrupção serve como bandeira para ser contra o partido da vez - a vez atual, que já dura 10 anos, é o PT. É uma acusação neutra, que não depende de ideologia, feita na esperança de angariar o apoio mais amplo e despolitizado possível, já que, na hora da urna, voto é voto. E é uma bandeira supérflua, posto que todo mundo é contrário à corrupção. Fora essa pseudorreivindicação, sobra o vazio absoluto.
Esse vazio revela o beco sem saída ideológico em que todo mundo que não é francamente de esquerda entrou. Todo eleitor da oposição é um "apartidário" em potencial, posto que não tem nada a mostrar ou argumentar contra uma esquerda que aplica, com consistência, as mesmas teses que ele afirma de corpo mole. Some-se a isso um ódio crescente a um inimigo pessoal, mítico e demonizado, e temos o antipetismo: a cristalização discursiva de um rancor contra uma classe de governantes vista como promovendo o mal em todo o pais e levando-o para o buraco. Como a oposição não pode se dar no plano das ideias, tem que se dar no da vontade: o PT é mau, é corrupto, é populista, é comunista, e por isso tem que ser extirpado.
Digo sem receios: o governo petista tem sido péssimo sim, e de fato levará o país para o buraco se continuar neste rumo; Argentina e Venezuela apontam o caminho. Mas não é por causa de alguma maldade intrínseca não. É porque as ideias da população acerca do funcionamento da sociedade e do mercado são completamente equivocadas, e sempre terão resultados ruins. Essa é uma percepção que só um liberal pode ter; entre o intervencionismo do PT e do PSDB (nenhum deles é socialista), temos as mesmas premissas abraçadas com mais convicção por aquele e menos por este, e só. Pessoas boas, que querem o melhor para a sociedade, se guiadas por ideias erradas, podem causar males muito maiores do que corruptos inveterados.
Quando se internaliza essa percepção, o diálogo político fica muito mais fácil. Quem discorda não é mais um inimigo malévolo a ser vencido, e nem uma fera irracional a ser evitada. É perfeitamente natural a discussão entre Libertários e membros do Passe Livre. Eu, aliás, partilho da revolta, até admiro sua garra, mas repudio as propostas; e posso dar minhas razões, propondo soluções melhores. Ele fará o mesmo. Com alguém que empunha a bandeira do Brasil e, difusamente irado com os desgovernos estatais, parte para a briga contra todos os partidos (ou seja, contra todas as propostas), o que pode ser dito?
Mas a esquerda também não é boba, e a resposta a essa massa, que foi de manobrada a manobrista, já está correndo as redes sociais: os apartidários seriam parte de um mega-golpe militar ou mesmo "fascista" (e depois reclamam quando a direita usa "comunista" levianamente...). Os militantes de sempre estão "muito preocupados". O fato de muitos quererem passeatas sem partido virou, nesses editoriais, o desejo de abolir todos os partidos e de impor a opressão mais violenta em cima das classes pobres. Já tem até campanha da Avaaz contra o golpe iminente da elite burguesa contra Dilma. Menas, please! Essa narrativa dos apartidários como fascistas é, como todas as narrativas conspiratórias e que veem grandes sentidos unívocos a movimentações coletivas, mais um desejo do que uma avaliação dos fatos.
O que as manifestações apartidárias revelam é o que todos já sabíamos: o grosso da população brasileira não é de esquerda; é conservadora. E está P da vida. Não tem ideias muito claras sobre como a sociedade deveria se organizar, mas (ou por isso) não quer que chegue alguém tirando o que batalharam para conseguir em prol de alguma causa social. Sim, têm lá sua "mente pequena", não pensam muito nos pobres deste mundo (embora façam diversos atos de caridade pessoal) e não se interessam por política: querem viver, trabalhar, cuidar de sua família e ter seus amigos sem ser atrapalhados e sem atrapalhar ninguém. Preferem o local ao universal, o conhecido ao desconhecido, as mudanças graduais de vida (por meio do trabalho) aos grandes saltos de revolução social. Sentem raiva de um governo que vem dificultando a vida de todos os remediados, seja com impostos, restrições abusivas ou inflação. Sem entender direito as causas, encontram na corrupção e na incompetência explicações fáceis, e em figuras como Joaquim Barbosa - o carrasco dos mensaleiros, embora plenamente de esquerda - seu representante natural.
Esse conservadorismo é mau? Não. É humano; imperfeito, talvez, mas uma base natural e boa para diversas virtudes. Vai dizer que os personagens da Grande Família são fascistas sanguinários que querem oprimir os pobres? E é, inevitavelmente, a mentalidade da maioria da população em todos os lugares e todos os tempos.
Ao contrário dos manifestantes de esquerda, os apartidários estão protestando por si mesmos, e não em nome de uma suposta classe explorada. O povão pobre, diga-se, está ausente desses protestos da classe média. E a verdade é que a maioria do povão aspira a se tornar um membro da classe média conservadora, apesar de todo o trabalho de intelectuais de esquerda junto às "comunidades". Alçá-lo às condições de vida da pequena burguesia (carro, casa, eletrodomésticos, cinema, viagem) é, por isso, o objetivo do governo federal. Para quem ingressa nela agora, a vida está melhorando, e não sentem os novos custos; para quem a incorporava há mais tempo, está ficando mais difícil.
A oposição, então, não se dá entre duas classes sociais: reacionários de classe média e povo pobre de esquerda. Dá-se entre duas facções das classes médias (e altas): direita e esquerda; conservadores e progressistas ou socialistas. A condição normal dessa população é o conservadorismo apático e reacionário (que reage, negativamente, a mudanças políticas vindas de fora). Quem quer ir além disso, quem tem desejos de fazer do mundo um lugar melhor (ao contrário dos intelectuais conservadores, considero isso algo positivo), quem pensa no universal e nos grandes problemas sociais, quase sempre desemboca na esquerda estatizante (ou em raros casos - talvez ainda piores - na direita estatizante); essa é a segunda classe do confronto.
Em quase todas as dinâmicas sociais, a tendência das pessoas é identificar-se a um grupo. E essa identificação se dá principalmente pela oposição a outro grupo. Na polarização política atual, vejo um caso desse fenômeno: antipetistas de um lado, antirreaças de outro. O foco é sempre no adversário, e o aprofundamento no que os diferencia se dá por essa via negativa, do querer se diferenciar. Um lado não quer ser o comuna-hippie-sujo, ou o mensaleiro corrupto; e o outro não quer ser "coxinha", termo que melhor capta tudo o que nossa esquerda cultural abomina; e que se refere antes a um jeito de ser do que a um ideário político-econômico. Nenhum dos dois lados pensa em aplicar um golpe seu, mas ambos morrem de medo do golpe do outro.
A dinâmica do Estado cria conflitos e intensifica essa tendência: se quero beneficiar um grupo via Estado, outro terá de ser prejudicado na mesma medida. É um cabo de guerra eterno, e oposto à dinâmica do mercado, em que a vitória de um grupo advém da derrota de outro. No mercado, superar a tendência natural a se agrupar e demonizar o diferente traz enormes benefícios: poder contar com uma rede de cooperação muito maior. Quanto mais troca, menos ignorância e demonização; isso vale tanto numa consideração econômica quanto intelectual. A lógica do mercado é a do ganha-ganha: é só ajudando que se é ajudado, criando valor que se obtém valor.
Isso é uma proposta para que todos pensem apenas em obter valor dos outros? De forma alguma. É o reconhecimento da única forma de organização social que não cria uma contradição interna entre indivíduos ou classes, e que harmoniza interesses individuais e coletivos, engendrando, ademais, um processo educativo que dá às pessoas o gosto de servir aos demais. A relação entre comerciante e cliente é o exato oposto da entre indivíduo e cobrador de impostos.
Por enquanto vivemos entre medos infundados de "revoluções comunistas" e "golpes fascistas", numa cultura com cada vez menos discussão imparcial e mais acusações pessoais de parte a parte. Dilma conseguiu, mediante um discurso perfeitamente convencional e esperado (e em que ela acenou explicitamente às causas da "direita apartidária"), acalmar os ânimos mais radicais, mas os protestos não devem cessar. Só espero não ouvir mais sobre supostas ameaças de golpe, que mais não fazem do que aumentar a chance... de um golpe!
Esquerdistas têm a vantagem dos grandes projetos e aspirações. Conservadores têm suas intuições no lugar certo: o Brasil que se desenha é cada vez menos um lugar propício ao progresso na qualidade de vida. Só os libertários, contudo, têm a solução, e não se confundem com nenhum desses grupos.